Aprendemos que a democracia também está em recessão
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DATA: 2010-12-23
SUMÁRIO: Quando o poder económico se desloca do Ocidente para o Oriente e a crise financeira acelera essa transferência, mudam também as condições do combate pelos valores universais que ainda vemos como património da humanidade.
TEXTO: A democracia também pode entrar em recessão? Pode. É esta a resposta que fica da primeira década do século XXI. Tanto mais perturbadora quanto o século XX terminou com a convicção de que o mundo caminhava irreversivelmente para a sua consagração universal como o sistema que toda a gente, em todo o lado, estava disposta a reconhecer como o mais compatível com a condição humana. Na década de 90, a "terceira vaga" da democracia anunciada pelo cientista político Samuel Huntington, que se iniciara numa manhã de Abril em Lisboa, derrubava a Cortina de Ferro, avançava até às fronteiras da URSS e permitia a implosão quase pacífica de um império totalitário. Fukuyama proclama "o fim da História" e o reinado eterno da ordem liberal. A nova política externa americana assentava na convicção de que a expansão dos mercados e a interdependência económica seriam o campo fértil para a progressão democrática. A democracia estava no pico do mundo. Adquiria uma legitimidade que permitiu intervenções militares contra Estados soberanos em nome do dever de ingerência humanitária. Em 2000, o então secretário-geral da ONU Kofi Annan prometia uma nova doutrina internacional na qual "a soberania dos indivíduos se deveria sobrepor à soberania dos Estados". Em 2002, apesar do recuo americano (quando Bush sucedeu a Bill Clinton), nascia o primeiro tribunal internacional para julgar os crimes de guerra ou contra a humanidade cometidos por "indivíduos em posição de poder". Quando o lado negro da globalização emergiu a 11 de Setembro de 2001, a América não se rendeu. A "agenda da liberdade", inspirada pelos neoconservadores e anunciada por Bush como a grande panaceia para combater o terror, pareceu ganhar vida em lugares improváveis. Da "revolução laranja" na Ucrânia à "revolução dos cedros" no Líbano, passando pelas primeiras eleições no Iraque pós-Saddam. Mas a estratégia americana para a "democratização" do Grande Médio Oriente, a parte do mundo que faltava converter à modernidade, esgotava-se rapidamente no desastre iraquiano. Começava a "recessão democrática", enquanto a China emergia, oferecendo ao mundo um paradigma alternativo: o capitalismo autoritário. A queda do Lehman Brothers, em Setembro de 2008, encerrava um ciclo que tivera início com a vitória na Guerra Fria, deixando como legado o descrédito da América e da democracia. No mesmo ano, o Tribunal Penal Internacional emitia o primeiro mandado de captura contra um chefe de Estado no activo. Omar al-Bashir, Presidente do Sudão, acusado pela morte violenta de 35 mil pessoas no Darfur, passeia-se pela África, desafiando a legalidade internacional. O relatório da Freedom House (que mede a liberdade no mundo desde 1950) referente a 2009 constata "uma contínua erosão da liberdade à escala mundial": "Pelo quarto ano consecutivo, os recuos ultrapassaram os ganhos. " Intensificou-se a repressão contra os activistas dos direitos humanos e da democracia em grandes potências com regimes autoritários. Leia-se China e Rússia. Houve recuos na América Latina, África, repúblicas ex-soviéticas da Ásia Central e Médio Oriente. O balanço não chega, naturalmente, para anular os ganhos extraordinários registados desde 1989. Mas marca uma tendência. 2010 termina com dois acontecimentos paradigmáticos. O primeiro é o risco de guerra civil na Costa do Marfim, confirmando um padrão do qual a África tem dificuldade em libertar-se: a incompatibilidade entre eleições, mais ou menos impostas pela comunidade internacional, e a alternância no poder. O segundo foi a cadeira vazia que, este mês, marcou a cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz, pela segunda vez na sua história. A tragédia da Costa do Marfim confirma a grande lição da década: a euforia democrática com que terminou o século foi temperada por uma apreciação mais realista sobre a dificuldade de consolidar regimes democráticos mais ou menos dignos desse nome.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU