Caetano: um objecto bem identificado
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-07-30
SUMÁRIO: Mesmo quando os seus discos frustram de algum modo as expectativas, Caetano Veloso encontra sempre forma de os superar – e se superar. E é nisso que se revela o seu génio.
TEXTO: O seu mais recente trabalho, “Zii e Zie” (tios e tias, em italiano), de 2009, gravado com os três jovens músicos da Banda Cê (do notável disco “Cê”, de 2006) que o têm vindo a acompanhar na estrada, ganha com a transposição para palco, onde só ouvimos sete das suas 13 canções. Com uma asa delta como base de cenário, que se vai transfigurando com as luzes e projecções no enorme ecrã que cobre o fundo do palco (sugerindo quer uma lona de circo, uma tenda, uma vela de barco ou uma proa em navegação contínua), Caetano e os três músicos (Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado) abrem a noite na exacta sequência das apresentações no Canecão do Rio, em Maio de 2009: “A voz do morto”, primeiro, numa exuberante homenagem a Paulinho da Viola, depois “Sem cais” e “Perdeu”, duas das melhores canções do novo disco, com o antigo e belo “Trem das cores” (de 1982) pelo meio. Por fim, duas canções marcantes de um período muito anterior: “Maria Bethânia” (1971), escrita em inglês já no exílio em Londres, e Irene, gravada ainda no Brasil, em 1969, antes da partida. A primeira, Caetano dedicou-a (como fizera no Rio) “ao grande homem do teatro brasileiro Augusto Boal”. Depois, mudou o rumo. Cantou “Volver”, um tango de Gardel (que Almodóvar incluiu no filme homónimo, com Penélope Cruz a fingir que cantava sobre a voz de Estrella Morente, a talentosíssima filha do grande Enrique – que, excelente notícia, cantará em Setembro em Portugal, integrado na edição deste ano do Festival de Flamenco) e duas canções, por sinal das mais fracas, de “Zii e Zie”: “Tarado ni você” e “Menina da Ria”, esta escrita para responder a uma promessa feita a (e em) Aveiro. São, ambas, assentes em “riffs” vocais e, na prática, deixam-se absorver por eles, sem qualquer subtileza. Mas, como sempre sucede porque Caetano é Caetano, tudo muda de novo. “Não identificado” redime, com novas vestes, as canções anteriores, e “Odeio” (único tema de Cê a soar na noite) abre caminho ao statement que é “A base de Guantánamo” (com imagens de Cuba e da Casa Branca projectadas no ecrã e luzes a “ensanguentarem” os músicos) e a “Lapa”, outro dos melhores temas do disco. E como nele citava “Água”, de Kassin (um dos mais notáveis músicos da nova geração, que integra o trio +2 com Moreno, filho de Caetano, e Domenico Lancelotti), cantou-a, numa notável versão. Isso antes de voltar a “Zii e Zie”, com a menos interessante “A cor amarela” e a, pelo contrário, muitíssimo interessante “Eu sou neguinha?” (é uma das melhores canções que ele jamais escreveu), agora com a guitarra ácida, certeira e por vezes dilacerante de Pedro Sá a moldar-lhe os contornos. Caetano simulou com os dedos abertos na cabeça umas hastes de veado (que, como se sabe, quer dizer “gay” no Brasil) e houve quem lhe respondesse quando ele repetiu “Eu sou neguinha?”: “És!”. Um equívoco que o cantor deve alimentar, com algum gozo, mas não tolda o sentido de tão extraordinária canção. O encore foi efusivo, primeiro com “Força estranha”, onde Caetano fez questão de celebrar o autor, gritando “viva Roberto Carlos!” (para ele, que fará 68 anos a 7 Agosto e que como Roberto se mantém pelos palcos, a letra terá um significado especial: “por isso uma força me leva a cantar (…)/ por isso é que eu canto, não posso parar/ por isso essa voz tamanha”). E, por fim, com a irresistível “A luz de Tieta” (escrita para o filme adaptado de Jorge Amado), com a plateia a repetir o refrão enquanto o pano descia. Se não foi um espectáculo dos que nos marcam para sempre, dos muitos que Caetano já deu, pelo menos esteve, na criatividade e concepção (voz, música, roteiro, luzes), a um muito bom nível na escala que se espera de Caetano Veloso. E isso já quer dizer muito. Caetano VelosoLisboa, Coliseu dos Recreios. Segunda-feira, 26 de Junho, 22hSala quase cheia4 estrelas (em 5)(repete dia 27 na mesma sala e dia 29 no Coliseu do Porto, também às 22h)
REFERÊNCIAS: