Antevisão da Pública: As estrelas espanholas contra o franquismo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-06-25
SUMÁRIO: Virgilio Peret Ruiz fala-nos de além-tumba. Oficial aviador, chefe das forças aéreas espanholas em Marrocos, foi fuzilado pelos seus próprios companheiros, na madrugada de 18 de Julho de 1936, por ter recusado juntar-se ao golpe de Estado nacionalista que abriu caminho à Guerra Civil Espanhola.
TEXTO: “Não tive julgamento, nem advogado, nem sentença. As minhas filhas continuam a procurar-me. Até quando?”Francisco Escribano fala-nos de além-tumba. Pastor de cabras, tinha apenas 18 anos quando foi fuzilado, a 1 de Julho de 1941, por ter roubado comida, roupa e dinheiro para os republicanos. Com ele foram fuzilados o seu pai, dois tios e um primo. “Não tive julgamento, nem advogado, nem sentença. Os meus familiares continuam a procurar-me. Até quando?”Balbina Gayo Gutíerrez fala-nos de além-tumba. Professora, republicana, foi detida a 9 de Setembro de 1936 e fuzilada no dia seguinte. O seu marido, também professor, foi preso quando foi saber notícias suas e fuzilado menos de 24 horas depois. O casal deixou três filhas pequenas. “Não tive julgamento, nem advogado, nem sentença. As minhas filhas continuam a procurar-me. Até quando?”A pergunta repete-se 15 vezes: uma por cada um(a) dos 15 homens e mulheres que nos falam de além-tumba perante a câmara da cineasta Azucena Rodríguez. O seu crime? Serem republicanos, em alguns casos meros simpatizantes, ou apenas defenderem a cultura, a instrução, a justiça social. A mulher de Antonio Parra Ortega, ganhão assassinado nos primeiros dias da Guerra Civil e um destes 15, enterrou todos os livros que havia em casa porque “sabia que o tinham matado por ler”. O seu destino? Morrerem às mãos dos nacionalistas, dos falangistas, das forças do regime. Acabarem, muitas vezes, em valas comuns. Virgilio Leret Ruiz fala-nos de além-tumba através do rosto e da voz do cineasta Pedro Almodóvar. Francisco Escribano através do actor Javier Bardem. Balbina Gayo Gutiérrez através de María Galiana, veterana actriz de composição. São três dos 15 nomes da cultura espanhola que se manifestam Contra a Impunidade neste vídeo de dez minutos divulgado no dia 14 de Junho, encarnando outras tantas vítimas do franquismo. Sem música nem encenação, apenas com os seus depoimentos intercalados pelo som de tiros de espingarda, sem outra informação que não as histórias que contam. Histórias que, como Emilio Silva, presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH, www. memoriahistorica. org) e um dos impulsionadores da Plataforma Contra a Impunidade do Franquismo que está na origem do vídeo, disse ao jornal El País, justificam a sua existência: “Não estão nos manuais escolares, não são ouvidas. Ninguém sabe o que esta gente sofreu. ”Os 15 nomes que deram o seu contributo ao vídeo fizeram-no graciosamente, como diz Emilio Silva por telefone à Pública. “Alguns ofereceram-se mesmo sem os termos contactado. ” Para além de Almodóvar, Bardem e Galiana, são eles as actrizes Maribel Verdú, Carmen Machi e Aitana Sánchez-Gijón, a actriz e realizadora Pilar Bardem (mãe de Javier), a escritora Almudena Grandes, os actores Paco León, Juan Diego, Juan Diego Botto, José Manuel Seda e Hugo Silva, o cantor Miguel Ríos e o escritor Juan José Millás. Silva evoca um concerto realizado há seis anos nos arredores de Madrid em memória de vítimas republicanas do franquismo, onde alguns deles já haviam participado, para explicar porque crê que o empenho nesta causa vai prosseguir. “Há momentos em que as gentes da cultura saem para o espaço público com todo o seu capital simbólico — fizeram-no contra a guerra do Iraque, quando foi do derrame do Prestige na Galiza, fazem-no agora. Mas creio que o seu empenho nesta causa é diferente. É um dever de cidadão ocupar-se das e preocupar-se com as vítimas dos crimes do franquismo. ” Alguns viveram os tempos do franquismo, outros perderam familiares (o actor Paco León, por exemplo, é bisneto do desaparecido a que dá voz no vídeo). Juntos são uma pequena amostra dos milhares de espanhóis que se ergueram “contra a impunidade” dos crimes cometidos durante o regime de direita que saiu vencedor da Guerra Civil e controlou Espanha com mão de ferro a partir de 1939; contra o esquecimento de 113 mil vítimas desaparecidas durante os quase 40 anos do franquismo. É uma ferida que continua por sarar na sociedade espanhola, em parte devido à tardia criação de estruturas estatais de apoio. Foram precisos quase 30 anos para se lavrar uma lei em favor das vítimas — só em 2004 foi aprovada a primeira comissão governamental para as vítimas do franquismo, só em 2007 foi passada a Lei da Memória Histórica de Espanha, que reconhece oficialmente os crimes cometidos pelo “antigo regime” e coordena a busca e exumação de valas comuns. Tudo isto enquanto a ARMH, associação privada formada por Silva e pelo colega jornalista Santiago Macias para recolher testemunhos sobre as vítimas e ajudar na recuperação e identificação dos seus corpos, existia desde 2000. . . Mas a ferida continua a existir, como diz Emilio Silva à Pública, também porque o medo continua presente na sociedade espanhola e porque o interesse político não tem sido o que deveria ser. Afinal, o PSOE de José Luis Zapatero tem-se mantido nitidamente distante destas manifestações sociais, e Mariano Rajoy, do maior partido da oposição, o PP, acusou a campanha de apoio ao juiz Baltasar Garzón de “brutal e antidemocrática”. O presidente da ARMH diz-nos que “nenhum presidente da democracia realizou um acto público que terminasse com o medo das vítimas, e é muito curioso ver a pouca importância que os dois principais partidos espanhóis dão à situação. . . ”. A acusação de abuso de autoridade e jurisdição a Garzón por parte do Supremo Tribunal de Espanha, na sequência de uma acção judicial levantada por organizações de extrema-direita identificadas com os ideais franquistas, foi, assim, a “gota de água”. Em 2008, Garzón — que desmantelara o grupo terrorista GAL, investigara dezenas de casos contra a ETA e condenara o ex-dirigente do Atlético de Madrid Jesús Gil — lançou um controverso inquérito sobre os crimes do regime durante e após a Guerra Civil, declarando os actos de repressão franquista como crimes contra a humanidade. O inquérito foi encerrado ao fim de um mês, depois de se terem levantado dúvidas sobre a validade da jurisdição de Garzón sobre actos cometidos havia mais de 50 anos, por acusados já falecidos, e perdoados ao abrigo de uma amnistia de 1977, anterior à aprovação da Constituição espanhola. No entanto, as autoridades só acusaram o juiz dois anos depois do inquérito, na sequência de uma acção judicial de três associações de extrema-direita. O Conselho Geral do Poder Judicial, na sequência da anuência do Supremo Tribunal de avançar com o caso, suspendeu Garzón a 14 de Maio, embora o tenha autorizado a exercer no interim funções de consultor no Tribunal Criminal Internacional na Haia. Foi da indignação sentida pela sociedade espanhola perante as acusações a Garzón que nasceu a Plataforma Contra a Impunidade do Franquismo (www. contralaimpunidad. com). Primeiro, com nove dias de acções na Universidade Complutense de Madrid, com a presença de Almodóvar e Almudena Grandes entre outros, durante os quais se recolheram assinaturas, se projectaram documentários históricos e se ouviram testemunhos de vítimas do franquismo, culminando numa manifestação em defesa de Garzón convocada para o dia 24 de Abril e que reuniu, em 24 cidades espanholas, centenas de milhares de pessoas. Entre elas, muitos espanhóis que nunca haviam participado em iniciativas do género — mas, sintomaticamente, poucos ou nenhuns políticos. Depois, houve a apresentação pública do vídeo em Madrid no passado dia 14 de Junho, com a presença de familiares das vítimas evocadas: Hilda Farfante, filha da professora Balbina Gayo Gutiérrez, justificou na ocasião a importância do vídeo como um “grito contra um silêncio tão longo e vergonhoso. Nunca ninguém havia feito nada assim pelos nossos mortos”. Nos últimos dez dias, o vídeo, disponível no site oficial da Plataforma (www. contralaimpunidad. com), já somou perto de 80 mil visitas no YouTube (www. youtube. com/watch?v=Xf8oZKEejD8) e é o mais partilhado pelos leitores da edição online do El País (www. elpais. com/videos). No entretanto, já outras acções públicas tiveram lugar, como a leitura dos nomes de 1500 fuzilados no cemitério madrileno de La Almudena por 20 artistas (entre os quais, alguns envolvidos no vídeo) e outros tantos familiares de vítimas, no passado domingo. Nas últimas palavras do manifesto que Almodóvar leu na manifestação de Madrid, “investigar os crimes do franquismo não é delito”. Mas Garzón vai mesmo ser posto no banco dos réus — e por organizações que estão longe de reunir o consenso dos espanhóis. Uma delas, a organização de extrema-direita franquista Falange Española de las JONS, apenas reuniu 14 mil votos nas últimas eleições legislativas espanholas — e uma contramanifestação convocada por uma outra organização apenas logrou reunir cem pessoas. . . Não admira, por isso, que tantos espanhóis se tenham erguido em armas, indignados pelo que consideram ser uma operação de “branqueamento” de uma história sangrenta que continua a ter repercussões contemporâneas. Ao El País, Pilar Bardem, 71 anos, “primeira dama” da primeira dinastia do cinema espanhol, considerou todo este caso “a coisa mais grave que aconteceu à democracia espanhola” desde o golpe de Estado falhado de 1981. Emilio Silva concorda e diz que a manifestação de 24 de Abril “foi algo de muito importante, porque pela primeira vez foram representados aqueles que até aqui não eram representados, que eram considerados pelo poder como gente insignificante. Agora, essa insignificância chega ao seu fim. E nesse aspecto isto é algo de revolucionário”. O processoRegressemos ao vídeo. Primitiva Rodríguez, apoiante das guerrilhas antifranquistas, foi detida a 6 de Setembro de 1947, violada em frente do seu sobrinho e fuzilada. Quem lhe dá voz é Maribel Verdú, que interpretava a governanta republicana de um impiedoso oficial franquista em O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro. A sua voz ressoa-nos nos ouvidos quando lança a pergunta: “Até quando?” Emilio Silva diz não ser futurólogo. “Mas entrámos num processo social que não é único na história da humanidade. E todos sabemos que estes processos não param. ”Outros temas da Pública de DomingoNatália de Andrade, a diva tragicómica de Portugal, por Catarina Gomes- Natália de Andrade no Passeio dos Alegres de Júlio IsidroEntrevista: O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos, por Anabela Mota RibeiroBanda Desenhada: Os “conspiradores” de Barney & Clyde, por Gene Weingarten
REFERÊNCIAS:
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