Reportagem: As mulheres unidas de São Gonçalo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-09-28
SUMÁRIO: Viver na aldeia é lindo para quem pode. Cá fora, o paraíso. Dentro de casa, álcool, violência, abuso. Na Flor do Cerrado Marina Silva já ganhou.
TEXTO: Se o rapaz desconhecesse o Brasil o elogio podia não querer dizer muito. Mas ele é biólogo, vem da Amazónia, conhece o nunca-visto. E quem faça a estrada de Diamantina para São Gonçalo do Rio das Pedras só pode concordar: há-de ser das mais bonitas do Brasil, apesar de difícil, ou também por isso. Trinta e dois quilómetros aos balanços num caminho de montanha, terra e pedras. Quase duas horas, se o tempo ajudar. E no fim, essa outra recompensa, São Gonçalo: cachoeira, cavalos pelas ruas, igrejas que parecem casas, pequenas pousadas rurais, uma siriema de bico vermelho a caminhar, pernalta, indiferente. É assim que a aldeia acorda, quando não é o galo é a siriema. E mesmo depois de tantos meses sem chuva, tudo parece pujante, ipês, buganvílias, orquídeas, bananeiras, ou árvores de que a Europa nunca terá ouvido falar como a mutamba, a macaúba, a pacari ou a amesca. São justamente estas árvores que dão força às mulheres unidas de São Gonçalo. Porque o lugar é remoto e lindo, mas dentro de casa muitas vezes é só escuro: álcool, violência, abuso. E sabem em quem vão votar estas mulheres? Lula não gostaria da resposta. Lá chegaremos. A união tem um nome: Flor do Cerrado. Uma casinha de portadas abertas, numa calçada de São Gonçalo. A esta hora, quatro da tarde, está quase vazia, porque as mulheres ainda andam nos seus trabalhos. A excepção é a mestiça Nelma, que já despejou champôs e amaciadores nos frascos e agora cola rótulos. Mutamba para cabelos normais, macaúba para cabelos secos, pacari para cabelos oleosos, amesca para esfoliar. As 30 mulheres da Flor do Cerrado fazem cosméticos com as plantas da região. Foi o que puderam inventar num lugar tão pequeno que nem se nasce mais aqui. Os de cabeça pequena"Os meus irmãos ainda nasceram em casa, mas eu já nasci num hospital em Diamantina", diz Nelma, de 38 anos e já avó. Quando as contracções não aguentam a viagem - para Diamantina ou para o Serro, as duas cidades históricas mais próximas -, há nascimentos na estrada. "Já teve vários. Agora vai melhorar, porque está chegando o asfalto, já começaram as marcações. " E isso vai ser bom? "Vai vir muita coisa boa, mas também muita coisa ruim. Aqui é maravilhoso. Eu já morei em São Paulo. Agora sempre que saio volto doidinha. Não quero mais morar em cidade grande. Com toda a dificuldade, prefiro aqui. Tem pequenos furtos, coisa de moleque, um celular, um dinheirinho, mas não tem aquela violência da cidade. As janelas ficam abertas o dia todo. "Que faz uma moça pobre do interior como Nelma quando chega a São Paulo? "Eu fiz de tudo, trabalhei de babá, de faxineira, de dama de companhia para idosos. " Voltou a São Gonçalo quando engravidou, aos 17 anos. "O pai não assumiu, eu vim para dar um tempo, encontrei o marido de hoje e fiquei. " Teve outro filho, entretanto, alérgico, o que em São Gonçalo é mesmo um problema. Os hospitais mais perto nem mandam ambulância. "A pessoa é que paga um carro, 100 reais [43 euros], e isso é o mais barato. Tem uma médica, uma enfermeira, um dentista, mas fora do horário do posto de saúde cobram a consulta, 180 reais [78 euros]. "Há escola até ao fim do liceu. Não há bancos. Só há recolha de lixo não-orgânico uma vez por mês. Mas sobretudo há falta de emprego e os homens ficam na pracinha a beber cachaça. Foi assim que a Flor do Cerrado começou. "Aqui tem homens que são cabeça-pequena, ignorantes, batem na mulher, nos filhos. E algumas mulheres sentiram necessidade de conversar. " Juntaram-se em volta de uma arte-terapeuta que tinha vindo de Belo Horizonte para viver em São Gonçalo. "Era uma pessoa meiga, que sabia dar conselhos. E ficámos um ano a conversar, a fazer passeios. Aí a gente percebeu que o problema era que não tínhamos dinheiro. " A dependência. "Então decidimos fazer cosméticos. O que é que levanta a auto-estima? Beleza. Cuidar do cabelo, da pele. "
REFERÊNCIAS: