“Estrada de Palha”, um filme de resistência em estreia mundial no Curtas Vila do Conde
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-07-10
SUMÁRIO: “Estrada de Palha” é filme de resistência, western-chispalhada sonorizado na perfeição pela música do Legendary Tigerman e Rita Redshoes.
TEXTO: “Western transmontano? Não me lixes!”, comentava amigo a propósito da ideia de um western português cujo herói é um pastor de montanha emigrado, que regressa ao Portugal sem lei do princípio do século XX para vingar a morte do irmão. É precisamente aí que reside a corda bamba em que Rodrigo Areias decidiu equilibrar a sua segunda longa-metragem, “Estrada de Palha”, apresentada em estreia mundial ontem à noite, em tempo de abertura do Curtas Vila do Conde 2011. Um pouco como Kelly Reichardt em “O Atalho” (actualmente em exibição), mas de modo mais paisagístico, menos austero, Areias utiliza as coordenadas do género para fazer outra coisa que não seja forçosamente aquilo que as pessoas esperam. No caso, adaptar o ensaio de Henry David Thoreau “Desobediência Civil” e mostrar como as palavras escritas em 1848 pelo pensador americano sobre a cidadania enquanto dever de resistência à injustiça continuam actuais. Isto não terá caído forçosamente bem em Vila do Conde, numa sessão esgotadíssima que começou com atraso, já passava da meia-noite, e que estaria provavelmente à espera de algo mais “levezinho”, menos conceptual, mais lúdico do que o que Rodrigo Areias apresentou. A presença de Paulo “Legendary Tigerman” Furtado e Rita Redshoes, para interpretarem ao vivo a maravilhosa banda-sonora que compuseram, ajudou certamente à electricidade que se vivia. Mas também acabou por exacerbar as forças e as fraquezas de um filme sedutor, cinéfilo até à quinta casa, que nunca se esgota na mera citação ou no pastiche de cineastas maiores, e que procura realmente construir um discurso próprio, estético, social, político. Houve, por isso, uns quantos desistentes durante a sessão, algum desconforto e não temos certeza que os resistentes tenham abarcado tudo o que ali se jogava; na sua curta apresentação, o realizador fez questão de recusar o choradinho do cineasta sem dinheiro, de falar da resistência à resignação de nunca haver dinheiro para nada. E “Estrada de Palha” é um filme de resistência por trás da sua aparência de western derivativo, com a sua personagem principal a regressar de uma longa ausência para descobrir um país diferente do que deixou, literalmente entregue aos bichos — o que cai que nem ginjas no Portugal de hoje, ao mesmo tempo que o seu lado assumidamente rural remete para a emigração. Nada disto invalida que “Estrada de Palha” seja tão fascinante como desequilibrado. O problema principal reside num argumento que reduz as personagens secundárias a cifras sem explicação ou arquétipos sem espessura, e que acelera inesperadamente em correria louca em direcção a um final anti-climáctico, quase negando o ritmo “a trote” e a saborosa estrutura em episódios. Contra isso há um trabalho notável, cuidadíssimo, de imagem e ambientação, e uma fabulosa interpretação de Vítor Correia, que arca com o filme todo aos ombros em tom de grande herói dos westerns-spaghetti. E não é tanto de Ennio Morricone que se deve falar na extraordinária banda-sonora, apesar da piscadela de olho pontual; mais do paisagismo desértico e da sábia gestão de silêncios e sons de Ry Cooder, impecavelmente reproduzida em palco por Paulo Furtado e Rita Redshoes. Não tanto “Paris, Texas” como “Castelo de Vide, Novo México”. É exemplar daquilo que Rodrigo Areias quis fazer – um objecto estilizado, resistente, carta fora do baralho num país onde cinema continua a ser dividido maniqueisticamente como “telefilme ampliado” ou “umbiguismo autoral”. “Estrada de Palha” não é uma coisa nem outra: não é um western-chispalhada, mas é um filme que ousa ser diferente – e isso merece respeito. A ver como será a reacção quando chegar a sala, mais para o fim do ano.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte lei social género