Casa de José Saramago em Lanzarote será uma "casa-museu vivida com cheiro a café português"
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-11-14
SUMÁRIO: A viúva de José Saramago, a tradutora e jornalista espanhola Pilar del Río, não pára. Dá-nos uma lição sobre o que fazer quando a morte nos estraga a vida.
TEXTO: Novembro é o mês de José Saramago. Numa entrevista à Visão, em 2005, o Prémio Nobel da Literatura 1998 contou que a determinada altura da sua vida foi "à procura da grande biblioteca, as Galveias, que não seria tão grande assim, mas para [ele] era o mundo". Na próxima terça-feira, dia em que o escritor português faria 88 anos, é atribuído o nome "Sala José Saramago" à principal sala da Biblioteca Municipal Palácio Galveias, em Lisboa. No dia anterior é lançado o livro José Saramago nas Suas Palavras, com organização e selecção do espanhol Fernando Gómez Aguilera (ed. Caminho) e a 18 de Novembro, no Palácio Galveias, realiza-se uma leitura da tradução de José Saramago do romance Anna Karenina, na iniciativa León Tolstoi e José Saramago - Dois Aniversários. Nessa noite, no Lux-Frágil, há o concerto de apresentação da banda sonora do filme José e Pilar, de Miguel Gonçalves Mendes, que se estreia também neste dia nas salas de cinema portuguesas. Pilar del Río estará em Lisboa na próxima semana, mas em São Paulo, na cerimónia do Prémio Portugal Telecom de Literatura 2010, onde o seu marido foi homenageado, falou com o P2 sobre os novos projectos da Fundação José Saramago, de que é presidente. A casa de ambos em Lanzarote irá funcionar como casa-museu com "cheiro a café português" e terá uma residência para escritores seniores. Lição sobre o que fazer quando a morte nos estraga a vida. José Saramago morreu a 18 de Junho e na próxima semana comemora-se o aniversário do seu nascimento. A Fundação José Saramago até chama a Novembro mês de Saramago. Estamos a trabalhar todos os dias: digitalizando material, preparando eventos. E além dos projectos que estão marcados para Lisboa durante a próxima semana, na comemoração do aniversário de José, a fundação projecta também acções de iniciação à leitura por todo o país, de norte a sul, um trabalho com miúdos para os iniciar no prazer da leitura. Um dos nossos objectivos é que a leitura seja um prazer. Queremos que as pessoas se vinculem a livros e, por isso, vamos lançar o Prémio de Fotografia Retratar Um Livro. A ideia é que, ao lerem um livro, os leitores encontrem uma imagem. Tirem uma fotografia, retratem algo. Vamos começar com a obra Nome de Guerra, de Almada Negreiros. Essas fotografias percorrerão depois o país, funcionarão como uma síntese desse livro. O projecto vai ser anunciado oficialmente por estes dias. Continuamos com a recuperação de autores que estão em zonas de sombra e está a ser feita a digitalização e reorganização de toda a obra de José Saramago que passará a ser de consulta pública na Casa dos Bicos. O que está a ser digitalizado? Os arquivos que se começaram organizar para a exposição A Consistência dos Sonhos?Sim e são arquivos vastíssimos. A exposição A Consistência dos Sonhos está montada e continua em exibição. Em breve vai para Madrid e depois para Itália, aumentada e completada, porque entretanto não só houve a morte de José, como se publicaram quatro livros novos, há umas quantas experiências novas, artigos de imprensa, etc. Onde ficarão esses documentos?Todo esse material irá para a Casa dos Bicos, em Lisboa. São papéis, primeiras versões, rascunhos, correspondência com outros escritores. Tudo o que é primeira mão de José Saramago ficará na Casa dos Bicos. Quanto ao resto. . . como a Casa dos Bicos não é um espaço infinito, é, aliás, muito limitado, a biblioteca de Saramago não cabe lá. Então, ficarão em Lisboa os livros que foram fundamentais para a formação de Saramago: os que ele traduziu; os que para ele foram definitivos. Os outros ficarão na biblioteca em Lanzarote, em Espanha, que vai ficar aberta ao público com uma dupla vertente. Funcionará tal como agora - já emprestamos livros -, mas estará também aberta para visitas do público. Tanto a minha casa de Lanzarote como a biblioteca. Vai haver um itinerário e durante várias horas do dia vai poder visitar-se o escritório onde Saramago escreveu Ensaio sobre a Cegueira. . . Como se fosse uma casa-museu?Uma casa-museu vivida. Durante várias horas estará aberta ao público e vai cheirar a café, porque vamos dar café português a todas as visitas. Passarão também pela cozinha, que é aberta, sairão pelo jardim. Irão à biblioteca e à sala de reuniões onde verão fotografias de Saramago em Lanzarote ou dele com escritores. A partir das três da tarde acabam as visitas e a casa continuará a ser vivida pelas pessoas que a habitam e que lá estão. Outro projecto que não é conhecido, porque ainda não se anunciou, é que por cima da biblioteca fizemos um apartamento. Um apartamento com uma vista maravilhosa, com uma sala grande, vários quartos, e estamos agora à procura de um patrocínio para passar a ser uma residência para um escritor sénior. Porquê sénior?Já há o Prémio José Saramago para escritores jovens, agora será para escritores já com alguma idade e que precisem de repouso. Estamos à procura de uma bolsa, que seja boa, patrocinada por uma entidade corajosa e nós colocamos à disposição a casa, a biblioteca. Queremos que os escritores que ali fiquem venham de todo o mundo, a única coisa que lhes vamos pedir é que dêem uma conferência, tenham um encontro com os leitores. Foi uma ideia de Saramago?Era uma ideia que ele tinha. As duas últimas visitas de escritores que tivemos em casa, que foram entre Fevereiro e Março, e o meu marido ficou doente em Abril, foram de dois escritores de reconhecido prestígio: Mario Vargas Llosa e Claudio Magris. A ambos Saramago ofereceu que, quando quisessem ir passar uma temporada ali, que fossem. Tem outras ideias para Lanzarote?Pretendo também que a sala de reuniões, onde se podem sentar 16 pessoas à volta de uma mesa grande, esteja à disposição de entidades culturais e de governos que queiram considerar que a jangada de pedra é Lanzarote. Que somos uma jangada entre a Europa, África e América e que, se querem reunir-se os países dos PALOP, se querem reunir-se para o Prémio Camões ou para o Prémio Cervantes, se querem reunir-se júris ou sessões culturais que tenham a ver com vocação de encontros entre América, África e Europa. . . a meio do oceano está uma jangada de pedra que ponho à disposição para esse fim. A sala estava idealizada assim, porque achávamos que a fundação também devia ter uma sede ali, enfim, tudo eram sonhos que não se puderam cumprir, porque a morte nos estragou a vida. A Casa dos Bicos, em Lisboa, onde ficará a funcionar a sede da fundação, abrirá para o ano?Espero e confio - e não ponho velas a santo António Costa porque não sei se santo António Costa é santo [risos] - que a 18 de Junho, aniversário da morte de José Saramago, se possam depositar as cinzas de Saramago em frente da casa e que esta esteja em condições. Há um projecto para mudar aquela área em frente à casa? Têm de remodelar a zona. Aquilo é um parque e tem de ser um jardim. Está dentro do plano de recuperação dessa zona de Lisboa. Então, o que vai ser? Diante da fundação, em algum lugar, vai haver simplesmente uma pedra, onde se inscreva: "Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia" (in Memorial do Convento) e um banco para que as pessoas se possam sentar olhando o rio, junto a uma oliveira. O resto têm de resolver. Tem de ser um lugar onde se possa espairecer e não pode ser um lugar de carros. É uma zona principal de Lisboa, tem um edifício emblemático de Lisboa, aquele lugar tem de ser recuperado. Estamos em Novembro e até Junho há tempo para o fazer, porque há muita mão-de-obra parada, muitas pessoas dispostas a trabalhar. São quantos andares?Quatro, quando vistos de fora, cinco na realidade. O piso da entrada é da Câmara Municipal de Lisboa e será o Centro de Interpretação Arqueológica, onde estão os restos romanos, árabes, as salgadeiras. No segundo piso, que se vê da rua, serão mostradas exposições temporárias, que vão rodando, relacionadas com o escritor e a obra: Saramago no seu tempo, Saramago e os escritores, livros que Saramago amou, como escreveu Memorial do Convento. . . No terceiro andar estarão as instalações da fundação propriamente dita e aí ficará também a direcção da Casa dos Bicos, que terá um responsável. E o quarto piso, que é o último que se vê da rua, é o da biblioteca. Será um sítio de trabalho, de investigação, de arquivo, etc. Esses arquivos estarão abertos a todo o público ou só a investigadores?Ainda não sei qual é tipo de protocolo que existe. Não sei como funciona, nem qual vai ser o tipo de segurança. Por fim, no último andar, que não se vê da rua, haverá todos os dias apresentações de livros, concertos, música de câmara, filmes não comerciais, debates, toda uma série de actividades que serão umas organizadas pela fundação e outras não. Pode ser uma apresentação de livro de uma editora que solicita o local, uma conferência de imprensa ou um congresso. Disse que a Casa dos Bicos terá um director?Haverá um director. José Saramago falou com uma pessoa, não posso dizer agora quem é, porque será o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, a anunciar esse nome. Será um curador para esses eventos e exposições?Será director da Casa dos Bicos, desde os actos que se realizarem no último andar até à organização da casa. Será uma pessoa com um altíssimo nível cultural, com capacidade para programar em distintos âmbitos culturais, seja da literatura, seja da música ou do cinema. É uma pessoa muito bem preparada, está relacionada com a universidade também, foi reitor. Pediu a nacionalidade portuguesa, já a conseguiu? Como está o processo?Um pouco atrasado, porque eu já não sou a mulher de um português, sou a viúva. Estou a fazer tudo pela via normal, como qualquer pessoa que pede a nacionalidade, alego coisas que para a burocracia não significam nada, como razões sentimentais. Quero pertencer ao país que produziu José Saramago e parece-me que sendo "presidenta" de uma fundação portuguesa, devo ser portuguesa. Não contam os anos que viveu cá?Nunca entendi a lógica burocrática. Claro que vivi ininterruptamente durante anos em Portugal. Suponho que não haverá problemas, porque estão a ser seguidos os trâmites burocráticos, como acontece com qualquer outro imigrante. O que não tenho é uma situação de privilégio. Um leitor colocou um comentário no Facebook da Fundação José Saramago e eu nunca tinha pensado nisto. Ele dizia que quando Pessoa morreu, Ricardo Reis, que vivia no Brasil, sentiu a necessidade de regressar a Lisboa. Quando Saramago morreu, Pilar del Río sentiu a necessidade de vir para Portugal e de ter a nacionalidade portuguesa. Parece-me uma razão mais do que suficiente para não ter a mínima dúvida. Entretanto em Espanha, em Abril, um acórdão do tribunal superior espanhol condenou Saramago a pagar ao Tesouro de Espanha impostos relativos aos anos fiscais de 1997, 98, 99 e 2000. São mais de 700 mil euros. O seu advogado pediu recurso ao Supremo Tribunal de Justiça. Ainda está em tribunal. Entendo pouco do assunto, porque não compreendo a lógica administrativa, legal. José Saramago tinha um só um centro de actividade económica - porque tudo o que ele recebia era através da sua agente literária, que enviava para a editorial Caminho, e por sua vez o editor Zeferino [Coelho] enviava para a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). Era-lhe descontado nos impostos e ele pagava, religiosamente, sem aldrabar nada, sem engenharias financeiras. Saramago era cidadão português. Era em Portugal que tinha a sua residência fiscal e legal, uma casa. . . Em que momento tinha de retirar dinheiro para pagar em Espanha? Já o perguntei muitas vezes aos inspectores e não me explicaram. Não sei. É um processo que se arrasta há muito tempo. Houve uma inspecção. Houve quatro problemas: três conferências e um artigo jornalístico no El País, onde Saramago colaborava habitualmente. Parece que em vez de ter descontado os 23 por cento como cidadão estrangeiro, descontou apenas 17 por cento. Esse é o único problema que Saramago tem: um erro burocrático de que ninguém se apercebeu. É um erro e ele disse que pagava a multa por isso. Mas sempre disse que por pagar os impostos no seu país nunca pagaria nenhuma multa. Porque Saramago não era um tenista, nem fez como alguns cantores ou artistas que saem do seu país e dizem que moram num paraíso fiscal para não pagar impostos. Não. Saramago pagava no seu país e não vai ser penalizado por o fazer. Também não vai ser penalizado por estar casado com uma espanhola. Confirma que durante este processo ele pediu ajuda ao Governo português?Sim. Sentiu-se acusado injustamente e pressionado pelo fisco espanhol e, como cidadão, pediu amparo ao Governo de Portugal. Falou com o primeiro-ministro e com o ministro das Finanças. E pouco tempo depois, o primeiro-ministro de Espanha e o primeiro-ministro de Portugal disseram-lhe que o assunto estava resolvido, que era um problema burocrático. E agora estamos nos tribunais. Viveu até ao último dia com esta dor. Com a dor de ter vivido honestamente toda a vida e uns senhores, sem se saber porquê nem como, a questionarem a sua honestidade. O escritor deixou um inédito, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas!, referência a um verso de Gil Vicente, um romance sobre o tráfico de armas de que escreveu 50 páginas. Já sabem o que vão fazer com ele?Não. O texto é tão absolutamente maravilhoso, tão útil e necessário que tem de ser publicado e vai ser publicado. Mas sairá de uma forma que tem de ser comovente, mas não comovedora de estremecimento emocional. Como? Ainda não o sei. Neste momento, o editor português, o brasileiro, a espanhola, o italiano e o norte-americano estão à procura da fórmula. São umas páginas tão extraordinárias que devem ser publicadas de forma especial. Na próxima semana estreia-se nas salas portuguesas José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes. Disse ontem [segunda-feira, dia 8] na cerimónia do Prémio Telecom que adorou o filme. As pessoas que nunca conheceram José Saramago diziam dele que era um homem vaidoso e distante. As pessoas de todo o Portugal que o conheciam - pois Saramago percorria Portugal - sabiam que era um homem acessível, cordial, afectuoso. Quem não o conheceu ou não pôde conhecê-lo, principalmente alguns fazedores de opinião, mostraram a imagem de um homem distante, soberbo. Esses vão ter agora de engolir um sapo, porque toda a gente vai ver como era Saramago. Era tímido? Claro que sim. Era melancólico? Sim. Mas era de uma afabilidade e cordialidade e de uma capacidade de expressão extremas. Era um homem de uma sensibilidade. . . era neto do avô Jerónimo. Era um camponês e um aristocrata do pensamento e das letras. Por outro lado, tinha o orgulho e a satisfação do homem da terra que vê crescer o trigo. Era um homem absolutamente admirável. Desde a sua morte, Pilar del Río ainda não parou. Olha, não tenho por que parar. Tenho só 60 anos. A jornalista viajou a convite da Portugal Telecom
REFERÊNCIAS: