Os fabulosos irmãos Miliband
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2010-09-26
SUMÁRIO: Tragédia shakespeariana? "Remake" da velha guerra "fratricida" entre Tony Blair e Gordon Brown que marcou a política britânica nos últimos 16 anos? Ou nada disso? Esta é a história de dois irmãos que se tornaram naturalmente as duas estrelas do New Labour e que, por isso, estavam destinados a confrontar-se pela sua liderança - a 25 de Setembro. Uma história que começa no bairro judeu de Varsóvia e que (ainda) tem todos os condimentos para se tornar num drama. David e Edward. Caim e Abel? O herdeiro e o usurpador?
TEXTO: Se existe hoje um David que ocupa o centro da vida política britânica, ele chama-se, indiscutivelmente, Cameron, o jovem líder dos conservadores. A sua inesperada coligação de governo com os liberais-democratas de Nick Clegg é a grande novidade da política britânica. Os caminhos que decidiu trilhar para vencer a crise da dívida e do défice polarizam o debate. O Reino Unido está a passar por uma daquelas mudanças cíclicas que prometem alterar por muitos e bons anos a paisagem política nacional. Porventura, da dimensão daquela que Tony Blair e Gordon Brown lideraram a partir de 1994, oferecendo ao New Labour três vitórias eleitorais consecutivas. Por onde anda, então, o velho e derrotado New Labour, que quase ninguém o ouve? A escolher um sucessor para os dois gigantes que dominaram a vida do partido e do país nos últimos 16 anos. Saber-se-á o seu nome no dia 25 de Setembro, véspera da conferência anual do partido, em Manchester, quando estiver concluído um complexo processo de votação. Seria, segundo todas as previsões, uma escolha sem história. De há muito que o sucessor dos gigantes estava designado. Chamava-se David Miliband, fora a estrela em ascensão do blairismo e o herdeiro oficial de Tony Blair. Depois de uma carreira meteórica, entrara por mérito próprio no faustoso gabinete que o Foreign Office reserva ao seu chefe com apenas 41 anos de idade, um dos mais jovens de sempre. Tinha nos ombros todos os galões. Tudo mudou nos últimos quatro meses, levando a imprensa britânica a antecipar uma grande história. Nada mais dramático do que um duelo fatal entre dois irmãos. Desta vez, verdadeiros. Uma história digna de Caim e Abel? Ou apenas o remake estafado da relação tempestuosa entre Blair e Brown que marcou os anos gloriosos do New Labour nas duas últimas décadas? Só uma certeza se mantêm na corrida à liderança do New Labour: o novo líder chamar-se-á Miliband. Surgiu, entretanto, uma enorme dúvida: David ou Edward? O irmão mais velho ou o irmão mais novo? Quem fará o papel de Caim? Quem "traiu" quem? Ou talvez as coisas não pudessem ter sido de outra maneira. A explicação para este destino invulgar dos dois irmãos Miliband talvez tenha de ser encontrada na bela casa de Primrose Hill, nas colinas do Norte de Londres, onde ambos nasceram e cresceram, bebendo filosofia e ideologia com o café da manhã ou tomando chá com as grandes figuras da esquerda intelectual britânica. Ou talvez seja preciso ir ainda mais longe, até ao bairro judeu de Varsóvia ou à comunidade judia de Czestochowa, de onde partiu uma diáspora que se havia de espalhar pela Europa e pela América, fugindo às guerras e fugindo do Holocausto. A chave do mistério tem, pois, um nome e tem uma história. A história é a de uma família de judeus polacos que se estabeleceu em Londres durante a II Guerra. O nome é o de Ralph Miliband, nascido Adolph, que veio a ser um dos principais teorizadores do marxismo na Inglaterra dos anos 60 e 70, que deixou uma obra vasta, alimentou a imaginação de milhares de estudantes e que foi pai de dois filhos, David, nascido a 15 de Julho de 1965, e Edward, nascido a 24 de Dezembro de 1969, destinados a brilhar na paisagem política britânica. É preciso compreender o pai para compreender os filhos. A história de Ralph Ralph Miliband percorreu a pé os últimos 100 quilómetros que o separava de Ostend, na Bélgica, e do último barco que saiu do porto em direcção a Dover, antes da ocupação nazi. Estávamos em 1940. Tinha 16 anos e acompanhava o seu pai, Samuel, um judeu nascido em Varsóvia que rumara a Ocidente depois da I Guerra Mundial, fugindo das perturbações e das perseguições políticas do seu país, e que se fixara na Bélgica depois de ver o seu pedido de asilo recusado pelas autoridades britânicas. A mãe, também judia de Varsóvia, ficou para trás com a sua irmã mais nova. Sobreviveu à ocupação graças ao apoio da Resistência. Só voltariam a reencontrar-se em Londres em 1950. Na Bélgica, Ralph militara na "Jovem Guarda" do Bund, o movimento socialista judeu. Os bombardeamento de Londres ofereceram-lhe a sua primeira oportunidade de emprego: carregador de mobílias. Remover o que era possível salvar dos escombros dos prédios atingidos pelas bombas era, então, um negócio em alta. O jovem filho de Samuel adorava salvar bibliotecas e não raro era visto a matar o trabalho sentado nas escadas de um prédio em ruínas a ler um livro. Alistou-se como voluntário na secção belga da Royal Navy, onde combateu. Desmobilizado em 1945, o último comandante do último navio despediu-se dele com um conselho: "Não votes no Labour". Clement Atlee preparava-se para derrotar os conservadores de Winston Churchill, o grande herói nacional, nas primeiras eleições do pós-guerra. Não se sabe em quem votou. Sabe-se que se inscreveu na London School of Economics (LSE), onde se doutorou e onde viria mais tarde a leccionar. Casou com Marion, nascida Dobra Jenta Kosak, a única sobrevivente de uma família de judeus de Czestochowa, Polónia, desembarcada em Londres aos 12 anos, sozinha, que conseguiu chegar à LSE onde foi sua aluna. Teve dois filhos, David e Edward, que o acompanharam quando foi ensinar para os EUA e, depois, para a Universidade de Leeds, antes de regressar a Londres e à London School. Não era um académico como os outros. Era um polemista brilhante, defensor da única causa a que jurou ser fiel na sua vida privada: a causa dos trabalhadores. Mas não era dogmático. Os alunos deixavam-se fascinar mais depressa pela sua capacidade oratória do que pelos seus livros. Escreveu alguns clássicos. Ironicamente, um dos mais famosos chamava-se Parliamentary Socialism e era sobre a forma como o parlamentarismo tinha matado o socialismo. Construiu uma reputação de grande capacidade intelectual mas também de grande honradez pessoal. "Era um intelectual socialista de enorme integridade", reza o seu obituário, publicado no diário britânico The Independent no dia 24 de Maio de 1994, pouco depois da sua morte. Sem saber que o seu mais duradouro legado talvez não fossem as obras teóricas que acumulam pó nas bibliotecas das academias. Podem ter sido - apenas o futuro o dirá - os dois filhos que disputam hoje a liderança do New Labour. Nos antípodas do socialismo "verdadeiro" com que sonhava mas a prova viva de uma educação exemplar. Também eles produto de uma aristocracia intelectual cujos pergaminhos hoje exibem com discrição mas com orgulho. "Como Cameron, [David] Miliband nasceu numa família que lhe conferiu grandes vantagens - e não apenas a casa elegante de Primrose Hill onde cresceu e ainda vive", escreveu há dois anos Gaby Hinsliff, editora do Guardian, quando esta história ainda parecia ter um só protagonista. Na frase seguinte, a editora do diário britânico recupera o segundo. "O que Ralph Miliband e Marion Kosak deram aos seus filhos foi algo ainda melhor: uma crença no poder das ideias para mudar o mundo e uma profunda autoconfiança, armazenada ao longo de anos de discussões numa casa que era uma sementeira de pensamento filosófico e político. " David e Ed habituaram-se desde crianças a abrir a porta da rua para deixar entrar Joe Slovo, o famoso dirigente da ala militar do African Nacional Congress (ANC, sul-africano), ou a tomar chá com Tony Benn, figura histórica da ala radical do Labour. "Quando The World at One se estreou na BBC à 1 hora da tarde, a casa parava", diz hoje Leo Panitch, editor da Socialist Register, fundada por Ralph. Toda a gente se reunia na sala, ouvindo as notícias comentadas em directo. "Jim Callagham disparou ao lado. . . ". Nos intervalos, os dois irmãos jogavam futebol ou sentavam-se em frente da televisão a assistir às séries para adolescentes ou aos filmes de cowboys. Nem David nem Ed renunciam às suas origens judaicas. Reivindicam-nas sem exageros. Ambos se orgulham dos pais e da sua capacidade para dar-lhes uma infância e uma juventude normal dentro da anormalidade intelectual de Primrose Hill. Quando, ainda como chefe da diplomacia, foi à Polónia em 2009, David visitou o jazigo da sua família no cemitério judeu de Varsóvia: "A minha mãe nasceu aqui, a sua vida foi salva por aqueles que arriscaram a vida para escondê-la da opressão nazi. Sou um entre milhões de britânicos em cujas veias corre sangue polaco". "David and I""Pensei muito antes de avançar", não se cansa de dizer Ed. "Falei com ele antes de me candidatar à liderança e ele disse-me: seria um erro se me colocasse no teu caminho". No dia 8 de Agosto, o irmão mais novo publicou um artigo no Guardian sobre a sua família e sobre o seu irmão. My Family Values. Para elaborar longamente sobre a sua relação com o irmão mais velho. David and I. É uma longa justificação. Quando Ed anunciou a sua intenção de lhe disputar a liderança, David limitou-se a dizer que a família era mais importante do que a política e que o seu amor fraternal sobreviverá a qualquer resultado. "Não me incomoda nada". Disse à BBC que era preferível enfrentar abertamente a ambição do irmão do que alimentar ressentimentos futuros. Uma óbvia referência à rivalidade nunca publicamente assumida entre Blair e Brown, que envenenou a vida do New Labour. Há um legítimo e há um usurpador? Ou apenas dois políticos excepcionais? É aqui que deve entrar a história de um e do outro. Aliás, contar a história do irmão mais velho é contar a história do irmão mais novo. David limitava-se a olhar para trás e a ver o irmão a seguir na sua sombra. Têm quatro anos e meio de diferença. Ed diz que é uma diferença suficiente para nunca terem rivalizado entre si. "Olhei sempre para cima". Talvez seja verdade. Mas essa pode não ser a toda a história. O Guardian escrevia recentemente que talvez se devesse dar menos atenção a Eton, onde estudou o actual primeiro-ministro e onde estuda a aristocracia britânica - do sangue e do dinheiro - e mais à Haverstock Comprehensive School, onde estudaram os dois Miliband e outras estrelas do firmamento intelectual britânico. Era uma daquelas grandes escolas públicas de Londres (não confundir com as public schools como Eton, que são privadas) onde os filhos da classe média intelectual se misturavam com os filhos da classe trabalhadora que, na altura dos Miliband, ainda era predominantemente branca e não multiétnica como actualmente. Com breves ausências em Leeds e na América, foi aí que David fez o ensino secundário. Sem notas brilhantes e com muito futebol. Seguiu para Oxford para cursar Filosofia, Política e Economia no Corpus Christi. Notado pelos seus óculos e o cabelo cortado à tigela, pela sua falta de jeito com as raparigas - não se lhe conhece nenhuma namorada oficial - e a sua concentração no trabalho intelectual, graduou-se com um first, a nota mais alta da classificação britânica. "Era desafiadoramente fora de moda" , diz o jornalista Ted Verity, seu companheiro de quarto. Rumou aos Estados Unidos para um mestrado em ciência política no MIT. Foi ainda de lá que se candidatou a um emprego no recém-constituído Institute of Public Policy Research, muito próximo das novas ideias que fermentavam em torno do que viria a ser o New Labour. A vaga era para um economista mas o jovem Miliband causou uma tal impressão que lhe encontraram outra, mais adequada ao seu currículo. Patricia Hewitt, futura ministra de Blair e uma das fundadores do instituto, citada pelo Guardian, lembra-se de um jovem "intelectualmente sofisticado com vinte e poucos anos mas com uma grande clareza de pensamento". "Cheio de novas ideias que pouca gente conhecia fora da América". Quando o ainda líder do Labour John Smith lhe pediu para criar uma Comissão para a Justiça Social, David foi a sua escolha óbvia como assistente. Entre grandes chávenas de café, ambos elaboram uma nova visão da justiça social que era "um novo caminho para o New Labour antes do próprio New Labour". John Smith morre inesperadamente. Blair é eleito líder, iniciando uma profunda revolução ideológica e política para a qual precisa de novas ideias e de novos talentos. Impressionado com David, mobiliza-o para a redacção do primeiro manifesto eleitoral do New Labour, aquele que lhe daria a sua maior vitória de sempre, na Primavera de 1997. Leva-o consigo para Downing Street para chefiar a sua "unidade política". Aos 29 anos, David mergulha num mundo novo em que tudo parecia ser possível. As ideias fervilham em Downing Street. Alistair Campbell, o porta-voz do novo primeiro-ministro britânico, chama-lhe Brains. Ainda hoje esta imagem de "distância" e de "arrogância intelectual" o persegue. Blair chamar-lhe-á depois o Wayne Rooney do gabinete [numa alusão ao ponta-de-lança do Manchester United]. David depressa percebe que as ideias podem ser muito importantes mas o poder de as executar está do lado dos políticos eleitos pelo povo. Em 2001, resolve sair da sombra de Blair para se candidatar ao Parlamento. Cai de pára-quedas em South Shields, uma cidade do Nordeste de Inglaterra onde as pessoas e os problemas estavam a anos-luz dos gabinetes londrinos. Quer "enfiar-lhes as suas teorias pela garganta abaixo", diz um amigo, o que obviamente não resulta. Começa a perceber que a política é uma coisa bem mais complicada do que o exercício intelectual a que se dedicava na protecção confortável dos gabinetes. "Abriu-me os olhos e mudou a minha maneira de pensar. " É eleito facilmente para Westminster numa circunscrição que era Labour desde sempre. Passa um ano no Parlamento antes de regressar ao governo do seu mentor. Primeiro, como secretário de Estado da Educação, depois como ministro do Gabinete para o Poder Local e as Comunidades. Em 2006, quando David Cameron inicia a modernização do Tories fazendo do ambiente a sua bandeira, quem melhor do que o outro David para responder ao desafio? Blair nomeia-o ministro do Ambiente. Em todas as pastas deixou marca. O seu pensamento e as suas políticas são pura "terceira via". Defende as propinas no ensino superior porque é a única maneira de preservar a alta qualidade das universidades britânicas e os benefícios de um diploma merecem bem algum esforço financeiro. Endurece as medidas contra o crime juvenil nas ruas e nas escolas porque afecta sobretudo as classes mais pobres. Coloca o Reino Unido na primeira linha das políticas de combate às alterações climáticas da União Europeia. A sua ideia, nunca concretizada, de atribuir a cada britânico um Cartão de Crédito de CO2 - porque "o clima é da responsabilidade de todos" - gera alguma polémica e muitos elogios. Nunca foi num yes man do líder. Manteve sempre uma distância que justificou como geracional. O próprio Blair achava que ele era apenas "80 por cento blairiano". Criticou Blair publicamente uma única vez: em 2006, quando Israel invadiu o Sul do Líbano para combater o Hezbollah. Hoje, quando os outros candidatos à liderança, incluindo Ed, o tentam colar ao antigo primeiro-ministro, assume integralmente o seu legado. Dificilmente se lhe ouvirá uma palavra contra ele, por mais popular que isso fosse. Quando Blair se afastou, a 27 de Maio de 2007, e toda a gente pensava que iria disputar a liderança a Gordon Brown, David contentou-se com o Foreign Office. "Ainda não estou preparado para o nº 10". A frase valeu-lhe as primeiras críticas da ala blairiana do partido. Terá ele, afinal, a endurance que se espera de um líder? O killer instinct?As duas perguntas perseguem-no até hoje. Em 2008, quando Brown atravessava um dos seus piores momentos, quiseram empurrá-lo de novo e ele recusou. Em 2009, quando James Purnell, outras das estrelas da sua geração, abandonou o governo, bastava-lhe sair também para desferir o golpe fatal. Voltou a recusar. "Fiz o que me pareceu melhor para o país no meio de uma crise económica. " À sombra de David e de BrownE o que fazia, entretanto, o irmão? Avançava na sua sombra. A mesma escola secundária. Filosofia, Política e Economia no Corpus Christi (terminou com um second first, a segunda nota na escala). Um mestrado na LSE. Harriett Harman, outra mulher poderosa do Labour, oferece-lhe o primeiro emprego na política, convidando-o a escrever-lhe os discursos. É ela que lhe traça o destino, quando o apresenta a Gordon Brown, que o leva para o seu gabinete no Tesouro. De speechwriter a conselheiro económico, a sua carreira far-se-á à sombra do "irmão-inimigo" de Blair. Em 2003 pede uma licença sabática e vai para Harvard, mantendo-se afastado de um dos episódios mais duros da guerra entre o nº10 e o nº11 de Downing Street em torno da reforma dos serviços públicos. Esta providencial ausência vai permitir-lhe hoje garantir que não apoiou a guerra do Iraque, que foi "um erro terrível". Ninguém o ouviu dizer publicamente que era contra mas ele argumenta que estava nos States. É pela primeira vez candidato a deputado (por Doncaster) nas eleições de 2005, reunindo-se ao irmão na Câmara dos Comuns. Em 2007, quando Brown chega finalmente ao nº10, convida-o para ministro do Gabinete e, um ano depois, para suceder ao irmão na pasta do Ambiente que passa a chamar-se da Energia e Alterações Climáticas. Ganha reputação na cimeira de Copenhaga. Os dois irmãos encontram-se finalmente à mesa do Gabinete, o núcleo do governo britânico reservado apenas aos seniores. Antes deles, só Austen e Neville Chamberlain em 1931 e Edward Stanley e o seu irmão Oliver, em 1938. Ed "é mais descontraído, tem mais sentido de humor mas tem o mesmo intelecto poderoso", dizem os seus amigos. "O meu irmão sempre teve mais sorte com as raparigas", limita-se a brincar David. A amizade entre ambos sobreviveu à guerra entre os dois líderes do New Labour. "Tinham o cuidado de se afastar quando o sangue jorrava, para não serem salpicados. " Ed fez mesmo questão de assumir o papel de ponte. Os blairianos habituaram-se a vê-lo como a face aceitável do "inimigo" e Brown mandava-o às vezes em missão de paz. O pai não os educou para serem fiéis de ninguém. Agora, quando toda a gente se preparava para entronizar David, ele decide estragar-lhe a festa. Caim? Usurpador? Se perder, não perde tudo porque é o mais novo. Se ganhar, provavelmente acaba com a carreira política do irmão. Tem chances? Sim. David ficará provavelmente à frente na primeira escolha do colégio eleitoral. Mas o sistema de preferências, que funciona se não houver um vencedor à primeira volta, pode dar-lhe a vitória à segunda ou à terceira. Até lá, a imprensa espera, pelo menos, algum sangue. David evita atacar o irmão. O inverso não é verdadeiro. Ed está a subir de tom, tentando colar o irmão ao Iraque (muito impopular nas bases do partido e no eleitorado) e à figura de Blair. Os seus amigos fazem passar a mensagem de que David, qual Hillary, reclama a liderança como um direito adquirido. É escusado dizer quem é o Obama da história. Usa as suas desvantagens em matéria de idade e experiência para se apresentar como o candidato que melhor pode fazer o corte com a era de Blair e de Brown. Posiciona-se à esquerda, mesmo que apenas ligeiramente. Critica o momento em que o New Labour se esqueceu da justiça social para só pensar no mercado. Quer diminuir o gap entre ricos e pobres e acaba de aderir a uma campanha para aumentar substancialmente o salário mínimo. Já conseguiu o apoio dos maiores sindicatos, que detêm mais de um terço dos votos do colégio eleitoral. Apresenta-se como o melhor colocado para unificar o partido. "As pessoas tendem a esquecer-se de que ele foi treinado na escola nixoniana de Gordon Brown, onde as campanhas de difamação postas a circular nos tablóides contra os ministros que ousavam contrariar o chefe eram prática corrente", lembra Nick Cohen, colunista do Observer e autor do célebre livro What"s left, precisamente sobre a esquerda face ao dilema do Iraque. David representa a ala direita, mais liberal, do Labour e carrega a herança da "terceira via", que nunca foi muito popular no partido. Não tem, dizem os observadores, o charme do seu irmão nem o toque popular que o caracteriza. É demasiado racional, concordam críticos e apoiantes. Brains. Aluno brilhante da escola de Blair, David fala para fora do partido. Foi ele quem disse que a visão de David Cameron sobre a Big Society deveria ser "levada a sério". "Ela ocupa um terreno que nunca deveríamos ter permitidos aos Tories colonizar". Também ele anda à procura de uma nova relação entre os cidadãos e o Estado. A sua mensagem é simples: "Temos de olhar para o longo prazo porque esta coligação não vai cair amanhã (. . . ). "Ele agarra nos problemas lendo tudo, desenvolvendo uma análise coerente e só depois formulando uma politica. O que o entusiasma são as grandes ideias de longo prazo", explica um colaborador. Faltam-lhe a intuição e o carisma de Blair. Ralph Miliband morreu em 1994, quando o filho mais velho dava os primeiros passos num New Labour que era tudo o que ele não defendia para o socialismo. Marion ainda está viva. "A nossa mãe não se importa, porque nenhum de nós é o seu candidato preferido para liderar o partido", esclarece Ed. Marion prefere Diana Abbott, que é mulher, negra, da ala radical, que não falhou uma única manifestação contra a guerra do Iraque e que não se cansa de dizer que tudo o que o Labour não precisa é de dois intelectuais a dirigi-lo. Regresso a Primrose Hill Mas não há nada a fazer. A nova geração vai chegar ao poder no partido depois de ter passado toda a sua vida política no poder do país. Talvez por isso, muitos observadores digam que a política apenas lhes interesse "por metade". David confessou recentemente a uma revista americana que não fez frente a Brown em 2007 porque coincidiu com o processo de adopção do seu filho mais velho, Isaac, que era "a coisa mais importante para mim". É casado com Louise Shackelton, violinista da Orquestra Sinfónica de Londres, que nunca terá pretensões a Cherie Booth. Só agora aceitou afastar ligeiramente a cortina que sempre cobriu a sua intimidade familiar. Não deu explicações quando, em 2004, partiu para os EUA para adoptar o seu primeiro filho, Isaac, e a imprensa tablóide não hesitou em acusá-lo de estar a "comprar" crianças. Cash for Baby. Desde aí, "mantém um instintivo horror à imprensa", diz um amigo. Em 2007 adoptou um segundo filho, Jacob, também nos EUA, onde a sua mulher nasceu e cresceu. David e Louise tentaram durante nove anos conceber uma criança. Superaram a frustração "e a dor" e decidiram adoptar dois bebés recém-nascidos. "São verdadeiros heróis aqueles que abdicam de ter um recém-nascido", disse David, justificando a sua opção. Fizeram-no na América, onde existe a prática de os pais biológicos darem os filhos para adopção antes do seu nascimento. Cash for Baby. David nem sequer ripostou. Ed vive desde 2004 com a namorada, Justine Thornton, uma brilhante advogada educada em Cambridge e especializada em direito ambiental, de quem tem um filho de 14 meses, Daniel, e outro para nascer. Tudo isto se passa longe da ribalta. Há vida para além da política mesmo para quem bebeu a política desde nascença. Resta saber se esta família (a)normal sobreviverá à guerra "fratricida". No fim de contas, seja qual for o irmão que vença, tem pela frente uma longa e difícil tarefa: construir o pós-New Labour para responder ao pós-New Tories. O David tory é ainda o homem do momento e muita coisa dependerá daquilo que fizer nos próximos dois anos. Mas a paisagem politica britânica mudou com a sua eleição. Os fabulosos irmãos Miliband terão de provar que são capazes de o compreender. Antes precisam de provar que a história não se repete. Que não haverá, como em 1994, um "irmão" mais novo que conquista o lugar que o "irmão" mais velho considerava seu por direito próprio. Que tudo se fará à luz do dia e civilizadamente.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA