Multado por deixar likes em comentários difamatórios no Facebook
Um tribunal suíço aplicou uma multa de mais de três mil euros a um homem. (...)

Multado por deixar likes em comentários difamatórios no Facebook
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um tribunal suíço aplicou uma multa de mais de três mil euros a um homem.
TEXTO: Um tribunal na Suíça multou um homem por este ter feito likes ("gostos") em comentários no Facebook considerados pela instância judicial como difamatórios. Este será, até à data, o primeiro caso de actuação de um tribunal envolvendo apenas likes da rede social. De acordo com o comunicado do tribunal, o homem terá acusado Erwin Kessler, activista dos direitos dos animais, de anti-semitismo e racismo apenas por fazer likes em comentários difamatórios sobre ele. A multa aplicada pelo tribunal foi de quatro mil francos suíços (3667 euros). Foram seis os likes deixados pelo homem de 45 anos em comentários de terceiros, informou o jornal suíço Le Temps. “Ao clicar no botão de like, o arguido endossou claramente o conteúdo indecoroso e tornou-o o seu próprio ponto de vista”, podia ler-se no comunicado do tribunal, citado pelo The Guardian. O tribunal refere ainda que, devido ao funcionamento do Facebook, o homem ao colocar likes em comentários acabou por disseminá-los pela sua rede de contactos, já que essa informação aparece depois no feed de notícias de outras pessoas. O envolvido neste caso bizarro colocou likes na publicação, feita em 2015, e que estava relacionada com a articipação de grupos de defesa do bem-estar dos animais num festival de rua vegan. Sabe-se que Kessler terá processado mais de uma dúzia de pessoas que comentavam a sua actividade no Facebook, durante o ano de 2015, e que algumas foram efectivamente condenadas. Contudo, essas condenações eram provenientes de comentários e nunca de likes feitos a esses comentários.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos tribunal homem racismo social
Um país entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser
A liderança do Nobel da Paz Juan Manuel Santos está perto do fim. A Colômbia vai a votos para escolher um novo Presidente da República a 27 de Maio. Procurámos o pulsar de um país a partir do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias e da retrospectiva dedicada ao realizador que pôs o cinema latino-americano no mapa, o brasileiro Glauber Rocha. (...)

Um país entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A liderança do Nobel da Paz Juan Manuel Santos está perto do fim. A Colômbia vai a votos para escolher um novo Presidente da República a 27 de Maio. Procurámos o pulsar de um país a partir do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias e da retrospectiva dedicada ao realizador que pôs o cinema latino-americano no mapa, o brasileiro Glauber Rocha.
TEXTO: Bogotá é como se fosse um espaço confinado a céu aberto onde tudo pode acontecer. A cidade encontra-se cercada por montanhas escarpadas, as da cordilheira oriental dos Andes, que funcionam como muros bem altos a delimitar a arena. Prédios de 30 andares de cor cinzenta ou castanha fazem paredes-meias com casebres construídos de tijolo sem reboco amontoados entre si sem intenção de forma ou ordem, meia dúzia de arranha-céus crescem ao lado de áreas habitacionais que são autênticas aldeias, as instalações de ponta do complexo universitário privado não têm problemas com a vista que dá para o bairro da lata. A vegetação é pungente, sempre à espera de oportunidade para irromper do asfalto ou do cimento e voltar a tomar o que sempre foi dela. Existem os resquícios da colonização, da escravatura e do indigenismo por todo o lado, nas pessoas, na arquitectura, nos comportamentos. O tempo, sempre igual, é uma espécie de iminência de Verão no Inverno — ou de Inverno no Verão. O cinema tem esta coisa. Chegamos a um sítio e é como se já o conhecêssemos porque a sensação de familiaridade com aquele lugar foi-nos dada por algum filme que nos marcou. Pode acontecer com a chegada a Tóquio por causa dos filmes de Yasujiro Ozu (1903-1963) e dos planos de câmara colocados à altura do quotidiano doméstico dos japoneses, dos silêncios necessários à comunicação, da suspensão dos corpos como se fossem segurados por um fio. E pode acontecer com a chegada a Bogotá, uma cidade da América do Sul com dez milhões de habitantes, o equivalente a toda a população de Portugal. Uma viagem de táxi desde o Parque dos Periodistas até ao Bairro Lisboa Norte para ir conhecer a família de um jornalista do jornal El Tiempo, cuja mãe é portuguesa, permite assistir a toda esta tragédia — no sentido grego, de tensão de opostos — a partir da janela do carro, como se fosse um ecrã que dá a ver tudo a partir de um único travelling. Aquela viagem de táxi permitiu perceber a importância, e a urgência, dos filmes-acção do brasileiro Glauber Rocha, a propósito da retrospectiva que lhe iria ser feita no FICCI — Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, que decorreu entre 28 de Fevereiro e 6 de Março. Nunca ter vindo à América do Sul é já ter vindo à América do Sul. Graças ao cinema de Glauber Rocha. A norte, na costa do Caribe, Cartagena das Índias é a quinta maior cidade da Colômbia. Se chegarmos durante a noite ao centro da cidade velha, delimitada por muralhas com cinco séculos, o táxi larga-nos no meio de um turbilhão. O espaço das ruas não é suficiente para tudo o que está a acontecer. Vive-se um atropelo constante: de turistas a passear a pé, de turistas a passear de charrete puxada a cavalo, de carros parados a empancar o trânsito e a polícia a apitar para apressá-los a avançar. Há vendedores ambulantes de fruta fresca, doçaria, águas, sumos, adaptadores de tomadas. Há apontamentos de festa um pouco por todo o lado, no terraço de um prédio, numa praça, nos bares. Ouve-se, durante toda a noite, batidas de tambores e apitos de cornetas. Chegamos e é como se chegássemos a um circo, onde todos os actores desempenham o seu papel. Na sessão de abertura da 58. ª edição do FICCI, quando a directora artística do festival, Diana Bustamante, enumerou no seu discurso a programação do evento e referiu a retrospectiva sobre Glauber Rocha (1939-1981), ouviu-se uma ovação, com vários assobios entusiastas à mistura, na sala do Centro de Convenciones Julio César Turbay Ayala. No dia seguinte à tarde, a sala do centro comercial Multiplex Plaza Bocagrande — um edifício envidraçado de dentro do qual se vê o azul do mar a perder-se de vista — estava praticamente cheia para ver O Leão das Sete Cabeças (1970). Trata-se do primeiro filme feito durante o exílio do realizador assumidamente subversivo do regime de ditadura militar em que o Brasil vivia na altura e que é considerado o expoente máximo do Cinema Novo brasileiro. Rocha viria a realizar mais três longas-metragens, antes de morrer aos 42 anos vítima de septicemia. Passou os últimos meses da sua vida em Sintra, onde adoeceu, dizem que errante e cheio de tristeza e dor. Metade dos espectadores de O Leão das Sete Cabeças eram jovens. O público do festival tem na sua larga maioria menos de 30 anos. “Tomei conhecimento do Glauber Rocha aqui no festival”, contou Gabriel Bocanegra, um estudante de 22 anos de Bogotá, alto, moreno, acabado de se licenciar em Estudos Literários. “Achei o filme interessante, algumas cenas são hilariantes. A intenção política é demasiado evidente, necessitava de ser mais subtil para ser mais eficaz. ” Santiago Montoya veio também de Bogotá, mas já pela segunda vez. Com o cabelo louro e comprido atado como o dos samurais, Santiago tem 20 anos e é estudante na Escuela Nacional de Cine. “Li o manifesto Uma Estética da Fome [1965] do Glauber Rocha, que me serviu de introdução ao Cinema Novo brasileiro”, referiu. “Faz uma crítica aos [norte-]americanos, que roubavam aos sul-americanos. No filme, o paralelismo é o mesmo: os europeus que roubavam aos africanos. ”Rodado no então Congo-Brazzaville (hoje República do Congo), O Leão das Sete Cabeças é uma epopeia catártica sobre o colonialismo e começa com o grande plano de um peito de mulher, de pele branca. Umas mãos de homem, também brancas, começam a aparecer no enquadramento e pairam sobre os seios, num desejo incontrolável de lhes tocar. O plano abre e os corpos do homem e da mulher entregam-se de forma animalesca, espojados no chão do mato. A câmara movimenta-se à volta deles como se fosse o terceiro elemento necessário à orgia. Na cena seguinte, vemos Jean-Pierre Léaud (1944), o Antoine Doinel dos filmes de François Truffaut, a subir uma montanha, vestido de branco. Um profeta errático, radicaliza os mandamentos da religião junto dos outros como veículo de purga da sua própria loucura. Há também o mercenário colonizador, que olha para a câmara e faz uma resenha pelas intenções de Lincoln, Lenine e Hitler; o mercenário branco que vem ajudar o povo africano à revolução; o líder africano que apela os congéneres à necessidade da luta e da libertação; e há ainda o presidente do país, um negro que se veste à Luís XV e faz discursos em cima de um carro descapotável ao som de três saxofones. A dada altura, o povo reúne-se em protesto e essa manifestação de rua é exaltada pela câmara em delírio de Glauber Rocha, que sobrevive sempre das tensões entre carne e espírito, fé e razão, opressor e oprimido. Num cartaz empunhado pelos manifestantes, pode ler-se: “Contra o paternalismo neocolonialista. ” Glauber entendeu a essência do neocolonialismo: reside no olhar. Reside na forma como continuamos a ver o outro, a ocupar o lugar do outro e a insistir em considerar o outro “exótico”. O neocolonialismo resiste pela condescendência. Durante a Guerra do Ultramar, os soldados portugueses destacados nas colónias portuguesas traziam muitas vezes fotografias suas a posar para a câmara, o olhar e o sorriso divididos entre o matreiro e o fascinado, e seguravam numa das mãos o seio de uma indígena demasiado descaído para os parâmetros ocidentais. Na Calle de Ayos, uma das artérias principais da cidade velha de Cartagena, repleta de casas de estilo colonial em obras de remodelação, uma jovem palenquera estava sentada na soleira de uma porta. Os palenqueros são oriundos de Palenque de São Basílio e as palenqueras usam vestidos e lenços na cabeça com cores muito vivas. Esta estava vestida com um fato novo, feito de largas faixas horizontais azuis, amarelas e vermelhas — as cores da bandeira colombiana. À semelhança dos artistas de rua, parecia estar disponível para tirar fotografias com os turistas, a troco de uma gratificação. A sua postura solene incluía um olhar vago de quem evita cruzar-se com olhos alheios. Um olhar de quem preferia não. “Dentro dos muros da cidade velha não se tem problemas, pode andar-se à vontade”, “dentro dos muros está-se seguro porque o Governo fez de Cartagena o porta-estandarte do turismo seguro no país”, “é só sair dos muros e é uma cidade muito perigosa e violenta”. Estas são as advertências mais comuns dadas a quem está de visita a Cartagena das Índias. Sair das muralhas só de táxi: o táxi leva, o táxi deixa à porta, o táxi traz. Com os taxistas, experienciamos a lógica da condescendência, vinda do lado de lá: a de que qualquer não local será mais endinheirado do que eles próprios e por isso podem dar elasticidade aos valores que cobram pelos seus serviços. Durante o festival, e dentro de muros, encontramo-nos num viveiro que nos mantém protegidos das potenciais agruras do mar alto que é a violência. Apenas pequenos dispositivos nos vão lembrando da iminência dessa hostilidade. É o caso dos detectores de metais existentes à entrada das instituições abertas ao público. Quando passamos pelo edifício dos Despachos Judiciales de Cartagena — Cuartel del Fijo, na Carrera 5, o detector de metais está em primeiro plano e tem colada uma folha A4 com a fotografia de uma arma por cima da qual está desenhado um sinal vermelho de proibição. “Somos um país violento”, disse Laura Mora numa conferência de imprensa do FICCI ligada a actividades académicas. Laura Mora é autora de Matar a Jésus (2017), um filme estreado no festival sobre uma jovem de Medellín cujo pai é assassinado, tal como foi, em 2002, o pai da própria realizadora. Laura referiu que uma vez, numa conversa em que participou, perguntou se por acaso também tinham assassinado o pai a alguém. Das 15 pessoas que estavam presentes, oito responderam que sim. “Ainda não falámos o suficiente sobre isso. Acho que por termos vergonha de o admitir perante o mundo. A violência e a beleza são as duas coisas mais democráticas que temos na Colômbia. ”A violência é a forma que o corpo encontra para expurgar toda a tensão que a miséria acumula, diz-nos Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). E veicula-se sob muitos pretextos, entre eles a religião. Deus e o Diabo… é o segundo filme realizado pelo brasileiro e é considerado um marco do Cinema Novo sul-americano. Foi exibido às dez da manhã de sábado no belíssimo Teatro Adolfo Mejía, na Plaza de la Merced; a sala estava composta. Manoel é um vaqueiro pobre caído em desgraça, e a fome, a injustiça e o desespero conduzem-no ao delírio. Encontra na fé o reduto último para a salvação, para o sentido de tanto sofrimento. Junta-se a uma seita religiosa, que profetiza o paraíso sob a forma de uma ilha, e depois a um lampião, uma espécie de Robin Hood do sertão chamado Corisco, que se encontra desviado dos seus propósitos mais nobres. Este lampião diz que Manoel é um anjo — este questiona-se porque é que não se pode fazer justiça sem derramar sangue — e rebaptiza-o como Satanás. As influências formais e estéticas da vanguarda soviética são claras neste filme a preto e branco: grandes planos de personagens a olhar para o vazio, o som emudecido; como se aquele momento de pausa servisse para interiorizarmos o que vemos. “O filme mostra-nos uma violência que nasce a partir da religião. É a origem da violência também na Colômbia”, disse à saída David Suloaga, 21 anos, estudante de Filosofia em Bogotá, cabelo louro com rastas e olhos muito verdes, escondidos por detrás de óculos de massa de tartaruga. “Eu diria que o cinema do Glauber Rocha é muito importante, permite-nos olhar para nós mesmos, permite que nos vejamos ao espelho. Nós vivemos actualmente com a violência. Não é apenas uma memória. ”A Colômbia parece viver numa tensão constante entre aquilo que é e aquilo que deseja desesperadamente ser. Existem duas realidades opostas que traçam percursos paralelos na vida do país: a realidade do país de Terceiro Mundo e a realidade do país de Primeiro Mundo. À saída da cidade velha de Cartagena, na direcção do mercado local, onde fica situado o centro comercial Multiplex Caribe Plaza, passa-se pela zona de Getsemaní através da Calle de la Media Luna. A imagem é a de um bairro igual ao da cidade velha, mas sem tratamento de Photoshop. As casas de estilo colonial estão velhas, a luz do sol parece baça e as ruas encontram-se vazias, à excepção de dois ou três vendedores ambulantes erráticos. O táxi passou pela igreja de Santa Cruz de la Popa, que tinha um cartaz à entrada a dizer “Oremos pelo fim do aborto”, e depois por uma zona habitacional de casas brancas geminadas, com pequenos jardins em frente. Cada rua tinha um portão no início, como se fossem pequenos condomínios. “Não acredito nos políticos”, dizia o taxista durante o caminho, simpático e prestável, a assumir a atitude de um operador turístico, mas a explicar a situação política do país. Júnior España tem 34 anos e fez parte do Exército entre 1997 e 1999 que, juntamente com os paramilitares, “encurralaram, as FARC, graças à acção de pulso de Álvaro Uribe” Vélez, o Presidente que antecedeu o actual, Juan Manuel Santos. As FARC, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — Exército do Povo, são uma organização guerrilheira de inspiração marxista-leninista. “As eleições vão ser ganhas por [Gustavo] Petro. Os jovens gostam todos dele. Como é que é possível um homem que já foi guerrilheiro ir ocupar um cargo político?” Gustavo Petro fez parte de um movimento armado da esquerda intelectual da Colômbia, chamado M19, que surgiu no início dos anos 70. As sondagens colocam-no à frente, nas intenções de voto. “O problema é que este país tem uma mentalidade comunista revolucionária. Não vai mudar. ”As sessões do 58. º FICCI abriram sempre com o trailer promocional do festival. O vídeo estava ao nível do que está a ser feito pelas melhores agências criativas do mundo, tanto técnica como conceptualmente. A inspiração é clara: uma das primeiras cenas do filme A Idade da Terra (1980), de Glauber Rocha, que foi exibido no Caribe Plaza naquela tarde de domingo, dia 4 de Março. Uma estética tropicalista higienizada, vemos grandes planos de folhas de plantas e de flores, que formam uma mancha de verde-escuro sobre um fundo negro. As letras brancas são contornadas por uma mancha fina que lhes confere o efeito de lâmpadas acesas. Seguiu-se uma promoção à rede de distribuição de cinema junto das zonas mais carenciadas do país e uma outra ao Audiovisual Bogotá, uma plataforma de serviços que alicia produções estrangeiras a virem filmar para a Colômbia. “Desconfiem das pessoas que não gostam de cinema. ” Juan Manuel Santos cessa funções após as eleições de 27 de Maio, depois de dois mandatos de presidência da República. No discurso que fez na sessão de abertura do FICCI, aproveitou para enfatizar o legado que considera deixar ao país e realçou a importância do crescimento do turismo e do cinema. “Hoje, vemos que a paz segue o seu caminho — com dificuldades, com contratempos, mas sem se deter — e que as FARC são agora um partido político que procura nas praças e nas urnas o que costumava procurar através da violência e das armas”, referiu. “Alguns não gostam disso. Devo dizer que — e sei que muitos dos presentes me acompanham nesta convicção — nada me dá mais alegria do que ver o triunfo da democracia e da civilidade sobre a guerra e a barbárie. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para ver A Idade da Terra no Plaza, o filme derradeiro de Glauber Rocha e o mais polémico, a sala estava a dois terços. Uma influência do realizador italiano Pier Paolo Pasolini em termos formais e narrativos, a dança é — nas suas diversas manifestações ritualísticas — o fio condutor dos discursos dos políticos que se apresentam em campanha. Há o americano debochado, há o preto indígena, há o branco galã vestido de smoking — todos eles são animais políticos sedentos de sexo. A dada altura, o galã repete, várias vezes, para a sua audiência: “A independência, a proclamação da República, a abolição da escravatura. São conquistas do nosso povo. E por isso eu as defenderei até à morte. Mesmo quando eu exerço a violência. ” Glauber Rocha faz questão de tornar visível o teatro das operações. Intercala ambientes reais com ambientes criados em estúdio, como é o caso de uma sala preta com uma mesa ao centro que tem em cima, dourada, uma árvore de Natal — aquela altura do ano em que decidimos suspender a maldade do mundo. “A intenção daquela repetição é criar uma consciência”, disse, à saída da sessão, a estudante de cinema em Santa Marta, Keina Martinez, de 21 anos. “De tanto repetir, o espectador já sabe dizer também o discurso. ” Muitas pessoas foram saindo da sala ao longo do filme, os espectadores ficaram reduzidos a um quinto. “Rocha representa muitas coisas que existem também na Colômbia: a corrupção, muitos políticos falsos, muitos lobos vestidos de ovelhas”, continuou Keina, os olhos castanho-escuros muito vivos. “O futuro da Colômbia está estancado pela política. Somos um país riquíssimo e só nos roubam. O Abraham do filme é o Trump”, disse por sua vez Erick Rodriguez, de 21 anos, estudante de Cinema também em Santa Marta. “As coisas vão mudar com Petro, obviamente. Acredito nele quando discursa. É muito inteligente. Não lhe sinto falsidade como vejo na cara de Santos, que não tem qualquer traço de humanidade”, contrapôs Keina, com o tipo de convicção própria da idade. “Não podemos ter medo da mudança. ”Reportagem feita no âmbito da Bolsa de Jornalismo Cultural da Fundación Gabriel García Márquez para el Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), em Cartagena das Índias, Colômbia.
REFERÊNCIAS:
Thomas Walgrave: “Senti-me comandante de guerrilha durante quase dez anos”
Depois de uma década à frente do Alkantara, Thomas Walgrave deixa o festival lisboeta de artes performativas para regressar à vida artística. Ao lado de Christiane Jatahy, na vida e na criação. (...)

Thomas Walgrave: “Senti-me comandante de guerrilha durante quase dez anos”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de uma década à frente do Alkantara, Thomas Walgrave deixa o festival lisboeta de artes performativas para regressar à vida artística. Ao lado de Christiane Jatahy, na vida e na criação.
TEXTO: Este domingo é oficialmente o derradeiro dia de Thomas Walgrave à frente do festival Alkantara. Evento de periodicidade bienal, assumiu esta identidade a partir do Danças na Cidade, criado por Mónica Lapa em 1993 e continuado por Mark Deputter. Walgrave chegou a Portugal em 2005, depois de ter trabalhado a cenografia e o desenho de luz dos belgas tg STAN, uma das companhias de referência do teatro europeu. Nascido em Antuérpia em 1965, Walgrave foi o sucessor de Deputter no Alkantara, tendo desde logo, em finais de 2008, antecipado que não programaria mais do que duas edições (2010 e 2012). O cenário de crise acabou por mantê-lo em funções e deixa, passados dez anos, a programação de um dos mais importantes festivais de artes performativas em Portugal nas mãos de Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, numa altura em que a relação pessoal e criativa com a criadora brasileira Christiane Jatahy (com quem é casado) o leva a regressar em full-time à vida artística. Com a esperança de, ainda assim, não quebrar os laços com Lisboa. Quando tomou a decisão de abandonar o Alkantara?Estive presente na edição de 2008, enquanto artista, porque acompanhei alguns trabalhos, fiz luz e cenário para o Miguel Pereira, Tiago Rodrigues e Rabih Mroué. Quando comecei no Alkantara, disse sempre que ia fazer duas edições. Só que depois dessas duas edições a situação era tão dramática que era impossível passar o festival a alguém. Isso foi importante na minha decisão. Depois de 2016, altura em que disse “Agora acabou” houve uma mudança de condições — ou, pelo menos, uma esperança de mudança de condições que torna mais fácil passar o testemunho. Pesou na actual decisão o desgaste provocado por essa situação dramática depois das duas primeiras edições? O subfinanciamento do Alkantara contribuiu para que agora aproveite para se libertar do peso desses anos?Sem dúvida, mas acho que é uma resposta que tem muitos lados. Há um desgaste que é físico e emocional. E há um lado político do trabalho que estou mesmo farto de fazer. A política é muito importante na minha vida, mas não no sentido do lobbying. Gostava mesmo de poder fechar isso. Ao mesmo tempo, a luta também é um lugar muito especial, porque nos alimenta. Acho que há até um perigo de vício. A comparação é completamente exagerada, mas há muitos anos vi uma entrevista com o subcomandante Marcos, dos zapatistas, em que lhe perguntavam se ele estaria disposto a ser o novo Presidente do México. Ele respondeu que era impensável — alguém que cresce na luta nunca pode ambicionar ser Presidente de um país em tempos de paz. Numa escala muito inferior, isso também vale para o Alkantara. Senti-me muito comandante de guerrilha durante quase dez anos. Agora que chegaram tempos de paz, parece-me muito saudável serem outras pessoas a assumir isto. E o que se segue é um regresso ao trabalho artístico a 100%?Sim. Fiz alguns espectáculos durante estes anos, mas eram sempre muito à margem e coisas pequenas. Durante quanto tempo congelou a sua actividade artística?Parei tudo quando entrei no Alkantara, no final de 2008, e comecei, muito timidamente, a fazer algumas coisas a partir de 2013/14. Em 2011, fiz um espectáculo na Grécia [The Madness of Heracles, de Eurípedes], mas foi uma excepção. Foi sempre muito difícil tentar combinar calendários. Mesmo o trabalho do Sopro que fiz com o Tiago [Rodrigues] no ano passado foi a uma escala muito menor e em que, por causa do Alkantara, entrei no processo muito mais tarde do que normalmente entrava. Mas fiquei muito feliz — foi como manter o motor aquecido. Porquê essa excepção na Grécia?Recebi um telefonema de Michael Marmarinos, um encenador grego que queria trabalhar comigo. Eu disse-lhe que estava a fazer o festival e não podia. E ele respondeu-me: “Tenho um argumento que talvez te convença — é em Epidauro, no teatro clássico. ” E não dá para dizer não a Epidauro. Foi uma experiência muito forte no entender de uma relação entre o mundo, o momento e o teatro; há um funil que é o teatro, o mundo ao fundo que continua (com carros a passar) e o submundo, porque aquilo está cheio de cobras e escorpiões — têm sempre uma ambulância com antiveneno durante os espectáculos. Parecia que durante três horas todo o mundo cabia ali dentro. Em escalas diferentes, isso vale para todos os espectáculos que procuram uma autenticidade que tem que ver com o momento. Esse trabalho sobre o aqui e agora numa relação directa com o público parece-me a essência do que fazem os Stan e a Christiane Jatahy. E é fascinante. Enquanto programador, sente que o exercício passa por entrar na cabeça do criador, mas também na cabeça do espectador?É uma questão muito delicada. Numa certa altura achei que programava sem pensar em espectadores, mas hoje já não penso assim. É importante evitar antecipar uma reacção do público; por outro lado, uma obra específica fala com vários públicos específicos, porque são vários os públicos de uma cidade como Lisboa. Esse diálogo é fundamental. Enquanto programador é-se muito mediador entre um e outro. Nessa mediação tem de se aprender a entrar na cabeça do espectador, o que não dizer que tem de se proteger a obra ou o espectador. As características do Alkantara, um festival presente em várias salas da cidade, obedecem também a públicos diferentes. Há um público do festival, mas também públicos das salas. Sim, sempre achei muito importante o diálogo com esses teatros. Talvez no início tenha errado ao tentar forçar. Por exemplo, a primeira vez que apresentámos o Toshiki Okada, em 2010, foi no Teatro Nacional D. Maria II, que na altura não tinha nenhuma ligação com este tipo de trabalho. A partir daí tentei desenvolver um diálogo para que um director do Teatro Nacional, ou de outra sala, possa defender o que programamos nesse espaço. Desde que assumiu a direcção do Alkantara, as programações dos teatros em Lisboa mudaram muito. Com a forte aposta internacional das salas sentiu-se obrigado a redesenhar o Alkantara no contexto da cidade?Sim. Há uma paisagem que muda, há vários pescadores que começam a pescar no mesmo lago. Não sei até se os próprios teatros não exageram, às vezes, nesta questão da definição das casas— porque o público não vai ver a sala, vai ver o espectáculo, o que conta é a relação com o artista. Essas reuniões acerca da exclusividade de certas casas com alguns artistas. tenho as minhas questões sobre isso. Porque é contra?Sim, sou contra. Conheço o outro lado, do artista. Quando os Stan cresceram, os teatros de Bruxelas fizeram várias tentativas para criar uma relação exclusiva. E sempre defendemos o modelo de que para cada espectáculo procurávamos a melhor relação com o público. Parece-me mais saudável. Há um risco de jogo sujo entre programadores — que felizmente ainda não temos em Lisboa — ou de uma competição complicada. Apesar de tudo, acho que conseguimos preservar uma identidade no Alkantara. Talvez uma das nossas funções tenha sido a introdução de artistas no circuito da cidade. Quem diria que foram artistas chave?Mais recentemente, a companhia El Conte de Torrefiel ou o Antoine Defoort. De alguma forma, aconteceu também com o Faustin [Linyekula] e os vários Artistas na Cidade. O Toshiki Okada é também um exemplo claríssimo. Foi um trabalho de investir em percursos de artistas, muito mais do que em espectáculos pontuais. Houve alguma preocupação em programar geografias específicas?Não. Foi sempre muito orgânico. Evitei trabalhar com qualquer sistema de quotas — geográfico ou de género. Tive até um conflito na minha primeira edição, em 2010, com o Museu do Oriente, que só queria espectáculos orientais. Ia mesmo contra a ideia do festival colocar os orientais no Museu do Oriente ou os africanos no Africa. Cont, criando uma espécie de segmentação. Como vê os caminhos que a criação portuguesa tomou nos últimos anos?Não sei se tenho uma resposta clara. Há uma diferença grande entre a geração de agora e a geração da Vera [Mantero] e do João [Fiadeiro] que estão há 25 anos nas origens do Danças na Cidade e do Alkantara. O “inimigo” era então muito mais claro. Havia um distanciamento de tudo o que tinha que ver com ballet e que era muito forte nessa geração. Se falarmos hoje com o João dos Santos Martins, por exemplo, essa já não é a questão dele. Mas entre um Tiago Rodrigues, uma Mónica Calle ou um Teatro Praga as diferenças são tão grandes. . . Ainda assim, acho que os três são profundamente portugueses e talvez haja neles um contrariar do sonho ou pesadelo da uniformização dos anos 90, uma espécie de euroteatro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vê com preocupação todo este processo de gentrificação e “turistificação” de Lisboa?Acho muito preocupante o que está a acontecer. Continuo a achar Lisboa uma cidade muito interessante, mas sinto a falta da Lisboa que conheci quando cheguei em 2005. Quando existe o risco de uma cidade se tornar artificial, uma versão telenovela, é óbvio que também o festival está ameaçado no seu coração. Mas é ainda mais preocupante ver em perigo o esforço que nós e tantos outros artistas, festivais e associações fizemos para construir e manter este tecido de uma Lisboa contemporânea, aberta e ao mesmo tempo verdadeira. Com a sua saída, que relação pensa manter com o Alkantara e com Lisboa?A transição no Alkantara já foi feita em grande parte. A Carla Sousa já trabalha connosco há muito tempo e o David Cabecinha entrou em Dezembro. Aquilo que o Mark Deputter fez comigo é um exemplo de como quero fazer com eles — estar quando é preciso e poder sair quando eles precisarem de autonomia e espaço para mudarem o que quiserem mudar. A partir de segunda-feira o Alkantara é deles. E Lisboa. . . amo mesmo a cidade. Mas na próxima fase da minha vida com a Christiane Jatahy vou estar muito pouco na Europa, porque entramos logo na criação do próximo projecto —que implica muitas viagens. Neste momento, na organização prática da nossa vida, não sei se a casa é part-time Rio de Janeiro e part-time Lisboa. Passamos a maior parte do tempo no lugar onde trabalhamos. E isso no último ano significou Hamburgo e Paris. Está muito ligado à vida e à obra de Christiane Jatahy neste momento. Uma vez que se trata de uma artista de grande afirmação internacional, que espaço lhe deixa para a sua autonomia criativa?Mais do que autonomia, sinto a necessidade de aprofundar o diálogo que temos a partir de um lugar muito bonito onde a vida e o trabalho se cruzam. E, na área em que trabalho, nunca na minha vida tive as condições para desenvolver uma cenografia como aquelas que tive agora no Odéon [para a criação de Ítaca — A Nossa Odisseia I]. Então não estou muito preocupado com a minha autonomia [risos]. E a relação que ela estabelece com o cinema é um novo mundo que se abre, sinto-me um pequeno rapaz superfeliz.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave género espécie
O etéreo, o terreno e o fantástico no final da temporada Gulbenkian
Três compositores da mesma geração exibiram as suas fortes personalidades criativas num concerto bem demonstrativo da vitalidade e do poder de comunicação da criação musical do nosso tempo. (...)

O etéreo, o terreno e o fantástico no final da temporada Gulbenkian
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Três compositores da mesma geração exibiram as suas fortes personalidades criativas num concerto bem demonstrativo da vitalidade e do poder de comunicação da criação musical do nosso tempo.
TEXTO: O concerto final da temporada Gulbenkian deu a conhecer obras de três compositores da mesma geração (todos nascidos em 1977), oriundos de diferentes países e detentores de fortes personalidades criativas: Aeriality, da islandesa Anna Thorvaldsdottir; Anthology of Fantastic Zoology, do norte-americano Mason Bates; e Step Right Up, para piano e orquestra, do português Vasco Mendonça, composição em estreia mundial encomendada no âmbito do programa SP-LX, a parceria estabelecida entre a Gulbenkian e a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo para promover a nova música dos dois países. O resultado é bem demonstrativo da vitalidade da criação musical do nosso tempo e do forte poder de comunicação que a música contemporânea pode exercer junto do público, ao contrário do que às vezes se pensa. Para o sucesso contribuiram também a direcção do jovem maestro Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian, bem como, na peça de Vasco Mendonça, um solista de excepção: o pianista Roger Muraro. Maestro: Benjamin Shwartz Solista: Roger Muraro (piano)Obras: Anna Thorvaldsdottir, Vasco Mendonça e Mason BatesEstímulos extra-musicais como a natureza, referências visuais e literárias (nomeadamente o Manual de Zoologia Fantástica, de Jorge Luis Borges, no caso de Bates), cenas do quotidiano e mundos imaginários, etéreos ou terrenos serviram de de fermento para a criatividade destes compositores. Aeriality, de Anna Thorvaldsdottir, constrói-se a partir de texturas sonoras flutuantes que se sobrepõem em camadas e vão sofrendo metamorfoses. O ouvinte é confrontado não com a individualidade tímbrica de instrumentos ou naipes específicos, mas com massas sonoras que fluem entre diversos grupos instrumentais criando campos harmónicos de denso cromatismo (incluindo o recurso a quartos de tom), e que são entremeadas por momentos mais líricos. A subtileza com que a compositora manipula a orquestra ao nível da cor e da luminosidade é demonstrativa de um sólido métier posto ao serviço de uma obra fascinante. Também em Step Right Up Vasco Mendonça trata a orquestra como um instrumento global, mas de um modo radicalmente diferente. Enquanto na peça de Thorvaldsdottir se oscila entre o intangível e o terreno em vastas paisagens sonoras, remetendo para o jogo de palavras do título (“aerial” e “reality”), o compositor português opta pela centralidade dos elementos rítmicos e percussivos, levados por vezes a um exagero obsessivo, numa intrincada teia de relações que exige grande coordenação rítmica e dinâmica: uma prova de fogo que o experiente Roger Muraro e a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção atenta de Shwartz, superaram, ainda que alguns detalhes possam vir a ser polidos com vista à futura gravação para a Naxos. Em especial no primeiro e no último andamentos, já que o segundo é mais introspectivo e explora atmosferas mais delicadas e sombrias, atinge-se uma incisiva materialidade do som, percorrida por uma energia visceral, que encontra eco no título e na evocação de rituais africanos que também serviu de referência ao compositor. Conforme Vasco Mendonça referiu na entrevista ao PÚBLICO publicada a 15 de Junho, Step Right Up é uma expressão que significa “juntem-se todos” e que “tem a ver com música de rua”. Em grande parte da obra impera a dimensão do piano como instrumento de percussão, por vezes através de gestos musicais breves que exigem sincronização milimétrica com as forças orquestrais. Apesar deste tratamento anti-romântico do piano e das suas relações com a orquestra, o virtuosismo não está ausente, pelo que Roger Muraro pôde mostrar as suas multifacetadas qualidades, defendendo com brio uma obra que aspira a um lugar de destaque na produção de Vasco Mendonça, cujo percurso tem atingido crescente visibilidade internacional. Depois do intervalo, Benjamin Shwartz e a Orquestra Gulbenkian deram vida de forma sugestiva a Anthology of Fantastic Zoology, de Mason Bates, também conhecido pela sua carreira como DJ. Das três obras em programa é a que apresenta uma linguagem mais convencional, mas esta é usada com habilidade na construção de um universo musical lúdico quase pictórico. Descrita pelo compositor como “um compêndio de criaturas míticas” (na linha da obra de Borges) e como “uma espécie de Carnaval dos Animais psicadélico”, a peça procura fazer o retrato sonoro de ninfas, duendes, sereias, do grifo ou do delirante A Bao A Qu, que serpenteia em torno de uma torre, entre outras criaturas fantásticas, e teatralizar as suas acções, atingindo um ponto alto no momento em que “um animal do tamanho de uma ilha” devora os restantes seres. A exploração do espaço (com recurso a violinos fora do palco mas também a diálogos e combinações tímbricas associadas a cada uma das personagens) e um tratamento quase cinematográfico dos vários elementos sonoros permitem facilmente ao ouvinte imaginar um exuberante filme de animação.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave espécie animal
O balão deste João também sobe, sobe pelo ar (e só pára na Tanzânia)
Acorda para voar. João Rodrigues é piloto de balões de ar quente no Parque Nacional do Serengeti, onde vive. Para fugir aos leões, hipopótamos e leopardos que lhe batem à porta de casa, faz-se de pássaro todos os dias. (...)

O balão deste João também sobe, sobe pelo ar (e só pára na Tanzânia)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Acorda para voar. João Rodrigues é piloto de balões de ar quente no Parque Nacional do Serengeti, onde vive. Para fugir aos leões, hipopótamos e leopardos que lhe batem à porta de casa, faz-se de pássaro todos os dias.
TEXTO: Rsh, rsh, rsh. Duas da manhã e o ruído ritmado, como se alguém estivesse a comer batatas fritas do outro lado da janela, não deixava João Rodrigues voltar a adormecer. Rsh, rsh, rsh. Deitado na cama, olhos abertos, apercebia-se de pausas na cadência, separadas por intervalos mais ou menos regulares. Os silêncios duravam o tempo de mergulhar a mão na embalagem de plástico e pescar mais batatas. Depois, outra vez o barulho mastigado. Era a primeira noite do piloto de balões de ar quente na Tanzânia. E foi dessa inocência que a curiosidade se aproveitou para o seduzir até à janela. Lá fora, a savana sem fim banhada pelas estrelas. Mas os olhos congelaram num vulto “enorme”. Correu a cortina. E lá estava ele. Pernas muito curtas, a pele quase nua. Gigante. Um hipopótamo. “Um hipopótamo a comer a erva junto de minha casa”, conta, a rir-se da improbabilidade de a cena se repetir na relva que está agora a calcar, no Fundão (ou então a troçar de um hipopótamo a comer um pacote de batatas fritas). “Estive ali um bocadinho a ver, curioso, porque era a primeira vez, e fui dormir outra vez. ” Mas a savana não se foi deitar com ele. “E, de repente, acordo com um barulho no telhado de zinco. ” Na manhã seguinte, perguntou o que teria sido. Responderam-lhe, distraídos: “Ah, foi um leopardo a saltar de uma árvore, a caçar. ”Assim são as noites no Seronera, no Parque Nacional do Serengeti, na Tanzânia, África, onde João Rodrigues, 60 anos, um dos primeiros dois pilotos a ter licença em Portugal, mora durante alguns meses do ano (já tem novamente regresso marcado para 29 de Maio e estadia até 1 de Novembro). Faz safaris a bordo de um balão de ar quente. Palmilha o parque todos os dias, antes de os próprios dias nascerem. É “um sonho”, que repete todas as alvoradas. Dura uma hora. Depois, o sol levanta, ele pousa e “amanhã há mais”. “Poder voar todos os dias”: é uma boa razão para escolher a Tanzânia como destino? Se não for, João pode rapidamente pensar em mais. E a leveza com que as atira desarma qualquer um. “Porque aquilo lá é lindo, maravilhoso. ” Assim, simples. A “aventura em África” que o piloto desejava desde que se perdia nas fotografias da revista da modalidade, que assinou mal terminou o curso, em 1993. Fez finalmente as malas em 2008 e ficou dois anos. Voltou a fazê-las, desta vez para a Turquia, onde já tinha estado em 2006 e 2007 (“Oh, as formações rochosas da Capadócia…”). Mas a “instabilidade política e os atentados terroristas começaram a afastar os turistas” e o mercado das viagens de balão de ar quente esvaziou. Em 2016, teve de encontrar uma nova corrente. Voltou a contactar a empresa na Tanzânia e esperou por uma resposta positiva em Portugal (“as nossas paisagens e as flores. . . ”), onde integra a organização do Festival Internacional de Balões de Ar Quente (FIBAQ), no Alentejo. E, entre voos, o convite chegou: o português, natural de Mafra, deverá ficar no Serengeti até ao final de 2020, espera, com um sorriso. A seguir? Ainda vai ter de procurar a resposta nas nuvens. “Eu gostava de voar…”. Pausa, propositada, como se o onde pouco importasse. “No Botswana. No Vietname. No Canadá”, continua. Mas de volta à planície imensa do Serengeti. O lugar onde a terra “continua até ao infinito”. João vive a duas horas da entrada do parque nacional. Ao Seronera, chega-se ou de carro ou de avião. “Há mercado para os balões” — com cada voo a rondar os 500 euros por pessoa, enquanto por cá uma hora no ar custa à volta dos 150 — e, tirando algumas “vezes que não se vê nada, só umas lebres”, João sobrevoa leões, búfalos, hipopótamos, girafas, elefantes (“a maior manada que vi tinha na ordem dos 250”), “milhares de zebras”. Durante a grande migração “o número estimado de gnus no parque flutua entre o milhão e trezentos mil e o milhão e seiscentos mil, distribuídos por três corredores”. “Posso mostrar-lhe uma foto?” Parece impossível, montagem. Mas é a “vida, em acção”. Selvagem. O parque africano “é dos poucos do mundo que não tem vedações”, nem “junto às casas” (e daí o hipopótamo e o leopardo). Num balão, “há tempo para apreciar, porque é um meio aéreo que se desloca muito devagar”. Imagine: está num miradouro. “Ei, que paisagem lindíssima. Então agora imagine deslocarem-se à altura do miradouro, ao longo da paisagem. ”Costuma dizer que é “dos poucos touros que tem ligação com o ar em vez de com a terra”. Isto porque, antes do balão, já se atirava de pára-quedas. Recuámos. O ano era 1992. João Rodrigues era militar pára-quedista e voluntariou-se para integrar uma equipa que iria inovar as demonstrações de queda-livre que faziam quase todos os fins-de-semana, em várias zonas do país, em acções de recrutamento. Em vez dos saltos, “que ficavam caros”, iriam levar um balão, que podia ficar preso por cordas e “envolver as populações”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Um ano depois, ele e Aníbal Soares, os dois pára-quedistas seleccionados, concluíram a licença com a ajuda de um inglês que tinha um balão, no Alentejo. “Acabámos por ser os primeiros pilotos de balão de ar quente portugueses”, diz, “e a partir daí estivemos sempre ligados aos balões”. Juntos fundaram a primeira empresa portuguesa dedicada ao balonismo (Publibalão) e a primeira escola do país para pilotos de balões de ar quente, sediada em Fronteira. “Eu podia dizer que, tirando muito raras excepções, os indivíduos que andam a voar em Portugal foram nossos alunos. ”Ao recuarmos mais ainda, João Rodrigues queria pilotar aviões. Foi com a mesma idade que costumava olhar para a chaminé da olaria que tinha perto de casa dos avós. “Aquele fumo sai com tanta força, que se eu pusesse um balde voltado ao contrário ele voava”, pensava. “Troca-se o balde por um cesto”, e o que é isto, se não o “princípio dos balões e do ar quente?” Era o princípio de um sonho, que agora anda por aí, a voar. Perdão, a flutuar. Eu vou às histórias do Aladino e do tapete mágico, porque dá a ideia que estamos a flutuar, não é? Na realidade, não deveríamos chamar voar ao que o balão faz, deveríamos chamar flutuar. O balão flutua, entra na massa de ar e desloca-se com ela. Uma coisa é voar por desporto, de vez em quando. Outra coisa é gostar tanto e querer voar e voar todos os dias. É o que se passa comigo. Eu vivo a vida num sonho. Porque para muita gente voar de balão é um sonho e eu vivo esse sonho todos os dias. Espero pelo próximo voo.
REFERÊNCIAS:
Música e artes de África animam Évora
Festival começa esta sexta-feira no Palácio de Cadaval e no Templo Romano e decorre até 25 de Agosto em vários outros lugares do Alentejo. (...)

Música e artes de África animam Évora
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Festival começa esta sexta-feira no Palácio de Cadaval e no Templo Romano e decorre até 25 de Agosto em vários outros lugares do Alentejo.
TEXTO: Após meia dúzia de anos virado para as culturas do Oriente e para o imaginário da música sacra e clássica ocidental, o Palácio de Cadaval, em Évora, olha agora para África. E a cerimónia Bwaba, com as “máscaras da lua” do Burkina Faso, com que esta sexta-feira, pelas 22h00, abre no Templo Romano da cidade o programa do festival Évora África, marcará o sentido dessa viragem. “Era a altura de abrirmos o nosso espaço a novas culturas e a novas dinâmicas”, explicou ao PÚBLICO Alexandra de Cadaval, directora do novo festival, que promete animar aquela cidade e o Alentejo ao longo dos próximos três meses com um extenso programa especialmente centrado na música e nas artes plásticas. “Vamos ter 17 artistas representados na exposição Africa Passions e centena e meia de músicos a realizar 30 concertos”, acrescenta a responsável pelo programa, que terá como palco principal o palácio daquela família centenária, no centro histórico de Évora. E se as artes plásticas, a fotografia e a música constituem o núcleo central da programação, ao longo das semanas que decorrem de agora até 25 de Agosto haverá também dança, performances, animação com DJ, conferências e acções educativas. Uma experiência de sete anos vivida em Moçambique em acções de carácter humanitário e cultural justifica a reivindicação da “verdadeira paixão por África e pelas suas diferentes formas de cultura e de expressão artística” sobre a qual Alexandra de Cadaval edificou o novo festival. “Há todo um património que está a desaparecer cada vez mais, e cuja salvaguarda convoca o nosso esforço”, diz a directora do Évora África, que se propõe cumprir o seu papel neste esforço que se “exige à Europa” de atenção a “uma cultura extensíssima que, no fundo, é a raiz da nossa própria civilização”, acrescenta. É assim que o festival vai trazer ao Alentejo uma “festa da cultura africana” nos seus aspectos menos difundidos. Na música, por exemplo, se entre a centena e meia de intérpretes há nomes conhecidos de festivais de música urbana e world music, como a Orquestra Ballaké Sissoko ou o DJ Ibaaku, que já passaram por outros palcos portugueses, Alexandra de Cadaval promete “um festival fora do contexto tradicional da world music e da fusão”, ressalvando, no entanto, nada ter “contra esses géneros musicais”. Mas realça a preocupação em mostrar em Portugal “a autenticidade das práticas ancestrais da música e do canto”, que ela própria foi conhecendo no decorrer da sua vivência junto de tribos do Continente Negro. Para o programa musical do Évora África, a directora socorreu-se do apoio do musicólogo francês Alain Weber, um estudioso da música africana e consultor artístico da Cité de la Musique, em Paris, com quem, de resto, tinha já trabalhado no anterior festival dedicado ao Oriente. Num texto integrado no programa do festival, Weber chama a atenção para “a influência fundamental que a África teve, e ainda tem, quer na Europa” quer noutros cantos do mundo. “Como se exorcizasse o período trágico da escravatura, África transcendeu literalmente, tanto na sua forma modal como ritmicamente, a maioria da música popular actual, do gospel ao jazz, do blues ao rock, da soul ao rap, do funk ao hip-hop”, acrescenta o musicólogo. As raízes destes géneros vão passar pelo festival eborense num cartaz de trinta concertos em cujos intérpretes Alexandra de Cadaval destaca o DJ Ibaaku, do Senegal, um artista e multi-instrumentista prolífico que é também autor e compositor. E também a Orquestra Ballaké Sissoko, que regressa a Portugal, desta vez com uma formação em estreia europeia composta por 12 tocadores de kora, instrumento tradicional da África Ocidental. Nas artes plásticas e fotografia, o festival acolhe na colectiva Africa Passions, uma selecção de arte contemporânea que reúne trabalhos de 17 artistas, comissariada pelo francês André Magnin (com Philippe Boutté). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “África tem uma originalidade que nasce das suas diferenças. A criatividade e a força artística do continente vêm da liberdade que os seus artistas concederam a si mesmos”, escreve Magnin sobre esta escolha onde o nome mais sonante é o do maliano Malick Sibidé (1936-2016), cuja obra já foi mostrada entre nós em lugares como os Encontros de Fotografia de Coimbra (2004), o Doc Lisboa (2010) ou os Encontros da Imagem de Braga (2016). Tendo conhecido André Magnin na Fundação Cartier, em Paris, onde o curador apresentou as exposições Beauté Congo (2015-16) e Mali Twist (2017-18), Alexandra de Cadaval desafiou-o a trazer agora a Évora um port-folio de 15 das fotografias de Mallick mostradas nesta última exposição concluída no passado mês de Fevereiro. Mas a directora do festival destaca também, em Africa Passions, o trabalho de Romuald Hazoumè, do Benin, que exporá as suas obras na igreja privada de São João Evangelista, no Palácio de Cadaval; e ainda a presença de Esther Mahlanghu, uma artista sul-africana de 83 anos que pinta com pincéis feitos de penas de galinha, e esteve cinco semanas em Évora a fazer um mural para o festival. “É uma senhora fantástica, que tem corrido o mundo, e que sendo 100 por cento defensora da cultura ancestral da sua terra, se afirmou também como uma grande artista contemporânea”, diz a responsável por Évora Africa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura negro escravatura
Uma grande gargalhada para a tragédia
O Centro do Mundo, estreia de Ana Cristina Leonardo no romance, é um pícaro, livro de heróis cómico e trágico, onde a história da Europa na primeira metade do século XX vagueia pela tragicomédia humana. (...)

Uma grande gargalhada para a tragédia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2018-06-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Centro do Mundo, estreia de Ana Cristina Leonardo no romance, é um pícaro, livro de heróis cómico e trágico, onde a história da Europa na primeira metade do século XX vagueia pela tragicomédia humana.
TEXTO: "Em 1896 vinha ao mundo Boris Skossireff" e o facto seria determinante para a estreia no romance de Ana Cristina Leonardo (Olhão, 1959). Boris, aventureiro russo, figura tão real quanto inverosímil, é o grande alvo da imaginação da autora, filtro que nos aproxima de uma certa ideia de verdade, quase impossível de apurar seguindo os métodos de investigação tradicionais que a teriam levado por um caminho menos delirantemente literário do que o conseguido neste O Centro do Mundo. Não estamos perante uma biografia deste homem improvável, mas do retrato ficcional de alguém "de carácter temerário e grande pendor para línguas" que se cruzou com a história da Europa na primeira metade do século XX e pôs Olhão no centro do mundo. Autoria:Ana Cristina Leonardo Quetzal Ler excertoSão muitos os detalhes que desafiam a classificação mais ortodoxa de romance aplicada a esta narrativa onde o protagonista tanto pode ser Boris como Olhão, em que as fronteiras entre real e ficcional se tocam, o ensaio se cruza com a invenção, há diálogos entre o texto principal e as notas de rodapé, as fotografias — a preto e branco — de lugares e gente reais pontuam o pícaro de uma história povoada por gente bizarra, loucos, simples, lunáticos, aventureiros, em que o único compromisso com o que aconteceu é o de ser o grande inspirador e instigador de uma fantasia literária que tem como subtítulo Retrato Imaginário do Russo Apátrida Boris I de Andorra e Mano-Rei de Olhão, Agente dos Ingleses e Oficial da Wehrmacht, Preso e Condenado aos Gulags da Sibéria. Já se percebeu que não estamos perante um livro convencional, mas a sua originalidade não se confina a estes pormenores. Há um invulgar sentido de humor e de funesto, um pícaro próximo de livros como O Trincapregos, de Albert Cohen, o romance do herói cómico, mas também do desconcerto dos russos visível nas suas mais amplas variações nos contos de Tolstoi. Isso enquanto vai desfilando a história de Boris, que de forma sucinta se pode dizer que é um aventureiro russo, mas que é um pouco mais do que isso, alguém nascido em Vilnius, Lituânia, em finais do século XIX, que foge para Inglaterra durante a revolução russa. Ali, torna-se espião mas é despedido depois de passar cheques sem cobertura. A Holanda será a sua paragem seguinte e lugar de outra identidade: inventa que é duque. Tudo acaba depois de ser apanhado a roubar um relógio de ouro. Próximo destino: Canárias. Nova personagem: é um aristocrata russo desapossado de todos os bens pelos comunistas. Aí terá o auge da sua vida amorosa, envolve-se com um americana rica e com uma jovem inglesa até ir parar a Andorra onde joga todos os seus trunfos imaginativos e recursos linguísticos para ser nomeado príncipe. Será, mas por uma semana. É preso e depois de muitas peripécias chega a Barcelona, Madrid e passa a fronteira em Portalegre com a ajuda de Rolão Preto, o fascista que fazia oposição a Salazar, e pára em Lisboa. A intenção é chegar a França, mas, sem papéis, aconselham-no a ir por Marrocos a partir de um porto no Sul onde se sabe de um homem que ajuda quem quer sair do país por mar. Esse porto fica numa povoação piscatória, Olhão. “Se havia casa em Olhão onde Boris Skossyreff seria bem acolhido, era decerto a de Francisco Fernandes Lopes, excêntrico, desafectado e genial olhanense, ‘renascentista desgarrado do século XX’, como lhe chamou alguém que não entra nesta história. ” Esse médico de quem se diz que “sabia de tudo até de medicina” é uma das personagens que atravessam a vida de Boris, como um cineasta doido que um dia imigrou para a América e voltou a Olhão onde ajuda pessoas a fugir no seu barco de pesca por nenhuma outra razão além da solidariedade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O ritmo do texto é por vezes alucinante, como quando elenca a doida relação de características de uma personagem, ou tem pausas para algum sossego ao convocar referências literárias, históricas, cinematográficas numa relação tão desconcertante quanto iluminada com o centro da narrativa. Proust está presente, como Scorsese, Xavier de Maistre, William Thackeray, Aquilino Ribeiro e todos os que Ana Cristina Leonardo chamou para iluminarem uma sátira, paródia, por vezes comédia de costumes, com muitas tragédias pessoais, entre elas a de Boris, o simpatizante de Hitler menos por convicções políticas do que por necessidade e engenho de sobrevivência, que foi parar à Sibéria, condenado a trabalhos forçados. A história de Boris, o poliglota de ADN impoluto, não é no entanto mais do que pretexto para uma história maior, a de Olhão. “Apesar da ‘nobre indiferença muçulmana pelo autoclismo, o esgoto, a árvore frondosa e a ânsia de ar das ruas novas’ de que falava Aquilino dando razão a Boris, e da falta de pergaminhos que já em 1758 era notada pelo prior Sebastião de Sousa, Olhão mantém um lastro de glória. Industriais, pescadores e vates contrabandistas continuam a partilhar o desrespeito pela lei e o culto do Senhor dos Aflitos, numa vila pródiga em dândis e espanholas, estrangeiros e aventureiros, sardinhas e anarquistas, operários e fedor. Tresanda, resume Raul Brandão. Não exagera o simbolista. Ao peixe que apodrece sob o calor africano junta-se a matéria fecal que escorre a céu aberto, húmus pestilento que Captain Zorra nunca conseguiu olvidar, memória primeva que nos conduz, um pouco abruptamente, é certo, a Marilyn Monroe, actriz que nunca veio a Olhão. ”Foi a esta Olhão que chegou Boris na década de 30 e a mesma que ele deixou pouco depois. Sabemos o que pensou do sítio pelo que a autora nos deixa ler, mas o que pensaram os olhanenses de Boris? Esse é o tema da verdadeira segunda parte deste livro, o capítulo Anexos, em que assenta o outro lado da história desse homem, mas, sobretudo, neste momento do livro, da narrativa que corre paralela, a de Olhão. Essas vozes desfilam na primeira pessoa. São cinco depoimentos, testemunhos individuais de um enredo colectivo, criações da imaginação da escritora que conhece o potencial de comicidade da riqueza e da pobreza, da miséria ou da opulência, de um provincianismo que contrasta com a grande História, também trágica, da Europa naquele período. E conhece além disso os recursos literários para fazer deste livro um caso singular na literatura portuguesa.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Terão sido os romanos os primeiros caçadores de baleias?
Análises a ossos de baleias revelam que duas espécies destes cetáceos que já não existem agora no estreito de Gibraltar e no mar Mediterrâneo migravam para essa zona no século I, em pleno Império Romano. (...)

Terão sido os romanos os primeiros caçadores de baleias?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Análises a ossos de baleias revelam que duas espécies destes cetáceos que já não existem agora no estreito de Gibraltar e no mar Mediterrâneo migravam para essa zona no século I, em pleno Império Romano.
TEXTO: Ecólogos, arqueólogos e geneticistas juntaram-se para resolver uma incógnita: já havia uma indústria baleeira no Império Romano? Para desmontar esse enigma, analisaram ossos de baleias com cerca de dois mil anos encontrados no estreito de Gibraltar. Descobriram que pertenciam à baleia-franca-do-atlântico-norte e à baleia-cinzenta que já não habitam essa zona mas que deveriam ser comuns aí há dois mil anos. Como já havia métodos para caçar estas espécies, a equipa de cientistas – da qual faz parte a portuguesa Ana Rodrigues – defende a hipótese de que os romanos já caçariam baleias antes de os bascos o terem começado a fazer na Idade Média. Tudo começou com uma pergunta de uma equipa de ecólogos em 2011. “Sabíamos que duas espécies de baleias habitavam o Atlântico e que são espécies que se reproduzem em mares relativamente quentes e subtropicais noutras partes do mundo. Por que é que não se reproduziam também no Mediterrâneo?”, recorda Ana Rodrigues, primeira autora do artigo publicado esta quarta-feira na revista científica Proceedings of the Royal Society of London B e ecóloga no Centro de Ecologia Funcional e Evolutiva, em Montpellier (França), do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS). “Será que nunca lá estiveram ou será que estiveram e desapareceram sem nos termos dado conta?” A única forma de saberem era através de ossos. Como tal, procuraram arqueólogos e encontraram uma equipa que estava a fazer a mesma investigação mas de outra perspectiva. “Tinham encontrado ossos de baleia em escavações e questionavam se seria possível que tivesse existido caça à baleia”, conta a ecóloga de 45 anos. A equipa do arqueólogo Darío Bernal Casasola, da Universidade de Cádis (Espanha), descobriu ossos em antigas fábricas de salga de peixe do período do Império Romano no estreito de Gibraltar. Além de o estreito de Gibraltar ser uma porta de entrada no Mediterrâneo, foi também um centro de exploração de recursos marinhos, da indústria de processamento de peixe e de exportação para todo o Império Romano. Como era impossível identificar os ossos através da morfologia, geneticistas juntaram-se ao trabalho. Ao utilizarem dois métodos – o de ADN antigo e de colagénio –, perceberam que os ossos pertenciam a um cachalote, uma baleia-piloto, uma baleia-comum, um golfinho – que ainda são frequentes no Mediterrâneo – e a um elefante-africano. “O elefante-africano que hoje só existe na zona subsariana [de África], antigamente também existia no Norte de África”, nota a ecóloga, acrescentando que teria sido usado como animal de guerra ou de trabalho, segundo os registos históricos. Também encontraram o que pretendiam: ossos da baleia-franca-do-atlântico-norte (Eubalaena glacialis) e da baleia-cinzenta (Eschrichtius robustus). “A baleia-franca é das baleias mais gordas, porque tem uma camada de gordura, que lhe permite viver uma parte do ano [sem se alimentar] enquanto se reproduz”, descreve. Essa “camada de banha” fez com que fosse das baleias preferidas dos caçadores. É preta, tem barbas grandes e é uma das maiores baleias que existe, podendo chegar aos 18 metros. Actualmente está classificada como “em perigo” pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Em tempos, já habitou o Leste do Atlântico Norte, mas hoje só existem cerca de 500 indivíduos no Oeste do Atlântico Norte. Já a baleia-cinzenta pode alcançar os 15 metros. É uma espécie costeira e é cinzenta porque está coberta de cracas. “A baleia-cinzenta foi uma baleia relativamente secundária [na caça], porque era mais pequena e não era particularmente produtiva”, indica Ana Rodrigues. Actualmente só vive no Pacífico Norte. As duas espécies sofreram com a caça à baleia que foi proibida durante o século XX. Os cientistas também procuraram referências às baleias em documentos históricos. “O problema é que quanto mais para trás [no tempo] vamos, menos precisão os escritores têm em termos de terminologia utilizada e menos se sabe o que o queriam dizer”, conta Ana Rodrigues. Mesmo assim, os termos mais usados (em latim) são balæna ou cetus, que incluía atuns, tubarões, focas, baleias, grandes peixes ou monstros marinhos. Analisaram excertos da obra História Natural, de Plínio, o Velho, escrita no século I, onde o naturalista faz uma descrição de um ataque de orcas a baleias, que se reproduziam na baía de Cádis no solístico de Inverno. “Hoje em dia, não há nada parecido com isto porque nenhuma das espécies que existe se reproduz na zona costeira. Mas corresponde às duas espécies, não sabemos é a qual. ” Também estudaram o poema épico Haliêutica, escrito pelo poeta grego Opiano entre o século II e o III. Aí é descrita uma captura a um monstro marinho com métodos – como barcos a remos e arpões – que podiam ser usados para caçar as duas espécies de baleias. Portanto, mostraram que essas duas baleias estavam presentes na zona de Gibraltar e, muito provavelmente, entravam no Mediterrâneo para se reproduzir. No Verão, alimentar-se-iam em águas frias e de altas latitudes do Atlântico – perto da Islândia ou dos bancos da Terra Nova. No Inverno, migrariam para as zonas mais quentes, como o Mediterrâneo, onde viveriam das suas reservas. “A sua presença em águas de baixa latitude indica que estavam já na zona de reprodução em Gibraltar ou de passagem para uma outra zona mais no interior do Mediterrâneo”, explica Ana Rodrigues. “A nossa hipótese é que, se calhar, os romanos começaram a caçá-las antes da caça industrial que, supostamente, se iniciou com os bascos [na Idade Média] e que a população de baleias que entrava no Mediterrâneo pode ter desaparecido antes dos registos históricos terem começado a referir a caça dos bascos. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Contudo, no artigo sublinha-se: “Nada disto demonstra que existia uma indústria baleeira romana, mas indica que os romanos tinham os meios, o motivo e a oportunidade para capturar baleias-cinzentas e baleias-francas a uma escala industrial. ” A comprovação desta hipótese será agora para os historiadores, que analisarão fontes literárias, e para os arqueólogos, que continuarão a estudar vestígios. “Para mim, a coisa mais interessante é termos esquecido as espécies que seriam visíveis e costeiras numa das zonas mais conhecidas e estudadas do mundo”, deslumbra-se a ecóloga. Já há dez anos em França, Ana Rodrigues continuará a tentar desmistificar a forma como os ecossistemas mudaram à nossa volta. E dá-nos um exemplo (especulativo), até porque quando as baleias passavam para o Mediterrâneo seriam visíveis da costa portuguesa: “Imagine o estuário do Tejo cheio de baleias a reproduzirem-se. É uma imagem que me parece mágica, credível e possível do ponto de vista ecológico. ”
REFERÊNCIAS:
Daniel Berehulak contou o que mais ninguém quis contar
Ao serviço do New York Times, o fotojornalista esteve no epicentro da epidemia de ébola na África Ocidental. O trabalho valeu-lhe o Pulitzer de 2015 para Reportagem Fotográfica. (...)

Daniel Berehulak contou o que mais ninguém quis contar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ao serviço do New York Times, o fotojornalista esteve no epicentro da epidemia de ébola na África Ocidental. O trabalho valeu-lhe o Pulitzer de 2015 para Reportagem Fotográfica.
TEXTO: Sentámo-nos à conversa num bar de tapas no Born, bairro hipster de Barcelona. Daniel Berehulak acabava de chegar do Nepal, onde estava há quase um mês a registar a devastação provocada pelos sismos de Abril e Maio. Mais uma missão para o The New York Times, jornal com o qual tem colaborado quase em exclusivo desde que se tornou freelance em 2013. “Estar aqui em Barcelona é como voltar ao paraíso. No Ocidente, não damos conta do quanto somos privilegiados”, desabafa. O fotojornalista australiano vive entre Nova Deli, na Índia, e a capital da Catalunha, e dias depois da entrevista receberia em Denver, nos EUA, o Scripps Howard e, em Nova Iorque, a 28 de Maio, o Pulitzer — prémios atribuídos à crème de la crème do jornalismo e da fotografia. “Isto de ganhar o Pulitzer é, aparentemente, uma grande coisa. A sério! Sobretudo para mim que cresci numa quinta onde ajudava o meu pai a plantar árvores e a apanhar bosta de vaca todos os dias”, diz, em tom jocoso. Filho de um casal ucraniano que emigrou para a Austrália no pós-Segunda Guerra Mundial e se instalou numa propriedade rural nos arredores de Sydney, aprendeu “desde tenra idade com o trabalho no campo que para se conseguir alguma coisa na vida é necessário lutar muito”. “A fotografia foi sempre um hobby. Mas a minha família nunca encarou essa minha paixão como uma possibilidade de emprego. E eu tinha zero talento. Tirei milhares de fotografias péssimas. Tive de trabalhar arduamente e ser muito determinado. Fiz uma caminhada em que não reconheço erros, só crescimento e aprendizagem. Acredito que podemos conseguir qualquer coisa na vida se trabalharmos mais e melhor do que todos os outros. ”Veterano na cobertura de conflitos armados e crises humanitárias, Berehulak, 39 anos, é, nas suas palavras, “um fotógrafo que conta histórias, um fotógrafo de pessoas”. “A fotografia é a minha vida e é também uma paixão. Não aponto a câmara às pessoas a torto e a direito. Tento estabelecer uma relação com as pessoas, sorrir, mostrar-lhes quem eu sou. A partir do momento em que se cria essa empatia, a câmara está ali presente e só é utilizada quando alguma coisa acontece, quando realmente é preciso. ”Fascinado pelas missões em locais “onde a percepção que se tem dos fotojornalistas não está manchada pelos tablóides e paparazzi”, não hesitou quando o chamaram para fazer reportagens sobre o surto de ébola que, desde Dezembro de 2013, dizimava vários países da costa ocidental africana. “Estava a seguir o que se passava há alguns meses e questionava-me sobre a possibilidade de a epidemia se propagar e afectar outras partes do mundo. Ia a caminho do Curdistão quando o editor de fotografia internacional do The New York Times, com quem tenho uma excelente relação, me perguntou se eu queria fazer esse trabalho. Imediatamente disse que sim. ”O jornal norte-americano enviou, no segundo semestre de 2014, diferentes equipas de redactores e videojornalistas para a Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri — um esforço colectivo igualmente recompensado com um Pulitzer na categoria de Reportagem Internacional. À excepção dos jornalistas locais, alguns também contratados ocasionalmente pelo Times, Berehulak foi, entre todos os colegas, o repórter que mais tempo esteve no epicentro da epidemia — um total de quatro meses, incluindo uma primeira missão na Libéria em que trabalhou sem folgas durante 67 dias e uma outra viagem à Guiné-Conacri onde descobriu a família do paciente zero. As suas fotos acompanharam notícias e reportagens escritas por cerca de 15 editores e redactores, mas no terreno trabalhou somente com dois ou três. Um deles foi Norimitsu Onishi, actualmente chefe da delegação do NYT em Joanesburgo. “Foi fantástico trabalhar com o Nori, demo-nos muito bem e durante sete semanas perseguimos juntos vários ângulos diferentes. ” Foi com esta dupla, um ocupando-se da escrita, outro da fotografia, que o NYT conseguiu mostrar o que realmente se passava na Libéria. “Depois de semanas a fotografar nas ruas, cheguei a um ponto em que já tinha tantas imagens de corpos e de pessoas doentes jogadas pelo chão que senti que não estava a acrescentar nada de novo ou importante à história. Esse é um dos problemas que se enfrentam ao cobrir situações de crise: via morte por todo o lado, estava física e emocionalmente exausto e não conseguia pensar num ângulo diferente. Trabalhar em equipa com pessoas que trazem novas ideias ajudou-me a reinventar o meu trabalho e a focar as minhas energias da melhor forma. ”Durante quase dois meses, os dois jornalistas seguiram a comunidade de Capitol Hill, na região suburbana de Monróvia, e várias das famílias que ali viviam. As peças do puzzle começaram a encaixar-se. “Começámos a acompanhar uma família, os Doryen. Através deles, conseguimos compreender como a epidemia afectava toda a sociedade. E tudo o que eu fazia antes, ao fotografar nas ruas diariamente, ganhou um novo significado. ” As famílias numerosas são o pilar das sociedades africanas, sobretudo em países devastados pela fome e pela guerra civil como a Libéria ou a Serra Leoa. “Um por um, fomos vendo morrer vários Doryen. Um jovem jogador de básquete, a Princess de nove anos, a Esther de cinco anos, que foi arrastada para um dos centros médicos mas também não sobreviveu. Íamos com eles às clínicas, chegávamos a ligar para as ambulâncias para os virem buscar”, recorda o fotojornalista, representado desde 2013 pela Reportage, uma equipa de elite da agência de fotografia Getty Images. “A destruição das famílias é a tragédia central da epidemia. São as famílias que sustentam estas sociedades, por isso os efeitos do ébola na região serão profundos e duradouros”, reflecte Onishi num dos seus artigos para o Times. Com os hospitais sem capacidade de resposta e sem camas e apenas 15 ambulâncias para recolher os doentes em toda a cidade de Monróvia, de 1, 5 milhões de habitantes, mães, pais, tios, filhos tinham duas alternativas: largar os seus doentes nas ruas e na frente dos centros médicos ou dar-lhes atenção e conforto, correndo o risco de serem também infectados. “A compaixão torna-se um perigo”, sentencia o jornalista de origem japonesa e canadiana. A transmissão do ébola entre humanos ocorre através de contacto directo com sangue e fluidos corporais de uma pessoa infectada ou pelo contacto com objectos contaminados. Os primeiros sintomas — febre, dores musculares, cansaço — surgem entre dois a 21 dias após a exposição ao vírus. Mas o perigo de contágio prolonga-se após a morte dos pacientes — os cadáveres são altamente contagiosos durante sete dias. “Estas sociedades têm rituais ancestrais de despedida e de enterro dos seus mortos. Estes costumes estavam a espalhar o vírus ainda mais depressa e a destruir famílias inteiras. Para aquelas pessoas, mudar esses hábitos e ver partir entes queridos sem lhes poder tocar ou fazer uma despedida com dignidade foi um golpe muito duro. ” Nas ruas, mesmo com recolher obrigatório e bairros encerrados para quarentena, o desespero era palpável. “Vi de tudo. Pessoas que arrastavam corpos pelas ruas porque não os queriam nas suas comunidades. Havia quem escondesse os mortos e quem pagasse a um estranho para levar os cadáveres às escondidas para uma ilha onde seriam enterrados respeitosamente. E havia também muita gente que continuava a agir como se nada se passasse porque não acreditavam que o vírus existia. Diziam que o Governo tinha criado o vírus, outros achavam que a culpa era dos americanos. Havia uma série de rumores a circular e por isso optei muitas vezes por não usar o fato de protecção. Se aparecesse nas comunidades, onde já havia revolta e negação, vestido naquela coisa branca e brilhante, podia antagonizar as pessoas e colocar-me em risco. ”Daniel Berehulak e a equipa do NYT, tanto a partir de África como de Nova Iorque, criaram um dos registos mais completos sobre o primeiro surto de ébola a atingir níveis epidémicos — um legado com milhares de fotografias, mais de 400 notícias, 50 chamadas de primeira página, dezenas de vídeos e infografias. Deram rosto às mais de 11 mil pessoas que perderam a vida e às 30 mil que contraíram a doença nos três países mais afectados. O surto está agora controlado e a Libéria declarou há três semanas que está livre do vírus. Mas as feridas continuam abertas — só na Serra Leoa há cerca de dez mil crianças órfãs de pai, de mãe ou de ambos. Um número muito restrito de casos, prontamente isolados, foram importados para a Europa (Reino Unido, Espanha e Itália) e EUA através de pessoal médico que se encontrava na África Ocidental em missão humanitária, sem deixar de provocar um certo histerismo mediático nos principais canais de informação internacionais. “Havia razões para ter medo e muitas incertezas. Por isso, quando cheguei à Libéria, não desatei a correr atrás dos acontecimentos. Tive de me conter. Observei, ouvi, aprendi e tentei absorver o máximo de informação possível para trabalhar em segurança. E é possível fazê-lo com as devidas precauções. ” Na sua mente, a missão de informar era mais importante do que tudo o resto e, para o fazer, o fotojornalista tinha de estar vivo e de boa saúde. “Oitenta por cento do trabalho no terreno é logística. A parte mais fácil é disparar a foto. Conseguir clicar garantindo que estás em segurança no meio de ambientes hostis é mais de metade do trabalho. Nesta última missão no Nepal, para chegar aos locais mais atingidos pelo sismo, tinha de convencer os exércitos indiano ou nepalês a levarem-me de helicóptero nas missões de salvamento e resgate. Havia uma pequena aldeia que não tinha acesso por carro e para lá chegar era preciso escalar cerca de oito horas por um terreno íngreme e em deslizamento. Tudo o que aprendi em toda a minha vida, e não apenas nos meus 15 anos de carreira, ajudou-me a abrir o caminho, a criar empatia com as pessoas, a estabelecer confiança num período muito curto de tempo, a convencer as pessoas da minha integridade. E depois tinha ainda de garantir a minha sobrevivência quando era deixado nalguma montanha: ter equipamento de campismo, saco-cama, comida, água. Ter o portátil e todas as baterias completamente carregadas e o telefone-satélite para transmitir dados. ”Durante as quatro viagens que fez à África Ocidental, Berehulak recebeu dezenas de emails de jornalistas interessados em fazer reportagem na região assolada pelo ébola: “Diziam-me: ‘Estou a pensar ir para aí, é seguro?’ E eu respondia: ‘É, aqui vai a lista de equipamento que deves trazer. ’ E depois ficava uma semana sem receber mais mensagens e acabava por descobrir que não tinham aceitado o trabalho. ”O desinteresse dos media internacionais chocou o fotojornalista e, ao mesmo tempo, motivou-o a continuar o seu trabalho. “Não havia quase ninguém a documentar o que se estava a passar. Éramos muito poucos no terreno mas conseguimos influenciar governos e obrigá-los a tomar medidas. Os EUA, por exemplo, enviaram militares, ajuda humanitária e médicos. Conseguimos galvanizar a opinião pública e divulgar informação sobre o vírus a uma escala mundial. É nossa obrigação enquanto jornalistas contar as histórias destas pessoas e se não o fizermos a ajuda não chega e as atrocidades continuam a acontecer. A CNN e a ABC, por exemplo, iam a Monróvia durante três a cinco dias, tentavam recolher o máximo de informação possível e depois fugiam a sete pés. É muito difícil fazer um trabalho inteligente e profundo em tão pouco tempo. ”Para muitos dos seus colegas, “cobrir a epidemia de ébola não é tão sexy como ir para a guerra”. “Não te vai dar aquela imagem de durão. É caro chegar a África e se ficares doente é uma sentença de morte. Só muito recentemente se descobriu que as pessoas podiam sobreviver e, para quem está sentado num escritório em Nova Iorque ou na Europa, estes factores pesam. Eu, por exemplo, sei que em missão para o The New York Times tenho sempre uma rede de segurança caso me aconteça alguma coisa, e isso ajuda, mas nunca tive o número de uma apólice apontado no telemóvel. Conheço muita gente que não aceitaria fazer reportagem sem ter o número do seguro escrito numa folha de papel. ”Até se aventurar como freelance, Berehulak era fotógrafo de agência, representando a Getty Images em Londres, na Austrália e na Índia. “Sempre trabalhei como staff de agência e não tinha sequer os direitos de autor sobre as minhas imagens. Agora, como freelance e colaborando regularmente com o Times, um jornal que tem uma audiência muito abrangente, senti que as minhas histórias receberam muito mais atenção e provocaram mais reacções do que qualquer um dos prémios que já tive. Recebi emails de CEO de organizações não governamentais a agradecer-me. É através do bom jornalismo e de fotografias poderosas que conseguimos interagir com as pessoas. ”A coragem, a paciência e um sentido de responsabilidade e de ética garantiram o Pulitzer a este homem robusto, que aos 23 anos, e após a morte da sua irmã, decidiu largar tudo e iniciar a carreira na fotografia. “As imagens captadas pelo Daniel são as mais memoráveis de toda a tragédia. Ele não queria desistir desta história, era muito paciente e aguardava o máximo de tempo que podia para que os acontecimentos se desenrolassem perante o seu olhar. As suas fotografias são soberbas e demonstram coragem, persistência e um talento para contar histórias inspiradoras”, diz Michelle McNally, directora de fotografia do The New York Times, num artigo publicado online a 20 de Abril, dia em que foram oficialmente anunciados os vencedores do Pulitzer. A fotografia escolhida para representar o extenso trabalho fotográfico premiado é o culminar de seis horas de espera em frente a um hospital ao lado de James Dorbor, o rapaz de oito anos que, na imagem, é carregado pela equipa médica. Como o fato de protecção não cobria na totalidade o pescoço dos dois médicos, James é transportado numa posição estranha, como que segurado por fios, e evitando ao máximo o contacto com o seu débil corpo. Antes de fazer a foto, Berehulak permaneceu horas ao lado da criança e do seu pai, que desesperava por não poder confortar o menino nos seus últimos instantes de vida. James acabou por falecer horas depois já no hospital. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Acredito que devemos ter paciência com tudo. Quanto mais tempo passar no local da tragédia, mais oportunidades vou ter de analisar com lógica o que se está a passar. O mundo actual é muito visual. Tanta gente fotografa bem e eu tenho de ser cada vez melhor para que o meu trabalho seja lembrado e se destaque entre tanta informação. Por isso, acredito no poder da grande reportagem. Quero que as pessoas folheiem o jornal e parem para ver a foto e, se possível, que sintam alguma ligação. A minha esperança é que as motive a fazer algo, a doar dinheiro, a ajudar. ”Berehulak, que já fez reportagem em mais de 40 países e venceu três World Press Photo, estava em Times Square a caminho da Reuters, onde se ia encontrar com um amigo, quando recebeu um telefonema do seu editor no NYT a anunciar que tinha ganho o Pulitzer. “Fiquei em estado de choque. Não conseguia pronunciar uma única palavra. ”Meses antes, entre viagens a África, e algures numa das suas muitas “casas”, sentiu na pele a mesma estigmatização que vira todos os dias nas cidades flageladas pelo Ébola. “Fui discriminado pela minha família e pelos meus amigos. Voltei por uma semana e queria conviver com as pessoas mais chegadas. Liguei para alguns amigos e eles diziam-me: ‘Daniel, hoje há uma festa mas preferíamos que não viesses’. ” Mais tarde, noutras ocasiões em que regressou a casa, preferiu não avisar ninguém. “Não queria confrontar os meus amigos, nem assustá-los. Eu sabia que não tinha corrido nenhum risco e para transmitir a doença eu teria de estar com sintomas. Foi muito difícil para mim, mas mesmo assim foi apenas uma pequena amostra do que as pessoas passam todos os dias na Libéria. Qualquer pequeno sacrifício que eu suportei não é nada. Eu só lá estava de passagem e no final do meu trabalho podia regressar a casa. Para eles, a vida mudou completamente. Perderam irmãos, filhos, pais. Outros foram rejeitados pela própria família. Esta é a vida deles e não têm como lhe escapar. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Pelas vinhas mais bonitas da província do Cabo
Foram apenas três dias, muito pouco tempo para tanta beleza. Ainda assim, deu para conhecer algumas das vinhas mais bonitas da província do Cabo e provar vinhos icónicos da Áfríca do Sul, um país do “Novo Mundo” do vinho mas com uma história e vinhos do “Velho Mundo”. (...)

Pelas vinhas mais bonitas da província do Cabo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.675
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foram apenas três dias, muito pouco tempo para tanta beleza. Ainda assim, deu para conhecer algumas das vinhas mais bonitas da província do Cabo e provar vinhos icónicos da Áfríca do Sul, um país do “Novo Mundo” do vinho mas com uma história e vinhos do “Velho Mundo”.
TEXTO: A luz já se desvanecia em tímidos raios de fogo saídos das costas das montanhas quando chegámos a Scholtzenhof, a fazenda de Ken Forrester, vindos directamente do aeroporto, oito horas de viagem entre o Dubai e a Cidade do Cabo. A vinha estava quase a florir, com lançamentos ainda pequenos mas suficientes para dar uma imagem de um verde contínuo, que atenuava a nudez da terra. É engraçado sair de um vindima no Douro e aterrar num lugar onde a produção só agora se começa a definir. Passa-se do Outono, a mais pictória das estações e fim de ciclo, para a Primavera, a época do “renascimento”, do clima mais ameno e dos dias cada vez mais tardios. Na África do Sul, a vindima só começa a partir de Fevereiro. Na região do Cabo, há sempre montanhas em linha de vista. É uma paisagem assombrosa. Nos últimos anos, as vinhas têm subido do fundo dos vales até cotas mais altas e mais frescas. As vinhas de Ken Forrester ficam no sopé da montanha de Helderberg ("a montanha clara"), no meio da mais importante e famosa região vitivinícola da África do Sul, Stellenbosch. A False Bay, a grande baía da região do Cabo, o “golfo entre montanhas”, como lhe chamou o navegador Bartolomeu Dias, fica a apenas seis quilómetros de distância. Scholtzenhof é uma das mais antigas fazendas da África do Sul. Pertenceu durante mais de um século e meio à família Botha, do antigo presidente da África do Sul Pieter Botha, defensor do regime do “apartheid” mas que acabou a participar na transição para a democracia. No início dos anos 1990, ainda antes da libertação de Mandela, a fazenda entrou em falência e, em 1993, foi comprada em leilão por Ken Forrester, na altura empresário da hotelaria e da restauração em Joanesburgo. Ken recuperou algumas vinhas, plantou outras e em menos de 20 anos tornou-se conhecido na África do Sul como “o senhor Chenin Blanc”. É um homem simpático, alto, forte, com barba e cabelo brancos. Praticou râguebi e é amigo de François Pienaar, o capitão da lendária selecção sul-africana que ganhou o campeonato do mundo de râguebi de 1995 e ajudou a salvar a África do Sul do desastre. “Quando saiu o filme Invictus [sobre esse momento decisivo da história recente da África do Sul que revelou um Nelson Mandela sábio, estatuto e infinitamente tolerante], perguntei ao meu amigo François Pienaar o que ele achava e ele respondeu-me: 'Uau! Foi mesmo assim!'”, recordou Ken Forrester. Um dos seus vinhos, o T- Noble, um colheita tardia de Chenin Blanc, foi servido no 85. º aniversário de Nelson Mandela. Provámo-lo e é um branco doce muito rico de aroma e sabor, povoado de notas meladas típicas da botrytis (podridão nobre causada por um fungo que desidrata a uva e faz concentrar os ácidos e os açúcares) mas também com a marca da Chenin Blanc (acidez alta e sugestões de marmelo, damasco, mel). A gama de Chenin Blanc de Ken Forrester é vasta e dos vinhos secos mais jovens e aromáticos aos brancos mais complexos e maduros, do espumante ao colheita tardia, está lá o carácter da casta by Ken Forrester. O que determina esse estilo é a decisão de Ken de privilegiar as baixas produções e apanhar as uvas bem maduras, algumas já com bagos contaminados pela botrytis. Os seus melhores Chenin Blanc chegam a ter 14% ou mais de álcool. “Para mim, o volume de álcool é apenas um número”, diz Ken. E é verdade que os seus vinhos mais maduros conseguem ser muito ricos e ao mesmo tempo incrivelmente equilibrados, como é o caso do fantástico The FMC, proveniente de uma vinha com 44 anos, sem aramação e com rendimentos da ordem das quatro toneladas por hectare. Um branco de barrica perfumadíssimo (fruta cítrica cristalizada, damasco, especiarias, mel), suculento e encorpado. A sigla quererá dizer “Fucking Magic Chenin” e é uma espécie de manifesto contra os anti-Chenin Blanc, a mais plantada e também a mais mal-amada variedade branca da África do Sul. A maior parte dos 38 hectares de vinhas de Scholtzenhof está plantada com Chenin Blanc, mas Ken Forrester também produz Sauvignon Blanc, Cabernet Sauvignon, Syrah, Merlot, Grenache, Mourvédre, Cabernet Franc e Petit Verdot. Um dos seus melhores tintos, o Gypsy, junta Grenache com Syrah. É perfeito para acompanhar as carnes que Ken serve no vizinho 96 Winery Road, o restaurante do hotel The Country Guest House de que é co-proprietário. O jantar foi lá. Ken nasceu na Zâmbia, mas a família é escocesa. Conversa puxa conversa e a dada altura falou-se do Douro, do vinho do Porto, do barão de Forrester, esse que morreu afogado no rio que conhecia melhor do que ninguém. “Morreu afogado porque levava muitos cintos. A Ferreirinha sobreviveu porque levava umas saias grandes“, recordou Ken. O "Senhor Chenin Blanc" conhece a história toda. Até já visitou a pousada com o nome de Forrester que existe em Alijó. Porquê tanto interesse? Não me diga que é?. . . . . “Sim, sou da família do barão de Forrester. Joseph James Forrester”, confirmou. Manhã de Primavera, cheia de sol e amena. Primeira paragem numa fábrica de queijos, a Fairview, antes de seguirmos para Boekenhoutskloof, onde é produzido um dos tintos mais famosos da África do Sul, The Chocolate Block. Da costa para o interior, abrem-se várias cordilheiras montanhosas e também uma sucessão de vales com aptidão para a viticultura. Um dos mais bonitos é o vale de Franschhoek. O nome, de origem holandesa, significa “o canto francês”. Por uma razão: foram huguenotes franceseses, protestantes fugidos das guerras religiosas em França, que a partir do final do século XVII se instalaram naquele vale e começaram a poduzir vinho com castas do seu país. Algumas das principais companhias vinícolas da África do Sul estão ali situadas e ainda mantêm os seus nomes franceses originais. O culto pela comida e e pelo vinho, também muito francês, transformaram a pequena mas lindíssima cidade de Franschhoek na “Capital Gourmet da África do Sul”. O vale de Franschhoek é uma perdição para os amantes do vinho e da comida e também para os amantes das vinhas. Uma das fazendas mais bonitas fica no canto mais distante do vale. Chama-se Boekenhoutskloof, termo que significa a "ravina do Boekenhout". Boekenhout é uma árvore local muito usada no fabrico de móveis. Em Boekenhoutskloof não nos sentimos bem dentro de uma grande propriedade vitícola. Sentimo-nos mais num vale remoto e selvagem com parcelas de vinha pelo meio. As montanhas em redor, o pequeno e frondoso rio que atravessa a propriedade, as manchas de bosque que separam os diversos blocos de vinha e as muitas e coloridas plantas indígenas que iluminam a paisagem fazem de Boekenhoutskloof um lugar especial, de grande biodiversidade e beleza. Para restaurar a biodiversidade primordial de Boekenhoutskloof, os seus proprietários têm vindo a desmatar manchas de pinhal e de eucaliptal, a remover plantas exóticas invasoras e a reintroduzir espécies indígenas desaparecidas. Junto ao rio, instalaram passadiços, catalogaram árvores e instalaram sugestivas esculturas de lobos, para manter viva a memória e os mitos associados à presença deste predador naquele vale (o lobo já desapareceu há muito tempo, mas nas montanhas vizinhas ainda há leopardos). É um projecto notável que nos faz olhar para os vinhos da fazenda com outros olhos e interesse. Apesar de estabelecida em 1776, Boekenhoutskloof só começou a ser realmente conhecida pelos seus vinhos a partir de 1993, quando seis investidores resgataram aquela propriedade do abandono e, no lugar de pomares, começaram a plantar vinhas com as melhores castas francesas. Hoje, Boekenhoutskloof é um nome sonante no panorama vitivinícola da África do Sul. Marc Kent, de 46 anos, homem afável e simpatiquísismo, é o enólogo chefe e um dos co-proprietários de Boekenhoutskloof. Aguardava-nos à entrada da sala de provas, uma sala luminosa cheia de fotos, rótulos, adereços ligados ao vinho e com uma copa apinhada de garrafas vazias de vinho de todo mundo (há algumas da marca Conceito, da enóloga e produtora duriense Rita Marques, que estagiou em Boekenhoutskloof) . Marc guarda tudo. Até camisolas de futebol. “No Mundial de Futebol da África do Sul, o vinho que a selecção espanhola escolheu foi The Chocolocate Block. A Espanha acabou por ganhar o mundial e no final o Sérgio Ramos ofereceu-me uma camisola assinada por todos os jogadores”, conta. A sala de provas fica por cima da adega antiga, que é usada hoje para armazenar barricas e “ovos” de fermentação (pequenas e ovaladas cubas de cimento) e como recepção das uvas. Mas agora há um túnel de betão a ligá-la a uma cave nova, cuja laje exterior foi transformada num enorme e panorâmico terraço equipado com um restaurante. A comida honra a fama de Franschhoek e os vinhos também são magníficos, em especial os brancos de Sémillon (de vinhas muito velhas) e alguns tintos de lote. São vinhos maduros e cheios de sabor. O The Chocolate Block, por exemplo, lote de Grenache, Syrah, Cabernet Sauvignon, Cinsault e Viognier, é um vinho carnudo, encorpado e fogoso, com elegantes notas florais e outras mais calorosas, como chocolate e especiarias. A moda dos vinhos menos maduros e mais ácidos não convence Marc Kent, que prefere um vinho de pH alto mas com uma boa maturação fenólica do que um vinho com uvas mal amadurecidas e cheio de acidez ou, pior, ter que fazer acidificações. Riqueza e profundidadede de paladar é o seu mantra. Ainda assim, para responder à falta de frescor de alguns vinhos (o clima da região do Cabo é tipicamente mediterrânico), Marc começou a procurar uvas de lugares mais altos e frescos e descobriu a propriedade certa em Porseleinberg (“a montanha de porcelana”), na região vinícola de Swartland, a seara da província do Cabo. Começou por comprar uvas de apenas dez hectares, mas em 2009 acabou por adquirir a fazenda toda - 173 hectares no total. A melhor vinha está situada no ponto mais alto, em solos pobres e pedregosos de xisto, num lugar com algo de Oeste americano. É nesta vinha orgânica e de baixa produção que Boekenhoutskloof produz o seu melhor Syrah. Na verdade, talvez produza o melhor Syrah da África do Sul. O grosso das uvas vai para as marcas principais da casa e uma pequena parte é vinificada ali mesmo, em Porseleinberg, numa adega rudimentar de chapa situada mesmo no topo na montanha, entre dois vales amplos. O vinho chama-se também Porseleinberg e é o tinto melhor pontuado do país. Callie Louw, de barbas e chapéu de basebol na cabeça, “o Che Guevara de Swartland”, como já foi apelidado, é o jovem enólogo do Porseleinberg. Vive mesmo junto à adega, isolado de tudo. Callie considera-se mais agricultor do que enólogo. Gosta tanto de produzir laranjas como vinho. Vive rodeado de animais domésticos. Com frequência, as mesmas galinhas que andam a esgravatar a vinha entram adega adentro. É um ambiente de campo, desprendido e com o seu quê de hippie e de retro. Os belíssimos rótulos do Porseleinberg, por exemplo, são impressos no local, numa impressora Heidelberg de 1940. Esta atmosfera ajuda a construir uma imagem mais glamorosa e romântica em torno do Porseleinberg, mas o vinho é mesmo bom. Caullie deu a provar os vinhos das colheitas de 2013, 2014, 2015 e 2016 (”Não liguem aos copos, estão meio sujos”, começou por avisar). Nenhum passou por barrica. “As barricas são boas para plantas de vaso”, gosta de dizer Caullie. O seu programa só contempla prensagem de cachos inteiros e fermentação e estágio em Foudres (pequenos tonéis de carvalho) e “ovos” de cimento. São vinhos de aroma mediterrânico, com muita fruta vermelha e preta suculenta, delicadas sugestões florais, especiarias, taninos sólidos e uma frescura muito mineral. Tintos de Syrah ao estilo Cornas, uma das denominações da região do Rhône, em França. Fantástico o Porseleinberg 2015, o mais consistente, elegante e fresco de todos. Porseleinberg foi a última paragem desta apressada viagem pela região do Cabo e só não foi mais impressiva porque depois de conhecer Waterkloof é difícil ser surpreendido. Já tinha saído de Boekenhoutskloof, no dia anterior, com a ideia de que não veria nada mais bonito, mas algumas horas depois estava em Waterkloof, junto à cidade costeira de Somerset West, a cerca de 50 quilómetros da Cidade do Cabo, e tudo mudou. A propriedade começa junto à parte alta da cidade e é necessário percorrer alguns quilómetros montanha acima até chegar ao lugar das vinhas. Paul Boutinot, o proprietário, juntou-se ao grupo e fez a viagem num camião de caixa aberta, guiado por Christiaan Loots, o responsável por aplicar em Waterkloof um extraordinário programa de conservação ambiental ligada ao vinho, premiado em 2009 como o melhor do mundo pela World Wildlife Fund (WWF). Cerca de metade dos 100 hectares da fazenda está ocupada por uma vegetação arbustiva típica da zona do Cabo, denominada Fynbos (significa “plantas de folhas finas”), um bioma de floresta mediterrânica. É um ecossistema de elevada biodiversidade e onde florescem algumas das plantas usadas nos tratamentos dos solos e das vinhas de Waterkloof, de acordo com os preceitos biodinâmicos. A adesão à agricultura biodinâmica coincidiu com o prémio da WWF, mas só desde 2012 que a propriedade está certificada. Em Waterkloof há espaços de compostagem, cavalos para lavrar as vinhas, vacas, patos, porcos e galinhas para estrumar as terras. E há também um apurado sentido estético, visível na extraordinária adega/restaurante construída mesmo em cima de um penhasco panorâmico sobre a False Bay e na geometria das várias parcelas de vinha, circundadas por renques de árvores. É um cenário prodigioso, dominado por montanhas e colinas com vista para o mar. Será possível haver vinhas mais bonitas?Paul Boutinot é um homem do vinho. Foi sócio-fundador de uma importadora-distribuidora de vinhos em Inglaterra, a Boutinot, com mais de mil vinhos no portefólio e cerca de 150 produtores exclusivos de todo o mundo. A Boutinot também tinha (tem) algumas vinhas. Waterkloof era uma delas. A propriedade foi descoberta por Paul após uma década a procurar por todo o mundo o lugar certo para fazer a vinha dos seus sonhos. Há uns anos, Paul vendeu a sua participação na empresa mas ficou com Waterkloof - e mudou-se para a África do Sul. Na visita guiada pelas vinhas Paul parou em duas parcelas e, mesmo em cima do camião, serviu o vinho produzido em cada uma delas. Um tinto de Syrah e um branco de Sauvignon Blanc. Dois grandes vinhos, em especial o Waterkloof Sauvignon Blanc da colheita de 2016, um daqueles brancos que nos deixam com pele de galinha, de emoção. Podia ser do momento, da experiência de provar numa caixa de um camião, no meio de vinhas rodeadas de montanhas e mar. Mas voltámos a provar o vinho ao jantar e a impressão foi a mesma. “Conheço tudo o que se faz no mundo e com o nível deste só há dois ou três Sauvignon”, comentava Paul, sem falsas modéstias. Paul não exagera. É um daqueles vinhos puríssimos, que se desdobram em camadas e que vão crescendo em boca e acendendo todas as nossas campainhas sensoriais. Waterkloof produz outros vinhos notáveis. Dania Barnat, a enóloga, deu-nos a provar alguns tintos de Syrah, Cabernet Sauvignon e Mourvèdre, ainda em barrica, que são deliciosos. Mas o que perdurará para sempre na nossa memória será “aquele” Sauvignon Blanc. O seu segredo, segundo Paul Boutinot, está no solo: “Temos vários blocos de Sauvignon Blanc e só um consegue dar aquele vinho. " É uma parcela que está situada na parte mais alta da propriedade, de frente para a baía e, por isso, mais exposta aos ventos marítimos e também menos produtiva. Há grandes vinhos que nascem em lugares improváveis e pouco vistosos. Este Sauvignon Blanc, pelo contrário, é um vinho perfeito que nasce num lugar perfeito. Prová-lo e conhecer a sua origem justifica por si só uma viagem. Um dia vou querer voltar a Waterkloof. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A África do Sul é considerada um país do "Novo Mundo" do vinho, mas a sua história vinícola já tem mais de três séculos. Foi iniciada pelos colonizadores holandeses na região do Cabo, com o objectivo de abastecer os colonos e os navios que por ali passavam a caminho das Índias. O primeiro vinho conhecido, com data de 1659, foi o famoso Vin de Constance, um colheita tardia de Moscatel que continua a ser o ícone do país e um dos grandes vinhos doces do mundo. É produzido na pequena localidade de Constantia, a cerca de 15 quilómetros da Cidade do Cabo e a 20 da cidade de Stellenbosch, o centro da vitivinicultura sul-africana. A área de vinha é de cerca de 100 mil hectares e estende-se ao longo de 800 quilómetros. A maior parte situa-se na província do Cabo, em especial no Cabo Ocidental, perto da costa, onde o clima é de tipo mediterrânico (Verão quente e seco e com grandes amplitudes térmicas, Inverno chuvoso, Primavera e Outono amenos). Os melhores vinhos são produzidos nas zonas de Constantia, Elgin, Franschoek, Paarl, Robertson, Stellenbosch, Swartland, Walker Bay, Worcester e Cape Agulhas. As castas dominantes são de origem francesa. Nas tintas, a mais plantada é a Pinotage, variedade local criada a partir do cruzamento de Pinot Noir com Cinsault. O excesso de produção deu má fama a esta variedade, mas quando a sua elevada produtividade é domada e as uvas amadurecem bem origina vinhos perfumados, consistentes e saborosos. Castas como Cabernet Sauvignon, Merlot e Syrah são também muito populares. De todas, a que melhores resultados tem alcançado é a Syrah. Nas variedades brancas, a estrela actual é a Sauvignon Blanc, mas a mais plantada continua a ser a Chenin Blanc, conhecida na África do Sul como Steen. É muito versátil e usa-se tanto para brancos tranquilos como para espumantes, fortificados e destilados. Ken Forrester, Boekenhoutskloof, Porseleinberg e Waterkloof são algumas das marcas que a Emirates serve nos seus voos para a África do Sul. Os habitantes do Dubai não bebem vinho, por motivos religiosos, mas a companhia aérea deste emirado transporta diariamente uma das maiores e valiosas garrafeiras do mundo. Em certas ligações, da França para os Estados Unidos, por exemplo, chega a servir vinhos famosos e caros como o champanhe Dom Pérignon ou os tintos Cheval Blanc e Mouton Rothschild. Um dos vinhos que a companhia serve nas ligações entre Lisboa e o Dubai aos passageiros de primeira classe é o tinto Barca Velha 2008, que tem um preço de mercado superior a 400 euros. A Emirates criou o seu próprio atlas do vinho, dividido em seis regiões distintas: África, Extremo Oriente, Austrália/Ásia, América, Reino Unido e Médio Oriente/Subcontinente indiano. Cada uma delas tem uma carta própria. A ideia é permitir que os passageiros possam “conhecer e provar os melhores vinhos das regiões” para onde voam, explica Stephen Towler, sommelier inglês e senior beverage advisor da Emirates desde Janeiro de 2017. Ao contrário do que faz a maioria das companhias, a Emirates compra os melhores vinhos en primeur, podendo dessa forma gerir a sua evolução e servi-los no seu ponto óptimo de consumo. E para que a experiência seja mesmo irrepetível, alguns vinhos são produzidos em exclusivo para a companhia do Dubai, como é o caso, por exemplo, do Porto Graham's Colheita 1994. Desde 2006, a Emirates já investiu cerca de 700 milhões de euros em vinho. A sua garrafeira guarda sete milhões de garrafas. Nenhuma outra companhia aérea possui tanto vinho armazenado. A Fugas viajou a convite da Emirates
REFERÊNCIAS: