Cortes salariais, desemprego, impostos... e agora juros altos
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.16
DATA: 2011-03-05
SUMÁRIO: Por si só, a subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu (BCE) no próximo mês poderia não ter um grande impacto. Mas, quando se junta a um desemprego elevado, ao agravamento da carga fiscal, à redução ou contenção salarial e à escalada dos preços dos combustíveis e dos alimentos, o cocktail torna-se explosivo.
TEXTO: Os juros dos empréstimos à habitação vão aumentar, bem como os custos do crédito às empresas, penalizando ainda mais o consumo privado e o investimento. Num cenário destes, dificilmente a economia escapará a uma recessão. A crescente pressão inflacionista, decorrente do aumento dos preços das matérias-primas energéticas e alimentares e da recuperação económica nas grandes economias europeias, nomeadamente a Alemanha, levou na quinta-feira o presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, a admitir a possibilidade de aumentar os juros em Abril. A "preparação" para a primeira subida de taxas desde o início da crise, depois de quase dois anos no mínimo histórico de um por cento, apanhou de surpresa os mercados, que só estavam a antecipar uma subida das taxas de referência mais para o final do ano. Caso venha a confirmar-se o aumento dos juros, o preço do dinheiro vai ficar mais caro para os bancos, que tenderão a fazer reflectir esse custo no financiamento às famílias e às empresas. O impacto sobre o crédito à habitação, que está geralmente indexado às taxas Euribor, pode chegar aos 80 euros este ano (ver texto na página seguinte). Já para as empresas, as condições de financiamento não só vão piorar, como poderá haver efeitos secundários no sector exportador, devido à subida do euro. "A subida das taxas de juro pelo BCE não seria dramática se fosse um movimento isolado, mas, na realidade, vem juntar-se à subida dos preços administrados, dos bens alimentares e dos combustíveis, à redução dos benefícios sociais, ao aumento de impostos e à persistência de um desemprego elevado", salienta Cristina Casalinho, economista-chefe do BPI. Neste contexto, conclui, é "mais um factor a agravar a hipótese de recessão", que consta das previsões das principais organizações internacionais e do próprio Banco de Portugal, mas continua a ser posta de parte pelo Governo. Juntando o já elevado nível de endividamento nacional à subida das prestações da casa, os particulares terão menos margem de manobra para poupar. A Deco (ver texto na página seguinte) prevê mesmo um aumento do número de casos de sobreendividamento este ano. Para não falar do incumprimento. "A partir do momento em que aumentem as taxas, vai aumentar o malparado", considera o economista João Duque. Europa a duas velocidadesIgualmente preocupante é o impacto que uma subida dos juros pode ter sobre o acentuar de uma Europa a duas velocidades. "Tem havido uma discussão a nível europeu sobre a possibilidade de o BCE ser mais complacente ao nível da inflação, permitindo que as economias mais avançadas tenham níveis de inflação mais altas, o que permitiria ganhos de competitividade nas economias mais fracas", explica Cristina Casalinho. Ontem, contudo, o BCE demonstrou que não é esta a sua posição. Para João Duque, o BCE está a olhar para a economia europeia como um médico, "cuidando dos órgãos vitais [a Alemanha, por exemplo] e desprezando o que não é". Uma postura que tenderá a acentuar as divergências de crescimento europeias. O código do BCETodos os meses, depois das reuniões do conselho de governadores do BCE, há quem siga muito atentamente a comunicação do presidente, Jean-Claude Trichet. O discurso é praticamente igual, mudando, quando muito, uma palavra ou uma frase. Mas, para os analistas, é precisamente aí que se adivinha em que direcção segue a política monetária do BCE. Ontem, depois de a autoridade monetária europeia ter admitido que é possível um aumento dos juros já no próximo mês, os analistas apressaram-se a fazer a análise ao discurso. Primeira diferença: pela primeira vez em muito tempo, o BCE não disse que as taxas de juro actuais - no mínimo histórico de um por cento - permanecem "apropriadas". Segunda diferença: Trichet disse que o banco iria manter uma "forte vigilância" quanto à subida dos preços, uma expressão que, quando usada no passado, sinalizou um aumento iminente das taxas de juro. "Durante o último ciclo de aperto da política monetária, a expressão "forte vigilância" foi usada um mês antes de todas as mudanças de política (excepto em Março de 2006, quando só foi usada a palavra "vigilância")", explica o banco JP Morgan, que definiu um código de palavras usado pelo BCE. Além disso, desta vez, o presidente do BCE disse que a política da autoridade monetária é "muito acomodatícia" (flexível) e não apenas "acomodatícia" como dizia nos últimos meses, o que pode indicar que a autoridade estará prestes a mexer nas taxas de juro. Quem é atingido pela subida das taxas de juroFamíliasSe as taxas de referência do BCE aumentarem no próximo mês, os bancos tenderão a reflectir o aumento do seu custo de financiamento nos empréstimos que dão às famílias, bem como às empresas. De acordo com o BPI, é possível que o BCE suba a sua taxa directora dos actuais 1 por cento para 1, 75 até ao final do ano, o que se traduziria num agravamento de 50 a 200 euros nas prestações mensais do crédito à habitação. A Euribor tem estado já a subir nos últimos meses e, de acordo com os analistas, deverá manter este ritmo, acompanhando a subida do preço do petróleo. Isto vai levar a uma menor procura de crédito por parte dos particulares, prejudicando os bancos. Além disso, vai pressionar o rendimento disponível daqueles que têm empréstimos, levando à redução do consumo, debilitando a capacidade de poupança e contribuindo para o aumento das situações de incumprimento. De acordo com Natália Nunes, do gabinete de apoio ao sobreendividamento da Deco, "o número de famílias em situações de dificuldade deverá aumentar este ano". "O cenário é preocupante, porque estamos a falar de famílias que viram o seu rendimento diminuído, seja pelos cortes salariais, seja por situações de desemprego, seja pelo aumentos de preços", explica. Em 2008, altura em que as Euribor atingiram os cinco por cento, dez por cento das situações de sobreendividamento que chegaram à Deco eram causadas só pela subida das taxas de juro. Natália Nunes diz que, actualmente, muitas famílias apresentam uma taxa de esforço elevada, em que mais de 40 por cento do rendimento vai para pagar créditos. "Neste contexto, basta uma pequena alteração do orçamento familiar para gerar problemas", conclui. EmpresasPara as empresas, tal como para as famílias, um aumento das taxas de juro teria reflexo imediato nos custos de financiamento. No caso das empresas que vendem sobretudo para o mercado interno, o aumento das taxas de juro, conjugado com a quebra da procura interna (decorrente das medidas de austeridade postas em marcha pelo Governo), "iria esmagar mais as margens e adiar decisões de investimento", considera Cristina Casalinho, economista-chefe do BPI. Para as empresas exportadoras, o cenário é aparentemente melhor, já que é alavancado na recuperação da economia mundial e, nomeadamente, europeia. Mas nem o sector exportador está isento de riscos. O simples anúncio de um possível aumento das taxas de juro em Abril bastou para aumentar o valor do euro face ao dólar nos últimos dois dias. Ora, "a subida da moeda única prejudica as exportações para fora do mercado europeu, sobretudo para os EUA e o Reino Unido, mas também para os mercados asiáticos", salienta Cristina Casalinho. Para dois dos principais sectores exportadores nacionais - os têxteis e o calçado -, o cenário é já de algum alarme. "Além de uma subida das taxas tornar o financiamento às empresas mais caro, pode aumentar o euro, o que penaliza a nossa competitividade", afirma Paulo Vaz, director da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP). Actualmente, o sector vende ao estrangeiro dois terços do que produz e, apesar de 80 por cento das exportações ainda irem para dentro da União Europeia, tem sido cada vez maior a aposta na diversificação e, nomeadamente, nos EUA, o principal mercado extracomunitário para exportação dos têxteis nacionais. "Basta uma valorização do euro, que os grandes retalhistas americanos reagem a uma diferença de cinco a dez cêntimos e deixam de comprar", conclui Paulo Vaz. No sector do calçado, que coloca fora de Portugal 95 por cento da sua produção, a preocupação é, também, a possível valorização do euro, que "pode condicionar a estratégia de crescimento nos mercados extracomunitários", explica Paulo Gonçalves, da associação do calçado, a APICCAPS. No ano passado, as exportações do sector para os EUA aumentaram 20 por cento. EstadoAo invés das famílias e das empresas, o impacto de uma subida dos juros do BCE sobre o Estado não seria directo. Só as emissões de dívida de curto prazo - os chamados Bilhetes do Tesouro - podem ser influenciadas pela subida das taxas mas, mesmo assim, o que mais influencia os custos a que o Estado se financia é o prémio de risco, que tem estado em alta nos mercados. No entanto, a subida das taxas tende a reduzir o rendimento disponível das famílias e a reduzir o consumo privado, o que, por sua vez, reduz as receitas do Estado decorrentes do IVA. Além disso, ao contribuir para uma recessão, o aumento dos juros prejudica indirectamente o Estado, que pode ver a sua tarefa de redução do défice mais dificultada do que previa.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA DECO