Reportagem: O Exército de Deus quer salvar o Texas e depois a América
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2010-03-23
SUMÁRIO: "Que tipo de música é que vocês tocam?", pergunta David Grisham ao rapaz todo vestido de preto que está a descarregar instrumentos musicais de uma carrinha à porta do bar War Legion Underground. "Rock", responde este, indiferente. "Ah... rock", reconhece Grisham, a Bíblia na mão e um sorriso vago no rosto. "Sei muito bem. Eu costumava ser grande fã. Ouvi muito disso no passado", lembra.
TEXTO: O passado foi o tempo em que Grisham era um "fornicador e adúltero" e vivia uma "vida escatológica", segundo a sua própria descrição. E acabou há oito anos, quando David "entregou a vida a Cristo". Agora, "arrependido e purificado", este habitante de Amarillo, no Texas, lidera um grupo de vigilantes cristãos cuja actividade tem vindo a tornar-se incómoda, por causa do extremismo da sua actividade. "Como nós, também Jesus Cristo era um radical", defende o pastor. O seu autodesignado Exército de Deus não tem um lugar de culto, antes "alvos" criteriosamente seleccionados para a prática de sessões de evangelização. O grupo segue um roteiro consagrado num chamado "mapa de guerrilha", onde estão assinalados os locais onde consideram ser preciso "fazer testemunho" de Cristo: bares frequentados por homossexuais, clubes de swingers, casas de strip-tease, lojas de produtos eróticos, grupos de conservação da natureza, organizações pacifistas, clínicas de planeamento familiar, clubes de astronomia ou gabinetes de astrólogas e cartomantes. "Os nossos alvos são todos os lugares associados ao sexo, bruxaria, paganismo, ocultismo e falsas religiões. . . Tudo o que é imoral e não é cristão", resume Grisham. Nesta noite, reuniram-se à porta do War Legion Underground para uma "acção" encomendada pelo pai do músico de uma das bandas em cartaz. "Ele pratica uma música satânica", explica David Grisham ao PÚBLICO, "com letras demoníacas que falam de doenças, utilizam palavrões e promovem a promiscuidade e o consumo de álcool". Com David está a sua mulher Tracy e o filho adolescente Shane. Seguram uma cruz de madeira de três metros de altura e distribuem literatura apelando ao arrependimento. Ao lado está Big John, um jovem imponente que já foi traficante de droga e membro de um gang, registando em vídeo as pessoas que entram e saem do bar (e também todas as perguntas da entrevista do PÚBLICO). Há pouco mais de um ano, as férias, fins-de-semana e todos os momentos livres de Grisham e família são ocupados em acções semelhantes um pouco por toda a cidade - e ocasionalmente noutros lugares do país, como Nova Orleães, durante o Mardi Gras. O "exército" comandado por David Grisham não só recorre à nomenclatura bélica como traja uniformes militares - calças de camuflado, botas. . . No entanto, a primeira coisa que o pastor faz questão de salientar é que o seu grupo não advoga nem pratica a violência. "Mas há uma guerra espiritual entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo. E essa é uma guerra sem tréguas", diz. "Chamam-nos os taliban americanos, mas nós não somos terroristas. Só tocamos nas pessoas para as abraçar", garante. Pelo contrário, continua, é o Repent Amarillo que frequentemente é alvo de ataques e intolerância religiosa. "As pessoas insultam-nos e já fomos agredidos fisicamente", refere. Outro ponto em que Grisham insiste é que o seu movimento é estritamente religioso e não tem nada de político - apesar de, nota, "como cristãos, renegarmos toda a plataforma do Partido Democrata". O pastor tem péssima impressão do Presidente Barack Obama, que "é o mais liberal que a América já teve" e cuja eleição considera ser "um sintoma" da laicização do país. "A nossa sociedade está a afastar-se de Deus e a seguir numa direcção errada. E a culpa nem é de Obama, é algo que tem vindo a acontecer há muitos anos. O diabo tem vindo a tomar conta da cultura", lamenta. "Nós gostávamos de mudar isso. É por isso que operamos como a igreja do primeiro século e pregamos na rua. Não porque queremos uma teocracia, mas antes uma "culturocracia": um regime em que as instituições funcionam de acordo com uma cultura que é liderada pelo Cristianismo", esclarece. O clube de swingers fechouNo The Jungle, um dos sete clubes de strip-tease da cidade, as visitas frequentes dos membros do Repent Amarillo não provocam especial comoção. "Eles ficam ali fora com a cruz, e dizem aos clientes que entram e saem que eles vão para o inferno. Só que ninguém lhes liga nenhuma", contou ao PÚBLICO o gerente do estabelecimento, que garantiu que a presença do grupo religioso nunca afectou o movimento. "Eles são um pouco inconvenientes mas nunca nos prejudicaram e por isso ignoramo-los", acrescentou. Mas nem toda a gente consegue ignorar as acções do "exército" de David Grisham. Por exemplo, Monica Mead, que disse ao PÚBLICO ter sido forçada a "uma vida de eremita" na sequência do ataque lançado pelo Repent Amarillo contra o seu clube Route 66. Trata-se de um espaço de festas, onde Monica e o marido Mac se juntavam, aos sábados à noite, com os restantes membros do seu clube de swingers. No final de 2008, o Repent Amarillo descobriu os seus eventos, e começou a marcar presença no passeio, todos os fins-de-semana. "Há gente a pregar na rua em todo o lado, e isso não me incomoda. O problema deste grupo são as suas actividades extracurriculares", explicou ao PÚBLICO. David Grisham apresentou várias queixas contra o estabelecimento, que foi obrigado pela autarquia a realizar uma série de obras para permanecer aberto. E denunciou publicamente as noites de swing, "uma actividade privada que só diz respeito aos envolvidos", diz Monica. Na sequência da exposição, o clube, onde se faziam festas de empresas, perdeu todos os seus contratos. Está à venda, mas sem compradores. A vida tornou-se impossível para Monica, que nunca mais pôde conviver com os seus netos depois de um filho e uma cunhada terem descoberto o seu "estilo de vida". Uma das participantes nas noites de swing foi despedida, depois de o seu patrão ter recebido um telefonema a informá-lo do seu envolvimento no clube. O dono de uma frota de táxis recebeu chamadas anónimas ameaçando a "denúncia pública" da sua empresa por transportar passageiros até ao Route 66. "O que eles fazem é perseguição, intimidação e assédio, sob o subterfúgio da liberdade religiosa e de expressão. Filmam as pessoas, conhecem os seus carros, sabem as suas moradas. . . Os que vivem na sua mira obviamente temem pela sua segurança", assinala a advogada Cristal Robinson, que representa Monica Mead contra o Repent Amarillo. O fim do "vive e deixa viver"Confrontado com as descrições do seu comportamento, David Grisham diz simplesmente que a sua missão é "salvar pecadores" e repete que o seu grupo "não deixará de ser zeloso" para atingir o seu objectivo - que é fechar todos os lugares marcados no seu mapa. "Já conseguimos acabar com o clube de swingers", orgulha-se. Mas o fundamentalismo do Repent Amarillo começa a tornar-se desconfortável, mesmo para a população daquela pequena cidade, uma aglomeração de pouco mais de cem mil habitantes em plena Bible Belt (a cintura religiosa dos EUA). As pessoas daqui descrevem-se como conservadoras e não escondem o seu desagrado com a evolução recente da sociedade local: com a chegada de "imigrantes que roubam empregos americanos", com o aumento de casamentos interraciais e com a aceitação da homossexualidade. Mas, apesar da retórica ultraconservadora que a maior parte não tem pudor em utilizar, Roy Rhyne, um enfermeiro gay nascido e criado em Amarillo, garante que a postura da população sempre foi de "vive e deixa viver". "As pessoas podem ter uma linguagem odiosa, mas não actuam. Toda a gente olha para o outro lado. Não sei de ninguém que tenha sido sistematicamente perseguido. Até agora", contou ao PÚBLICO. Mickey é proprietário do Furbies, um restaurante de hambúrgueres que ostensivamente serve uma clientela gay. Só por uma vez se cruzou com os protestos de David Grisham, que ignorou o restaurante mas incluiu a sua igreja episcopal no "mapa de guerrilha" por esta aceitar membros homossexuais. Mickey considera o Repent Amarillo "irrelevante", mas o seu parceiro Richard diz recear que o crescimento do movimento dê cobertura a acções violentas. Até porque Grisham trabalha na Pantex, uma unidade de montagem de armas nucleares nos arrabaldes da cidade. "Quem me garante que, num delírio, ele não resolve punir todos os pecadores de Amarillo usando material nuclear?"
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Paganismo