As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades? (...)

As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 21 Animais Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento -0.18
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades?
TEXTO: Guiomar Sousa é mediadora sociocultural. Está habituada a fazer a ponte entre pessoas ciganas e pessoas não ciganas. Invoca o dia em que, contra o concurso Miss América, 400 feministas se dispuseram a queimar soutiens, cintas e outros “instrumentos de tortura”. “Estamos atrasados 50 anos”, comenta aquela activista, de 36 anos. “O movimento feminista é uma novidade nas comunidades ciganas, mas a nossa ideia não é chocar. Estamos a adaptar o feminismo à nossa realidade. ”Serão perto de duas dezenas as mulheres que fazem parte deste movimento. Nos últimos cinco anos, foram-se cruzando em encontros e acções de formação, percebendo pontos em comum, trocando contactos, forjando amizades. Neste último ano, têm-se desdobrado pelo país a dizer que são “mulheres e ciganas” e que “existem e resistem”. Maria Gil – que já foi feirante e empregada de balcão e faz teatro comunitário e teatro do oprimido – assume a autoria da frase que identifica o movimento. Em Maio de 2017, estava ela no Porto, na manifestação “Mexeu com uma, mexeu com todas”, olhou em redor e reparou que ela e a filha eram as únicas ciganas. “Faziam poemas nos quais incluíam mulheres negras, mas nem uma palavra sobre mulheres ciganas. De uma forma muito espontânea, peguei num bocado de cartão e escrevi: “Mulheres e ciganas, existem e resistem. ” Partilhou a imagem nas redes sociais. “A frase começou a ser usada. ”“A história das mulheres ciganas é uma história de resistência”, sublinha aquela activista, de 46 anos. Há uma discriminação externa que dificulta o acesso à educação de qualidade, ao emprego, à participação na vida pública. E uma discriminação interna que faz com que rapazes e raparigas, homens e mulheres não sejam tratados da mesma forma dentro das suas famílias e das suas comunidades. “Estamos a viver um tempo muito bom”, considera o alto-comissário das Migrações, Pedro Calado. “Tínhamos apenas a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, no Seixal, agora temos a Ribaltambição, na Figueira da Foz. E há outras mulheres muito activas, como a Cátia Marisa, de São Brás de Alportel, a Guiomar Sousa, de Espinho, a Maria Gil, do Porto, a Toya Prudêncio, de Gondomar, a Vanessa Matos, de Braga”, prossegue. “Como diz um provérbio cigano, ‘A fogueira começa com pequenos ramos’. Esse é o momento em que estamos. Estamos a começar a fogueira. ”Já têm uma agenda concorrida. Algumas estiveram no passado fim-de-semana no Festival Política, organizado pela Produtores Associados e pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, em Lisboa. Muitas estão este fim-de-semana na Academia Política das Comunidades Ciganas, em Torres Vedras, iniciativa do Conselho da Europa, que está apostado em promover a participação. Guiomar Sousa foge agora de todos os holofotes. Morreu-lhe o pai há pouco tempo. E o luto, nas comunidades ciganas, é um assunto muito sério. Um lenço esconde-lhe o cabelo e roupas largas, longas, negras, escondem as formas do seu corpo. Não usa maquilhagem, nem jóias. Não ouve música, nem se deixa fotografar. Quem não deixa de estar em todo o lado apesar do luto integral é Olga Mariano. O seu marido já morreu há mais de 20 anos. E a história da luta pela emancipação das mulheres ciganas confunde-se com a história desta mulher, de 68 anos. Há 50 anos, Olga Mariano fez algo que cigana alguma havia feito: tirou a carta de condução. Não foi um ímpeto feminista. “Às vezes, a necessidade obriga. ” O pai, que era vendedor ambulante, vendera um grande lote de tecido a um alfaiate que lhe pagara com um Fiat 1100 cinzento-claro. Ele nunca fora à escola. “O meu irmão mais velho sabia ler e escrever, mas não tinha a 4. ª classe. As minhas duas irmãs estavam casadas. A única solteira era eu. O meu pai emancipou-me para tirar a carta. ”Viviam no Fogueteiro, na freguesia da Amora, no concelho do Seixal. Olga conduzia os pais às feiras de Sesimbra e de Cascais e às festas da família em Évora. Houve críticas. “Como é possível uma mulher cigana conduzir? Como é que o pai a deixou tirar a carta? Amanhã ela casa-se e ele vai ficar desprevenido. ”A família de Olga era uma excepção. O pai, fervoroso adepto de futebol, lamentava não conseguir ler o jornal A Bola. E queria que o filho e as filhas aprendessem a ler, a escrever e a contar. Eram os únicos ciganos daquela escola. Quase não havia ciganos nas escolas portuguesas. A esmagadora maioria não podia permanecer mais do que 24 horas num sítio, andava de terra em terra a ler a sina, a vender tapetes, cobertores, atoalhados, peças de tecido e outros produtos, a fazer pequenos trabalhos. A carta de condução não foi apenas útil para a família de origem. Foi também útil para a família que Olga formou aos 22 anos. Conduzia o marido à feira e com ele trabalhava de segunda a sábado. Ao longo de mais de 20 anos, tiveram banca em Almada. De repente, ele adoeceu. Ela enviuvou volvidos três anos. Olga fez tudo como manda a tradição. Cortou o cabelo bem curtinho. No primeiro ano, ia ao cemitério todos os dias. Nos primeiros cinco, tinha de usar dois lenços – um mais pequeno, interior, que cobre o cabelo, e outro maior, exterior, que vem da cabeça até à cintura. Só depois podia usar apenas um, atado de trás para a frente. A indumentária era o que menos a preocupava. Pior era aquela dor, pior era reorganizar a vida. “A coisa descambou”, recorda. Os filhos eram muito novos. “Ainda precisavam do braço forte do pai. Eu própria não tinha cabeça para nada. Foi uma fase muito ruim. ”Recorreu ao rendimento mínimo garantido, o actual rendimento social de inserção. Era nova aquela medida destinada a aliviar a pobreza extrema e a ajudar a encontrar forma de sair dela. Num instante, Olga, a filha, Noel Gouveia e outras três ciganas, Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho e Sónia Matos, foram seleccionadas para frequentar uma acção de formação. Como dizer não? Em vez de 150 euros de prestação social, receberiam uma bolsa equivalente ao salário mínimo nacional, que rondava os 350 euros. A mediação sociocultural despontava em Portugal por recomendação de Bruxelas. Em 2000, os mediadores começaram a entrar em diversas escolas de territórios considerados críticos. Olga, por exemplo, assumiu de imediato o lugar de mediadora no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, e lá se manteve até 2005. Não foram só as portas de uma nova profissão que se abriram. Por sugestão de um formador, logo em 2000, aquelas cinco mulheres fundaram a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. Os ciganos, em particular as mulheres, continuavam a deixar a escola muito cedo. E elas queriam reduzir o absentismo escolar, reverter o abandono escolar, ajudar as mulheres a conciliar a vida familiar e profissional. No virar do século, Olga, a mais velha e mais experiente das cinco, tornava-se a primeira mulher cigana a liderar a primeira associação do género em Portugal. Durante 14 anos, a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas foi a única. Porquê? “Muita relutância dos homens e falta de coragem das mulheres”, resume Bruno Gonçalves, mediador sociocultural que partilha com Olga Mariano o lugar de mais influente activista cigano. Além do domínio masculino colocar grandes entraves ao desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, não há tradição associativa na população cigana. As poucas organizações que tinham aparecido no pós-25 de Abril quase que se resumiam à figura de algum homem respeitado num determinado meio e ao seu círculo. Nos últimos 20 anos, pouco a pouco, alguns homens e algumas mulheres foram-se capacitando através de acções promovidas por entidades públicas, como o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que já teve outros nomes, e privadas, como a Rede Europeia Antipobreza – EAPN Portugal. Se lhe perguntarem o que serviu de trampolim às mulheres, Bruno Gonçalves apontará, sem hesitar, duas iniciativas. Primeiro, o Escolhas, um programa de inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis criado pelo Governo em 2001. Segundo, o Programa Europeu de Formação para Mediadores Ciganos – Romed, lançado pelo Conselho da Europa em 2011. Foi no seio do Romed que em 2013 nasceu a Letras Nómadas, liderada por Olga Mariano e Bruno Gonçalves, que já fora presidente da Associação de Ciganos de Coimbra e vice-presidente do Centro de Estudos Ciganos. A liderança da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas passou para Noel Gouveia, que está com 43 anos e casada com um não-cigano. De repente, tudo convergia. Mulheres ciganas de toda a Europa juntavam-se em Helsínquia para definir a Estratégia para o Progresso das Mulheres e Raparigas Ciganas. Portugal aprovava a sua primeira Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (e que está a rever neste momento). Finalmente, ia haver dinheiro para apoiar o associativismo cigano e alguns pequenos projectos. Em Novembro de 2013, em parceria com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, a Letras Nómadas organizou o I Encontro de Mulheres Ciganas, em Lisboa. “Feliz o dia em que decidimos fazer isso”, comenta Bruno Gonçalves, que levou a mulher, a sogra e a cunhada. Há um antes e um depois daqueles dois dias a pensar o presente e a procurar formas de construir um futuro de emancipação. “Em 20 anos de activismo cigano, nunca andámos tanto. As mulheres são a mudança. ”A cunhada, uma mediadora de 37 anos chamada Tânia Oliveira, resume o encontro em três frases: “Conhecemos várias mulheres com as quais temos objectivos em comum. Isso veio dar mais força às que pensavam que estavam sozinhas. Até hoje lutamos pelo empoderamento das outras mulheres ciganas. ”Na tentativa de fomentar a participação, da segunda edição do Romed formaram-se grupos de acção comunitária em sete municípios. O da Figueira da Foz, coordenado por Tânia, deu origem à Associação Ribalta Ambição – Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. Ela é a presidente e a irmã, Marisa Oliveira, dois anos mais velha, é a vice-presidente. No Verão do ano passado, organizaram o II Encontro de mulheres ciganas. Sob o lema “Siñando Kali [Ser Cigana] no século XXI”, quiseram abrir espaços de diálogo entre ciganas de todo o país, mostrar bons exemplos, semear confiança. Tânia Oliveira gosta de dizer que “é solteira e boa rapariga”. Foge à conversa sobre a pressão social para encontrar um marido e ter filhos, algo que afecta ciganas e não ciganas que já ultrapassaram a barreira dos 30 anos. Prefere pôr a tónica na flexibilidade para trabalhar, estudar e lutar pela igualdade de género. Deixou a escola findo o 4. º ano, apesar de no seu tempo a escolaridade obrigatória ir até ao 9. º ano. “Eu e a minha irmã queríamos estudar, mas a escola era longe e não tínhamos quem nos levasse”, relata, numa mesa de café. “Eu andava nas feiras, não tinha condições de as levar”, acrescenta a mãe, Maria de Fátima, sentada ao lado. A escola não fazia parte das prioridades. A venda ambulante garantia o presente dos pais e haveria de garantir o futuro dos filhos. O abandono escolar precoce era “normal”. “Bem lá no fundo, acreditava que o meu futuro não passava pelas feiras e mercados, nem pelo papel formatado de mulher que cuida dos filhos e da casa”, afirma. “Sabia que podia alcançar muito mais sem comprometer a minha identidade cigana. ”Aos 18 anos, fez um curso profissional que lhe deu equivalência ao 6. º ano. Tornou-se mediadora sociocultural nas escolas da Figueira da Foz. “Foi um enorme prazer ajudar a minimizar o absentismo e o insucesso escolar”, assegura. Esteve lá seis anos. Teve outros trabalhos temporários de mediação. Esteve um ano no serviço de habitação social e outro no transporte de alunos com necessidades especiais. Através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, obteve o 9. º ano. Entretanto, despertou nela o desejo de se licenciar. “Para me concretizar enquanto mulher e para dar o exemplo”, justifica. Candidatou-se ao ensino superior, via programa +23. E está a fazer o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Entrar agora até parece fácil, difícil mesmo é ter bons resultados. Está a ser o cabo dos trabalhos. “Passei um bocadinho…. Tenho de acompanhar jovens que tiveram um percurso escolar regular. Não tenho explicações. Estava a trabalhar até às 19h na Figueira da Foz e as aulas começavam às 18h30 em Coimbra. ” O contrato de trabalho acabou. “Vou ter de ir mais às aulas, vou ter de me esforçar mais. . . ”Tem uma bolsa e um tutor. Faz parte do Opre, que começou por ser um projecto-piloto e se tornou uma política pública de acesso ao ensino superior gerida pelo ACM, em parceria com a Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. No ano lectivo 2015-2016, eram oito os estudantes apoiados. Agora, são 29. “Cada ano, vamos multiplicando”, orgulha-se. A educação parece-lhe fundamental para a mudança de ideias feitas acerca do seu povo. “Temos um objectivo? Temos. Vamos ter obstáculos? Vamos. Vamos ser apoiadas por alguns? Vamos. Vamos ser criticadas por outros? Vamos. Mas isto faz parte do percurso. É isto que faz a mudança. ” Há uma mensagem que vai repetindo: “Trabalho e estudo, mas nunca deixei de ser cigana. Continuo a respeitar a minha comunidade e a ter o respeito da minha comunidade e isto para nós, enquanto mulheres e ciganas, é fundamental. ”As pioneiras assumiram a escolarização como prioridade. “A minha bandeira é a educação. É o instrumento que nos dá a partilha”, enfatiza Olga Mariano. E é essa também a bandeira das novas activistas ciganas. “É a melhor que podemos ter”, corrobora Guiomar Sousa. “Permite reconhecer e lutar pelo que é nosso por direito. ”A escolaridade da população cigana é muito baixa. “Atinge proporções mais preocupantes entre as mulheres, que na sua maioria não ultrapassam a barreira do 1. º ciclo do ensino básico”, segundo o Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias em 2014, a pedido do ACM. E interfere em tudo – no acesso à formação profissional e ao emprego, na capacidade de perceber o funcionamento das instituições, na possibilidade de participar na política. A presença de crianças e jovens ciganos nas escolas portuguesas mais do que duplicou em 20 anos. Poucos, porém, terminam o 3. º ciclo e ainda menos o secundário, segundo o Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017. Na tentativa de fazer com que todos cumpram a escolaridade obrigatória, que agora vai até ao 12. º ano, o Ministério da Educação criou outras ofertas educativas, como os Percursos Curriculares Alternativos, os Programas Integrados de Educação e Formação ou os Cursos Profissionais, onde está grande parte dos alunos ciganos. E o ensino doméstico, o ensino em itinerância e o ensino à distância. A questão é complexa, até porque a escola é uma realidade recente na vida dos ciganos portugueses e a mentalidades não mudam do dia para a noite. Se dúvidas houvesse, bastaria ver que uma das netas de Olga frequenta o ensino doméstico. E essa não é uma escolha da avó. “O melhor é fazer tudo direitinho até ao 12. º ano, mas se vão tirar as meninas da escola. . . eu costumo dizer: quem não caça com cão caça com gato. ” Como tem equivalência ao 12. º ano, assumiu o papel de tutora. “Eu mantenho-a ali certinha. Ela não falha. ”Olga associa a escolha do filho e da nora à “censura social”. Moram a quatro ou cinco quilómetros da escola. O horário dos transportes públicos nem sempre coincide com o horário escolar da menina de 12 anos. Os pais trabalham, não podem aparecer à hora certa para a transportar entre cá e lá e não querem que ela seja objecto de comentários. Quando isso acontece, há processos de marginalização dentro da comunidade. O argumento étnico é conhecido. A honra é importantíssima no seio das comunidades ciganas. A honra das famílias tradicionais assenta no comportamento das mulheres, que se devem manter castas até ao dia do casamento. A opinião dos outros membros da comunidade é muito pertinente. Para garantir que uma rapariga não é alvo de falatório, a partir da puberdade limitam-se os contactos com rapazes. “Nós ainda vivemos na aldeia, mesmo estando nos meios urbanos”, explica aquela dirigente associativa. “As nossas aldeias são os bairros sociais. Toda a gente sabe a vida de toda a gente. Há aquela censura. Continuamos a ter um grande controlo social, porque vivemos à margem – não porque queremos, mas porque as câmaras nos põem em bairros sociais e os não-ciganos não nos querem ao pé deles. ”O rendimento social de inserção tem tido um papel fulcral. Para não arriscar perder aquela prestação social, muitas famílias mantêm as crianças e jovens na escola e algumas mulheres têm iniciado ou retomado a trajectória escolar através de programas de educação alternativos, como a alfabetização de adultos, o Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências ou a Iniciativa Novas Oportunidades. A sensação de que a venda ambulante é uma carreira em vias de extinção também é algo motivador. Pode ser uma revolução, apesar de todas as limitações. “Fui beneficiária do RSI durante três meses”, sublinha Noel Gouveia. “Há 17 anos que sou contribuinte. ” É mediadora sociocultural, professora de dança cigana, dirigente associativa. Também saiu da escola com o 4. º ano. Foi fazendo formações. “A escola é a base de tudo. ”Já fez mediação em escolas. Agora mesmo é mediadora Opre. “Eu namoro a família para que ela permita o casamento entre a filha e o curso e namoro a universidade, como se fosse a sogra, para ela receber bem a nora”, brinca. “Tem sido uma experiência única e de verdadeira mudança dentro das comunidades ciganas e fora delas. Daqui a uns anos, vamos ter muitos licenciados. Nada como ter exemplos vivos. ”Por ser considerada um exemplo para outras mulheres, Toya Prudêncio, 30 anos, recebeu o galardão de Cigana do Ano em 2016. “É sinal que estou a percorrer o caminho certo”, orgulha-se. Foi a segunda vez que tal distinção foi atribuída pela Letras Nómadas. Guiomar Sousa recebera-a em 2015. Também saiu da escola finda a 4. ª classe. Tinha de limpar, cozinhar, lavar roupa e criar a irmã, de três anos. “Eu tinha o sonho que acho que toda menina tem: casar-se, ter filhos, ter um lar. ” Conheceu o marido, Bruno Prudêncio, numa festa de noivado, contava 16 anos. Começaram a falar às escondidas. Volvido meio ano, uniram-se. Não fizeram um casamento tradicional cigano, com três dias de festa, porco no espeto, sucessivas mudas de roupa. Fizeram um “fugimento”, isto é, desapareceram durante três dias. Andaram a passear pela região centro. No regresso, foram recebidos pelas famílias em festa. Como a prioridade é manter a honra da família, se um rapaz e uma rapariga têm sexo, as famílias consideram que estão casados. Toya deixou a casa da família, na Maia. Estiveram um mês em casa dos sogros, em Gondomar. E arrendaram uma casinha que era “metade” da sala do apartamento que hoje ocupam. “Nos primeiros anos, as feiras ainda davam. Depois, começamos a ver que não era vida”, conta ela. Ele queria voltar a estudar. Abandonara a escola no 6. º ano. Fez um curso de educação e formação de adultos que lhe deu equivalência ao 9. º. Toya está a contar esta história sentada à volta da mesa da sala. O marido está sentado no sofá, a estudar, e diz: “Tinha o 9. º ano, não consegui emprego. Toca a voltar à escola. Três anos e meio. Tinha de apanhar três autocarros. Tirei o 12. º ano – um curso profissional de técnico multimédia. Agora vai surgir qualquer coisa. Incrível. Só mesmo filmando as caras que as pessoas fazem. As pessoas não têm noção – a cara que fazem, o ar de riso, o ar de quem está enojado por estar na nossa presença. ”Não foi perda de tempo. Entrou como cantoneiro na Junta de Freguesia de Baguim do Monte. O presidente olhou para o currículo e mudou-o para a secretaria. Durante cinco anos, trabalhou lá. “Sempre através de medidas de emprego, sem direito a subsídio de férias, subsídio de Natal, subsídio de desemprego. ”Toya começou a pensar na possibilidade de voltar a estudar. “A vida estava estabilizada. ” A câmara atribuira-lhes um apartamento. Todos os dias, o marido ia para o trabalho, as filhas iam para as aulas e ela ficava em casa. “Eu sempre gostei de saber mais. O meu cérebro nunca andou muito quietinho. ”Pensava começar por uma certificação de 6. º ano. Bruno Gonçalves, “esse grande desestabilizador”, desafiou o casal a tentar entrar no ensino superior, através do +23. Tinham de se inscrever em duas cadeiras isoladas, para ver como se adaptavam. “Apliquei-me 100%. Às vezes, estávamos os quatro aqui a estudar. ”Bruno entrou logo no curso de Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto. Toya não conseguiu entrar à primeira. Virou-se para outro lado. Começou este mês o curso de Educação da Universidade Aberta. Os sonhos de Toya alteraram-se. “O meu sonho é acabar o meu curso e arranjar um emprego, dar uma vida melhor às minhas filhas. O que me imagino a fazer? Tanta coisa! Jesus! O que mais quero fazer com este curso é empoderar jovens, incentivá-los, mostrar que há outros caminhos. Quero trabalhar com jovens de etnia cigana e não só. Nem só os de etnia cigana precisam de incentivo. Moro num bairro social e vejo isso. ”O entusiasmo não abafa a necessidade de medir as palavras. Assumindo-se como feminista, isto é, como defensora da igualdade de género, Guiomar Sousa explica o cuidado: “O feminismo é um terreno minado. Temos de saber onde pisamos para que os nossos tenham a plena noção do que nós defendemos. ”As activistas estão mobilizadas para lutar pelo direito à educação, pelo conhecimento da história e da cultura da população cigana, contra a discriminação étnico-racial, contra os estereótipos de género, pelo “empoderamento” das mulheres. Isso é evidente nos projectos que têm desenvolvido com o Fundo de Apoio da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Não discursam sobre práticas culturais nefastas. O grande tabu é o teste de virgindade. Há quem se limite a afirmar que o assunto é privado (inúmeras mulheres sentem-se honradas e sentem que honram as suas famílias com tal prática). Há quem se limite a dizer que é raro (a maior parte dos casais, hoje, opta pelo “fugimento”). E há quem veja nesta prática um atentado aos direitos humanos, mas tema as reacções dos defensores das tradições (afinal, a ideia é provar que uma mulher pode estudar, trabalhar, ser activista sem deixar de respeitar as tradições). Há reacções defensivas quando se puxa pelo assunto casamentos arranjados. “Ninguém é obrigado a casar-se”, frisa, por exemplo, Olga Mariano. Os pais podem combinar tudo quando os filhos são crianças, mas não os podem forçar. A rapariga pode “dar cabaças”, isto é, pode romper o compromisso. A mesma reacção defensiva ocorre quando o assunto é o casamentos precoce. “Nenhum pai quer que uma filha se case antes dos 18 anos”, afirma a activista. Só que muitos, como já se disse, optam pelo “fugimento”. Basta-lhes desaparecer umas horas. “Culturalmente, não há namoro. Quando um rapaz toca numa rapariga, é para ficar. ”Para Maria Gil, o maior desafio de qualquer feminista cigana “é criticar as estruturas patriarcais internas sem reforçar os estereótipos negativos sobre a sua comunidade”. A população cigana não é homogénea. As comunidades são muito diversas. E o machismo não é um exclusivo destas comunidades. “Estamos a começar a fazer alguma coisa. A partilha de preocupações parece pouco, mas já é alguma coisa”, realça. A escolaridade não é só uma via para o emprego. “A escolarização vai abrandar o ritmo dos casamentos precoces. E criar massa crítica de práticas que vão contra a dignidade da mulher. ”Diz coisas que nenhuma outra activista se atreve a dizer. Como esta: “A violência doméstica é silenciada. Uma mulher cigana não pode denunciar um homem cigano à polícia. Conheço mulheres ciganas que fizeram isso e estão fora do país. Os filhos não falam com elas. O facto de terem fugido de uma história de violência faz delas umas putas. ” As separações, como as uniões, são assunto de toda a família. “Às vezes, não podemos fazer esta exposição”, esclarece Maria Gil. “Eu posso, porque já não tenho tanto medo, tenho algum. Há mulheres activistas que não podem dizer tudo o que pensam. Têm de ter o aval do marido. Vivem com aquele medo de, a qualquer momento, ver a sua caminhada interrompida…. ”Já foi ameaçada por se assumir como feminista, por falar do que não se fala, por contestar homens mais velhos. “Já recebi telefonemas: ‘Vê lá como é que falas da próxima vez que fores à televisão. ’ Já apanhei alguns sustos. ” Não é só o sexo masculino. “O machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção. ” Muitas “são umas patetas alegres, têm um homem que toma conta delas e defendem que há as mulheres sérias, que são firmes, castradoras, e as outras, que ousam fazer as suas opções”. Às vezes, cansa-se, mas não se cala. “Compreendi que era importante ser voz. E a verdade é que o faço de uma forma, se calhar, diferente da que outras fazem, porque elas têm um suporte que eu nunca tive”, diz. “Tenho de fazer valer o meu direito à liberdade. Desde cedo me vi privada de liberdade. ”Maria Gil tinha sete anos quando o pai morreu. A mãe tirou-a da escola. Deixou-a voltar aos oito, de luto carregado. Voltou a tirá-la quando ela concluiu o 4. º ano. “Resisti. Percebi que era tratada de forma diferente por ser menina. Por ser menina, não podia usar calças. Por ser menina, não podia sair sozinha. ”Havia regras que não lhe faziam confusão. Não sentia falta de saídas noturnas, para bares ou discotecas, por exemplo (“Havia tanta festa em casa”). Mas outras faziam-lhe e rebelava-se contra elas. Devorava os livros dos primos, que continuavam a ir à escola. Estudava sozinha. Fez o 6. º ano autopropondo-se a exame. Foi fazendo as suas escolhas – e pagando o preço. Casou-se com um não-cigano com quem teve três filhos. “Era uma história de amor que eu queria viver. ” Separou-se. Esteve uns anos sozinha. Juntou-se a outro não-cigano. Teve uma filha. E sentiu-se muitas vezes posta de lado por isso. As relações com não-ciganos não são bem vistas. Nota uma espécie de medo. “Isso revelou-se mais quando decidi não voltar para casa da minha mãe com os meus quatro filhos, ficar a morar com eles no centro da cidade, sem o controlo directo de familiares. ” Que exemplo está ela a dar a outras meninas e mulheres? “Mostro que é possível uma mulheres estar sozinha e isso provoca receio numa população que está estruturada em torno da família. ”Alerta várias vezes para a necessidade de não se generalizar. “Esta é a minha experiência. Há mulheres ciganas que não se identificam comigo. Há mulheres que por causa disso me dirigem insultos. E há mulheres com as quais não me identifico de todo. Eu não me identifico com mulheres que silenciam a opressão. ”Cada uma das mulheres que dão forma ao movimento tem uma história única. “Este movimento pode levar a alguma coisa”, acredita. “Não é um movimento registado. É uma sucessão de palavras e de acções. Cada mulher vai dando o seu contributo. No Norte não temos uma associação. A ideia é criar uma e fazer um trabalho mais consistente. ”A Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação 2018-2030, aprovada em Janeiro, assume como objectivo central a eliminação dos estereótipos de género. Reconhecendo que estes se cruzam com outros, reconhece necessidades específicas de mulheres ciganas, afrodescendentes, idosas, com deficiência, migrantes, refugiadas. Do Plano de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens consta o “envolvimento de crianças ciganas, particularmente meninas, em actividades de promoção do ensino e de combate ao abandono escolar”. E o Plano de Combate à Violência contra Mulheres e Violência Doméstica refere “programas específicos para a intervenção junto de vítimas em situação de especial vulnerabilidade em virtude da intersecção de vários factores de discriminação”, incluindo mulheres ciganas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Já fizemos muito trabalho”, suspira Noel Gouveia. No início deste ano, a sua associação passou a partilhar a sede com o Centro Romi, um espaço comunitário projectado por oito mulheres ciganas. “Já passámos esta luta para outras mulheres. Isso é muito bom, mas no fundo estamos a vender sonhos sem segurança. ” Sonhos sem segurança? “Estamos a incentivá-las a sair do rendimento social de inserção, a estudar, a arranjar emprego, mas ninguém nos dá emprego, temos de ser nós a criar emprego para nós. Aquelas mais clarinhas não dizem que são ciganas e arranjam um trabalhinho. As mais escurinhas, como eu, não. ”Conta 17 anos de sucessivos trabalhos temporários. “Estou tão precária e insegura como se estivesse na praça. Na praça, tínhamos de comprar à noite para vender de manhã. Aqui é igual. Não sei se amanhã vou ter projecto. ” Olha para a filha, que tem nove anos e está no 3. º ano. Não pode desistir. “Gostava que a minha filha não fosse identificada pela etnia. Ela é mulher, é portuguesa, faz parte da raça humana. Para os não-ciganos é a ciganita, para os ciganos já não é cigana, porque o pai dela não é cigano. Ela costuma dizer que não é só uma sandes de queijo, nem só uma sandes de fiambre, é uma sandes mista. ”
REFERÊNCIAS:
Esta escola já não é só para ciganos
Escola do 1.º ciclo de Paradinha, em Viseu, só tinha crianças ciganas residentes num bairro de má fama. O jardim-de-infância, pelo contrário, era um modelo de inclusão. Um grupo de pais de crianças não ciganas do jardim-de-infância decidiu mantê-las em Paradinha, transformando a escola num lugar para todos e para cada um. (...)

Esta escola já não é só para ciganos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Escola do 1.º ciclo de Paradinha, em Viseu, só tinha crianças ciganas residentes num bairro de má fama. O jardim-de-infância, pelo contrário, era um modelo de inclusão. Um grupo de pais de crianças não ciganas do jardim-de-infância decidiu mantê-las em Paradinha, transformando a escola num lugar para todos e para cada um.
TEXTO: Há mais de dez anos que não se via crianças não ciganas na velha Escola de Paradinha, a três quilómetros do centro de Viseu. Havia-as no jardim-de-infância, a funcionar num edifício à parte, com entrada independente. Chegada a idade escolar, distribuíam-se por outras escolas do concelho. Agora, no 1. º ano, há quatro crianças ciganas e oito crianças não ciganas, incluindo um menino com trissomia 21 e outro com paralisia cerebral. Agora, estudantes ciganos e não ciganos almoçam juntos no refeitório, correm atrás da bola, aprendem a desenhar letras “bonitas” e muitas outras coisas. O que aconteceu? Nas palavras do director do agrupamento Infante D. Henrique, João Caiado: “Aqui o fundamental foi os miúdos do grupo maioritário quererem dar seguimento na Escola de Paradinha. Os pais, em boa hora, decidiram mudar a escola. E tiveram apoio para fazer isso. ”Ainda não está tudo como os pais e as crianças imaginaram, mas Emília, uma menina cigana de seis anos, já acha que a escola está “muito fixe”. Luísa, uma menina não cigana de cinco, confessa que gostava de ver alguma cor no tecto. Maria, uma menina não cigana de seis, põe-se logo a imaginar um céu. Há-de ser “a melhor escola de Viseu”, acredita Tomás, um menino não cigano da mesma idade. Poderá inspirar outras comunidades escolares pelo país fora?Para perceber a história que aqui se vai contar convém, desde já, saber que o pré-escolar e o 1. º ciclo não funcionavam apenas em edifícios separados por um gradeamento, só interrompido por um portão quase sempre fechado. Um era uma espécie de gueto e o outro uma espécie de modelo de inclusão. Num lado, está um edifício do Plano dos Centenários, o megaprojecto de construção de escolas desenvolvido pelo Estado Novo. Lá dentro, arrumavam-se 20 alunos — os do 1. º e do 2. º ano numa sala e os do 3. º e do 4. º ano noutra, todos virados para o quadro de ardósia e para o quadro interactivo, sem livros que não os manuais escolares. Lá fora, um simples pátio de gravilha e terra batida. No outro lado, está um edifício moderno. Lá dentro, 20 crianças circulavam por duas salas e um polivalente, com quadro de presenças, quadro com agenda semanal, quadro de tarefas, quadro de actividades, quadro interactivo, vídeos, livros, jogos, instrumentos musicais. Lá fora, uma casinha de madeira, um baloiço rústico, uma pista com pneus verdadeiros, projectos em curso. O pré-escolar inspira-se no Movimento da Escola Moderna. Os alunos participam na planificação do dia-a-dia, trabalham (em pares ou pequenos grupos) numa lógica de entreajuda, integram a avaliação. A escola de 1. º ciclo seguia o método tradicional. O que ditava esta diferença? Uma pessoa: a educadora. Conceição Neto esteve colocada em Lisboa, na educação especial. Andou por Macau, antes de esse território transitar para a China. Regressou a Viseu em 1998. Não lhe pediram que desse apoio em várias escolas, como seria de esperar. Pediram-lhe que ficasse em Paradinha. Receberia crianças com paralisia cerebral e crianças ciganas residentes do bairro social situado a cerca de um quilómetro. O bairro fora inaugurado no ano anterior. Os três blocos, dispostos em forma de “U”, incluíam 104 apartamentos, 99 dos quais propriedade da câmara. E esses acolhiam muitas famílias ciganas até então a viver nas barracas demolidas para dar lugar à construção dos acessos ao Hospital de São Teotónio. A escola, obrigatória, dizia-lhes pouco. O pré-escolar, não obrigatório, menos ainda. “Estava de passagem, mas fui ficando”, recorda Conceição Neto, abrindo-se num sorriso. Pôs-se a fazer formação em educação de infância e em novas pedagogias, o que a aproximou da Escola Superior de Educação de Viseu. Atendendo à diversidade funcional e étnica, Paradinha tornou-se um local de estágio. Alguns professores começaram a inscrever as suas crianças ali. Entre eles, Mara Maravilha, que desenvolve trabalho artístico nas áreas de performance, teatro/cenografia e instalação. Mara tem ali as duas filhas — Maria, de seis anos, e Carlota, de três — e nem sabe dizer quantas vezes ouviu: “Com tantas escolas em Viseu, foste pôr as tuas filhas em Paradinha!” Outros pais relatam experiências semelhantes. Joana Medeiros, por exemplo, fazia questão de dizer que o filho, Bernardo, de seis anos, frequentava o Jardim-de-Infância de Paradinha e amiúde perguntavam-lhe: “Tem muitos ciganos?” Respondia: “Tem, tem! Funciona limpidamente!”Bernardo começou a ler antes dos quatro anos. “No ensino normal, era um bicho. Um dia, chegou a casa a dizer que não queria mais ir para a escola”, conta a mãe. Ali, recuperou a alegria de aprender. A turma funcionava como uma comunidade democrática e cooperante. Ele podia ler para os outros e os outros podiam ajudá-lo a fazer qualquer coisa que lhe custasse mais. “Além das boas condições, existe a parte humana que faz a diferença”, corrobora Daniel Lourenço, pai de Diogo, o menino com paralisia cerebral, referindo-se à educadora e às auxiliares. “Os miúdos gostam de estar aqui. Eles adaptam-se. O meu filho evoluiu imenso. A questão da etnia não é factor de conflito — nem entre miúdos nem entre pais, que convivem nas festas. ”Ao aproximar-se a idade de transição para o 1. º ciclo, os pais de seis crianças não ciganas e os pais de uma criança cigana começaram a pensar na mudança de escola. Não encaravam Paradinha como uma opção. Desde 2008 que a Escola de Paradinha só acolhia crianças ciganas residentes no bairro social homónimo. Muitas tinham dificuldade em concentrar-se, em cumprir regras, em respeitar colegas, professores e auxiliares. A indisciplina, o absentismo e o insucesso marcavam o quotidiano. Mara desanimou-se logo no início das “buscas”: “É tão triste chegar a uma escola e encontrar aquilo que vivi há 30 anos — o ensino em gavetas, as crianças sentadas o dia inteiro, de costas voltadas umas para as outras, em comboio, a absorver a matéria. ” Não desejava sujeitar a filha àquilo. Procurava uma escola pequena, que melhor se ajustasse à menina, ainda “em estado de encantamento e de curiosidade pelo mundo”. E ia partilhando as suas angústias com outros pais. No princípio de Março, Mara foi buscar as filhas ao mesmo tempo que Ângela Fernandes, mãe de um menino chamado Sebastião, de quatro anos. Enquanto as crianças saltitavam até ao portão, elas tratavam de pôr a conversa em dia. “Já sabes onde vais pôr a Maria?”, perguntou Ângela. “Ainda não”, respondeu Mara. “Ontem à noite, eu e o Sebastião estivemos a conversar. Ele disse que queria ficar na Escola de Paradinha, eu disse-lhe que não e ele ficou muito indignado. ”A primeira reacção de Mara foi: “Esquece! Não vamos colocar os nossos filhos nesta escola, conhecendo nós a realidade!” Ao entrar no carro, já ponderava: “O Sebastião tem razão… Por que não podem ele e as outras crianças continuar aqui, com a mesma qualidade que têm no jardim?”Naquela mesma noite, Mara mandou uma mensagem à educadora. Na manhã seguinte, Conceição barafustou: “Não! Nem pensar! Não vamos pôr uma criança [não cigana] sozinha numa escola 100% de etnia [cigana]!” “Sempre defendi que a inclusão se faz pela positiva, não pela negativa”, diz. Enquanto representante dos pais, Mara queria, pelo menos, questionar o director. Imaginou João Caiado a dizer que ela era livre de matricular a filha em Paradinha. Preparou-se para fazer a defesa da escola pública de qualidade, esgrimir argumentos capazes de o fazer entender que aquela escola era imprópria. E ele surpreendeu-a ao sugerir-lhe que se juntasse a outros pais e criasse um projecto educativo. “Eu tinha ideia de que era com vontade e força que se mudavam as coisas, mas não tinha ideia de que podia ser recebida com uma proposta destas”, admite Mara. Finda a reunião, telefonou à educadora. Assim, de repente, parecia-lhe “uma óptima ideia a possibilidade de falar com outros pais”. No dia seguinte, já não sabia. “Acordei a pensar que, se calhar, não valia a pena. ” Só que, entretanto, a educadora já falara com Daniel Lourenço e ele estava empolgado: “Vamos avançar!”Num instante, outros pais se animaram. Nelson Martins e a mulher, Carla Nines, por exemplo, notavam a ansiedade no filho, David, de seis anos. “Eu gostava que ficássemos juntos”, repetia o menino. E desejavam que ele continuasse com os amigos e com o método de ensino, mas não viam como. “Há uma grande cumplicidade entre eles. Gostam muito de estar uns com os outros”, diz Nelson. Aliaram-se seis famílias não ciganas. Puseram-se a ler, a discutir, a pensar em modos de quebrar a separação entre o pré-escolar e o 1. º ciclo, reduzir o absentismo e o insucesso, reforçar a capacidade pedagógica, promover “uma resposta de qualidade a todos e a cada um”. No dia 19 de Março, davam por terminada a primeira versão do Projecto Paradinha — Escola e Comunidade. Convencidos de que a escola, tal como estava, era parte do problema, porque não dava oportunidade para pensar, desenvolver a criatividade, perceber a importância da educação para a vida, e pegando no Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Governo em 2017, delinearam o modo de dar continuidade ao pré-escolar. A poucos dias das férias de Verão, as crianças soltavam a imaginação sobre o que seria a nova escola de 1. º ciclo. Isso mesmo se podia verificar ao juntá-las num banco corrido do jardim-de-infância. “Nós queremos fazer um escorrega lá”, dizia Simão, um menino cigano, de seis anos, muito assíduo e pontual. “Tudo igual aqui”, anunciava Bernardo. Igual como? “Pneus. Uma pista. Uma casinha de madeira”, explicou. “Isso já temos aqui. Podem vir brincar aqui”, esclareceu a educadora. O portão passaria a estar sempre aberto. “Baloiços!”, tornou Simão. “Uma escalada”, propôs Maria, clara líder do grupo. “Três baloiços”, tornou Simão. “Uma escalada para crescidos”, continuou Maria. “Um buraco”, voltou Simão. “Se não quisermos ler mais, vamos para o buraco e saímos!”Simão estivera para não ser matriculado na Escola de Paradinha. “A mãe da Maria foi lá a casa falar com a minha mãe”, contou ele. A mulher, de 26 anos, não tardaria a confirmar a versão do filho. “A Escola de Paradinha não tem condições”, enfatizou. “As professoras não se preocupam. Se as crianças souberem, sabem; se não souberam, não sabem. São ciganos, acabou! Não tem de saber ou deixar de saber! Nunca quis isso para os meus filhos. ” Já por isso, matriculara a filha, agora com nove anos, na Escola de Jugueiros. Nadja Soares não pode ir às reuniões de pais. Está em regime de obrigação de permanência na habitação. Está quase sempre confinada ao apartamento, ao qual se acede subindo por umas escadas atravancadas de tralha alheia. Quase só tem autorização para ir ao médico ou para levar as crianças a alguma consulta. Mara Maravilha foi a casa dela. “Explicou-me que vai haver uma nova vida nesta escola, que vai ser uma melhor vida. Se vir que o meu filho não aprende, retiro logo e ponho onde está a minha filha e acabou”, avisou. “Quero que os meus filhos tenham estudos. Por sermos ciganos, não temos de ser marginais. ”Naquele dia, no jardim-de-infância, estavam a faltar Emília e Débora. No grupo que ia transitar para o 1. º ciclo, tirando Simão, só havia crianças não ciganas. “Há algum problema por Simão ser cigano?”, perguntou a educadora. “Não”, responderam os outros, em coro. “Há algum problema por irem para uma escola com mais meninos ciganos?”, tornou a perguntar. “Não!”Um ar de esperança soprava no Bairro de Paradinha. “Estamos contentes”, admitia Vanessa Torres. Tinha a filha, Iasmin, de sete anos, a frequentar o 1. º ano, e o filho mais velho, José, de nove, a frequentar o 2. º ano. “Gostava que tivessem contacto com outras crianças. É uma emoção que a gente sente ao saber que há pessoas que se importam com as nossas crianças e que não têm o preconceito que muita gente tem. ”A escola, assim, não lhe servia. Já ponderava transferir as suas crianças. Outras mães ameaçavam fazer o mesmo. “O meu filho tem 11 anos. Andava no 3. º ano com os livros do 2. º”, queixava-se Carla Cabeças, mãe de um rapaz chamado Isaque, que gosta de usar uns óculos enormes e sem lentes, só pelo estilo. “Um dia mais tarde quer tirar uma carta de condução e não consegue. ” Carina Pinto repetia a queixa, mostrando o caderno do filho, Isaías, também ele no 3. º ano com livros do 2. º: “Só faz desenhos!” Por ele, já não ia à escola. “Anteontem, quando acordei o meu filho para ir para a escola, ele disse: ‘Ó mãe, o que faço lá? Fico cansado. Não faço nada. Só brinco!’”O único Estudo Nacional Sobre as Comunidades Ciganas — feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias, em 2014, a pedido do Alto-Comissariado para as Migrações — destapa percursos escolares curtíssimos. Os investigadores encontraram uma taxa de analfabetismo de 15, 5%; cerca de 30% não tinham completado o 1. º ciclo; 39% tinham concluído apenas o ensino básico, maioritariamente o 1. º ciclo; só 6% terminaram o 3. º ciclo; 2, 5%, o secundário. O percurso daquelas três mães reflectia essa realidade. Vanessa saiu da escola aos 12 anos. Carina também saiu com essa idade. Carla saiu aos 13. E essa era a história da maior parte das ciganas portuguesas que têm hoje à volta de 30 anos. Já não é o percurso da maior parte das crianças da idade das suas. Em 20 anos, mais do que duplicou o número de crianças ciganas a frequentar o ensino obrigatório. O Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017, mostra que o pré-escolar amedronta cada vez menos, que o 1. º ciclo está praticamente garantido, que há uma quebra do 1. º para o 2. º ciclo, outra do 2. º para o 3. º, que é nesta última etapa do ensino básico que há mais abandono, que poucos frequentam o secundário, embora haja cada vez mais gente a fazê-lo (alguns até tiram cursos superiores). Nem Vanessa, nem Carla, nem Carina teorizaram sobre a história de exclusão e a defesa da cultura cigana. Não se puseram a falar na importância da virgindade das meninas, nas quais a tradição deposita a honra das famílias. Tão-pouco sobre a centralidade do casamento, que tende a celebrar-se em idade precoce. Focaram, sim, a fraca qualidade do ensino e o pouco que se espera de crianças como as suas. As duas professoras, Célia Oliveira e Luísa Sousa, por sua vez, invocavam a desvalorização da escola, a fraca motivação para trabalhar, a dificuldade em ficar num espaço fechado, a relutância em cumprir regras, o fortíssimo absentismo. O interesse dos pais também lhes parecia, de um modo geral, reduzido. “Pede-se que venham buscar a avaliação e não vêm”, exemplificavam. Era extenso o registo de faltas (justificadas e injustificadas). O ano ainda não tinha terminado e na turma do 1. º ano já havia uma criança com 114 faltas, outra com 59, outra com 36, outra com 37. No 2. º ano, havia uma criança com 102 faltas, outra com 73, outra com 69, outra com 53. Os colegas tinham menos, mas não poucas: 43, 37, 31, 23, 11. Os cinco alunos do 3. º ano também somavam dezenas de faltas: 58, 54, 31, 27, 20. No 4. º ano, só um aluno tinha 44 faltas e o outro 22. O exemplo de Maria Elisa, de 38 anos, seria paradigmático. Também se queixava do pouco que aprendera a neta que está a criar, Lucinda, de oito anos. “Ela está no 2. º ano e ainda não sabe as letras todas, só sabe algumas!” Só que não a obrigava a ir à escola. “Batiam-lhe e ela não queria ir!”“O meu filho só não vai à escola se tiver alguma dor ou se for ao dentista”, apressava-se a afirmar Carla. “O meu também não falta”, assegurava Carina. O problema, para elas, era a escola e as professoras. “Elas não se esforçam porque é tudo cigano”, acusava Carina. Estavam com fé naquilo a que chamavam “o projecto da Mara”. Ao fazer o projecto, Mara e os outros pais tinham ouvido os seus anseios. “Os miúdos vão querer ir à escola”, acreditava Daniel. “E vão levar para casa essa alegria. Porque é o que acontece com os nossos filhos aqui. ”O perfil da equipa educativa sempre pareceu fulcral aos pais que se juntaram para mudar a escola. Não queriam professores colocados por uma lista de ordenação. Isso não garantiria estabilidade, nem formação na pedagogia da Escola Moderna, nem motivação para trabalhar com turmas com diversidade cultural. Escreveram ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e à secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro, que teve uma criança no Jardim-de-Infância de Paradinha. “Entendam, por favor, este nosso apelo como um grito de esperança e mudança no que consideramos ser a última oportunidade para transformar este espaço novamente numa escola”, lê-se no documento, datado de 16 de Abril. “Vemos nesta escola um problema grave para resolver, sim, mas também uma oportunidade única, e com sentido, de fazer dela uma ESCOLA de qualidade para TODOS. ”“Dentro do agrupamento, não apareceu nem um professor interessado”, revelou João Caiado. Desconfia que não foi por não terem a formação necessária (ou hipótese de a fazer). “Acho que se assustam com a ideia de trabalhar em Paradinha. Há muito que esta escola é evitada. ”O bairro quase só é notícia por más razões. Há dois anos, fez manchete o julgamento de 55 pessoas acusadas de tráfico de droga. Até Janeiro de 2014, haveria três pessoas a vender. Depois, houve detenções do Bairro da Balsa. A partir daí, e até Março de 2015, terá passado a haver uma lista de famílias que se revezavam. O Tribunal de Viseu condenou 46 pessoas, 30 das quais com pena suspensa. No ano passado, o presidente da câmara, Almeida Henriques, pediu ao Governo um reforço de segurança naquela zona. “Não desejamos nem aceitamos que se alastre o sentimento de insegurança que é típico do modo de vida de bairros problemáticos de grandes cidades, mesmo que tal se confine a focos pontuais”, declarou então, segundo o site da Emissora das Beiras. O lixo amontoa-se nas ruas. Limpam-no moradores que, por receberem rendimento social de inserção, são forçados a fazer trabalho socialmente útil. Quase não há iluminação pública. As lâmpadas foram destruídas com espingardas de pressão de ar. O carteiro só lá vai duas vezes por semana e com escolta policial. A escolta começou há uma década na sequência de uma agressão. Para haver qualidade de ensino e igualdade de oportunidades para as crianças em desvantagem — o diagnóstico aponta para défice de estímulo cognitivo, de domínio da língua, de conhecimentos gerais sobre o mundo, de apoio da família, de saber estar —, os pais queriam quatro professores e não dois. E identificaram quatro, que o Ministério da Educação só teria de colocar. Previram também quatro assistentes operacionais no 1. º ciclo. Outras duas ficariam no jardim-de-infância, com uma nova educadora — Conceição Neto assumiria a coordenação da escola, cargo que não existia. Impunha-se ainda recuperar e readaptar o espaço escolar, o que convocava a câmara. Aproximava-se o final de Agosto, os pais estavam muito preocupados: as obras ainda não tinham começado. E havia muito que fazer. Não bastava intervir nas salas. Todo o espaço escolar seria de aprendizagem. Nas traseiras, por exemplo, nasceria uma oficina de artes e um espaço de brincadeira. Para aumentar a área disponível, as crianças passariam todas a almoçar no jardim-de-infância. Os trâmites legais não explicavam o atraso por inteiro. “No Verão, há muita gente de férias”, justificou a vereadora da Educação, Cristina Brasete, de visita à obra. “Tiveram dificuldade em ter os materiais. Começaram as obras e ficaram meio parados. ” Por dentro, ficaria tudo feito. Por fora, ainda não. Fez o elogio do projecto-piloto que, funcionado, poderá ser replicado, com reajustes. “Este projecto não vai acontecer só porque se quer”, enfatizou. “Tem de haver muita paciência. Estas crianças estão aqui há muito tempo. ” Estava confiante, ainda assim. “Acho que vai fazer com que isto funcione é a conjugação de vontades. ”Adiou-se o arranque das aulas para o dia 24 de Setembro. Entretanto, um boato difundiu-se pelo Bairro de Paradinha. Mário Pinto, que já foi mediador cultural e que tem duas crianças no 1. º ciclo, o Mário, de oito anos, no 2. º ano, e a Jordana, de 11 anos, no 4. º, desconfiava do benefício do projecto. “Vou ver quais as condições que lá vão pôr. ” Havia 1. º e 2. º numa sala, 3. º e 4. º noutra. “Agora querem pôr 1. º ano só numa sala e 2. º, 3. º e 4. º noutra sala. Se for esse o caso, tiro os meus filhos! O que adianta? O resto do pessoal que é todo cigano vai ficar todo na mesma sala! Estão a fazer alguma regalia?”Na rua principal do bairro, exaltavam-se os ânimos. “Corre que até os recreios vão ser separados”, comentava Carla Cabeças. Carina Pinto também ouvira: “Acho mal. O recreio é para toda a criança!” Mário previa o pior: “Se já havia confusões, mais confusões vai haver!”Os pais não ciganos estavam abismados. Tanta receptividade antes do Verão! Algumas mães ciganas até tinham ajudado a definir as necessidades mais urgentes. Agora, acreditavam que eles queriam pôr meninos ciganos num lado e não ciganos noutro? “Há um mal-entendido muito grande”, lamentava Mara. “Se tivéssemos preconceitos, os nossos filhos não andavam naquele jardim-de-infância. ”Para sossegar os ânimos, João Caiado convocou uma reunião. Sim, o projecto começaria com 12 crianças do 1. º ano numa sala e 19 dos outros anos noutra. Tinham-se matriculado mais duas crianças não ciganas, Tomás e Francisco, o menino que tem trissomia 21. E havia mais um menino cigano, Ariel, com nove anos e uma doença genética, própria de populações fechadas, que somara tantas faltas que ficara retido no 1. º ano. “O projecto tem de começar com uma turma de 1. º ano”, salientava Conceição Neto. “Embora estejam numa turma, vão trabalhar com meninos de outra turma. ” Quantos alunos do 2. º ano saberiam mesmo ler, por exemplo? “A ideia é trabalhar em grupos por níveis de conhecimento para que todos aprendam. ”Uma semana depois do início das aulas, a alegria extravasava os muros da escola. E o mal-estar dissipara-se. “Aquilo que falavam não era”, admitia Carla. “Estamos a gostar. Os miúdos estão mais acompanhados. Há mais professoras, mais auxiliares, mais regras. Os meninos estão mais motivados”, concordava Carina. “Antes, era sempre a mesma rotina. Agora, fazem mais coisas. Antes, chegavam a casa e diziam que não queriam ir para a escola. Agora, estão com vontade de voltar”, tornava Carla. Naquele dia, as crianças do 1. º ciclo tinham ido todas ao Festival Outono Quente, no Parque Aquilino Ribeiro, ver o espectáculo Don Afonso Henriques 3 em 1, um herói que salta de um livro para um programa de rádio, dentro de uma peça de teatro. E Alfredo, um menino cigano de 11 anos que frequenta o 4. º ano, dera a mão ao Francisco, o menino com trissomia 21. Estivera atento a visita inteira. Alfredo estava animado com a mudança. “A escola está mais melhor assim!” Parece-lhe que se porta melhor e tudo. “Eu antes tinha cá o meu irmão e ele fazia disparates, dizia asneiras e isso. ” Agrada-lhe ter mais professoras e mais crianças para brincar à bola, à apanhada, ao escondidinho. Está tudo diferente. As salas não têm cadeiras viradas para o quadro. O quadro é só um recurso para a professora ou para o aluno que queira apresentar alguma ideia. As crianças trabalham em grupo de frente umas para as outras. O dia começa com a turma sentada numa manta estendida num canto, a delinear o plano para o dia. E termina com a turma a discutir o que foi o dia. Pediu-se à turma de 1. º ano que se sentasse na manta a avaliar tudo. “Gosto muito desta escola. É muito divertida. Tem muitos meninos”, dizia Maria. “Eu gosto desta escola porque tem mais jogos, mais livros, mais professoras, mais amigos”, dizia Bernardo. “Tenho quase tudo o que eu queria. ”Naquele tapete, faltava Simão. Os pais matricularam-no em Paradinha, mas mudaram de ideias quando souberam que Ariel se juntaria à turma. Queriam que fosse para Jugueiros, como a irmã. Só que nessa escola não havia vaga no 1. º ano. Simão haveria de vir para esta escola ao 10. º dia, quando o número de faltas injustificadas já pedisse queixa à Comissão de Protecção. “Estes já vêm trabalhados do jardim-de-infância. Estes já encaram a etnia com normalidade”, afiançava a professora Sandra Tavares. “Não há essa questão de este é cigano, aquele é não é cigano. Aqui há crianças. A palavra ‘cigano’ não se usa. Eles às vezes é que dizem: ‘Eu sou cigano. ’ E eu pergunto. E não tens orgulho? E eles dizem: ‘Sim’. ” Os da outra turma iam precisar de mais atenção. Um mês depois de iniciadas as aulas, Conceição Neto fazia um balanço positivo. As crianças estão a faltar muitíssimo menos. Não havia registo de conflito entre crianças ciganas e não ciganas, apenas entre crianças ciganas de famílias desavindas. Incidentes e divergências passavam da escola para o bairro e do bairro para a escola. “Vamos ter muitos obstáculos — já estamos a ter”, reconhecia. “Temos de esclarecer as famílias, dizendo sempre a verdade, abrindo as portas, mostrando que estamos a dar o nosso melhor, mas principalmente criando nas crianças a vontade de vir à escola. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As regras apertaram. Quem chega depois das 9h15 já não tem direito a almoçar e quem inicia uma actividade de enriquecimento curricular não pode sair antes do fim. Foi accionada uma vasta rede de parceiros. Um deles é a Caritas Diocesana, que gere um centro comunitário dentro do bairro. O sociólogo António Ramalho está nesse centro a gerir uma equipa que pode bater à porta de quem está a faltar. Um dos maiores desafios é fazer acreditar no poder transformador da escola. Ajuda ter bons exemplos para apontar. Ali, no bairro, moram pessoas com diferentes níveis de escolaridade, umas a trabalhar na venda ambulante, outras a trabalhar por conta de outrem, no mercado formal, o que é muitíssimo mais raro. Não pesa só a baixa escolaridade, também o estigma. “Há um processo de exclusão e um processo de auto-exclusão”, nota Ramalho. Até quando andará o filho de Carina na escola? “Até ele conseguir. Gostaria que tivesse uma vida que a gente não tem. As feiras que dão? Mal é que o cigano não tem trabalho por ser cigano!” E o de Carla? “Gostava que não andasse, como nós, nas feiras, que tivesse uma vida como os outros têm. ” E os de Vanessa? “Quero que estudem, que façam aquilo que eu não fiz, que vão para a faculdade. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Os ciganos "não valem nada"? "Não somos tão maus como pensam!"
O comissário europeu dos Direitos Humanos foi esta terça-feira a Torres Vedras ver um bom exemplo de desenvolvimento de um programa de mediação cultural entre comunidades ciganas e instituições. (...)

Os ciganos "não valem nada"? "Não somos tão maus como pensam!"
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento -0.83
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O comissário europeu dos Direitos Humanos foi esta terça-feira a Torres Vedras ver um bom exemplo de desenvolvimento de um programa de mediação cultural entre comunidades ciganas e instituições.
TEXTO: O comissário europeu dos Direitos Humanos, Nils Muiznieks, queria ver como é que estava a funcionar o Romed, um programa do Conselho da Europa e da União Europeia destinado a promover a mediação entre as comunidades ciganas e as instituições. E decidiu ir esta terça-feira a Torres Vedras. “Eu queria ver o que pode acontecer quando um município tem boa vontade”, explicou. “Já vi muitos dirigentes locais que nada querem fazer, que ignoram os problemas, que não dialogam com ciganos. ”A segunda fase do programa, que arrancou em 2014, foi desenvolvida numa dezena de países escolhidos a dedo: Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, Hungria, Itália, Portugal, Eslováquia, Macedónia e Roménia. Em Portugal, além de Torres Vedras, participam Beja, Figueira da Foz, Barcelos, Seixal, Elvas e Moura. Na tentativa de envolver as comunidades ciganas na resolução dos seus problemas, de aumentar a sua participação democrática, cada município tem um facilitador/mediador. Foram também criados grupos de acção, que agregam dez a 14 pessoas, sobretudo rapazes. À espera, na manhã desta terça-feira, Muiznieks tinha uma comitiva que incluía o presidente da câmara, Carlos Manuel Antunes Bernardes, e Bruno Gonçalves, vice-presidente da Letras Nómadas, a organização que em Portugal presta apoio ao programa Romed. Teve depois ocasião de conversar com o facilitador, Lindo Cambão, e com alguns membros do grupo de acção local. Deu um salto ao Parque do Choupal, onde dois homens de etnia cigana tratavam da relva. Passou pela Casa das Histórias, onde uma peça artística alusiva à história e à cultura cigana está a ser preparada. E foi ao mercado comer um bacalhau com feijão manteiga, prato típico de Natal entre ciganos portugueses. Não quis ir ao bairro da Boavista-Olheiros, onde moram muitos dos 300 membros da comunidade cigana de Torres Vedras. “Já fui a bairros de ciganos em vários países europeus”, explicou Muiznieks. “Para ser honesto, são muito semelhantes. A miséria é semelhante em toda a Europa. Queria perceber como é que que as autoridades locais decidiram que precisavam de um mediador, como desenvolveram o diálogo com os ciganos, quais os problemas que os ciganos identificaram como prioritários, como se está a tentar criar consciência através da cultura. ”Lindo Cambão, o mediador, tentou satisfazer as curiosidades. Porquê ele? “Sou de cá, nascido e criado. Dou-me bem com toda a gente, ciganos e não-ciganos. ” Teve algum medo. “A minha experiência era como vendedor. ” Assustava-o a ideia de cumprir horários. “Uma coisa é sair de madrugada para a feira e voltar à hora do almoço, outra é entrar às nove e sair às cinco. ” Obedecer também lhe causava estranheza. “O mais difícil foi ter superior hierárquico. Antes era patrão. ”A primeira missão foi ajudar o município a conhecer melhor a comunidade cigana. Noventa pessoas responderam a um inquérito. A partir daí foi possível fazer um diagnóstico: 74% por estavam desempregados, 58% viviam de subsídios, só 34% tinham completado o primeiro ciclo, 13% nunca tinham ido à escola e as maiores razões dadas para abandonar a escola eram a tradição (36%) ou a necessidade de trabalhar (29%). No que à participação diz respeito, 94% nunca tinham votado. Os rapazes mantêm-se mais tempo na escola. Grande parte das raparigas chega ao fim do 1. º ou do 2. º ciclo e deixa de aparecer. Há uma tentativa de as manter com um pé na escola até ao fim do 3. º ciclo, através do ensino doméstico. A partir daí, razia. Só há uma a frequentar o 10. º ano. Muiznieks quis saber se são os pais que dizem: “Já estás a ficar com uma certa idade, os rapazes estão a olhar muito para ti, é altura de deixar a escola”. E Cambão anuiu: “Continua a haver pais que depois de uma certa idade olham para as filhas e não acham bem. Isso de dia para dia está a acabar”, acredita. “Espero que a minha filha que tem 7 anos vá andando. Isto não é só um problema dos pais. É um problema dos outros. Dizem: ‘E tu não tens vergonha? A tua filha tão grande anda na escola? Podia estar em casa. A tua filha está boa é para estar em casa a arrumar. ’”A falta de vontade de alguns convive com o racismo de outros. Essa é a opinião de Lindinho Cambão, o filho, de 11 anos. “Quando alguns colegas descobrem que sou cigano começam a mandar bocas, a dizer: ‘os ciganos não valem nada, os ciganos são uma m…’ Não somos tão maus como pensam!”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nada disso ajuda na hora de entrar no mercado de trabalho, atalha Valentim Vieira, de 21 anos, a fazer vida de feira enquanto não arranja algo melhor. “Em Torres, comparado com outros municípios, não é muito carregado, não há muito racismo, mas há um pouco. Se concorrer eu e um não-cigano, vai o não-cigano. ”O grupo de acção local começou a reunir-se em Agosto de 2014 e pôs o emprego no topo das prioridades. Propôs que se contratassem quatro pessoas de etnia cigana (dois homens e duas mulheres e quatro empregos foram oferecidos, ainda que temporários, precários). Sugeriu que se pedisse um apoio para fazer uns arranjos na igreja evangélica. E uma festa para divulgar a sua cultura e a sua gastronomia. Por causa disto tudo e de um pequeno documentário que ele e outros estudantes fizeram sobre vivências e cultura cigana – Olhar em Roda, promovido pelo Académico de Torres Vedras – Lindinho acredita que quando for grande tudo será diferente. Muiznieks ouvia, sorridente. “Os problemas, mesmo numa situação relativamente boa como Torres Vedras, são iguais. As pessoas falam de racismo, de acesso à educação, de falta de emprego, mas aqui parece haver uma atmosfera positiva, a sensação de que as coisas estão a mudar”, avalia. “Eles querem trabalhos não só para ganhar a vida, mas também para mostrar que podem trabalhar e que são capazes de trabalhar. Aparentemente, há quem pense que não querem ou não são capazes de trabalhar. Estes exemplos são muito importantes. Mesmo que se possa dizer que cinco empregos não é muito, faz diferença. São pequenos passos, mas são na direcção certa. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Cigano
Haverá bolsas no ensino secundário para 100 alunos ciganos
Estratégia para a Integração das Comunidades Ciganas, agora revista, quer que todas as escolas adoptem medidas concretas para promover a integração e sucesso escolar de crianças e jovens ciganos. (...)

Haverá bolsas no ensino secundário para 100 alunos ciganos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estratégia para a Integração das Comunidades Ciganas, agora revista, quer que todas as escolas adoptem medidas concretas para promover a integração e sucesso escolar de crianças e jovens ciganos.
TEXTO: A nova Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (ENICC) prevê que 100 alunos do ensino secundário beneficiem de bolsas de estudo no próximo ano. Mais 100 no seguinte. O documento, que acabou de ser revisto e foi nesta quinta-feira publicado em Diário da República, dá quatro anos para que todos os agrupamentos de escolas implementem medidas concretas para promover a integração e sucesso escolar de crianças e jovens ciganos. Este documento resulta da revisão da estratégia delineada para 2013-2020. O Governo decidiu revê-la e o novo documento prevê agora medidas até 2022. Visa “fomentar mudanças estruturais nas condições de vida das pessoas ciganas”, propondo objectivos e medidas concretas com foco na escolarização e integração profissional, na melhoria das condições de habitação, bem como o reforço do papel dos mediadores interculturais, da informação e do combate à discriminação. São reforçadas algumas acções para incentivar jovens ciganos a continuar os estudos. As bolsas no secundário são um exemplo – complementadas com a existência de mentores para os alunos bolseiros. No superior, o número de bolsas também aumenta: 32 no próximo ano, 35 no seguinte, 40 em 2021 e outras 40 em 2022. E importa acompanhar aqueles que abandonam, diz-se. Até ao final do próximo ano, o Ministério da Educação tem a incumbência de fazer guiões pedagógicos com orientações e boas práticas de integração para quem trabalha com crianças e jovens ciganas. Depois, as escolas devem tomar a iniciativa de os pôr em prática, incluindo famílias ciganas e não-ciganas no processo. A estratégia conta que todos os estabelecimentos com mais de 50 alunos de etnia cigana o façam até ao final de 2022. Também importa reforçar competências da população iletrada. Em cinco anos cerca de mil pessoas devem passar por acções de alfabetização, literacia e competências básicas. É uma meta. Outra é aumentar o número de pessoas ciganas inscritas nos Centros Qualifica (chegar às 300 em 2021), destinados à qualificação de adultos, garantindo que no mesmo ano há outras 100 a passar pelo processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), que é feito com base na experiência de vida de cada um. Em 2021, deverá ser revisto o estatuto legal do mediador sócio-cultural. Para já, 25 mediadores interculturais, em câmaras municipais – a formação e contratação será feita no próximo ano e no seguinte –, farão a ponte entre estudantes, escolas e famílias, para combater o insucesso, o absentismo e o abandono escolar. As acções de formação são o principal veículo para sensibilizar e informar sobre a história e cultura cigana. Estão previstas com profissionais das escolas e da área da saúde, da segurança social e das comissões de protecção de crianças e jovens, técnicos dos Centros Qualifica e dos Centros de Emprego e Formação Profissional. Quanto à habitação, o documento prevê que seja celebrado, até ao final do próximo ano, um protocolo entre o Alto Comissariado para as Migrações, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e os municípios, no âmbito do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação 1. º Direito. E, aquando da requalificação de bairros de habitação social, espera-se que sejam abrangidas 500 casas de famílias ciganas até 2022. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Previstas estão acções na área da saúde, como o fomento de consultas de planeamento familiar a mulheres e de saúde infantil e juvenil a crianças ciganas. A intenção é colocar ainda na estrada serviços de saúde itinerantes. Assim como distribuir informação sobre o acesso aos serviços de saúde e prevenção. A estratégia propõe igualmente que se termine a reflexão sobre a criação de uma categoria relativa à “origem étnico-racial” nos Censos de 2021. Definir critérios de majoração para que o sucesso de tudo isto possa ser medido é uma preocupação e a maioria desses critérios deve ser fixada no próximo ano.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura educação social estudo mulheres discriminação infantil
“Nem para morrer se pode ser cigano”
Associações ciganas pedem intervenção do Governo e apelam à CDU para que tome "as devidas providências". (...)

“Nem para morrer se pode ser cigano”
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Associações ciganas pedem intervenção do Governo e apelam à CDU para que tome "as devidas providências".
TEXTO: A Associação Nacional dos Mediadores Ciganos, Letras Nómadas, Sílaba Dinâmica de Elvas e Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas manifestaram nesta sexta o seu “repúdio” pelos últimos acontecimentos na Junta de Freguesia de Cabeça Gorda no concelho de Beja, frisando que “nem para morrer se pode ser cigano”. Reportam-se à decisão tomada pelo presidente da junta, Álvaro Nobre (CDU), que impediu a deposição do corpo de José António Garcia, cidadão cigano e pastor da Igreja Evangélica de Filadélfia, alegando que não tinha nascido nem era morador na freguesia. Acontece que, contrariamente ao que disse o autarca, o cidadão cigano que faleceu “era morador recenseado” na freguesia e a viúva “tem as suas raízes na Cabeça Gorda”, lê-se no comunicado emitido pelas associações ciganas em que repudiam o argumento de Álvaro Nobre de que o “falecido passava a maior parte do seu tempo noutras freguesias vizinhas”. E perguntam se “às pessoas não ciganas de Cabeça Gorda que, por questões laborais, passam a maior parte do seu tempo fora da freguesia” o critério do autarca é o mesmo. A justificação apresentada pelo autarca revela “um desrespeito moral e físico pelo cidadão falecido e sua família, além de ser claro estarmos perante um acto de discriminação racial”, refere o comunicado das associações, cujo tema é "Nem para morrer se pode ser Cigano?!"Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A violação da lei é mais que visível neste caso”, assinalam as associações ciganas, assumindo que vão recorrer a “todos os meios democráticos, sejam ele judiciais ou através dos mecanismos democráticos ao alcance, para que se faça justiça e se puna este autarca”. E neste sentido solicitam à ministra de Administração Interna e ao ministro-adjunto Eduardo Cabrita, através da secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade e Alto Comissariado para as Migrações, que “se posicionem nesta situação" que consideram "ser deplorável, indigna de um estado de direito”. O apelo é extensivo “ao Comité Central do PCP bem como aos partidos da coligação CDU” para que tomem as “devidas providências face a estes acontecimentos que envergonham os partidos e o país”.
REFERÊNCIAS:
Partidos PCP
Tribunal aceita abandono escolar de jovem cigana em nome da tradição
Rapariga de 15 anos frequentava o 7º ano. Juíza concede que jovens de hoje sigam “caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade” (...)

Tribunal aceita abandono escolar de jovem cigana em nome da tradição
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 9 Ciganos Pontuação: 18 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-09-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Rapariga de 15 anos frequentava o 7º ano. Juíza concede que jovens de hoje sigam “caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade”
TEXTO: Pode um tribunal encolher os ombros perante uma rapariga de 15 anos que não quer ir à escola, alegando que é cigana, que cumpre as suas tradições, que prefere ficar em casa a ajudar a mãe dela? O Juízo de Competência Genérica de Fronteira, da Comarca de Portalegre, acha que sim. O entendimento está longe de ser único, a avaliar pela quantidade de pessoas que continuam a não cumprir a escolaridade obrigatória. Mas contraria a prática que vem ganhando força, com recomendações internacionais e nacionais e decisões judiciais que se tornaram exemplares. O absentismo e o abandono escolar (que não são um exclusivo das comunidades ciganas) constituem a terceira maior porta de entrada para as comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ). Quando não obtêm a anuência das famílias para actuar, essas estruturas locais remetem os processos para o Ministério Público (MP). Foi o que aconteceu em Avis, no Alto Alentejo. Alertada pelo agrupamento de escolas para as faltas persistentes daquela aluna do 7º ano, a CPCJ convocou as partes. “Os pais e a criança não deram consentimento, invocando as suas razões culturais”, esclarece Sérgio Lopes, presidente daquela estrutura. Que tradição? A honra das famílias ciganas está centrada no comportamento das raparigas, que se devem manter virgens até ao casamento, amiúde celebrado em idades precoces. O Juízo de Competência Genérica de Fronteira ouviu a rapariga, os pais e a técnica da CPCJ. O MP propôs o arquivamento. E a juíza concluiu que “inexiste de todo em todo, e muito claramente, perigo actual assaz necessário para a intervenção judicial”. “A menor não demonstra motivação para frequentar a escola, ajudando a mãe nas tarefas domésticas, na medida em que esta, por doença, não as pode realizar”, lê-se na decisão, que é de 5 de Janeiro de 2017, mas só agora veio a público. O facto de ser “de etnia cigana, e de cumprir com as suas tradições”, leva-a “a considerar que não necessita de frequentar a escola”. A juíza Joana Gomes refere que a rapariga “já tem 15 anos e que possui as competências escolares básicas, por necessárias, ao desenvolvimento da sua actividade profissional” e à “integração social no seu meio de pertença”. E que não está “minimamente motivada” para continuar na escola. E concede que “o desenvolvimento da personalidade e capacidades dos jovens, actualmente, para o prosseguimento de uma vida digna, adequada às regras sociais e jurídicas, se molda, por vezes, por caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade, como precisamente sucede neste caso”. Este ano lectivo, tudo começou de novo. A rapariga não apareceu nas aulas, a escola avisou a CPCJ, que a convocou e aos pais e remeteu o caso para o MP. “O acesso à educação é um direito básico das crianças e um alicerce fundamental para o desenvolvimento destas como pessoas e membros de uma sociedade”, salienta a secretária de Estado para a Igualdade e a Cidadania, Rosa Monteiro. “Permitir que uma rapariga de 15 anos não cumpra a escolaridade obrigatória é negar-lhe o acesso à vida plena, condenar o seu futuro profissional e cidadão. ”O Alto Comissariado para as Migrações escusa-se a comentar a decisão concreta, mas também não deixa de dizer que o direito à educação “não é compaginável com quaisquer abordagens que relativizem esse princípio à luz de quaisquer interpretações ‘culturais’”. E garante que “encetará diligências” junto da comissão nacional e da local “por forma a procurar formas de garantir esse mesmo direito”. Maria José Casa-Nova, professora universitária e actual coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, já esteve no Centro de Estudos Judiciários a explicar que as raparigas até dizem mais ter vontade de estudar do que os rapazes, mas são mais cedo “orientadas” para o abandono. E que em Portugal há cada vez mais ciganas a continuar o seu percurso escolar. “O facto de não ‘demonstrar motivação para frequentar a escola’ ou de ‘ser de etnia cigana’ e ter ‘de cumprir com as suas tradições’ (sendo que no caso escolar isso significa uma gritante desigualdade de género) não pode ser razão para decidir pela não frequência escolar, negando um direito humano fundamental à formação de cidadãos e cidadãs conscientes e críticos/as”, reage Casa-Nova, agora. Como é que se pode considerar que ‘possui as competências escolares básicas, por necessárias, ao desenvolvimento da sua actividade profissional, bem como pela integração social no meio de pertença”?”, questiona aquela especialista. Que profissão? Não seria mais indicado decretar medida que garantisse condições para “a adolescente continuar a sua formação”?É essa a linha de uma decisão da Relação de Lisboa de 2012. Uma rapariga e os pais justificaram o abandono escolar com a primeira menstruação. Disseram que, pela cultura cigana, tinha de deixar a escola para preservar a sua “pureza”. A primeira instância concluiu que a cultura se sobrepunha à educação. O MP recorreu, alegando que o abandono escolar colocava em risco o desenvolvimento e a integração profissional futura. E a Relação deu-lhe razão. “As realidades sociológicas não são estáticas e não é aceitável que a justificação para a menor deixar de frequentar o ensino obrigatório seja a preservação da sua 'pureza'”, escreveu o desembargador Afonso Henrique Cabral Ferreira. “Há que explicar aos pais da menor que uma coisa não exclui a outra e que a escolaridade obrigatória visa defender as crianças e os jovens, evitando que entrem prematuramente no mercado de trabalho com prejuízo para o seu normal desenvolvimento psicossocial. Esse trabalho pedagógico deve ser exercido junto dos pais da menor. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A solução nem sempre passa pelo ensino regular. Muitos frequentam outras ofertas educativas, nomeadamente percursos curriculares alternativos ou cursos profissionais. Há também outras modalidades de ensino. Maria José Casa-Nova lembra que existe, por exemplo, o ensino doméstico, leccionado em casa do aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite com habilitação suficiente. E o ensino individual, ministrado por um professor a um único aluno fora do estabelecimento de ensino, por exemplo, num centro de explicações. Uma e outra modalidade implicam apresentação na escola nos dias certos para fazer os exames. Bruno Gonçalves, dirigente da Letras Nómadas, uma das associações de ciganos que mais se têm batido pelo direito à educação, também considera que é melhor ajudar a encontrar alternativas do que desistir. “Medidas escolares muito em voga, como o ensino à distância ou o ensino doméstico”, parecem-lhe “males menores”. Resolvem o abandono escolar, embora não promovam contacto intercultural. O ensino doméstico desponta como uma possibilidade de conciliar o dever de cumprir a escolaridade obrigatória com o tradicional recato das ciganas até ao dia do casamento. No último ano lectivo, havia pelo menos 92 estudantes nessa modalidade, a maior parte na Grande Lisboa. O Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017, foi divulgado em Abril. O levantamento tem por base respostas de 563 escolas (246 não responderam). Foi a primeira vez, desde os anos 1990, que o Ministério da Educação procurou conhecer, à escala nacional, a situação escolar dos alunos ciganos. O levantamento indica que o número de ciganos a frequentar a escola obrigatória duplicou em 20 anos. A sua presença diminui à medida que a escolaridade sobe. E o encaminhamento para outras ofertas educativas começa logo no primeiro ciclo. Nesse âmbito, o ensino doméstico está a despontar: no ano lectivo 2016/2017, havia 17 no primeiro ciclo, 64 no segundo ciclo, nove no terceiro ciclo e dois do secundário. E a Área Metropolitana de Lisboa dominava, com 11 no primeiro ciclo, 48 no segundo e oito no terceiro. A opção não serve qualquer um, porque exige que haja um familiar ou outra pessoa lá em casa que tenha habilitações um grau acima do que se propõe ensinar. A avaliação, no ensino básico, processa-se por provas de equivalência. No secundário, a aprovação decorre da realização das provas no fim do ciclo de estudos de cada disciplina.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola cultura tribunal educação comunidade adolescente social criança doença igualdade género casamento rapariga
Em Reguengos os alunos de etnia cigana deixaram de ser uma minoria que vive à parte
Projecto Criar Futuro destina-se a crianças e jovens em risco de abandono escolar. Inclui apoios nos trabalhos para casa, actividades de leitura e pintura, teatro, jogos nos recreios. E também uma horta que, lá mais para o Verão, deve estar mais completa. (...)

Em Reguengos os alunos de etnia cigana deixaram de ser uma minoria que vive à parte
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 18 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Projecto Criar Futuro destina-se a crianças e jovens em risco de abandono escolar. Inclui apoios nos trabalhos para casa, actividades de leitura e pintura, teatro, jogos nos recreios. E também uma horta que, lá mais para o Verão, deve estar mais completa.
TEXTO: Dalila, 12 anos, está indecisa entre ser professora ou cantora quando crescer. Começou por apontar a primeira profissão, mas não resistiu em juntar logo a segunda. Vânia, nove anos, segue-lhe os passos. Já Francisca, com sete, fica-se pela primeira opção. Todas elas são de etnia cigana, bem como as outras três meninas que na tarde da última sexta-feira acorreram à antiga casa do juiz da comarca de Reguengos de Monsaraz, que agora pertence à câmara municipal. Vão lá quase todos os dias para terem apoio na realização dos trabalhos para casa, para pintarem, lerem, fazerem teatro. “Para aprender coisas novas”, acrescenta Dalila, que está no 4. º ano de escolaridade e vai entoando várias músicas à procura da que dará melhor com a designação Dia do Estudante, que se assinalava naquela sexta-feira. Diz por isso que é também o seu dia. As seis meninas fazem parte do grupo de 70 crianças e jovens entre os seis e os 14 anos que estão a ser acompanhados pelo projecto Criar Futuro, promovido pela autarquia e que é um dos 90 que integram a sexta geração do programa Escolhas. Este programa, apoiado pelo Alto Comissariado para as Migrações, tem como missão “promover a inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis, visando a igualdade de oportunidades e o reforço da coesão social”. Este é também o objectivo do Criar Futuro, que escolheu como público-alvo crianças e jovens com problemas de insucesso e de abandono escolar. Dos participantes actuais, cerca de 20 são de etnia cigana. Ou seja, quase metade dos estudantes desta etnia inscritos no Agrupamento de Escolas de Reguengos de Monsaraz, um dos parceiros do projecto, estão abrangidos. Para já, o principal trunfo do projecto, que arrancou há um ano, é o de estar a “promover activamente a integração”, frisa a vereadora da Educação, Joaquina Margalha. Na escola do 1. º ciclo de Reguengos esta “integração” pratica-se todos os dias por via das actividades que são desenvolvidas durante o recreio da hora do almoço — uma hora para desenvolver jogos e outras actividades que são organizadas pela equipa do Criar Futuro e que aos poucos tem “envolvido toda a comunidade escolar”, conta Rita Cavaco, 32 anos, que é professora do 1. º ciclo e coordenadora da iniciativa. É ela uma das animadoras desta “dinamização do recreio”. Diz que passou a ser hábito a partilha de actividades e experiências entre os alunos de etnia cigana e os outros. “As relações entre eles melhoraram”, frisa. O mesmo se passa no outro eixo do Criar Futuro, que tem praça no Centro de Inclusão Digital. “Já vêm juntos da escola para cá”, refere José Carlos, 29 anos, responsável por este espaço e que faz também parte da equipa técnica. No espaço, que dispõe de seis portáteis e uma impressora, estão dois alunos no dia da visita do PÚBLICO. André de 14 anos, cigano, e Ionel, 15 anos, romeno. Os filhos de imigrantes, que ali são sobretudo da Moldávia e da Roménia, fazem também parte do público-alvo do projecto. André está no 7. º ano, numa turma do Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), destinado a alunos com um historial de insucesso. Ainda domina mal a leitura e a escrita, embora segundo José Carlos tenha melhorado com a passagem este ano para o PIEF, por este ter uma abordagem mais prática. André corrobora ao mesmo tempo que percorre o seu Facebook. Quando tem dificuldades em escrever uma frase no chat pede a José Carlos que o ajude. Ionel também está à espera de apoio para montar um power point onde vai apresentar um guião de leitura do livro O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia Mello Breyner. O resumo tinha-feito antes, na sede do Criar Futuro. “Os pais [dos alunos ciganos] também começaram a vir aqui, principalmente para tirar músicas para levarem para o culto e para consultarem anúncios e enviarem emails, sobretudo por causa dos seguros dos carros. E eu ajudo-os”, conta José Carlos. Em cima de uma das mesas do centro está um conjunto de folhas A3 com histórias do povo cigano. O trabalho, que envolveu as famílias dos estudantes, foi desenvolvido pelas alunas mais velhas, com o apoio de uma estudante do 12. º ano, Rosa Marques, 21 anos. Ao lado, noutra folha A3, está escrita esta frase: “Ser cigano é ser lutador. ”Para além de aluna do Agrupamento de Escolas de Reguengos, Rosa Marques também dá aulas no conservatório local. A sua perícia musical é uma mais-valia no contacto com estes alunos, que não perdem uma oportunidade para cantar ou dançar. Para participar na equipa técnica do Criar Futuro, Rosa comprometeu-se a concluir o 12. º ano. Falta-lhe fazer Matemática A. “Vais conseguir. Tiveste boas notas!”, anima-a uma das suas parceiras noutro projecto previsto no programa do Criar Futuro, com o objectivo de “promover a integração social e comunitária”: a criação de uma associação de jovens de Reguengos. Foi constituída em Fevereiro passado. “Queremos que os jovens se fixem por cá. Queremos que tenham uma voz no concelho”, resume Sofia Rico, uma das fundadoras da associação, que tem sede também na antiga casa do juiz da comarca. Na sala ao lado, quatro das meninas de etnia cigana estão a terminar os blocos multicores que têm na capa a inscrição Dia Nacional do Estudante. Foi a actividade escolhida para sexta-feira. Há outras duas que estão a fazer os trabalhos para casa com a ajuda de Cátia Godinho, 35 anos, psicopedagoga e que é responsável também por sessões de acompanhamento individual desenvolvidas no agrupamento de escolas com o objectivo de ajudar “a estruturar projectos de vida e trabalhar competências pessoais”. Francisca olha pela janela. “Plantámos alfaces”, diz. Foi uma das últimas actividades no espaço do Criar Futuro. Lá para o Verão esperam ter uma horta completa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este espaço é mais procurado pelas meninas. Os rapazes também passam por lá, mas ficam menos tempo. O seu local preferido é o Centro de Inclusão Digital. Por ali não há gorros nem bonés nas cabeças. É uma das regras do projecto. Como também o é a pontualidade. As várias actividades diárias têm horas marcadas, que decorrem após o fim das aulas na escola do 1. º ciclo. Terminam às 16 horas e cerca de 15 minutos depois já há alunos a baterem à porta do Criar Futuro. Mal começa a anoitecer regressam ao bairro onde vivem. É uma regra que as crianças de etnia cigana não quebram. Mas para as ter ali foi também preciso desenvolver um trabalho junto das famílias, ganhar-lhes a confiança. Rita Cavaco diz que esta missão tem dado frutos, mas está longe de estar concluída, já que o objectivo é que as famílias se envolvam também nas actividades do projecto. “São famílias que não privilegiam muito a escolarização. Se não as conseguirmos mobilizar para este objectivo as crianças acabam por falhar”, resume Joaquina Margalho.
REFERÊNCIAS:
Étnia Cigano
Beja acolhe o dobro dos ciganos referenciados em estudos oficiais
Maioria reside em habitações sociais, mas um número razoável de agregados construiu a sua própria casa em alvenaria, e só algumas famílias vivem em barracas ou tendas. (...)

Beja acolhe o dobro dos ciganos referenciados em estudos oficiais
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 18 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Maioria reside em habitações sociais, mas um número razoável de agregados construiu a sua própria casa em alvenaria, e só algumas famílias vivem em barracas ou tendas.
TEXTO: Os dados oficiais expressos no Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, divulgado em Junho de 2015 pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM) referem que, em 2014, viviam no concelho de Beja 630 ciganos. No entanto, este número está longe de corresponder à situação presente. Com efeito, um novo recenseamento proposto pela Rede Europeia Antipobreza (EAPN) e Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC) à Câmara de Beja, defendendo a contagem directa nos lugares onde residem, revelou resultados surpreendentes: o total de ciganos do concelho ascende a 1106 indivíduos, praticamente o dobro dos que foram referenciados oficialmente. O levantamento realizado pelo ACM foi, no essencial, baseado na informação recolhida pelas autarquias a nível nacional, acreditando-se que estas seriam as entidades em melhores condições para fornecer os dados necessários à caracterização das comunidades ciganas. O estudo justifica a opção por três ordens de razões: “primeiro, e teoricamente, poder-se-ia recobrir todo o território nacional. Em segundo lugar, evitar-se-iam sobreposições, isto é, o problema de uma ‘comunidade’ ser referida mais do que uma vez sob nomes diferentes. Terceiro: partindo do princípio de que os técnicos municipais possuem uma delimitação geográfica rigorosa das fronteiras administrativas, poder-se-ia obter dados fiáveis a nível de freguesia e bairro. Esta seria uma primeira aproximação à localização e dimensão da população cigana em território nacional”. Não parece que tenha resultado. E os investigadores que elaboram o estudo nacional constatam que “de alguma forma estas fontes (autarquias) enviesam os resultados, pois tendem a não abranger ciganos que não beneficiem de apoios sociais ou não residam em habitação camarária ou social”. Assim sendo, os números que se apresentam são “uma subestimação em relação ao número de pessoas ciganas residentes no território nacional”. Colocar um ponto final na indefinição quanto ao número de ciganos residentes no concelho de Beja impunha ir aos locais onde residem as famílias ciganas. Foi o que pensaram Anselmo Prudêncio, técnico do núcleo distrital de Beja da EAPN, e Prudêncio Canhoto, mediador cigano na Câmara de Beja e presidente da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC). A Câmara de Beja aceitou colaborar numa experiência que lhe poderia facultar elementos importantes de análise das comunidades residentes na área do município. O PÚBLICO acompanhou a equipa de “recenseadores” no seu roteiro pelas freguesias rurais, que começou na Cabeça Gorda. Numa nesga de terreno junto a um perímetro florestal, foram conferidos os agregados de seis famílias ciganas que ainda habitavam em barracas cobertas de lona e de plástico. “Quantos são vocês aqui?”, perguntou Anselmo Prudêncio. Toy, o porta-voz da comunidade, pediu ajuda para contar os adultos, jovens e crianças que se juntaram em redor do técnico da EAPN, enquanto Prudêncio Canhoto ia apontado num bloco de notas as informações sobre 18 pessoas que viviam no acampamento. Feito o levantamento, seguiram-se as descrições sobre as dificuldades que sentiam. Não tinham acesso a água, que iam buscar a quilómetros de distância. Pediam um “terrenito” para construir umas barracas, próximo de um ponto de água e ainda que lhes dessem acesso aos balneários públicos para tomar banho. Recolhidos os dados sobre esta e outras 23 pessoas que viviam em habitações próprias de alvenaria junto à comunidade não cigana, a equipa dos “censos” rumou à freguesia da Salvada para recolher informação das 14 famílias que formam a comunidade ali residente. Neste caso, as barracas estão a dar lugar a casas de alvenaria construídas pelas famílias ciganas de um modo muito rudimentar, sem projecto, mas com o propósito expresso de melhorar as condições de habitabilidade, sobretudo para as crianças. Um deles pediu a uma vizinha que não faz parte da comunidade cigana se o autorizava a instalar uma pequena horta num terreno ermo, com entulho e lixo. A autorização foi dada e hoje pode observar-se um espaço verdejante com ervas de cheiro, couves, árvores de fruto e flores. “Isto estava uma morraça”, refere orgulhoso Prudêncio Canhoto, que vive na freguesia. “Há uma dúzia de anos éramos apenas 20. Agora somos 16 famílias com 80 pessoas. ”Seguiu-se no roteiro a freguesia de Quintos. Apenas uma única família, a de Jorge Padeiro, com oito membros, vive no local. Atende a matriarca, em simultâneo mãe e avó. Formam o agregado sete pessoas, mas em breve serão oito “com mais uma moça. “Para o ano, se vier aqui, a família está maior”, antevê a mulher de Jorge Padeiro. O mediador cigano conduz o PÚBLICO a um espaço que já foi recreio da escola primária de Quintos que agora está fechada por falta de crianças. Esta família, diz, “cortou as ervas daninhas e no recinto, que já foi o recreio da escola, mesmo em frente da sua residência alugada, colocou o tanque para lavar a roupa”. “O asseio até na estrumeira fica bem”, comenta Prudêncio Canhoto, que não perde a oportunidade para realçar as qualidades da etnia de que faz parte. Em Baleizão foram contadas quatro famílias e 12 pessoas no total. “Falta o ‘Tifa’, que anda na apanha do morango. ” Cortaram a água à família Inocêncio por não ter dinheiro para a pagar, mas a matriarca da família acrescenta que a “casinha” onde vive foi comprada pelo marido, quando era vivo. Recuperaram-na e vivem integrados junto da comunidade não cigana sem que se registem conflitos. Na Vila Azedo uma pequena povoação de onde se avista o casario de Beja, sobretudo a soberba torre do seu castelo, residem os oito elementos da família Soares, que também comprou uma casa arruinada e que hoje “está uma maravilha”. Seguiu-se São Matias e a numerosa família de Rui Manano, que se ramificou por várias comunidades no Baixo Alentejo. Neste caso, são oito pessoas a viver numa casa com água e luz, “um privilégio”, diz orgulhoso. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O percurso pelas comunidades ciganas pelas freguesias rurais terminou na localidade de Trigaches, onde, num terreno com cerca de meio hectare, comprado por João Sanches “quando trabalhava nas pedreiras”, vivem numa casa de alvenaria e quatro barracas cinco famílias e 25 pessoas. Não têm saneamento, nem sequer casa de banho. João Sanches plantou árvores, marmeleiros e oliveiras, na pequena horta, juntamente com ervas de cheiro (coentros, salsa e hortelã). “As ‘barraquitas’ em tijolo fui eu que as fiz”, assinala este homem que já vai a caminho dos 70 anos. No dia seguinte a recolha de dados prosseguiu na cidade de Beja. A informação coligida revelou um aumento exponencial de ciganos no concelho de Beja, onde vivem 24 comunidades (13 nas freguesias rurais e 11 na sede do concelho), e 197 famílias (58 nas freguesias rurais e 139 na sede do concelho). No total, são 1106 pessoas (325 nas freguesias rurais e 781 na sede do concelho). Vítor Picado, vice-presidente da Câmara de Beja, disse ao PÚBLICO que os números “são surpreendentes”. O autarca espera que com os novos elementos recolhidos o Alto Comissariado para as Migrações se debruce sobre a delicada situação social que existe em Beja e que está a dificultar a integração das comunidades ciganas. “O município de Beja não pode por si só dar as respostas, nem tomar as decisões que são necessárias e urgentes” sobretudo a nível da habitação, observa Vítor Picado.
REFERÊNCIAS:
Étnia Cigano
Deputada do PS questiona autarquia de Moura sobre medidas para travar racismo contra ciganos
Idália Serrão quer saber se a autarquia tem desenvolvido políticas de inclusão de todos os cidadãos na comunidade. (...)

Deputada do PS questiona autarquia de Moura sobre medidas para travar racismo contra ciganos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 14 Ciganos Pontuação: 18 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Idália Serrão quer saber se a autarquia tem desenvolvido políticas de inclusão de todos os cidadãos na comunidade.
TEXTO: A deputada do Partido Socialista Idália Serrão questionou nesta quarta-feira a Câmara Municipal de Moura sobre as manifestações racistas e xenófobas de que tem sido alvo a comunidade cigana residente no concelho, em Santo Aleixo da Restauração. Num comunicado enviado à imprensa pelo grupo parlamentar do PS, afirma-se que Idália Serrão quer saber se a autarquia tem conhecimento do que se passa e quais as diligências que tomou para travar a situação. Sublinhando que é importante a câmara de Moura empenhar-se para “pôr cobro a estas manifestações xenófobas e racistas”, a deputada refere-se às “inscrições xenófobas" que nos últimos dias surgiram "nas paredes do edificado" de Santo Aleixo. Já anteriormente, lembra, houve queixas de "insultos a cidadãos de todas as idades, incluindo crianças e idosos, e ainda a destruição pelo fogo de habitações e viaturas e o envenenamento de animais” de famílias de etnia cigana. Idália Serrão, que tem um avô cigano, eleita por Santarém, vice-presidente do grupo parlamentar do PS e secretária da mesa da Assembleia da República, questionou ainda a autarquia sobre as políticas desenvolvidas "para a inclusão de todos os cidadãos na comunidade", e pediu informação detalhada sobre “as parcerias desenvolvidas, as medidas implementadas e os resultados alcançados, nomeadamente quanto ao trabalho desenvolvido com as comunidades ciganas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois de em Setembro ter sido alvo de ataques incendiários, que não pouparam casas, viaturas automóveis e até o edifício da igreja onde as famílias realizavam o seu culto religioso, a comunidade cigana de Santo Aleixo voltou recentemente a ser vítima de ameaças de morte. Uma das manifestações mais visíveis dos últimos dias foram as frases nas paredes de casas e muros da freguesia a exigir a sua expulsão ou a “morte aos ciganos”. São acompanhadas de cruzes e de caixões pintados a negro. Ao PÚBLICO, o presidente da Câmara Municipal de Moura, Santiago Macias, disse que os conflitos que envolvem a comunidade cigana de Santo Aleixo da Restauração revelam, essencialmente, “um problema de segurança pública”. Estes factos levaram a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, que funciona junto do Alto-Comissariado para as Migrações, a apresentar ao Ministério Público uma queixa crime de discriminação racial, previsto no artigo 240. º do Código Penal.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS
Frases nas paredes ameaçam de morte ciganos de Moura
Alto Comissariado para as Migrações apresentou queixa ao Ministério Público. (...)

Frases nas paredes ameaçam de morte ciganos de Moura
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 7 Ciganos Pontuação: 18 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Alto Comissariado para as Migrações apresentou queixa ao Ministério Público.
TEXTO: A comunidade de etnia cigana de Santo Aleixo da Restauração, no concelho de Moura, voltou a ser vítima de ameaças de morte. Em Setembro já tinha sido alvo de ataques incendiários, que não pouparam casas, viaturas automóveis e até o edifício da igreja onde as famílias realizavam o seu culto religioso. Nos últimos dias, e em crescendo, foram surgindo nas paredes de casas e muros da freguesia frases escritas exigindo a expulsão da comunidade ou a “morte aos ciganos”. São acompanhadas de cruzes e de caixões pintados a negro. O alto-comissário para as Migrações, Pedro Calado, disse ao PÚBLICO que tem “acompanhado a situação” e que na segunda-feira esta entidade apresentou queixa-crime ao Ministério Público. Os conflitos com a comunidade cigana de Santo Aleixo da Restauração “atingiram um nível que nos preocupa”, nota. À intranquilidade provocada pela “violência racista que veiculam ódio e ameaças xenófobas”, descreve José Falcão, dirigente da organização SOS Racismo, veio juntar-se o “pânico” gerado na noite de 23 de Fevereiro com “o lançamento de petardos para o interior dos quintais das casas onde vivem as famílias ciganas”. Se a comunidade já vivia sobressaltada, “passou a viver em pânico”, conta ao PÚBLICO Prudêncio Canhoto, presidente da Associação de Mediadores Ciganos. A dimensão que “a afronta” tomou, suscita-lhe um alerta: “ Se não param com as provocações, ainda vamos assistir a uma tragédia. ”Os membros da etnia cigana contam que evitam agora circular pelas ruas, onde estão inscritas as frases a ameaçá-los de morte. “Dá-lhes pânico”, diz o mediador, dando conta que “nem as paredes do cemitério escaparam” às frases ameaçadoras. “É um crime” acentua Prudêncio Canhoto que tem acompanhado o desenrolar dos conflitos desde que começaram, no passado mês de Setembro. Depois de uma certa acalmia que se verificava desde Dezembro, "as famílias ciganas voltaram a ser vítimas de situações que mais lembram a actuação do Ku Klux Klan” um gesto que “pode estar a ser encorajado pela ausência de medidas das instituições, pela inoperância das autoridades policiais, pela impunidade das práticas racistas e xenófobas”, sublinha José Falcão. O conteúdo das frases, comenta ainda, desconforta quem as lê, "tem um impacto fortíssimo”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Manuel Caixinha, porta-voz das famílias ciganas, confirma ao PÚBLICO que nos últimos cinco dias “puseram escritos nas paredes, e na do cemitério também. “Depois mandaram duas bombas para o quintal do meu mano. Estamos todos com medo de mandar os nossos filhos à escola com receio que os levem. ” Não sabe quem lhes quer fazer mal, diz apenas que “há um pouco de racismo nas ofensas” que são feitas. O porta-voz do Comando Territorial de Beja da GNR, capitão Pedro Ribeiro, faz saber que a corporação não recebeu “qualquer denuncia” sobre a existência de “conflitos” em Santo Aleixo da Restauração. “Nada de oficial nos chegou nas últimas semanas”, acrescentou o militar, frisando que a situação “tem estado calma”, depois do pico de conflitos registado em Setembro e Outubro do ano passado. Para o presidente da Câmara de Moura, Santiago Macias, os conflitos que envolvem a comunidade cigana de Santo Aleixo da Restauração revelam, essencialmente, “um problema de segurança pública”.
REFERÊNCIAS: