Adormeceram professores e acordaram sem turmas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-07-23
SUMÁRIO: Não ficam desempregados, como os professores contratados, mas não sabem o que farão em Setembro. Mudanças como a revisão dos currículos e o aumento do número de alunos por turma deixaram milhares com horários zero, ou seja, sem aulas para dar. Tinham uma situação que julgavam estável e uma escola que consideravam sua. Do ministério dizem que muitos serão "repescados"; eles aprendem a viver com a incerteza.
TEXTO: Cecília Lourenço: Nunca mais voltarei a ser a mesmaO pior é sentir que nunca mais vou ser a mesma. Pode parecer exagero. Mas é mesmo assim: eu, que não tinha medo, não voltarei a sentir-me segura. Não apenas na escola, mas no país. No dia 12, o último antes do fim do prazo para a escola indicar os professores sem componente lectiva, não dormi. Mas não tive coragem de falar da minha angústia a alguém. Vivo no país cujo ministro disse que é preciso apostar na Matemática, dar mais horas a Matemática. E aos olhos dos meus colegas, no meio do caos em que se transformou a escola, eu era uma professora-com-uma-situação-mais-que-segura. Sem direito à dúvida, portanto. Chegou sexta, dia 13. Sabia que quem tivesse horário zero seria notificado pela direcção da escola até às 18h30. Faltava um quarto de hora para as cinco quando caiu a mensagem de email. "Assunto: notificação. " Chorei, horas, até já nem saber que chorava. E insisto: não foi só por causa do horário zero, daquele murro no estômago que é ler que não há alunos para nós. Foi também por sentir que algo em mim se quebrara, de forma irremediável. Passei a vida a fazer contas e cada decisão que tomei assentou em cálculos precisos. Objectivo mínimo: garantir aos meus filhos uma qualidade de vida superior à que eu tive, como os meus pais fizeram em relação a mim. Já tinha percebido que a realidade é avessa à Matemática. Não fosse assim e o futuro teria acontecido como está descrito nesta folha em Excel, em que eu e o meu marido sustentámos a decisão de pedir um empréstimo. A casa existe, mas há este flagrante desvio na parcela dos vencimentos. Juntos, ganhamos menos 800 euros por mês do que previmos na altura. Podem argumentar que errámos no cálculo das probabilidades. Mas, por mais que isso agora pareça estranho, na altura era natural as pessoas confiarem na estabilidade das leis, como as que garantiam que íamos progredir na carreira ou receber os vencimentos por inteiro e os subsídios pelo Natal e no Verão. Tentei adaptar-me a essa fragilidade de um Estado, que antes achava assente em leis estáveis e seguras. Mas sucumbi, no último mês, à situação inimaginável que é todos os dias - todos - sentir que esse edifício treme e se deforma. A ponto de não passar pelo sono sem um sobressalto, tais as probabilidades de adormecer professora e acordar descartável. Dizem-me que há muitas hipóteses de eu ser "repescada", de voltar a ter um horário, alunos. E eu penso: talvez. Mas não posso voltar a ter-me a mim, tal como eu era antes disto. Miguel Saturnino: O pior é não encontrar nisto uma lógicaDe mim não esperem lamentos nem palavras de ordem. Não faz o meu género. Os meus amigos dizem que sou irritantemente calmo - e é verdade, irrito-os por lhes parecer conformado. Já isso é mentira, posso parecer, mas não estou. Talvez ache que não tenho o direito de me lamentar quando penso na tragédia que este processo representa para os meus colegas contratados. Eles estão a ser despedidos. Ponto. Eu terei um ordenado em Setembro e em Outubro e em Novembro. Acho. Percebe-se quanto vale o dinheiro quando sabemos que um colega pode perder a tutela de um filho por ficar desempregado. É só um exemplo, não gosto de falar da vida dos outros. O que eu quero dizer é: olhando para situações como essa, eu vou queixar-me de quê? Mas isso não significa que me cale. Da última vez que participei numa manifestação era pouco mais que adolescente e agora estou capaz de voltar à rua. Quem me conhece, quem sabe como sou "irritantemente calmo", sabe o que isto significa. Ou o que significa estar aqui, a dar a cara.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola filho adolescente medo género