Há sapos, cobras e lagartos à espreita na cidade do Porto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-09-30
SUMÁRIO: Na paisagem urbana, à beira de uma auto-estrada ou num jardim rodeado de trânsito, escondem-se habitantes que associamos às paisagens naturais. Sapos parteiros, rãs verdes, tritões, salamandras e cobras com pernas. A biodiversidade das cidades também precisa de ser protegida, alertam os biólogos.
TEXTO: A história de Raquel Ribeiro, bióloga do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO) da Universidade do Porto, podia ter um título que já vimos noutro lado: a princesa e o sapo. E quem fala de sapos fala de rãs, salamandras, licranços, cobras com pernas. . . Todo o tipo de répteis e anfíbios de que se foge sem razão nenhuma. Estamos apenas a 20 quilómetros do centro da cidade do Porto, em Valongo, com as serras de Santa Justa e Pias e o rio Ferreira por paisagem. Raquel Ribeiro levanta pedra atrás de pedra em busca de um sinal de vida. Mergulha o camaroeiro e a própria mão nas poças de lama. Procura répteis e anfíbios. E sabe como manter uma rã verde na mão, ou uma lagartixa, evitando que salte ou escorregue, sem a magoar. O sorriso esboça-se na sua cara ao encontrar algo que se possa mostrar. "Ah! Encontrei uma larvinha", grita, de larva de sapo parteiro (Alytes obstetricabs) na mão. "É das mais difíceis de encontrar aqui", diz sobre esta espécie cujo macho carrega os ovos consigo até à eclosão. É uma larva já com patas. "Daqui a dois meses já será um sapo", diz sobre a metamorfose que o exemplar que tem na mão sofrerá nos próximos tempos, com a absorção da cauda e formação da boca. "Posso largá-lo?" Depois de admirada, filmada e fotografada a larva regressa ao charco. Mais à frente o camaroeiro recolhe um bebé de tritão-de-ventre-laranja (Triturus boscai). "Ainda têm brânquias nesta fase, mas vão ser reabsorvidas. Vão manter as patinhas e morar fora de água até que, daqui a três anos, acabada a fase de adolescência, entram na da reprodução. "Raquel Ribeiro reconhece que as meninas costumam fugir deste tipo de bichos: "Mas os meus pais sempre me ensinaram que todos os animais deviam ser respeitados. Mas não nego que com as cobras há sempre uma certa descarga de adrenalina. "Tem sido assim nos últimos anos, desde que iniciou o doutoramento sobre fragmentação do habitat e biodiversidade urbana. O objectivo é provar que as áreas urbanas, como a da cidade do Porto, têm uma biodiversidade rica, que precisa de ser protegida. Neste caso, no que toca a répteis e anfíbios. "Há mais répteis e anfíbios na área metropolitana do Porto do que em alguns parques naturais", frisa o catalão Miguel Carretero, também biólogo do CIBIO, orientador da tese de Raquel Ribeiro, que acompanha o passeio a Valongo. Os dois investigadores concentram-se agora num campo de erva fofa à procura de mais um morador habitual daquela zona: a cobra de pernas tridáctila (Chalcides striatus). A primeira avistada consegue escapar-se, mas a segunda acaba a posar para a máquina fotográfica: "O nome popular é fura-pastos, que eu considero o melhor nome. Vivem neste pasto fofo e saltam, parecem peixes fora de água, com estas patinhas curtas e o corpo serpentiforme. Parecem cobras mas, na verdade, são lagartos. Alimentam-se nas zonas de pasto do gado, onde não existem herbicidas. "Atlas fundamentalMiguel, especialista em lagartixas e um dos coordenadores da última edição do Atlas dos Anfíbios e Répteis de Portugal, publicada este ano pela Esfera do Caos Editores e na qual Raquel Ribeiro também participou, faz uma pausa numa perseguição cuidada atrás de um elemento fugidio, num muro - uma lagartixa de Bocage (Podarcis bocagei). "Parece que têm um botão de teletransporte. Quando pensam que estão em apuros desaparecem num ápice", diz sobre a espécie. Mais à frente consegue apanhar um juvenil que enfia num saco de rede para observar com atenção. "Estávamos esperançados de que existissem aqui duas espécies distintas. Mas a suspeita não se confirma. " O prisioneiro é solto e nunca mais ninguém lhe põe a vista em cima. "Daqui a cinco minutos está a fazer a vida normal, sem stress. "Antes dos trabalhos preparatórios do atlas, que se prolongaram por três anos, os biólogos asseguram que existiam regiões do país completamente desconhecidas em relação à biodiversidade de répteis e anfíbios. Trás-os-Montes e as Beiras, por exemplo, estavam muito mal estudadas, garantem. Foi deste princípio que Raquel Ribeiro partiu para o seu doutoramento centrado na biodiversidade da área metropolitana do Porto. Mas Miguel Carretero explica que este trabalho na malha urbana é um trabalho de pesquisa com regras peculiares: "É um trabalho com regras diferentes. Às vezes vamos a um lugar bom em termos de biodiversidade e logo ali ao lado passa uma auto-estrada. Num parque natural isso não existe", diz o biólogo, referindo-se a uma das maiores ameaças a répteis e anfíbios habitantes das áreas urbanas - a morte por atropelamento. A poluição é outro problema. Entre as espécies mais sensíveis estão a rã-ibérica (Rana iberica) ou a salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica). Outras espécies até são bastante resistentes à poluição, como a rã verde: "Conseguem viver em sítios muito nojentos. Esta ribeira, por exemplo, um pouco mais abaixo já é bastante poluída", diz Carretero. Raquel Ribeiro frisa que, na área metropolitana do Porto, basta ir até ao Parque da Cidade para ver sardões, por exemplo: "Os mais pequeninos são cheios de bolinhas, tão giros. E encontrei um tritão palmado [Triturus helveticus]. Nem queria acreditar", diz sobre a espécie identificada como estando em clara regressão no último levantamento nacional. Um lagarto simpáticoA bióloga de 31 anos, que teve de consultar mapas sobre a área metropolitana do Porto, onde as aldeias que antes estavam nos arredores da cidade fazem hoje parte da malha urbana, conseguiu identificar 13 das 15 espécies de anfíbios registadas na região: "Uma delas, há muitos anos que não se vê por aqui, a Salamandra-de-costelas-salientes [Pleurodeles waltl]. " Quanto aos répteis, das 20 espécies registadas para aquela área, Raquel Ribeiro encontrou "quase todas". Em Portugal continental, segundo o atlas, há 17 espécies de anfíbios e 30 de répteis. "Algumas das espécies são muito difíceis de encontrar", diz a investigadora. "Todas precisam de ajuda", independentemente do estatuto de conservação que tenham, acrescenta Miguel Carretero. "Estamos, no geral, a perder diversidade. " Para o investigador, trabalhos como os de Raquel Ribeiro são essenciais para definir que factores devem ser evitados para impedir o desaparecimento das espécies. Ao contrário de mamíferos vistosos, os investigadores reconhecem que, no que toca à conservação, os répteis e anfíbios não são espécies que costumem contar com demonstrações de carinho popular: "O licranço [Anguis fragilis], por exemplo, parece uma cobra mas é um lagarto sem pernas, muito simpático. Mas não há quem convença as pessoas de tal. " Raquel Ribeiro explica que a espécie, de cerca de 20 centímetros, de cor prateada, que podemos encontrar junto a linhas de água, está associada a mordeduras dolorosas e venenosas. O que não podia estar mais errado: "Há um ditado que diz "Se a víbora o visse e se o licranço o visse, não havia quem existisse". Mas trata-se de um bicho muito inofensivo e calmo. E útil. Nas hortas os licranços comem todo o tipo de pragas da agricultura, como caracóis", explica a bióloga enquanto acaricia um exemplar de fêmea de licranço, na mão, muito sossegado. Mário Gandra, 60 anos, morador local, passa de carro e mostra curiosidade em relação ao trabalho dos dois investigadores que, de nariz pregado no chão, vão observando o terreno com atenção e levantando pedra atrás de pedra. "Andam a ver se há ouro? Lagartos, aqui, nunca vi. Mas cobras há!", diz com cara franzida. E não acredita que não façam mal. "Se vir uma passo-lhe por cima. "Raquel Ribeiro não podia estar mais em desacordo com a visita passageira. Nesta saída de campo, como em tantas outras, ela gostava de ter encontrado uma cobra. No Ano Internacional da Biodiversidade vamos publicar quinzenalmente, e até Novembro, reportagens sobre os trabalhos que investigadores portugueses desenvolvem em Portugal e no estrangeiro na conservação da natureza. Os conteúdos são da inteira responsabilidade do P2.
REFERÊNCIAS: