Tânia diz que António nunca lhe perguntou se ela queria o rim. "Ele é assim, mula"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-05-08
SUMÁRIO: Veio a psicóloga e perguntou a António Gonçalves se estava consciente dos riscos que ia correr. Se sabia que podia ficar na mesa de operações. Depois veio o médico, que juntou um cenário mais concreto: e se um dia for atropelado e perder o único rim com que vai ficar? E depois ainda vieram mais três médicas que o tentaram apanhar "em contradição", para se certificarem que queria doar o rim "de livre vontade". Anda há cerca de um ano a dizer que sim, que quer abdicar do seu rim para a mulher, que "ela não aguenta mais os tratamentos de hemodiálise".
TEXTO: Em 40 por cento dos transplantes de rins em que há dador vivo (a maioria continua a fazer-se com órgãos de cadáveres) não existe relação de consanguinidade com o receptor, a proporção mais alta desde que a prática deixou de ser ilegal. No ano passado, a quase totalidade das dádivas foram entre maridos e mulheres, mas também houve uma dádiva entre cunhados. Companheira de António há oito anos, Tânia Machado diz que "é mais difícil aceitar do que doar". Por isso, desde o início disse ao companheiro, que é pasteleiro e tem 37 anos, que não o quer, que "o rim podia vir a fazer-lhe falta". "Ele nunca tinha feito análises e, por causa de mim, já foi todo picado. Nunca me perguntou se eu queria o rim. Ele é assim, mula", brinca a operadora de call center de 27 anos. Estão à espera de ser chamados para o transplante. Até 2007, este tipo de dádivas eram proibidas em Portugal - apenas eram permitidas quando existia relação de parentesco até ao terceiro grau. A ideia era evitar o tráfico de órgãos, mas constatava-se que a interdição era, em muitos casos, um entrave ao transplante. Desde que a lei mudou, o número de transplantes de dadores vivos - a maioria são de rins mas também é possível doar partes do fígado - tem aumentado. A excepção foi o ano passado, em que houve um ligeiro decréscimo, mas enquanto em 2008 os dadores não consanguíneos representavam 29 por cento do total, no ano passado atingiram uma proporção recorde: dos 51 transplantes, 21 são deste tipo (41 por cento). Constata-se que a lei abriu a porta sobretudo à dádiva entre maridos ou mulheres: dos 21 transplantes entre pares não consanguíneos realizados no ano passado, 20 envolveram pessoas com relações de conjugalidade; em 2009, dos 65 transplantes, 19 foram entre cônjuges (nove de marido para mulher, o mesmo número de esposa para marido e um em união de facto); e em 2008, o primeiro ano em que a lei foi aplicada, apenas sete dos 54 transplantes eram não consanguíneos, todos entre cônjuges (cerca de 13 por cento). Ana não quis o rim do filhoAna Cristina Pereira, professora de 43 anos, teve que esperar pela entrada em vigor da lei mas foi a primeira a ser transplantada com um rim do marido, ao abrigo da nova lei. Foi há dois anos e hoje tem uma vida normal. Poder ser o marido a dar-lhe o rim significou que pôde dizer que não à oferta do filho, que mal fez 18 anos insistia que queria dar o rim à mãe. "O meu filho não se calava. " Ela, porém, nunca quis - só pensava que ele agora era jovem, mas que, "com 40 anos, mesmo uma pessoa normal começa a perder a função renal e com a esperança de vida a aumentar". Em 2009, nas doações em que existem relações de sangue, sete filhos doaram os rins aos pais e 12 pais fizeram o mesmo aos filhos. Mas a maioria dos transplantes foram entre irmãos (26 do total de 65 transplantes) e houve mesmo um avô que doou a um neto. No ano anterior tinham sido cinco filhos a doar aos pais, 19 transplantes de pais para filhos, o mesmo número entre irmãos. "A diálise não é vida"Desde que Tânia descobriu, aos 25 anos, que sofre de insuficiência renal crónica, só sobrevive fazendo hemodiálise três vezes por semana, quatro horas por dia. "A diálise não é vida para ninguém", diz António, acrescentando que ele é "supersaudável". Dos dez mil portugueses que têm que fazer hemodiálise, cerca de 20 por cento estão em lista de espera para transplante - eram 2111 em 2009. Nos doentes que iniciaram tratamento por hemodiálise no ano passado, as principais causas da insuficiência renal eram a diabetes e a hipertensão arterial.
REFERÊNCIAS: