Série Mar Português: Um mar de palavras
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 3 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-10-04
SUMÁRIO: Ao longo de séculos, os poetas portugueses cantaram o mar. Muitos mares: o mar afável das praias e dos banhistas, o mar duro da faina dos pescadores, ou ainda esse mar que levou os navegadores quinhentistas à descoberta de um novo mundo.
TEXTO: A poesia portuguesa é uma praia constantemente batida pelas ondas do mar. Foi-o sempre, desde os primeiros trovadores galaico-portugueses até aos poetas dos nossos dias. Há setecentos anos, o jogral galego Martim Codax perguntava, assumindo a voz de um sujeito poético feminino: "Ondas do mar de Vigo, / se vistes meu amigo?/ e ai Deus, se verrá cedo?". Mas já na poesia medieval este mar próximo, costeiro, quase doméstico, cúmplice dos amores do poeta - "Ai ondas, que eu vin veer, /se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ sem min?", escreve o mesmo Codax -, podia também representar perigo e constituir um obstáculo à consumação do desejo, como acontece na notável cantiga de amigo de Mendinho, que abre com os versos "Sedia-m"eu na ermida de Sam Simiom/ e cercarom-mi as ondas que grandes som (. . . )". A donzela que fala no poema receia que o amado não venha resgatá-la e que, incapaz de voltar a terra, esteja condenada a morrer virgem: "Nom ei i barqueiro nem sei remar/ e morrerei eu fremosa no alto mar. / Eu atendend"o meu amigu". . . e verrá?". O mar, e por extensão toda a água, teve sempre um simbolismo ambivalente: é origem, fecundidade, vida, mas também é distância, desastre, morte. A água, escreve António Ramos Rosa, "(. . . ) é um móvel túmulo e um berço errante/ em que a vida e a morte se consumam unidas/ numa pátria de metamorfoses incessantes". No tempo das Descobertas, mais do que em qualquer outro período da história portuguesa, essa ambivalência tornar-se-ia uma realidade quotidiana, uma vivência colectiva. O mar que nos levava a novos mundos era o mesmo que separava famílias, amigos, amantes. O mar que nos trazia especiarias e riquezas várias era também o mar dos sucessivos naufrágios, que Bernardo Gomes de Brito depois compilaria na sua muito justamente intitulada História Trágico-Marítima. "Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu", resume lapidarmente Fernando Pessoa no célebre dístico final do poema Mar Português. Sendo Portugal um país pequeno com uma costa extensa - "O meu país é o que o mar não quer", diz um verso de Ruy Belo -, não surpreende que o mar esteja obsessivamente presente em inúmeros poetas de sucessivas gerações. Mas o mesmo se poderia dizer, por exemplo, da lírica inglesa, que nos deu alguns dos mais notáveis poemas sobre o mar da literatura ocidental. Ou da grega, desde logo com a Odisseia, protótipo de todas as epopeias marítimas. Se algo distingue o modo como a poesia portuguesa, no seu todo, se relaciona com o mar, essa singularidade talvez decorra, antes de mais, da "intromissão" do facto histórico dos Descobrimentos, decisivo não apenas ao nível material, mas também de consequências duradouras no plano identitário e simbólico. Sem a aventura da expansão marítima, não haveria grande diferença entre o mar de Martim Codax e Mendinho e o mar de poetas do século XX, como Sophia de Mello Breyner Andresen ou Eugénio de Andrade. Assim, e embora se trate sempre do mesmo "mar imenso solitário e antigo" evocado num dos primeiros poemas de Sophia, talvez seja lícito falar, na poesia portuguesa, de um mar anterior aos Descobrimentos e de um mar posterior aos Descobrimentos. E ainda, como a expansão foi um processo, e não um mero instante no tempo, do mar dos próprios Descobrimentos. Que não é apenas, ou nem sequer principalmente, o mar dos autores contemporâneos da expansão marítima. É sobretudo um mar lido a posteriori, na ressaca dessa aventura que levou o país, como escreve Camões, a mostrar "novos mundos ao mundo".
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte donzela