China: a fábrica do mundo também quer ter carro e casa própria
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DATA: 2010-06-06
SUMÁRIO: Acontecimentos como a greve na Honda e a vaga de suicídios na Foxconn estão a mostrar as dores de crescimento no império asiático.
TEXTO: Dez horas de turno são suficientes para fazer sair das linhas de produção quatro mil computadores Dell. Dez horas diárias de trabalho, quase todas de pé. No final do mês o salário não vai muito além dos 900 yuan, cerca de 107 euros. Do complexo industrial da Foxconn em Shenzhen, China, saem milhares de produtos que andam nas mãos dos consumidores de todo o mundo nos seus iPhones, iPods, telemóveis Nokia e computadores HP, Dell e Intel. Mas desde o início do ano, 12 trabalhadores tentaram acabar com a própria vida, dez acabaram por morrer. A fábrica do mundo está a sucumbir à pressão da competitividade. E saltou para as páginas dos jornais por razões pouco habituais. Depois do caso da Foxconn, empresa de Taiwan que há muito tem sido denunciada pela China Labor Watch, 1900 trabalhadores da japonesa Honda, em Foshan, cansaram-se das 12 horas de trabalho diárias, seis dias por semana a ganhar 1500 yuans (179 euros). Estão em greve desde 17 de Maio e o protesto interrompeu a produção de todas as quatro fábricas da Honda na China, incluindo as que são geridas com parceiros locais. Ainda que por razões diferentes, os dois acontecimentos mostram que a emergente economia chinesa está a caminhar, à sua velocidade, para se tornar num país desenvolvido. As condições de trabalho oferecidas pelo maior exportador do mundo não conseguem responder aos anseios do Governo chinês de aumentar o consumo doméstico (e assim sustentar o seu crescimento futuro), e as novas gerações não estão dispostas a trabalhar duramente a vida inteira sem nada em troca. A nova classe média já ultrapassa os 100 milhões de habitantes. Crescem hábitos de consumo e centros comerciais, dispara o preço do imobiliário (ver texto) e a inflação. A China já não quer ser só, e apenas, o país do baixo custo, apetecível para as multinacionais ocidentais. Quer comprar uma casa e ter um carro. Em suma, os trabalhadores anseiam ser remunerados justamente pelo papel que desempenham nesta poderosa máquina produtiva e exportadora. Desigualdade socialMas a desigualdade social que está a crescer entre arranha-céus e bairros de barracas preocupa cada vez mais o Governo chinês e a opinião pública. As dores de crescimento estão agora a dar de si. "Há um sinal de várias mudanças. A onda de suicídios na Foxconn, que emprega 800 mil pessoas, já é publicitada pelo Governo desde há um ano. Os jornais oficiais, como o China Daily, surgem com uma linguagem mais aberta e a expor o problema. Há uma intenção do Governo chinês em expor esta situação. O fosso entre ricos e pobres é cada vez maior e pode vir a prejudicar a paz social na China", observa Virgínia Trigo, investigadora do ISCTE e especialista em cultura económica chinesa. A esperada distribuição de riqueza, diz, não está a chegar a todos e a impaciência cresce. Eventos como os Jogos Olímpicos, em Pequim, ou a Expo Xangai mostram um país moderno, e a construção destas e de outras infra-estruturas "é um dos seus tripés de crescimento sustentável", analisa Gustavo Welcker, consultor da Win Mate International, empresa que facilita negócios na China. Para além da construção em massa, o país assenta o seu desenvolvimento nas exportações e na classe média em emergência. "Estamos a assistir à chegada de camponeses que ainda não estão no mercado e se incorporam no consumo", acrescenta. Associados, estes três factores contribuem para o crescimento de oito por cento ao ano da economia e dão estabilidade ao país mais populoso do mundo. É esta nova geração que está a empurrar a mudança. São muitos os jovens que trabalham na Foxconn, com idades entre os 19 e os 25 anos, que vieram do interior da China para trabalhar "num regime militarizado", aponta Virgínia Trigo. Não se integram, vivem numa rotina de "cama quente", trabalhando longas horas e dormindo em quartos partilhados por beliches sem comunicarem com o vizinho do lado. "Todos os dias repito o que fiz ontem. Gritam connosco o tempo todo. A vida é dura aqui", desabafou à Bloomberg um trabalhador da Foxconn, de unhas negras de sujidade. É proibido falar nas linhas de produção e os intervalos de dez minutos para ir à casa de banho só são permitidos em cada duas horas. "É curioso que esta empresa chegou a estar entre as Melhores para Trabalhar na China", lembra Virgínia Trigo. Na Honda, as características dos trabalhadores são diferentes e espelham outra tendência geracional. "Há muitos estagiários, de 19 anos, contratados pela empresa. É uma nova geração de chineses que não está disposta a suportar a diferença salarial que os seus pais suportavam", aponta. Os jovens trabalhadores do segundo maior fabricante de automóveis do Japão saíram à rua por causa dos ordenados. Não há intenções políticas por detrás. Bastam 800 yuan para a greve terminar. Aumentos indispensáveisPelo menos em público, a Honda ainda não arriscou fazer estimativas do custo da greve, mas serão centenas os modelos Accord e Civic que ficaram por produzir. Propôs um aumento salarial de 24 por cento, passo que Gustavo Welcker considera inevitável não só no construtor como noutras multinacionais. "Sem dúvida que vamos assistir a um aumento progressivo dos ordenados. Veremos como será a evolução da moeda, mas a China já se está a preparar para produzir em outsourcing daqui a duas décadas. É clara a sua influência em África e o cruzamento com empresários e bancos africanos. Conhecemos poucas marcas mundiais chinesas e podem testá-las nesta região antes de as lançar no mercado global. África será a fonte de mão-de-obra barata", antecipa. Ao sair da pele de uma economia emergente, de produção low-cost e eficiente, e oferecer salários mais justos, a China fará aumentar os preços dos bens em todo o mundo, dos brinquedos da Mattel à moda de Tommy Hilfiger. Caminha para o desenvolvimento - um processo natural, "mas à maneira chinesa", lembra Virgínia Trigo. O próprio papel dos sindicatos está a ser questionado internamente. Ao New York Times, Zheng Qiao, do Instituto das Relações Industriais, disse que a paralisação na Honda é um "desenvolvimento significativo na história das relações laborais da China". Um protesto deste nível "vai forçar o sistema actual de sindicatos a mudar e a adaptar-se à economia de mercado". Contudo, a investigadora do ISCTE lembra que o conceito de sindicatos chineses não é igual ao do Ocidente. A sua função é "harmonizar a vontade patronal com a dos trabalhadores". Organizam festas e visitam os colaboradores quando estão doentes. A sede em Pequim da Organização Mundial do Trabalho diz que o número de greves está a crescer, apesar de não existirem dados oficiais. E a juntar a todas as mudanças que chegam aos jornais a conta-gotas, há ainda a relatar a falta de mão-de-obra. Mais de 90 por cento das empresas instaladas no delta do rio das Pérolas - uma das mais importantes zonas industriais que engloba Hong Kong, Macau e parte da província de Guangdong - precisam de cerca de dois milhões de trabalhadores, refere a Bloomberg. Mais um ponto a favor da população activa neste lento jogo negocial por melhores condições laborais. Imobiliário em risco de rebentarA explosão da construção imobiliária nos grandes centros urbanos que acompanhou o crescimento da economia é agora a principal preocupação de economistas e responsáveis políticos quando se discute a sustentabilidade do modelo económico chinês. Embora os dados estatísticos disponíveis sejam reduzidos e pouco fiáveis, não existem dúvidas em relação à velocidade a que os preços das casas na China - principalmente nas grandes cidades - têm vindo a crescer. E se é verdade que existem razões para que os preços subam - como a migração em massa das zonas rurais para as cidades e a subida do poder de compra de uma parte significativa da população -, também parece claro que a valorização dos imóveis está neste momento a ultrapassar em muito aquilo que seria razoável. De tal modo que já são as próprias autoridades chinesas a admitir que se está a criar uma perigosa bolha especulativa no mercado imobiliário. Esta semana, foram tomadas por Pequim uma série de medidas, incluindo a reforma do sistema de impostos sobre o património, que têm como objectivo limitar o crescimento dos preços das casas. E, de uma forma surpreendentemente aberta, um dos membros do comité de política monetária do banco central chinês assumiu, numa entrevista dada no dia da apresentação da nova legislação, que o mercado imobiliário representa actualmente um sério risco económico e social para o país. "O problema do mercado imobiliário na China é agora muito mais fundamental e muito maior do que o problema do mercado imobiliário nos EUA e no Reino Unido antes da crise financeira", disse Li Daokui, citado pelo Financial Times. Este responsável assinala que não se trata apenas de ter uma bolha a formar-se que pode rebentar e inviabilizar a continuação do crescimento económicos. O problema na China é que, mais do que nos países ocidentais, a subida de preços é também um problema social, já que uma população com rendimentos ainda baixos, mas à procura de outras condições de vida, sofre bastante a cada subida de preços das casas. O mais provável é, por isso, que o arrefecimento do mercado imobiliário continue a ser, nos próximos meses, um dos principais objectivos das autoridades chinesas, mesmo que isso represente também um abrandamento do ritmo de crescimento da economia. Se tal acontecer, será certamente melhor do que um colapso repentino e doloroso do sector da construção ou, para as autoridades, o surgimento de um clima de insatisfação social e política. Sérgio Aníbal
REFERÊNCIAS: