O último tecelão de Maçainhas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-12-27
SUMÁRIO: Há quem diga que os lobos estão extintos na serra da Estrela, o que não é totalmente verdade. Encontrámos alguns sobreviventes dessa espécie selvagem, rija e teimosa. Manuel Gonçalves, o último tecelão de cobertores de papa, é um desses seres cujo estilo de vida morrerá com eles. Esta é a primeira de uma série de cinco reportagens sobre os Lobos da Montanha.
TEXTO: É um edifício velho à beira da estrada em Maçainhas, uma aldeia a uns oito quilómetros da Guarda. "Artur Freire. Fábrica de cobertores" está escrito por cima o portão. Ao contrário da fábrica em frente, esta ainda funciona, graças à perseverança de José Pires Freire, filho de Artur, já desaparecido. Numa das divisões há vários teares mecânicos, operados por duas trabalhadoras. Noutra está, sozinho, o tear manual. É uma geringonça enorme e assustadora, embora de grande beleza. Um insecto gigante, uma espécie de animal pré-histórico de pêlo cor de madeira escura no dorso e branco de neve no peito. José Freire mostra orgulhoso as componentes da máquina feita de troncos e cordas. Cada peça tem a sua função e o seu nome. O fio de lã churra está enrolado no órgão. Chegou em meadas, de onde foi bobinada nas canelas, por uma mulher caneleira. Mas quem a enrolou em teia no órgão foi o tecelão, que tem de ser um homem. É ele que, de pé, nádegas assentes no peideiro, movimenta para um lado e para o outro o moço, que está agarrado à choupa, e que dá pancada na lançadeira. A liceira, fixa ao trombolho, divide os fios e tem presa a ela o balancé. Os fios são introduzidos nas puas do pente, que por sua vez se introduz na queixa. Por baixo, no rodete, vai-se enrolando o tapete já feito. Que porém anda não está pronto. Daqui segue para o pisão, uma máquina constituída por duas botifarras de gigante, onde é lavado com água e pisoado, para feltrar e ganhar corpo, e depois para a percha (ou carda), que lhe puxa o pêlo. Por fim, é colocado na râmula (ou râmbula), preso em cima e em baixo para esticar com a estronca, a secar ao sol. É um processo muito complicado, uma arte. Diz-se que começou nos tempos de D. Sancho II. Nos princípios do século XX havia uns dez teares, que chegaram a ser mais de 30 nos anos 40, só em Maçainhas. Toda a gente da aldeia fazia cobertores de papa. Hoje ninguém é capaz de confeccionar estas mantas densas, felpudas e quentes, tecidas com a lã comprida e grossa das ovelhas churras da região de Idanha. As fábricas fecharam, os teares foram desmontados, os tecelões extinguiram-se. É uma arte demasiado complexa e já ninguém a domina. Os velhos artesãos morreram e os jovens não querem aprender. Hoje as pessoas preferem edredons, ou cobertores industriais feitos em série, mais leves e de maiores dimensões. Uma manta de papa pesa três quilos e mede 1m70cm de largura. No entanto, na fábrica de José Freire há vários cobertores armazenados, junto ao grande tear. Uns brancos, outros barrentos, conforme são feitos com lã das cores naturais de ovelhas brancas ou castanhas, e outros com barras coloridas - as mantas lobeiras. Não é fácil encontrar Manuel Gonçalves (conhecido como o Cordoeiro por causa da profissão do seu pai, já falecido). Não está no Centro de Dia dos Trintas, nem em sua casa dos Meios, nem em nenhum dos cafés das duas aldeias contíguas. Não pode ter ido longe, com este frio e os seus 78 anos. A sua rotina é simples: vive nos Meios, mas passa a vida nos Trintas, com outros idosos. Dorme em casa, levanta-se cedo, porque a carrinha do Centro de Dia dos Trintas vai buscá-lo, para o vir devolver aos Meios depois do jantar. Mas hoje é domingo. Se não está nos cafés, só pode ter ido para casa. Os netos procuram-no por todo o lado, mas nada. Começa a ser um mistério. Só à terceira tentativa de lhe ir bater à porta com força, ele vem abrir. Lá aparece o Manuel Cordoeiro, saltitante, olhos claros de garoto. Estava a ver um filme pornográfico. O quarto só tem espaço para uma bandeira do Benfica, na parede atrás da cama, e, na da frente, um poster de Cristo e a televisão onde dois negros nus com pinturas vudu se esfalfam em cima de uma loira ruidosa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho mulher homem espécie corpo animal