A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu. (...)

A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu.
TEXTO: Para a argentina Claudia Piñeiro, não apenas como escritora mas também no plano pessoal, este “foi um ano de pensar muitíssimo nas palavras que se usam, como se nomeiam as coisas e que palavras são escolhidas”. E uma causa, em particular, motivou essa reflexão da autora do romance Uma pequena sorte (D. Quixote): o debate sobre o aborto na Argentina, no qual Claudia Piñeiro participou activamente, tomando a palavra em discursos em ambas as câmaras do Congresso. E se, no plano político, a batalha foi perdida com o chumbo do Senado argentino, o debate na sociedade argentina ainda agora começou, já que uma barreira, talvez das mais importantes, foi deitada abaixo: “uma grande mudança, que foi muito importante, tem que ver com o segredo”, explica ao PÚBLICO a escritora, que esteve recentemente em Portugal a lançar o seu livro. Era algo que não se dizia, que não se nomeava. E se agora a palavra é dita sem tabu, no início da discussão ainda se falava com cuidado na “lei da interrupção voluntária da gravidez”. “Na minha família, temos uma tia-avó de 90 anos que nos contou que, há muitos anos, fez um aborto”, confidencia. Agora, já há conversas familiares “onde uma mãe, uma filha, uma tia dizem que fizeram um aborto”. Pode-se conversar sobre isso. No entanto, muitas destas mulheres viveram esta experiência numa profunda solidão. “Guardaram isto dentro de si, sem poder falar com ninguém, com medo de serem rejeitadas por tê-lo feito. Tudo isto foi muito reparador para a sociedade. ”Durante o seu percurso ao longo deste ano de luta, Claudia Piñeiro, 58 anos, leitora ávida e uma “recomendadora” generosa, leu “muitos livros, alguns relacionados com isto [sobre aborto], outros não”. Entre eles, destaca El salvaje, de Guillermo Arriaga, e República Luminosa, de Andrés Barba (editado em Portugal pela Elsinore), mas dedica mais recomendações a escritoras argentinas. Selva Almada, autora de Raparigas Mortas (ed. D. Quixote), que reflecte sobre a violência de género, ou Mariana Enriquez, autora de As Coisas Que Perdemos no Fogo (editora Quetzal), que escreve contos de terror “extraordinários, muito bons”. Não as nomeia porque têm “algum toque feminino” — apesar de “poder haver também terror no feminino, pode haver abismo, pode haver suspense, pode haver policial” —, mas porque essas vozes, afirma, “têm uma potência que lhes vem a partir da literatura”. Fala ainda de Samanta Schweblin, autora de Distância de Segurança ou Pássaros na Boca (editados pela Elsinore) e do seu olhar a partir do fantástico que é também “um mundo feminino”, com “um olhar sobre a não-maternidade”, ou Mariana Dimópulos, com o seu livro sobre uma mulher que não quer ser mãe. “Há mulheres que não querem ser mães, e a sociedade não lhes aceita essa decisão de não-maternidade”, lamenta. Também no seu romance, Uma Pequena Sorte, a protagonista é uma mãe que só mais tarde se pergunta porque é que foi mãe. “Porque também há muitas mulheres que chegam à maternidade sem que se lhes tenha sido perguntado se era o que queriam”, diz, “é um papel imposto pela sociedade”. Mais uma vez, regressamos às ideias que finalmente se podem nomear, como um véu que é retirado. “Era uma vergonha dizer que não queria ser mãe. ”Escritora consagrada — Claudia Piñeiro recebeu o Prémio Clarín Novel de 2005 pelo romance As Viúvas das Quintas-feiras (ed. Quidnovi), com elogios rasgados de José Saramago no júri —, a questão do aborto foi um tema que sempre a inquietou, e não ficou de fora dos livros. Foi também através da literatura que tentou tocar outras pessoas no último ano. “Por exemplo, quando fiz o discurso aos deputados, levei o livro de John Irving [As Regras da Casa da Sidra], porque achei que era mais fácil explicar com a literatura do que com um conceito fechado”. Conta que nunca pertenceu a nenhuma organização feminista. “As circunstâncias foram-me colocando nesse lugar [de protagonismo]”, explica, já que “nem todos queriam falar sobre isto”. Mas a reivindicação dos seus direitos enquanto mulher vem de longe. “Venho de uma geração que tem vindo a lutar por estes espaços há muito tempo. Sou economista, tive o melhor currículo da universidade, medalha de honra. Os homens que entraram comigo não eram melhores. Eram homens que eram bons contabilistas e economistas, mas às mulheres era-lhes exigido serem as melhores”, recorda. A sociedade argentina tem sentido outras mudanças nos últimos anos. Ainda antes de as actrizes norte-americanas tornarem visível a campanha Me Too, desde 2015 que as argentinas têm saído às ruas para gritar “Ni Una Menos”. “Às vezes a violência está enraizada e a aceitamo-la porque pensamos que é normal. É normal que te tratem mal, que te digam certas coisas, que te empurrem contra alguma coisa, que te toquem na rua. ” Mas mais do que o assédio, a reacção à violência de género na Argentina começou devido aos “muitos casos de mortes de mulheres por serem mulheres, que chamamos femicídios”. “Quando um país está a lutar para que não se matem mulheres, o MeToo, que é muito valioso e que é muito importante, deixa de ser tão importante, porque há uma urgência maior. E a realidade é que as mulheres europeias têm urgências muito diferentes das das mulheres da América Latina, de África, do Médio Oriente. ”Para Claudia Piñeiro, a luta feminista — que tem unido mulheres e homens — não se esgota na derrota no Senado. “Todo esse movimento é imparável, e é das jovens. Nós, mulheres mais velhas, acompanhamo-las com tudo o que podemos, mas não temos dúvidas de que será um movimento delas. E não acho que haja volta atrás. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Num ano de trabalho político intenso, Claudia Piñeiro escreveu vários artigos para a imprensa, incluindo para órgãos de informação estrangeiros que lhe pediam um olhar sobre o que se passava na Argentina. Mas, no campo literário, aproveitou para rever e reescrever uma série de contos — algo que lhe exigia menos do que escrever um novo romance —, uma colectânea que foi recentemente lançada na Argentina. “O novo romance já está na minha cabeça, mas ainda não tive tempo e a tranquilidade para iniciá-lo. Preciso de tranquilidade no arranque, algo que não me aconteceu neste último ano”. No novo livro de contos, Quién No (Penguin Random House), um dos textos é sobre um casal que está “a decidir se vai fazer ou não um aborto”. Mas como foi escrito há cerca de oito anos, a palavra não é mencionada uma única vez. “Quando escrevi este conto, essa palavra estava quase proscrita. Se o escrevesse hoje, teria usado a palavra aborto. Porque hoje já há um nome que se pode usar. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto direitos homens filha lei violência campo mulher medo género mulheres feminista vergonha assédio
Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina. (...)

Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.175
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina.
TEXTO: “Gostaram mesmo? A sério?”. Ângela Rosa está incrédula, apesar de ter acabado de ver à sua frente dezenas de pessoas a dançar e a cantar, aos pulos, braços no ar, pernas imparáveis. A estreia da Orquestra Vicentina, na primeira noite do “baile culinário” Dancing, integrado no Festival da Batata Doce de Aljezur?, foi um sucesso. Por volta das sete da noite já muita gente se juntava à porta da sede do Rancho Folclórico do Rogil, tentando abrigar-se da chuva. À hora marcada, a porta abre-se e Madalena Victorino e Giacomo Scalisi, os directores artísticos do espectáculo (e de outros do projecto Lavrar o Mar, que faz parte do programa 365 Algarve), recebem-nos, convidando-nos a passar primeiro pela casa-de-banho para lavarmos as mãos e assim podermos comer os pratos de batata-doce que vão ser servidos (sem talheres) ao longo da noite. Atravessamos um estrado de madeira que, explicará depois Madalena Victorino, é o mesmo que o rancho folclórico usa para os seus ensaios – é sobre ele que iremos dançar. No salão principal, à meia-luz, há várias mesas postas com pratos e copos de diferentes proveniências e jarras improvisadas a partir de velhas garrafas de refrigerantes como a icónica e barriguda garrafa da Laranjina C. Partilhamos uma mesa para quatro com um casal da Arrifana, um pescador e a sua mulher, aos quais Giacomo e Madalena costumavam comprar peixe (o rascaço era o preferido, para a sopa de peixe, confidencia-nos o pescador) quando eles o vendiam no mercado local. O público junta portugueses e um número bastante considerável de estrangeiros que vivem na Costa Vicentina. Serão estes os primeiros a saltar para o estrado e a começar a dançar quando a orquestra se lança a tocar – e serão eles os que, ao fim da noite, pulam de pés descalços sobre as tábuas de madeira. Garantindo que todos entendem o que se vai passar, a actriz Lucília Raimundo, que será a anfitriã do espectáculo, fala em português e inglês para apresentar, ao longo da noite, as três cozinheiras – a indiana Shail Lall, a eritreia Nighist Kahsay e a moçambicana Ana Paula Henriques – que vão explicar os pratos feitos a partir de receitas tradicionais dos seus países mas integrando a famosa batata-doce de Aljezur?. Afinal, a batata-doce é a rainha da festa e o que se vai fazer durante as três horas e meia de espectáculo é, basicamente, comer e dançar. O grande mérito de Madalena e Giacomo (também responsáveis pelo Festival Todos – Caminhada de Culturas, que acontece anualmente em Lisboa no mês de Setembro) é saber reunir pessoas e dar-lhes espaço para que cada uma delas mostre o que sabe fazer melhor. Titi (Nighist Kahsay), a cozinheira da Eritreia, é precisamente alguém que eles conheceram durante o Todos e que convidaram para estar aqui. Outro cúmplice que no final lhes agradecia emocionado era Júnior (André Duarte, co-fundador dos Terrakota), o mentor da Orquestra Vicentina, que, tal como Ângela Rosa, mal parece acreditar que um grupo que conseguiu reunir em poucas semanas e que em apenas um mês e meio se preparou para este espectáculo (o que incluiu fazer arranjos para músicas compostas pelos próprios) estava a ter uma recepção tão entusiástica. Ângela, que vive em Tavira, é, juntamente com a caribenha Arantxa Joseph e com a israelita Daphna Givon, uma das três vocalistas do grupo, que integra ainda Hugo Fontainhas na bateria, Bruno Martins no baixo, António Mandala na percussão, Steve Nóbrega no teclado, Júnior na guitarra, Ricardo Pires nos arranjos e saxofone, Afonso Alves no saxofone e Luís Barbosa no trompete. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os bailarinos (Ana Root, Carolina Carloto, Marta Jardim, Miguel Nogueira, Laura Abel, Raquel Santos e Susana Vilar) serviam às mesas, trazendo as travessas com chamuças de batata-doce, ingera (pão etíope, semelhante a uma panqueca) e guisado de lentilhas e carne e ainda um caril moçambicano feito com amendoim, outro dos produtos de excelência da região de Aljezur?. O vinho era também local e quem quisesse mais do que o copo incluído na refeição podia comprar uma garrafa. Ao todo, o espectáculo Dancing fará quatro apresentações (termina no domingo), sendo as duas primeiras (aquela a que assistimos na quinta-feira e a desta sexta-feira) com a Orquestra Vicentina e as duas últimas (sábado e domingo) com os Fogo Fogo, que trazem os sons de Cabo Verde e prometem fazer justiça à descrição de “a banda mais quente do pedaço”. O programa 365 Algarve, que vai na sua terceira edição, decorre ao longo de oito meses, de Outubro até Maio, preenchendo com programação cultural a época baixa na região. Inclui, entre muitas outras iniciativas, passeios performativos no património, o ciclo Jazz nas Adegas (24 apresentações, com concerto e provas de vinho), visitas históricas encenadas, ou o Vídeo Lucem, uma iniciativa do Cineclube de Faro, que vai também na terceira edição e que desta vez apresenta filmes parcialmente perdidos ou inacabados, em locais especiais como o antigo armazém da Conserveira do Sul, em Olhão, e com músicos a acompanhá-los ao vivo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher rainha carne
Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal. (...)

Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal.
TEXTO: Não há sentidos nem emoções em sossego quando se lê Lucia Berlin. A escritora Lydia Davis disse que a obra dessa mulher de olhos azuis, quase sempre de cigarro na mão, tem a capacidade de fazer o leitor “usar o cérebro” e pô-lo a sentir os “batimentos cardíacos”. Mesmo assim Lucia Berlin nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a viver num parque de caravanas no Colorado. Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza, recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga, excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papel. “Exagero muito e misturo a realidade com a ficção, mas, na verdade, nunca minto”, escreve a narradora de uma das suas histórias, Silêncio, sumário de uma existência que é autobiográfica, faltando apenas saber – e é parte do jogo da ficção – exactamente até que ponto. “Eu tentava esconder-me quando o Avô estava bêbado, porque ele apanhava-me e baloiçava-me. Estava a fazê-lo uma vez, na cadeira de baloiço grande, a agarrar-me com força, com a cadeira a levantar do chão a poucos centímetros do fogão em brasa, com a coisa dele a enfiar-se e a enfiar-se no meu rabo. Ele estava a cantar ‘Ol Tin Pan with a Hole in the Bottom. Alto. A arfar e a grunhir. Ali, a poucos metros, a Mamie estava sentada a ler a Bíblia quando eu gritei ‘Mamie! Ajuda-me!’ O Tio John apareceu, bêbado e empoeirado. Arrancou-me do Avô, levantou o velho pela camisa. Disse que o matava com as próprias mãos da próxima vez. Depois fechou a Bíblia da Mamie com força. ” Pouco antes desta descrição, o leitor fora avisado sobre a premissa da narradora, que se pressente ser também a da escritora: “Não me importo de contar coisas horríveis se conseguir torná-las engraçadas. ”Tudo é acção, tumulto, respiração a todos os ritmos na escrita desta mulher nómada que morreu demasiado longe do lugar onde merecia estar quando se fala de literatura. Publicou seis livros de contos entre a década de 70 e o final dos anos 90 e com isso conseguiu chamar a atenção de Lydia Davis e de Saul Bellow. Davis conheceu-a no inicio dos anos 80, trocou correspondência com ela, tentou convencer editores da costa Leste dos EUA a publicar essa mulher que viveu quase sempre do outro lado, mais perto do Pacífico. Em vão. Só em 2015, onze anos passados da da sua morte, Lucia Berlin conquistou a crítica depois da editora Farrar, Strauss and Giroux reunir os seus contos no volume A Manual For Cleaning Women, considerado um dos livros do ano por jornais de referência nos EUA e em Inglaterra. O livro terá edição portuguesa no dia 4 de Maio com o título Manual para Mulheres de Limpeza (Alfaguara) e é mais um sinal de que Berlin está finalmente a deixar de ser, como lhe chamou ainda no século XX o escritor Paul Metcalf, “um dos segredos mais bem guardados da literatura americana”. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papelForçar a lendaComo apresentar Lucia Berlin? O tom tem sido o de quem conta um facto surpreendente. O desconhecimento aliado ao modo como o livro está a ser recebido têm ajudado a alimentar o mito, e a lenda parece tão mais apetecida quando mais perto da ficção estiver a realidade de Berlin. Ou seja, fazer o contrário do que ela fez na literatura: aproximar do real, não o distorcendo. Tem-se escrito, por exemplo, que morreu na garagem da casa de um dos seus filhos por não ter outro sítio onde morar. No início desta semana, na página de Facebook dedicada a Lucia Berlin, o seu filho David escreveu que a mãe não morreu numa garagem mas no seu apartamento de onde se via o Oceano. “Morreu na cama com um livro, mas não foi, como diz a lenda, o seu livro preferido”, acrescentou. A biografia oficial conta que nasceu em Juneau, a capital do Alasca, com o nome Lucia Brown, filha de um funcionário da indústria mineira. Num dos seu contos, ela alude a uma conversa onde um pai meio senil, em fim de vida, tenta que a filha se lembre desse território inicial. A filha não tem recordação alguma, mas diz-lhe que sim. O lugar onde Lucia nasceu foi só mais uma escala – a única sem memória – na grande itinerância que seria a sua vida. Passou os primeiros anos em cidades ou acampamentos mineiros de Idaho, Kentucky e Montana. Tinha cinco anos quando o pai foi chamado a combater na II Guerra e, com a mãe a a irmã mais nova, mudou-se para El Paso, Texas, onde foi viver para casa do avô, dentista alcoólico, que inspirou o conto que inaugura o livro. Lucia era mais próxima do pai; com a mãe, também dependente de álcool, a relação era turbulenta. A família mudou-se para Santiago do Chile quando a guerra acabou. Aí, Lucia Berlin conheceu outro mundo, aprendeu a falar e a escrever espanhol fluentemente, andava entre eventos sociais, estava entre as elites, um contraste com a vida na América. Nessa altura foi-lhe diagnosticada uma escoliose e seria muitas vezes obrigada a usar um suporte ortopédico de ferro para manter a coluna direita. Inscreveu-se na Universidade do México, em Albuquerque, foi aluna do escritor Ramon Sander, casou e teve dois filhos. O primeiro tinha ela 19 anos, o segundo nasceu já ela estava sozinha. O marido deixara-a durante a gravidez. Pouco depois, terminava o curso, conheceu o poeta Edward Dorn, o escritor Robert Creely e os músicos de jazz Race Newton e Buddy Berlin. Casou com Race Newton, começou a escrever, mudou-se para Nova Iorque, fica próxima dos nomes da Beat. O casamento acabou em 1960. Durou dois anos. Lucia viajou com Buddy Berlin para o México e os dois casam-se. Buddy tinha dinheiro mas Lucy não sabia que ele dependia de drogas. Tiveram dois filhos até se divorciarem em 1968. Aos 32 anos, tinha quatro filhos e três divórcios. Nunca mais casou. Foi viver para a Califórnia, um dos territórios mais presentes nos seus contos, entre Oakland e Berkeley. Deu aulas no liceu e teve muitas das ocupações que fazem parte da identidade das suas personagens, enquanto escrevia e começava a beber. Passou por vários processos de desintoxicação, até ir outra vez para o México em 1991. Viveu um ano a cuidar da irmã, em fase terminal de cancro. A mãe morrera pouco antes. Supostamente, por suicídio. Lucia volta a encontrar Edward Dorn que em 1994 a leva para a Universidade do Colorado ensinar escrita criativa. Em 2000 reforma-se. A escoliose perfurara-lhe um pulmão e tem dificuldade em respirar sem auxílio de oxigénio. Pouco depois, é-lhe diagnosticado um cancro. Em 2001 muoua-se para Los Angeles onde estão os filhos. Morreu em 2004. São os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma vastidão de gente anónimaSão os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparo. A vida de Lucia é a sua grande fonte criativa, não tanto pelo modo como se narra a si mesma, mas pela voz narrativa que inclui a voz de todos os que se cruzaram com ela sem nunca os revelar por completo. Por isso, quando se indaga acerca das referências é preciso pensar numa vastidão de gente anónima a que se juntam alguns nomes reconhecidos. “A sua vida foi rica e cheia de acontecimentos, e o material que retirou dela para os seus contos foi colorido, dramático e muito variado”, escreve Lydia Davis no texto de apresentação do livro. E acrescenta: “Ela viveu em tantos lugares – passou por tanta coisa – que daria para encher várias vidas. Quase todos nós já vivemos parte daquilo por que ela passou: sarilhos em criança, ou abuso sexual na infância, ou um caso amoroso arrebatado, ou problemas de dependência, uma doença difícil ou incapacitante, um inesperado reatar de laços fraternais, um emprego entediante, colegas complicados, um chefe caprichoso, ou um amigo horrível, para não falar do êxtase perante o mundo natural – gado da raça Hereford com castilleja até aos joelhos, um campo de tremoceiros azuis, uma violeta-das-damas cor-de-rosa no beco atrás do hospital. Porque conhecemos uma parte disso, ou algo parecido com isso, é como se estivéssemos lá quando somos conduzidos por ela. ”As grandes pistas sobre quem foi, as escolhas que fez, o que perseguiu na escrita, o modo como lidou com a culpa ou o trauma, estão mais uma vez nos contos. “Imaginemos o conto de Tchékhov Saudade na primeira pessoa. Um velho a dizer-nos que o seu filho acabou de morrer. Sentir-nos-íamos sem jeito, desconfortáveis, até entediados, reagindo precisamente como os passageiros do coche do homem na história. Mas a voz imparcial de Tchékhov confere dignidade ao homem. Absorvemos a compaixão do autor por ele e sentimo-nos profundamente comovidos, se não pela morte do filho, pelo modo como o velho fala com o cavalo. ” O início do conto Ponto de Vista, um dos 77 que compõem o livro, é um manifesto sobre o estilo. Berlin nunca julga. As personagens e as relações que descreve são complexas, o modo como as expõe aparenta uma simplicidade desarmante. Não têm faltado comparações com Raymod Carver, Williams Carlos Williams, autoras menos mediáticas como Grace Paley ou Lorrie Moore. Ela falava sempre de Tchéhov. Num texto publicado na Paris Review com o título Fumando com Lucia Berlin, a escritora Elizabeth Geoghegan contava um encontro com Berlin, já com a escritora doente, sempre com uma botija de oxigénio a ajudar na respiração. As duas falaram à mesa da cozinha, um dos lugares preferidos de Lucia Berlin. Lê-la é ficarmos perdidos na sua voz. As suas histórias fazem-nos sentir como se estivéssemos coscuvilhar à mesa da sua cozinha. ” E naquela cozinha cabe a essência de um país por uma perspectiva invulgar, dos desesperados. Voltemos a Lydia Davis: “O leque das suas referências é tão vasto, e até tão exótico, que as telefonistas se encostam aos seus painéis como ordenhadoras se encostam às suas vacas; ou uma amiga vem à porta, com ‘o cabelo preto penteado para cima, em rolos metálicos, como um adorno de kabuki”. Há comédia na tragédia de Lucia Berlin e Lydia Davis sublinha isso com uma espécie de ressalva que não escreve mas deixa implícita. Não há em Berlin traço de ironia amarga. É outra coisa. Davis diz isso assim: “Como na vida, pode haver comédia no meio da tragédia. A irmã mais nova, a morrer de cancro, chora: 'Nunca mais voltarei a ver burros!', e ambas as irmãs acabam a rir sem parar, mas a exclamação pungente permanece connosco. A morte tornou-se tão imediata – acabam-se os burros, acaba-se tanta coisa. ”
REFERÊNCIAS:
Já viu um fanático com sentido de humor?
Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor. (...)

Já viu um fanático com sentido de humor?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor.
TEXTO: O fanatismo, escreve Amos Oz, “é a essência perene da natureza humana, o ‘gene mau’. ” Atribuí-lo a uma civilização, a um povo, a uma religião é contribuir para propagar o gene e criar políticas de ódio identitário. Num momento em que se assiste ao exacerbar do fanatismo, o escritor israelita, várias vezes mencionado como um candidato ao Nobel, reflecte sobre fé, fanatismo e os desafios de viver em conjunto no século XXI num volume que reúne três ensaios breves e incisivos. Publicado em 2017 em Israel, Caros Fanáticos traz três reflexões. De 2002, 2014 e de 2015. Oz reviu e actualizou cada uma e o resultado é um acutilante olhar para o presente do mundo, com um foco nas questões judaicas e do Estado de Israel de que tem sido um crítico atento. Uma conversa com um homem de voz calma que começou por falar de Maio deste ano, um mês que não consta deste livro e que alterou equilíbrios políticos. Foi quando os EUA mudaram a sua embaixada para Jerusalém. É de Amos Oz a primeira frase desta conversa: “O problema não é se Jerusalém é ou não a capital da Israel. O problema é como é que a outra metade de Jerusalém pode ser a capital da Palestina no futuro. ”Escreve que o fanatismo é velho como a humanidade. Que fanatismo é o deste tempo?Em Israel, como em muitos, muitos outros países, o fundamentalismo e o fanatismo estão em ascensão. As pessoas estão a tornar-se mais nacionalistas, mais chauvinistas, mais egoístas e de visão estreita, e a destilar mais ódio em relação aos estranhos, os estrangeiros. Isto está a acontecer na Europa Ocidental, na Europa do leste, Estados Unidos, na Rússia, em Israel e em muitos outros países do Médio Oriente. Preocupa-me, porque acho que se nos afastarmos dos princípios fundamentais do humanismo estabelecidos depois da II Guerra Mundial, estaremos muito depressa a viver um inferno. Os problemas estão a tornar-se mais complicados e muitas pessoas procuram respostas muito simples; procuram respostas de uma frase, capazes de pôr tudo na ordem; frases que nos digam quem são os maus, quem são os inimigos, quem são os perigosos. Acham que se souberem isso o paraíso pode vir. É também por isso que fala de uma infantilização da sociedade?Sim, a infantilização tem que ver com o facto de muitos milhões de pessoas acreditarem que a vida deve ser um entretenimento e que a política é um jogo divertido e a essência da vida passa por fazer compras. Arrisca um antídoto: a necessidade de ser curioso e de ter imaginação. Porquê as duas características juntas?É preciso qualquer coisa no mundo que nos faça imaginar o outro e é só jogar esse pequeno jogo em que nos pomos esta pergunta: vamos supor que eu sou ele, ou ela ou eles. O que sentem? O que querem? De que têm medo? É um trabalho que parte da imaginação e da curiosidade. A curiosidade é o alimento da imaginação e a imaginação o alimento da curiosidade. As duas surgem quase sempre juntas. Acredito que se um ser humano for curioso, imaginativo e tiver algum sentido de humor, talvez seja imune ao fanatismo; talvez consiga desenvolver os antídotos contra o fanatismo. A literatura vive desses ingredientes. . . É absolutamente verdade. Tenho feito isso toda a minha vida. Levanto-me todas as manhãs muito cedo, faço uma caminhada de meia hora, chego a casa antes de o dia nascer, tomo uma chávena de café, sento-me à secretária e começo a perguntar-me: “E se eu fosse ele?” “E se eu fosse ela?” E essas perguntas tornaram-me imune ao tal fanatismo, porque o fanático não é curioso. Ele tem todas as respostas. Acredita que a literatura pode ajudar a combater extremismos?Pode ajudar a repelir o fanatismo. Se pudermos injectar, como se fosse uma vacina contra o fanatismo, umas gotas que estimulassem a curiosidade, a imaginação e o sentido de humor, talvez o inventor dessa vacina merecesse o Nobel de Medicina. Não é possível um fanático ter sentido de humor. . . Já viu um fanático com sentido de humor? Não conheço nenhum fanático com sentido de humor, nem nenhuma pessoa com sentido de humor capaz de se tornar fanática, a não ser que perca o sentido de humor. O humor é sinónimo de relativismo; o humor é a capacidade de ver o mesmo acontecimento a partir de mais do que uma perspectiva, e é ao mesmo tempo a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de nos vermos como outros nos podem ver. O fanático é alguém fechado sobre si mesmo, moralista, dono da verdade, cheio de pontos de exclamação, fechado sem janelas nem portas. Distingue entre sentido de humor e sarcasmo, tantas vezes confundidos. Qual a diferença essencial?O sarcasmo não pretende fazer-nos rir, pretende fazer com que desprezemos alguém. Muitas vezes tem a lógica paradoxal do sentido de humor, mas o objectivo é diferente. O sentido de humor abre mais janelas para a mesma paisagem. O sarcasmo quer semear ódio ou ressentimento em relação a alguém. É verdade que muitas vezes na literatura o escritor não pretende fazer todas as personagens meigas, ou doces. Muitas são sarcásticas, outras são tacanhas, outras são fanáticas. Num trabalho literário, o principal não é dar uma gradação moral às diferentes personagens. O principal é imaginarmo-nos na pele de cada uma delas. Autoria: Amos Oz (Trad. Lúcia Liba Mucznik) Dom Quixote Ler excertoRefere o seu livro Uma Pantera na Cave (Asa, 1998) como a sua experiência de infância na descoberta do outro, da diferença. Até que ponto a escrita o ajudou a entender a sua identidade?Muito e posso acrescentar Uma História de Amor e de Trevas (Asa, 2007) que significou convocar os meus mortos – os meus pais, os meus avós e toda a família – e convidá-los para casa, apresentá-los à minha mulher, aos meus filhos e netos que não conheceram e depois sentarmo-nos, bebermos café juntos e falar de coisas que nunca discutimos quando eles estavam vivos; coisas que eram censuradas ou reprimidas, quando eu era criança. Depois da conversa mandei os mortos embora, não os quero a viver na minha casa, mas de tempos a tempos são bem-vindos para uma conversa e uma chávena de café. Que coisas eram?Questões simples. Porque vieram para este país, o que esperavam encontrar aqui, o que encontraram, o que os desiludiu; o que queriam de mim quando puseram esperanças sobre mim; de que tinham medo; o que deixaram para trás no seu antigo país. Falemos de dor. Considera-a o sentimento humano mais universal. Enquanto escritor tem explorado o tema. O que se pode transmitir ao falar de dor?Sim, a dor é a experiência mais universal de todas. A dor unifica todos os seres humanos. Ricos, pobres, negros, brancos, homens, mulheres. Seculares e religiosos. Todos somos sensíveis à dor. E os animais também, e talvez as plantas, não sabemos. É a experiência mais universal da vida na Terra. Acho que as fundações da moralidade universal – e não de uma moralidade relativa – podem apoiar-se na ideia de que a dor é universal. Toda a gente sabe o que é a dor e por isso toda a gente sabe que quando está a infligir dor está a fazer qualquer coisa de mau. Quando uma pessoa grita de dor, a outra sabe o que isso quer dizer, ainda que as duas não falem a mesma língua. Lembra um episódio de A Vida de Bryan, dos Monty Python, parábola acerca do seguidismo ou da individualidade. “Brian exorta o público: ‘Todos vocês são indivíduos!’ A multidão responde num grito único, atroador: ‘Sim! Todos somos indivíduos!’ ‘Todos vocês são diferentes!’ ‘Sim! Somos todos diferentes!’ Só um tipo pequeno no meio daquela multidão geme numa voz fina: ‘Eu não!’” Essa cena pareceu-me a adequada para descrever a falsidade da sociedade actual – pelo menos a maioria dos países ocidentais; uma sociedade que pretende ser completamente individualista e pluralista, mas que no fundo é uma das sociedades mais conformistas na história da humanidade. Muitas vezes tentar não ser especial é ser especial. Quando alguém diz que não é diferente dos outros, esse alguém é o individualista. Muitas vezes o não conformismo é uma forma muito comum de conformismo. E alerta para uma palavra: auto-sacrifício. É um sinal de fanatismo, porque demonstra desinteresse pela vida e não é um sacrifício privado. É cem por cento público. É muito fácil ao fanático sacrificar a sua vida, morrer pela causa. Seja a religião, a revolução, o Messias, a redenção. . . Ele está disposto a morrer e, por estar tão disponível para morrer, também mata facilmente, a vida não significa grande coisa para ele. E mata muitas vezes pelo que chama o “nosso próprio bem”. No segundo ensaio parte de um livro que escreveu em 2014 com a sua filha, Fania Oz-Salzberger, Judeus e Palavras, para reflectir sobre o que significa ser judeu. A ideia do livro é olhar o judaísmo não apenas como religião, nacionalidade, mas sobretudo, e antes de mais, como civilização. Uma civilização que põe no centro textos, livros, debate, discussão, interpretações, diversidade, discordância. Esta é uma tradição que está com o povo judeu há mais de três mil anos. E continua. Os judeus continuam a ser gente muito argumentativa e que não obedece facilmente sem considerar a razão que está por detrás. Como se define enquanto judeu?Ser judeu é, antes de tudo, a língua. A língua hebraica e tudo o que se lhe refere, o que significa centenas de milhares de livros, antigos e novos. Significa um sentido de humor específico, um sentido crítico e uma tradição de dúvida e argumentação, e mesmo de desafio às opiniões prevalentes. Não vou à sinagoga, não sou ortodoxo; o lado religioso do judaísmo interessa-me muito, mas não o pratico. Estudo, mas não pratico a religião. Para mim ser judeu é lidar com a esfera da língua hebraica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O seu modo de ser judeu está em perigo?Claro, porque nada na história é garantido e cada ideia, cada atitude, cada abordagem é frequentemente desafiada e substituída por uma ideia diferente. Sei que as minhas ideias não são feitas de aço ou de granito. São as minhas ideias e as minhas perspectivas acerca do judaísmo e há muitos, muitos judeus que discordam de mim. A minha ideia de judaísmo não está garantida, mas luto por ela. Estes ensaios mostram um homem pessimista acerca do futuro. Não sou de todo pessimista. Sou um optimista sem calendário para o meu optimismo. Não posso dizer-lhe o que vai ser posto em prática nos próximos seis meses ou um ano, mas posso dizer-lhe que a grande maioria das pessoas no Médio Oriente perceberam que Israel está aqui para ficar. E muitos judeus israelitas percebem agora que os palestinos estão aqui e também não vão a lado nenhum. As conclusões podem levar tempo, a aplicação de medidas pode demorar. Não sei. Mas acho que a maioria de ambos os lados sabe dessa realidade agora, e isso é um bom indicador. Escreve: “Eu amo Israel mesmo quando não o suporto. ” Que amor é esse?Não gosto sempre de Israel, porque tem um lado agressivo, extremista e presunçoso. Isso desagrada-me imensamente, mas continuo a achar que se o meu destino for cair no meio da rua, será melhor que seja numa rua de uma vila ou cidade de Israel do que em Paris, Nova Iorque, Londres ou Roma. As pessoas irão ajudar-me a levantar-me. Quando eu estiver de pé, tentarão levar-me ao chão outra vez, mas há alguma coisa no pulsar deste país e desta civilização que está muito perto do meu coração, mesmo quando politicamente estou zangado, amargo e só.
REFERÊNCIAS:
No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido. (...)

No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido.
TEXTO: Esta é a segunda de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios. A estação do Pocinho, concelho de Vila Nova de Foz Côa, recebe os passageiros com o mercúrio a passar dos 35 graus e o ruído da automotora alugada a Espanha a inundar o cais de desembarque. A viagem de regional entre Porto e Pocinho faz-se em cerca de três horas e 20 minutos. Ou em três e 40, dependendo do comboio que se apanha. Ou um pouco mais, conforme a pontualidade. Os primeiros quilómetros da Linha do Douro oferecem como paisagem a periferia urbana do Porto e são mais pacatos. Pelo menos no dia e hora em que o PÚBLICO fez a viagem, ao início da tarde do feriado do meio de Agosto. E, dizem-nos os passageiros mais ou menos habituais, costuma ser assim. Em paragens como Régua e Pinhão o cenário altera-se, tanto no interior como no exterior da automotora a diesel. A partir de determinado ponto, os carris acompanham o rio, com o serpenteado de vinhas escalado em socalcos à vista, o que explica a grande procura turística pelo percurso. À chegada à Régua, a primeira multidão. A maioria dos passageiros que tinha entrado na estação de Campanhã já se tinha dispersado pelas paragens anteriores e os que agora entram são maioritariamente turistas, que se vão amontoando na plataforma e enchem de seguida a composição. Mais à frente, já no cais do Pocinho, avisam-nos que o percurso de volta “é mais complicado”, principalmente depois do Pinhão. Os operadores fluviais do Douro vendem muitas vezes pacotes em que a viagem se faz num sentido de barco e no outro de comboio. Acompanhando a tendência nacional, a procura turística tem subido na região classificada como património mundial pela UNESCO em 2001, o que aumenta a utilização daquela linha ferroviária. Se, por um lado, isso faz com que haja mais passageiros a ajudar à viabilidade financeira da linha, também levanta problemas, como a sobrelotação de alguns comboios. Lurdes Moura acompanha grupos de turistas rio acima e rio abaixo. Neste dia, o grupo de cerca de 20 pessoas navegou o troço entre Peso da Régua e Barca de Alva, já na fronteira com Espanha. Como a ferrovia entre Barca de Alva e o Pocinho foi encerrada há perto de três décadas, essa ligação faz-se de autocarro. A parte restante no regresso costuma ser feita de comboio, conta a guia. Mas há dias em que não há essa hipótese. “Tem acontecido chegarmos ao Pocinho e o comboio — com capacidade para cerca de 200 pessoas — já estar cheio”, relata. O comboio que apanhamos de regresso ao Porto sai às 17h21. O último regional, que sai às 19h07 do Pocinho, é “mais crítico”, informa-nos Lurdes Moura, que anda nestas lides há 14 anos. Ao passar pelo Pinhão, a automotora enche-se, até ao ponto em que se torna espinhosa a tarefa de entrar, mesmo que apenas para viajar de pé. Saído da cabine, o revisor olha para a multidão e chega à conclusão que ali não vai conseguir circular. “Já não passas. Esquece”, diz-lhe a guia, que já o conhece por conta das inúmeras viagens na linha. Depois confidencia-nos: “Estes homens sofrem aqui que nem uns desgraçados. ”“É boa a viagem. Demorada, mas faz-se”, começa por dizer Maria Ludovina Afonso, que viaja com o marido, de nome José Luís e com o mesmo apelido. São de Mêda, no distrito da Guarda, e deslocam-se de dois em dois meses ao Porto para visitar filho e netos. Estão de regresso a casa com o aglomerado de malas e o pequeno cão Max. As principais queixas são sobre a casa de banho: “Têm pouca água. Pôr mais papel não encareceria, penso eu. ” Ela com 71 anos, ele com 74, também lamentam que a ligação aos autocarros no Pocinho não seja a melhor. Dizem que “durante o ano é calmo” e que é no Verão “que há mais turistas”. Todavia, há cerca de um ano, no sentido Pocinho-Porto, “nem à casa de banho se conseguia ir”, recorda Maria Ludovina. Mas não é preciso recuar um ano para encontrar episódios do género. O presidente da Comissão de Utentes da Linha do Douro, António Pereira, repete ao telefone com o PÚBLICO as críticas aos lavabos das carruagens, que diz estarem “constantemente avariadas”. Mas não se fica aí: “Muitas vezes o ar condicionado não funciona, por vezes ou está muito quente ou muito frio. É uma miséria. ” Menciona também as situações de sobrelotação em que, “muitas vezes, as pessoas vão de pé, sem condições nenhumas para viajar”. Estes comboios “alugados a Espanha são péssimo material”, resume. E o problema está identificado, tanto pela CP como pelos utentes: falta de material circulante. É essa a mesma conclusão da guia Lurdes Moura, que diz que a CP “precisava era de comboios novos e com capacidade”. Lembra as antigas máquinas portuguesas que ali circulavam, que permitiam “ao menos abrir a janela quando estava calor”. E prossegue: “Estes são uma vergonha. As casas de banho são uma vergonha e tem dias em que o ar condicionado não funciona”, sem que haja possibilidade de correr as vidraças. Refere-se à falta de material da CP como a base da maioria dos problemas na Linha do Douro. “Trabalho aqui há 24 anos e ouço isso [há cerca de metade]”, confirma o revisor. Lurdes Moura lembra que, se a assiduidade do serviço se manteve, a verdade é que há cada vez mais turistas. E para isso “ninguém está preparado”. A “frequência está óptima, mas devia ter mais composições”, aponta. Se no dia 15 de Agosto todos os compartimentos da composição tinham ar condicionado, “nem sempre é assim”, explica. No mesmo sentido, António Pereira refere que, “mais material a CP tivesse, muito mais procura teria”. O presidente da CP, Carlos Nogueira, avançou já esta semana que a empresa estatal poderá gastar até 3, 5 milhões de euros com o aluguer de mais seis a dez comboios à congénere espanhola Renfe. Este negócio viria acrescer aos sete milhões anuais que a CP já paga por 20 composições. Numa visita às oficinas de Campolide, o responsável referiu ainda que a CP “vai entrar na fila” das encomendas a fabricantes, operação que trará para Portugal comboios novos “daqui a três ou mais anos”. Até lá, “importa reforçar o aluguer”, que terá de ser feito a Espanha, uma vez que tem máquinas a diesel e de bitola ibérica. É perceptível o esforço do motor da automotora ao escalar os planos mais inclinados, que se traduz no aumento do ruído pontuado por um ranger cadenciado. Na linha do Douro, a velocidade oscila entre os 80 e os dez quilómetros por hora, explica-nos Rui Resende, maquinista da CP há 24 anos. Os dez quilómetros horários justificam-se nas zonas da linha onde há “pequenas derrocadas” de pedras. Se reconhece que há problemas no serviço, sublinha também “que não é tão mau como dizem” e que, em matérias de alteração de horários da CP, o Douro manteve a escala. “No Minho, sim, as pessoas ficaram mal servidas, como é o meu caso, que moro lá”, exemplifica. Nota que o volume de passageiros “tem aumentado de há uns anos para cá”. Entre 2014 e 2017, a Linha do Douro passou de 737 mil passageiros para 915 mil. A ferroviária do Estado tem procurado dar alguma resposta ao aumento, com a introdução de comboios especiais, mas já reconheceu as limitações. Em Agosto 2016, três empresas de transporte fluvial decidiram trocar o comboio pelo transporte rodoviário, como protesto perante o “mau serviço” da CP, referindo que os clientes tinham de viajar de pé, em carruagens cheias e com climatização deficiente. Meses depois, já no início de 2017, as mesmas empresas — a Barcadouro, a Rota do Douro e a Tomaz do Douro — assinaram um protocolo com a CP para a criação de um serviço exclusivo para transporte de turistas entre Porto e Régua que circula entre os meses de Maio e Outubro. A assessora da administração da Douro Acima, Elisabete Loureiro, refere que a oferta da CP antes da criação dos comboios especiais “não dava minimamente para as necessidades, mesmo em situações em que a afluência de turistas não era significativa. Depois, “os horários normais ficaram mais aliviados para responder ao público em geral e a uma ou outra empresa que não tenha necessidade de tantos lugares, como é o caso da Douro Acima”. A operadora que representa, explica, trabalha com barcos rabelos, pelo que transporta um menor número de pessoas em cada viagem. Entende que, neste momento, o serviço da CP “está a dar para aquilo de que há necessidade”. Para fazer o trajecto entre Porto São Bento e Régua, mas também mais direccionado para o turismo, a CP tem igualmente o comboio MiraDouro, que circula anualmente entre 13 de Julho e 30 de Setembro, com carruagens fabricadas na década de 1940. O comboio histórico do Douro percorre a distância entre as estações de Régua e Tua, mas só aos fins-de-semana. Os problemas na Linha do Douro não se resumem à grande afluência turística. A novela da electrificação do troço entre Caíde (concelho de Lousada) e Marco de Canaveses, que começou em 2015, teve recentemente mais um episódio, com a empreitada a ser lançada novamente. A Infra-estruturas de Portugal prevê que, por isso, esta parte de 16 quilómetros da linha seja encerrada nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro, quando a procura é menor, com o transbordo a ser feito de autocarro. “É uma forma de minimizar o tempo de espera [em Caíde]”, considera António Pereira, mostrando-se compreensivo em relação às obras. A linha está electrificada do Porto até Caíde, mas não daí para a frente. Isso significa que, para apanhar a ligação com os comboios urbanos em Caíde, quem vem de Marco de regional, segundo as tabelas da CP, pode ter de esperar entre cinco a 20 minutos. “Os utentes preferiram essa solução a outra, que fosse mais penalizante para eles. ” O presidente da associação de utentes diz que, por isso, as pessoas de Marco de Canaveses vão de carro até Caíde, Penafiel e Paredes apanhar os comboios para o Porto. “Quando chegar a electrificação ao Marco, esse problema acaba”, acrescenta. E o facto de chegar ao Marco é mais um passo para que possa ir até Peso da Régua, refere o presidente desta câmara municipal, José Manuel Gonçalves. A expectativa é nesse sentido, mas as declarações ao PÚBLICO revelam um plano mais ambicioso de fazer a ligação a Espanha. “Era fundamental para o Douro e para o país”, classifica. O autarca social-democrata entende que, no horizonte de financiamento comunitário de 2030, a ligação ao país vizinho “é daqueles investimentos que devem ser considerados prioritários para o país”, “a nível turístico, mas também de transporte de mercadorias”. Dos munícipes chegam-lhe as queixas sobre o actual estado do serviço. Mas sublinha que “a sobrelotação é a prova de que a linha é procurada e tem mercado”. Diz ter tido a informação de que também haveria redução da oferta com a alteração dos horários de Agosto da CP, mas esta acabou por se manter, depois de um protesto de autarcas da região. “Era contraditório estarmos a criar condições para as pessoas virem cá e, por outro lado, estarmos a delapidar o meio de transporte com peso significativo no fluxo turístico que nos liga ao Porto”, faz notar. Quando tomou conhecimento de eventual alteração de horários, a Junta de Freguesia do Pinhão, no concelho de Alijó, emitiu um comunicado em que dava conta a redução de 40% da oferta entre o Peso da Régua e o Pocinho. Contactada pela agência Lusa em Julho, a CP respondia que estavam a ser feitas actualizações à base de dados e que o que se verificou tinha sido “um erro de pesquisa”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao PÚBLICO a presidente da junta de Pinhão, Sandra Moutinho, diz que os comboios “estão a andar normalmente”. Ressalva, no entanto, que estão a ser vendidos demasiados bilhetes para a capacidade das carruagens e que a ligação ao alfa pendular que segue para sul em Porto Campanhã faz-se com uma margem de cinco minutos — o que pode não ser suficiente, conforme os atrasos. Voltando ao comboio que faz a viagem entre Campanhã e Pocinho, encontramos Maria Sousa e Bernardina Ferreira, de 77 e 73 anos respectivamente, que entraram na automotora em Paredes. Não é um ritual com um calendário rígido, mas fazem-no duas ou três vezes por ano: chegando ao fim da linha, lancham na cafetaria da estação e, ao fim dos 44 minutos, as duas mulheres voltam com a mesma máquina, que faz o caminho inverso. Falam sobre outros destinos que costumavam visitar, também para aqueles lados, onde o comboio já não chega. Até ao final dos anos 1980, a linha ia até Barca de Alva, já perto da raia luso-espanhola. “Foi uma pena” terem acabado com a ligação, afirmam. Maria Ludovina Afonso também recorda a extinção do percurso. Já lá vão perto de três décadas. “Cada vez há menos gente cá para cima, é o deserto do interior”, lamenta.
REFERÊNCIAS:
Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas. (...)

Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181229194123/https://www.publico.pt/1850125
SUMÁRIO: Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas.
TEXTO: Mais de 200 valas comuns com 6000 a 12 mil corpos foram encontradas em áreas controladas pelo Daesh no Iraque entre 2014 e 2017, avança um relatório da ONU, publicado esta terça-feira. A missão das Nações Unidas de assistência ao Iraque (UNAMI) e o gabinete dos direitos Humanos da ONU apontam para a existência de 202 valas comuns nas províncias de Nínive (95), Kirkuk (37) e Salaheddine (36), – no Norte do Iraque -, bem como em al-Anbar (24), - no Oeste do país -, admitindo que “podem existir muitas mais”. “Embora seja difícil determinar o número total de cadáveres nas valas, o menor local, no Oeste de Mossul, tinha oito corpos. O maior fica em Khasfa, no sul de Mossul, e pode conter milhares”, diz o comunicado à imprensa do relatório. Entre as vítimas estão mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiências, autoridades iraquianas e estrangeiros. O relatório avança que até à data apenas 28 valas comuns foram investigadas - quatro em Diyala, uma em Nínive e 23 em Salaheddine -, e 1258 corpos foram exumados. Entre Junho de 2014 e Dezembro de 2017, o Estado Islâmico levou a cabo o seu “reino de terror” nos territórios iraquianos, onde perseguiram e assassinaram membros de minorias étnicas e religiosas, como a comunidade curda yazidi, “actos que podem constituir crimes de guerra, crimes contra a humanidade e um possível genocídio”, disse a ONU. Depois de nove meses de uma sangrenta ofensiva militar das autoridades iraquianas, com o apoio dos EUA, Mossul, considerada a capital do “califado” - o Estado islâmico, governado por um sucessor e guardião dos ensinamentos do profeta, o califa -, foi libertada, em 2017. Contudo, a presença do Estado Islâmico ainda é visível em Nínive, Salaheddine e al-Anbar, pelo que “talvez não será possível investigar alguns locais”, diz o relatório. “As valas comuns documentadas no nosso relatório são testemunho da terrível perda humana, profundo sofrimento, e crueldade chocante. Determinar as circunstâncias da perda significativa de vida humana será um passo importante no processo de luto para as famílias e no seu percurso para assegurar os seus direitos à verdade e justiça”, disse o relator especial da ONU no Iraque, Ján Kubiš. O documento alerta para o facto de que podem haver engenhos explosivos escondidos nas valas, e que o local do crime está sujeito a mudanças pela passagem do tempo, quer devido às condições atmosféricas, quer por interferência de animais ou pessoas. Nesse sentido, sublinha que o material forense nos locais será “central para assegurar investigações credíveis, acusações e condenações conforme as normas de devido processo internacionais” e pede que a integridade das valas comuns seja respeitada durante as exumações, de modo a garantir “o direito à verdade, justiça e indemnizações às famílias dos mortos e desaparecidos, e para as comunidades afectadas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo a ONU, o processo de denúncia de um desaparecimento “sobrecarga o processo de luto”, já que envolve mais de cinco entidades estatais e vários formulários, entre outros procedimentos. É “demoroso e frustrante para as famílias”, traumatizadas pela perda. “Os crimes horríveis do Daesh no Iraque já não fazem manchetes de jornal, mas o trauma das famílias das vítimas persiste, já que milhares de mulheres, homens e crianças continuam desaparecidos. As suas famílias têm o direito de saber o que aconteceu aos seus familiares”, afirmou a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. O relatório, que visa “apoiar o Governo do Iraque na escavação e protecção” das valas comuns encontradas, recomenda o apoio de especialistas nas escavações, bem como uma abordagem centrada no direito das vítimas de saberem a verdade, obterem justiça e serem indemnizadas. A ONU apela também para que comunidade internacional forneça “recursos e apoio técnico” à exumação e identificação dos corpos.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá. (...)

O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá.
TEXTO: Há cinco anos, o último lugar onde Lourens Boot imaginaria estar era Monsanto, mais precisamente no I-Danha Food Lab. A empresa a que preside, a Sponsh, acabou de vencer o concurso de startups do evento que distingue as melhores tecnologias associadas à agricultura sustentável. A vitória surpreendeu o alemão de 43 anos que não consegue conter um enorme sorriso no rosto. “É fantástico, não estávamos à espera de ganhar”, revela ao P3, quando finalmente conseguiu ter uns minutos livres. É que desde que foi anunciado o veredicto do júri toda a gente o quer congratular. Engenheiro de formação, trabalhou na indústria petrolífera de 2004 a 2014. Na Schlumberger e na Shell coordenou operações de extracção de petróleo na China, Estados Unidos e em África. Era bem pago e tinha uma vida estável. Há quatro anos, com a mulher e o filho de um ano, fez uma longa viagem de autocaravana pela costa portuguesa e espanhola. Foi aí que percebeu que precisava de mudar de vida. Demitiu-se do emprego — o que deixou o pai deveras aborrecido — e ficou sem saber o que iria fazer a seguir. Acabou por coordenar um dos maiores projectos de limpeza do oceano Pacífico e depois foi viver para a Ericeira, por onde tinha passado na viagem. Aí, reparando na elevada humidade do local, decidiu investigar estratégias de aproveitamento de água e encontrou um trabalho de Catarina Esteves, em que a professora portuguesa da Universidade de Eindhoven projectava um novo material para absorver água do ar. Entrou em contacto com a investigadora e juntos decidiram passar da teoria para a prática. Foi assim que criaram, no início de 2018, a Sponsh, uma camada têxtil que, quando colocada ao redor das árvores, funciona como uma espécie de esponja. “É um esquema de polímeros feito com material reciclado”, explica o alemão, para quem o produto pode ser fundamental para evitar o abate de árvores e assegurar que a água chega a locais atingidos pela seca. À equipa, juntaram-se entretanto Ela Zohrevandi e Doris Kraljic, uma iraniana de 28 anos e uma croata de 23, que não se conheciam até então, mas que aterraram em Portugal por razões semelhantes. A primeira veio realizar um estágio de curta duração e a segunda chegou para fazer Erasmus. Ambas decidiram ficar a viver em Portugal e acompanharam Lourens no I-Danha Food Lab. "O prémio não era possível sem elas", confessa o chefe, provocando gargalhadas envergonhadas do outro lado. Com o primeiro lugar no concurso, que contou com a participação de outras nove startups, chegam dez mil euros. “Vamos usar o dinheiro para produzir o primeiro protótipo e iniciar os testes com agricultores. ”Mais atrás está João Noéme, de 40 anos. A sua empresa, a TerraPro, ficou em segundo lugar e recebeu cinco mil euros. “Fazemos a ponte entre a tecnologia e o produtor, simplificando o processo”, explica-nos o CEO da startup que se dedica a instalar sensores nas áreas agrícolas para recolher um vasto conjunto de informações. Estes dados são depois transformados em relatórios práticos sobre a quantidade exacta de água que a terra necessita. Estas foram apenas duas das startups que fizeram parte do programa que de 9 a 11 de Novembro tornou Idanha-a-Nova na capital da agricultura sustentável. E graças a isso a aldeia histórica de Monsanto, anunciada como a “mais portuguesa de Portugal”, viu no último fim-de-semana as suas ruelas de pedra milenar repletas de empreendedores, investidores e investigadores da área. Quase todos os 237 participantes do evento vieram de Lisboa, de comboio, na viagem que assinalava o início da maratona sustentável. Nas duas carruagens reservadas pela organização, o networking — que é como quem diz as conversas de negócio — era audível. O presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, percorreu os lugares a proclamar o orgulho por o concelho ter recebido, na véspera, uma menção honrosa nos City Nation Place Awards, em que competia ao lado de cidades como Barcelona e Eindhoven. “Queremos fazer de Idanha um Silicon Valley do campo”, garantiu. O município é duas vezes maior do que Madrid em extensão, mas tem tanta população quanto o número de visitantes diário do Museu Rainha Sofia — cerca de oito mil pessoas. Para contrariar a tendência de despovoamento que assola o interior do país, Idanha quer afirmar-se como a capital da agricultura biológica. Para isso, por exemplo, todas as cantinas das escolas e instituições particulares de segurança social vão passar a ter produtos biológicos e locais. Também neste sentido, nasceu, há três anos, o I-Danha Food Lab, como forma de captar investimento. “Queremos chamar gente jovem e contrariar a ideia absurda que estes territórios da ruralidade não são inovadores”, revela o autarca. A tarefa — hercúlea, diga-se — foi incumbida à Building Global Innovations (BGI), uma aceleradora de empresas resultante de uma parceria entre o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Três anos depois e com mais de 240 empreendedores envolvidos, Gonçalo Amorim, o director executivo da BGI, diz que “apesar dos receios iniciais, tudo valeu a pena”. Sentimento partilhado por João Sobrinho Teixeira, secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que confessou ao P3 estar “absolutamente fascinado com o evento”. “É importante para Idanha, mas é importante para o país, porque pode ser replicado em outros territórios”, revelou, especificando que “a economia verde precisa de conhecimento a nível de tecnologia” e que os “jovens vão ser fundamentais para a fixação de populações” em territórios com poucos habitantes. Em três dias de evento, contabilizaram-se mais de 20 iniciativas. Os trabalhos desdobraram-se entre as três salas do posto de turismo e o espaço multiusos, que, até ao final de Outubro, era um parque de estacionamento. Foi por aqui que Begoña Perez-Villarreal, a directora do EIT Food (organismo do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia da Comissão Europeia) para os países do Sul da Europa, falou do importante papel que a tecnologia pode ter na agricultura para combater a escassez de água na Europa. Já a sete minutos a pé dali, no posto de turismo, Henrique Gomes e Vítor Crespo promoviam um workshop sobre “o que os investidores portugueses procuram em empresas de agricultura”. E deixaram um conselho para os empreendedores: durante a primeira fase do negócio, apostar apenas numa área. "Foco, foco, foco, não se deslumbrem nem comecem a dispersar", avisou Vítor, enquanto a audiência tomava notas freneticamente. Também houve espaço para as startups falarem dos seus problemas — o i-Dare Challenge era, na verdade, um dos momentos mais esperados da agenda. Se a Nature Fields, que comercializa carne biológica, não consegue encontrar uma embalagem em vácuo eco-friendly, a BluePanoply, que produz mirtilos, tem dificuldade em encontrar mão-de-obra temporária na altura da apanha do fruto. Apresentados os problemas, mudou-se a configuração da sala e grupos de dez pessoas discutiram possíveis soluções. As propostas foram diversas. E que tal apostar em embalagens feitas de fibras de banana, algas marinhas ou cannabis? E porque não criar campos de férias de turismo biológico?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O programa incluiu ainda visitas guiadas à fábrica da Sementes Vivas, que comercializa sementes biológicas de frutos, flores, ervas e produtos hortícolas, e outra ao Centro Documental Raiano, que tem mais de 11 mil arquivos, de 600 temáticas diferentes, todos relacionados com a ecologia, saúde natural e agricultura biológica. O mau tempo, infelizmente, foi uma constante durante todo o fim-de-semana. Ups, corrija-se: "Mau tempo no seu tempo é bom tempo", ouvia-se sempre que alguém se queixava da chuva que, ainda assim, obrigou a algumas mudanças de planos. Não se visitaram, como previsto, plantações e projectos de anos anteriores. Fica para a quarta edição, em 2019, que, promete Gonçalo Amorim, "vai ser brutal". Winegrid: Um software para digitalizar a produção de vinho. Através de sensores, recolhe informações acerca da densidade, cor, temperatura e nível em tempo real. SenseFinity: Também são sensores, destinados a recolher informações de alimentos. Verificam a temperatura e o estado — desde da produção, ao transporte e à entrega final. Heaboo: Um dispositivo que é instalado nas casas de banho para que a água esteja quente logo na abertura das fontes. Face aos equipamentos com o mesmo objectivo disponíveis no mercado, esta ferramenta reduz substancialmente o consumo de energia. Aquaponics: Ao sistema de aquaponia, introduziram mudanças para evitar o desperdício de água e torná-lo mais sustentável. Disponibilizam o equipamento para qualquer cliente. Nature Fields: Carne de vaca e de borrego inteiramente biológica. Os produtores são todos de Idanha, onde as vacas pastam ao ar livre. Alpha-Roba: Um molho vegan, 100% vegetal, com apenas produtos portugueses feito a partir de alfarroba. Black Block: São caixas de refrigeração destinadas a promover a secagem de alimentos agrícolas. Foram criadas a pensar em países subdesenvolvidos com temperaturas muito elevadas. Funcionam a energia solar e têm um software próprio para controlar a temperatura. Ecoxperience: Transformam óleo usado nos mais variados detergentes: para o chão, para a loiça, para os vidros e até para a roupa. Life in a Bag: Criam plantas, flores e ervas, que são vendidas em sacos e caixas com instruções. Para que qualquer pessoa tenha uma mini-horta em casa. O P3 viajou a convite do I-Danha Food Lab
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia. (...)

Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia.
TEXTO: Vamos supor que estamos a sobrevoar o deserto do Namibe, que se estende entre a Namíbia e Angola. Por largos quilómetros, é possível ver círculos desenhados com vegetação em volta e um vazio no centro. O autor destas formas no deserto tem sido um mistério ao longo dos anos. É tão indefinido que estes círculos são conhecidos por “círculos de fadas”, como se tivessem sido feitos por este seres imaginários das tradições populares europeias. Agora, os suspeitos são outros. Nesta quinta-feira, surgiu na revista Nature mais um suspeito. Um estudo coordenado por Corina Tarnita, da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, conclui que a formação destes círculos se deve a mecanismos ecológicos com uma auto-organização, como ecossistemas no subsolo e a competição entre as plantas. Os círculos de fadas são autênticos oásis no deserto. São hexagonais e bem largos. O seu diâmetro pode ir dos dois aos 35 metros, e nalguns casos alcançar mesmo os 40 metros. Os maiores encontram-se em Angola, mas também podem existem em desertos na Namíbia, na África do Sul, na Austrália ou até mesmo no Brasil. Mas centremo-nos nos círculos no deserto do Namibe; são esses que têm sido alvo dos principais estudos. Neste deserto com cerca de 30 mil quilómetros quadrados, os círculos de fadas podem espalhar-se por cerca de 1500 quilómetros quadrados. Caso não haja períodos intensos de seca, onde há elevada mortalidade da vegetação no deserto, estes círculos podem viver centenas de anos ou mesmo chegar aos mil anos. Mas falta responder a uma questão primordial: como se formam?É aqui que o mistério se intensifica e ao longo dos tempos as desconfianças têm-se voltado para os mais variados suspeitos. Os himba, um grupo étnico da Namíbia, já respondeu a esta questão com lendas, que tem passado de geração em geração. Para os himba, há duas hipóteses: ou são pegadas dos deuses ou são dragões debaixo da crosta da Terra, que, ao lançarem bolhas flamejantes para a superfície, queimam a vegetação e criam estes círculos. Nem só os himba se têm preocupado com a formação destes círculos. Olhares mais ocidentais têm tentado resolver este autêntico quebra-cabeças. Se se chamam “círculos de fadas”, tudo se deve a tradições populares nos países europeus. De acordo com Francisco Vaz da Silva, investigador no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, essas tradições são representadas com mulheres vestidas de branco em locais como encruzilhadas, que dançam em círculos ao meio-dia ou à meia-noite. Seria a partir destas danças que este mundo e o outro comunicavam. Durante o século XIX, existia em Inglaterra, nos países célticos e na Escandinávia, a crença de que círculos que apareciam nas florestas eram criados por fadas e elfos que dançavam em círculo em noites enluaradas. Já na Escócia, havia a lenda de que os círculos nas florestas, formados por cogumelos, serviam de mesa para as festas das fadas. E no País de Gales, pensava-se que estes cogumelos eram usados pelas fadas como guarda-chuvas. Se formos para a Alemanha, as fadas passam a ser bruxas e as celebrações em círculo comemoravam a chegada da Primavera. Em França, eram obra das feiticeiras. Em Portugal, estas tradições populares também existem. Nas campanhas da Inquisição, as fadas foram demonizadas e começaram a ser designadas “bruxas”. Às suas danças chamava-se “encruzilhada das bruxas”. “Conheci na minha juventude histórias de homens que supostamente encontraram tais assembleias de fadas ao voltarem a casa a altas horas”, conta-nos Francisco Vaz da Silva. “Tipicamente, o caminheiro, por ter dito ou feito algo inconveniente ao encontrar as fadas, sentiu uma estalada gélida na face, que o jogou sem sentidos para o regueiro onde viria a acordar na manhã seguinte. ” Mas o investigador salienta: “É difícil resistir à suspeita de que o nível de álcool no sangue destes viandantes nocturnos era elevado. . . ”Estas tradições populares são referidas na publicação Tradições Populares de Portugal, de José Leite de Vasconcellos, de 1882: “No mar também andam bruxas vestidas de branco, a bater palmas e a dançar sobre as ondas. ”Voltemos aos círculos de fadas com vegetação. Foi a partir dos anos 70 que a ciência começou a tentar desmitificar o mistério destes círculos. E nos últimos anos têm surgido mais estudos. Em 2013, o ecologista Norbert Juergens, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), publicou um estudo na revista Science que revelava que eram as térmitas a formar os círculos de fadas no deserto do Namibe. Norbert Juergens estudou círculos de fadas ao longo de 2000 quilómetros, desde Angola até África do Sul, passando pela Namíbia, e concluiu que as térmitas de areia (Psammotermes allocerus) eram as responsáveis pela criação dos círculos. No deserto, a água da chuva não sofre o processo de evaporação, ficando retida no subsolo. As térmitas acabam por “beber” esta água, principalmente nos períodos de maior seca, o que faz com que as plantas cresçam apenas nas margens do círculo. “Devido à rápida filtração e falta de evapotranspiração, a água é retida à volta dos círculos”, lê-se no artigo científico. Ao longo do seu estudo, o ecologista encontrou térmitas de areia em Angola, na Namíbia e na África do Sul. Estas térmitas foram encontradas tanto em regiões com círculos de fadas e noutras sem círculos. “A Psammotermes allocerus estende-se ao longo do diâmetro do círculo”, refere o artigo. Contudo, não foram estas as térmitas encontradas no estudo de 2013. Foram novas espécies, que ainda não estão descritas cientificamente, refere ao PÚBLICO Norbert Juergens. “Encontrámos estas novas espécies com métodos genéticos. E podem ser distinguidas pela sua morfologia. Mas ainda não as descrevemos, nem sequer têm um nome científico. ”Mas esta hipótese tem sido contestada. O ecologista Stephan Getzin, do Centro Helmholtz para a Investigação Ambiental, na Alemanha, defende que os círculos de fadas se formam por auto-organização do ecossistema. Investiga os círculos de fadas desde os seus tempos de estudante na Universidade da Namíbia, em 1999, e escreveu o seu primeiro artigo científico sobre o tema em 2000. Para Stephan Getzin, os círculos são formados devido à competição pela escassa quantidade de água no solo do deserto. Não há água suficiente para preencher todo o círculo de vegetação e fica um espaço no seu interior. Num estudo de 2016, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, centrado nos círculos de fadas na Austrália e na Namíbia, a equipa de Stephan Getzin concluiu que a gestão de água no subsolo pela biomassa é a responsável pelos círculos. “Estamos convictos de que é isto que acontece [a hipótese da auto-organização] na Namíbia e na Austrália. Com isto quero dizer que as térmitas não são um pré-requisito para a formação de círculos de fadas”, explica Stephan Getzin ao PÚBLICO. “As escavações da nossa equipa no solo, assim como as de colegas e especialistas em insectos, também confirmaram a ausência de térmitas nos círculos de fadas. ” Portanto, Stephan Getzin considera que a hipótese de que são as térmitas que fazem os círculos de fadas não é suficientemente forte. No artigo agora publicado na Nature, dá-se uma nova explicação para este fenómeno no deserto do Namibe. A equipa de Corina Tarnita concilia duas hipóteses. A primeira refere que os círculos de fadas se formam da seguinte maneira: as plantas cooperam com as plantas vizinhas e competem com as que estão mais distantes. Isso origina padrões regulares de círculos, ou seja, formam-se por auto-organização. Por outro lado, a competição entre os ecossistemas subterrâneos de térmitas, formigas e roedores também contribui para a criação destes círculos. “Aqui providenciamos de um sistema teórico para uma auto-organização de colónias sociais de insectos, validados pelo uso de dados de quatro continentes [onde há círculos de fadas], que demonstram uma competição dentro da mesma espécie entre os animais, que pode gerar estes padrões hexagonais em larga escala”, lê-se no artigo científico. A equipa usou o deserto do Namibe como caso de estudo. Para tal, desenvolveu um modelo espacial computacional, com dados de satélite e análises estatísticas, para caracterizar a população de insectos e perceber como se geram padrões hexagonais no solo. Depois, explorou-se a interacção entre as colónias de animais e os efeitos dos processos de auto-organização da vegetação. Observou-se então que as colónias maiores eliminavam as mais pequenas. Porque os recursos alimentares são limitados. Neste modelo, verificou-se ainda que as térmitas aumentavam mortalidade da vegetação e destruíam a vegetação nos círculos de fadas logo quando ela começa a crescer. “Fazemos uma descrição mais alargada do sistema – incluindo como os círculos de fadas nascem e morrem, assim como o seu tempo de vida e as propriedades da vegetação, nunca considerados antes”, explica-nos por sua vez Juan Bonachela, da Universidade de Strathclyde, em Glasglow (Escócia), e outro dos autores deste último estudo. “Os nossos resultados apontam para a importância das térmitas no funcionamento dos sistemas semiáridos, neste caso dos círculos de fadas na Namíbia. ” As térmitas referidas pela equipa são as mesmas do estudo de Norbert Juergens: “A existência destas térmitas no deserto do Namibe foi referida em várias ocasiões, como no trabalho de Juergens. Aprendemos muito com o seu trabalho”, frisa Juan Bonachela. O último estudo não se aplica apenas aos círculos de fadas no deserto do Namibe, mas também a outros sistemas semelhantes. Mas o que dizem agora os autores dos estudos de 2013 e 2016 sobre último trabalho na Nature? Norbert Juergens continua sem dúvidas de que são as térmitas que permitem a formação dos círculos de fadas e sente reconhecido por este novo estudo simular o modelo com colónias de insectos, que ele também já incluiu em modelos que publicou em artigos seus mais recentes. Para Norbert Juergens, modelo da equipa de Corina Tarnita aborda padrões e dinâmicas fundamentais na ecologia. Mas, por outro lado, diz que o modelo precisa de ser fortalecido: “Esta hipótese baseia-se muito em modelos teóricos, não foi baseada em provas obtidas no terreno e pode haver uma contradição entre leis básicas da ecologia e da física”, comenta ao PÚBLICO. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Norbert Juergens considera que é necessário confirmar que ocorre uma mortalidade elevada da vegetação num diâmetro tão extenso como num círculo de fadas de 30 metros. Mesmo assim, afirma que o novo estudo mostra correctamente como surge a vegetação nos círculos de fadas. “Mas isto, por si só, não causa os círculos de fadas. ”Quanto a Stephan Getzin, o último estudo tem duas grandes fragilidades. “O modelo não mostra como os insectos são capazes de se reproduzir regularmente nos círculos de fadas”, afirma. Depois, há um desfasamento entre o modelo teórico sobre os insectos e as observações no local. “As térmitas não estão presentes no desenvolvimento do círculo de fadas”, refere. “Precisamos de centrar o trabalho no desenvolvimento dos círculos de fadas sem a presença de térmitas. Só assim teremos um retrato claro dos processos subjacentes à formação dos círculos sem a sobreposição dos efeitos das térmitas. ”Bem, parece que a discussão científica à volta destes círculos vai continuar e que ainda muito ainda será publicado. De uma coisa se tem a certeza, não foram as fadas as responsáveis (nem sequer são as principais suspeitas) por estes misteriosos círculos em pleno deserto.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens estudo espécie mulheres
“Onde os outros vêem o acaso, eu procuro a ordem”
Há 30 anos, o geneticista António Lima de Faria publicou um livro que contraria a célebre teoria de Charles Darwin. Ali defendeu que a evolução acontece sem selecção. É por isso, insiste aos 96 anos, que a sua mulher não gerou um rato nem um elefante. (...)

“Onde os outros vêem o acaso, eu procuro a ordem”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 30 anos, o geneticista António Lima de Faria publicou um livro que contraria a célebre teoria de Charles Darwin. Ali defendeu que a evolução acontece sem selecção. É por isso, insiste aos 96 anos, que a sua mulher não gerou um rato nem um elefante.
TEXTO: Se tivéssemos cumprido o desejo de António Lima de Faria o título deste texto seria: “Os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes. ” É assim que o cientista vê a sua obra e vida quando faltam poucos dias para completar 97 anos. Arriscamos dizer que é uma visão modesta para quem deu tanto à ciência e não só. Se o mundo tem afluentes, rios e mares, Lima de Faria será, pelo menos, um grande rio nesta metáfora da vida. O cientista, que nasceu em Portugal e cedo emigrou para a Suécia onde se naturalizou e vive até hoje, esteve no Porto e em Cantanhede numa viagem de trabalho. “Business. Sempre business”, esclarece. É professor emérito de citogenética molecular na Universidade de Lund, na Suécia, onde ainda ocupa um gabinete de trabalho, é também doutor honoris causa pela Universidade do Porto e considerado um dos mais importantes cientistas portugueses. Entre outras honras e distinções é cavaleiro condecorado pelo rei sueco e grande-oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada por Portugal, pela sua contribuição para a biologia molecular. É membro de cinco academias de ciência. A cátedra de citogenética na Universidade de Lund foi criada propositadamente para António Lima de Faria e acabou quando se reformou, uma prerrogativa que só alguns dos maiores cientistas do mundo mereceram, como Albert Einstein e Max Planck. Nos dias que esteve em Portugal, António Lima de Faria participou em conferências, deu palestras, agendou almoços e jantares de trabalho, viu o nascer do Sol da janela do quarto de hotel do costume (sempre o mesmo) no Buçaco e, no meio de uma preenchida agenda, gastou duas horas a falar com o PÚBLICO. Falou só do que quis e como quis. “Sempre decidi ao pequeno-almoço o que vou fazer nesse dia. ”Entre os nove livros que escreveu está Evolution without Selection – Form and Function by Autoevolution, publicado em 1988. É neste livro que o cientista apresenta um novo conceito – por favor, não lhe chamem teoria – sobre a evolução dos organismos que acredita estar assente na ordem, simplicidade e economia e que contraria o (aparentemente) o sólido edifício que Darwin ergueu baseado no acaso e na sobrevivência do mais forte ou mais apto. Hoje, muito do que António Lima de Faria defendeu há 30 anos no livro sobre a evolução sem selecção “foi confirmado pelos resultados da física experimental e da bioquímica”. O cientista, que sempre considerou que a teoria de Charles Darwin é valiosa, tinha razão. António Lima de Faria constata que é impossível prever neste momento o que, em termos de evolução das espécies, virá depois do homem, do pardal ou do lírio. “Fala-se na teoria da evolução… Se fosse uma teoria, podia dizer-se concretamente o que iria acontecer: que a seguir ao homem vem esta ou aquela espécie. Não há teoria nenhuma da evolução que permita fazer isso. De forma que não há teoria da evolução, como já escrevia no meu livro Evolution without Selection. ”Neste livro, o cientista ultrapassa a visão de Darwin, contrapondo um novo conceito no qual a evolução biológica surge como uma consequência de três evoluções anteriores: a evolução das partículas elementares, dos átomos e dos minerais. O conceito que propõe não é, definitivamente, uma nova teoria da evolução. “Nunca propus teoria nenhuma da evolução. Não há conhecimento suficiente. O que propus é uma interpretação diferente. Uma maneira diferente de investigar e que escrevi preto no banco. O darwinismo é um obstáculo ao conhecimento físico-químico da evolução. Porque o mecanismo nunca pode ser a selecção, a selecção é uma maneira de sortear, de separar, e isso não pode ser. O mecanismo só pode ser físico-químico. E isso mantenho-o hoje. ”Mas, António Lima de Faria não perde tempo a explicar o que já sabe e escreveu. “Aquilo que sei as pessoas podem ler nos livros. Está lá nos livros. Só falo do que não sei: do que não sabemos e temos de investigar”, justifica. E o que é que não se sabe? “Dou-lhe um exemplo. Comecei a conferência no Porto com a pergunta: por que é que a minha mulher não gerou um rato ou um bebé elefante? Não há prova nenhuma genética que garanta que a minha mulher não pudesse ter produzido um ratinho. Porquê? Nos anos 80 pensava-se que a diferença entre um humano e um rato era de um máximo de 50%. Havia 50 % de genes que deviam ser diferentes para o rato poder ser diferente do ser humano. Agora não. Agora, os humanos e o gorila? Têm 99% de similaridade dos genes. O ser humano e o rato? 93%. Pior ainda, veja-se o anfioxo, que é o animal mais simples, que ainda vem antes das lampreias. Fez-se a análise genética e comparou-se os genes do anfioxo – são 550 milhões de anos de diferença – com os do ser humano e a semelhança é de 90%. Então, por que é que a minha mulher não teve um anfioxo?”Porque há uma ordem, arriscamos interromper. “E onde é que está essa ordem? Essa ordem tem de estar determinada muito cedo, logo na fecundação. Agora estamos a começar a perceber que os pequenos ARN, pequenas moléculas, micro-ARN, é que dirigem o desenvolvimento. ”Entrevista a António Lima de Faria from Público on Vimeo. António Lima de Faria reconhece que o seu livro sobre a autoevolução a que alguns acharam antidarwinista não teve o impacto que merecia, apesar de ter sido traduzido para russo, japonês e italiano. A maioria das pessoas nunca terá ouvido falar nem do livro nem do seu autor. É de Darwin e da sua evolução com selecção que ainda continuamos a falar e a ouvir falar. Mas há uma explicação para isto. Aliás, há várias. Primeiro, diz, a versão de Darwin é a versão que convém às multinacionais que continuam a ser a “ideologia dominante num período de vácuo ideológico”. Segundo, a sua perspectiva foi propositadamente ignorada. “Este meu livro foi abafado. Não é citado. Acaba de ser publicada uma enciclopédia da evolução que não o cita. O mesmo acontece a colegas meus que fizeram experiências muito valiosas que mostram que não é a selecção que faz a evolução. Não são citados. ” Em jeito de desabafo, conclui: “A maior mentira não é o que se escreve. É aquilo que não se menciona. É assim que se dirige a opinião pública. Pela ausência de informação. O filtrar permanente da informação. ”E será que, um dia, o sólido edifício do acaso e da selecção erguido por Darwin vai acabar por cair? “Não, não se trata de cair. Toda esta atitude é sempre valiosa na ciência, leva a muitos trabalhos, a muita informação que se acumulou. Essa informação não se vai deitar fora. Fica. É muito bem estabelecida. Simplesmente, vai ser ultrapassada. Na ciência ultrapassa-se”, diz. Daqui a 20 anos poderemos até dar razão a Lima de Faria, mas vamos continuar a falar de Charles Darwin. “Sem dúvida, porque a contribuição dele é altamente valiosa e histórica. Tal como se fala de Newton e já se sabe que as suas leis são aproximadas. Há sempre uma aproximação. Darwin era muito inteligente e disse logo que a selecção não podia explicar tudo. ”Apesar da resistência, António Lima de Faria vai falando do seu trabalho. Confirma, por exemplo, que deu um contributo importante para o estudo dos cromossomas. “Nunca tive o Prémio Nobel. Nos anos 70 estive próximo disso quando fiz um trabalho considerado clássico sobre os cromossomas. ” Foi em 1980 que lançou o desafio nesta área ao escrever o artigo "How to produce a human with 3 chromosomes and 1000 primary genes" e em 1983 publicou um novo livro sobre a evolução molecular e a organização do cromossoma. Um ano depois, participou no filme The fusion of human with plant cells, uma co-produção da televisão portuguesa e sueca. “Fui o primeiro cientista a realizar a fusão de células humanas com células vegetais”, assinala. O seu mais recente livro apresenta-nos uma nova era da biologia atómica no formato de uma tabela periódica. Periodic Tables Unifying Living Organisms at the Molecular Level propõe a organização sistemática dos organismos vivos numa lógica baseada no nível atómico ou outras características físico-químicas, tal como os elementos nas tabelas periódicas. “O melhor é escrever, escrever”, sugeria António Lima de Faria no início da nossa conversa, olhando com desprezo para o gravador ligado perto de si. Telemóveis, computadores e outros dispositivos do género não passam de “distracções” e, por isso, não lhe servem. Anuncia que a agenda desta visita a Portugal – anotada à mão num papel A4 – “é só business, ciência”. “Toda a minha vida foi sempre assim, senão nunca tinha feito nada de sério. Sempre trabalhei 14 horas por dia, sábados e domingos, e nunca tive férias. Escreva: sábados e domingos. Nunca ouvi falar de feriados. ” Uma dedicação assente na convicção de que “nunca se pode fazer nada na ciência senão numa continuidade permanente de concentração”. Temos algumas perguntas… “Sim, mas isso vem depois. Primeiro vamos localizar. ” O relato começa no Porto, numa conferência no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) que fez a convite do investigador Helder Maiato, para estudantes e investigadores. Já sabemos que nesta sessão aberta, organizada no âmbito do GABBA (Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada), falou de biologia molecular, a área a que dedicou a vida. “Life is basically simple” foi a frase escolhida para o princípio e fim da palestra. Foi aqui que disse – como agora repete – que não há muito tempo, nos anos 80, pensava-se que a semelhança entre os genomas do rato e dos humanos era de 50% e hoje sabemos que é de 90%. O guião da conversa leva-nos do Porto para o Buçaco. No Palace Hotel Buçaco não descansou, garante. Alojou-se no quarto número 15, como sempre faz. “É o que dá para as traseiras. Quando acordo às seis da manhã, tenho o sol a começar a tocar no topo daquela floresta que é uma tapeçaria viva, de todos os tons de verde. ” Devagar, conseguimos aqui e ali seduzi-lo com um desvio aos planos que fez para esta sessão de trabalho. Mas há um ponto na sua agenda que não é negociável. O professor abre a capa pousada nas pernas e mostra duas páginas com a lista das doações que fez até hoje. Aqui estão, entre outras dádivas, os mapas antigos de Portugal (desde 1561 até 2015) que foi adquirindo e que ofereceu agora ao agrupamento de escolas António Lima de Faria, em Cantanhede. A lista também refere a doação de cinco mil euros “enviados directamente” a Manuela Granzina, professora na Universidade de Coimbra, para que se crie “um fundo de dez bolsas/prémios, de 450 euros cada, a distribuir uma por ano, a jovens inovadores de ciência”. Estas são algumas das forças que fazem o afluente de que Lima de Faria falava. De Cantanhede recebeu a boa notícia sobre a intenção de duplicar este prémio. É o afluente a ganhar mais força. “Sempre tive muito pouco dinheiro. Quando decidi ficar na Suécia, não tinha um tostão no bolso. ” Os tostões que, entretanto, juntou são usados para comprar “o que mais ninguém quer” e umas boas pechinchas. Que depois, generosamente, oferece. “Se quiser um título para esta entrevista tenho um: os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes”, dita pausadamente, exigindo ver a frase escrita. Mais tarde, desabafa que “comparado com Gulbenkian ou Champalimaud” a sua contribuição “é uma migalha”. Mas não é. Entre as coisas onde gastou os seus tostões está um velho moinho em ruinas para os lados de Ponte da Barca, que comprou em 1991 para recuperar. “Eu transformo as ruínas em pérolas. Na ciência, no laboratório, é a mesma coisa. Uma equação que define uma relação é muito mais valiosa do que uma pérola. Porque permite prever. Isso é que é ciência. É a capacidade de prever. ”Lima de Faria impõe condições em tudo o que faz. “Sou violento”, avisa. Quando lhe disseram, por exemplo, que queriam dar o seu nome ao agrupamento de escolas de Cantanhede impôs três condições. Queria que os meninos fossem um dia assistir ao nascer do sol, que tivessem um outro dia dedicado apenas a apanhar minhocas e andar na natureza e que fosse reservado um outro dia ainda para distribuir rebuçados aos alunos. Infelizmente, constata, os pedidos acabaram por nunca ser acatados. “Há sempre uma desculpa. ”Quando lhe disseram que queriam dar o seu nome a uma rua de Cantanhede recusou a homenagem que lhe pareceu uma “coisa altamente estéril” e fez uma contraposta. Preferia que fosse criado um prémio para os melhores alunos do 12ºano. Ficou estipulado que o prémio seria de 750 euros e, mais uma vez, António Lima de Faria tinha condições. Desta vez era só uma: “Um prémio para dar ao melhor aluno no fim do ensino secundário, para rapazes e raparigas, e que fosse dado sem obrigação. Fizessem o que quisessem ao dinheiro, isso era obrigatório. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Recentemente, fez mais doações ao agrupamento de escolas, entre as quais está uma enciclopédia “colossal”, publicada pelo célebre ornitólogo catalão Josep Del Hoyo. “Cada volume tem mais de 800 páginas e 50 pranchas a cores. São 17 volumes ao todo, que descrevem no máximo detalhe as mais de nove mil espécies de aves que existem em todo o mundo. ” António Lima de Faria espera que os alunos procurem as aves de Portugal nos milhares de páginas desta enciclopédia. Depois é preciso que tirem fotocópias, recortem as gravuras e façam um caderno de todas as espécies de Portugal. Sem Internet, à moda antiga. Além dos mapas e livros, deixou uma mensagem aos alunos de Cantanhede: “Sê autêntico. O importante é fazer um trabalho sério. Só o trabalho sério é que perdura. ”As ligações e relações nunca se quebraram, mas António Lima de Faria não quis nem quer trabalhar no país onde nasceu. “Só volto para um sítio onde posso trabalhar. Não existem os livros, as bibliotecas e os laboratórios que eu preciso para trabalhar em Portugal. ” E Lima de Faria, como bem se vê, ainda trabalha. “Nunca me reformei. Oficialmente, estou reformado só há 32 anos”, diz a sorrir. “Tudo aquilo que fiz resume-se a uma procura da ordem. Uma procura da ordem a todos os níveis. Tem sido uma procura da ordem nos cromossomas, na célula e na evolução dos organismos. Onde os outros vêem o acaso nas mutações e na selecção, eu procuro a ordem”, resume. Um dia pediram-lhe para resumir o seu trabalho. Depois de alguma hesitação, escreveu 15 páginas com o título “Order is everywhere but it’s not total”. Garante que nunca andou na vida “nem para ser catedrático nem para ser prémio Nobel”. Nem para ficar com o nome na história. “Não. Never. Isso era uma traição. Isso era uma porcaria. ” Por fim, aposta que a maior parte das coisas que hoje diz e escreve vão acabar por se confirmar só daqui a 30 ou 50 anos. E, por isso, marca um novo encontro de trabalho: “Quando nos encontrarmos daqui a 20 anos, vamos ver se o que estou a dizer agora está certo ou não está certo. ”
REFERÊNCIAS:
Lavar a alma a seco nos Arcos de Valdevez
Fazendo da Quinta Lamosa a base, passámos um fim-de-semana a descobrir as muitas razões pelas quais devemos vencer a inércia e sair de casa. Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, aprendemos como se faz uma broa de milho autêntica e conhecemos Sistelo, a aldeia pendurada na serra que atrai cada vez mais forasteiros. (...)

Lavar a alma a seco nos Arcos de Valdevez
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.06
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fazendo da Quinta Lamosa a base, passámos um fim-de-semana a descobrir as muitas razões pelas quais devemos vencer a inércia e sair de casa. Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, aprendemos como se faz uma broa de milho autêntica e conhecemos Sistelo, a aldeia pendurada na serra que atrai cada vez mais forasteiros.
TEXTO: Com GPS ou sem ele, o problema não é encontrar a Quinta Lamosa, no lugar da Zebra, freguesia de Gondoriz, concelho de Arcos de Valdevez. O problema somos nós e os nossos impedimentos, reais ou fictícios, que nos separam de experiências acessíveis de um tempo que recordaremos como tendo valido a pena. A “pena”, neste caso, é a nossa inércia, que se pode traduzir em ideias de tempo demasiado quente, demasiado frio, demasiado chuvoso, demasiado qualquer coisa, para conseguirmos sair de casa e participar em mundos novos que nem sabíamos que estavam, ali, tão próximos, para nós. Aceitemos o facto: já não dependemos de carros de bois sem suspensão para percorrer caminhos de montanha em terra e cascalho solto e pedregulhos pontiagudos tendo por iluminação candeias de azeite. Agora podemos chegar a qualquer lado com todo o conforto que nos dá a tecnologia moderna do nosso carro — ou, ainda melhor, do vosso carro — incluindo lados pensados para serem um ponto de acolhimento à nossa espera. Assim é a Quinta Lamosa. Partindo de terrenos incultos, João Pedro e Carla Serôdio conceberam um lugar de descanso em forma de um quintal relvado e arborizado em socalcos onde encaixaram quatro casas (há projecto para mais uma) com uma disposição tão feliz que a privacidade dos ocupantes de cada uma das construções é sabiamente defendida da dos restantes. A casa maior (a Casa da Árvore) até tem uma ponte de acesso que, embora não seja levadiça, acrescenta uma sensação de independência e de defesa contra ataques de imaginários alanos, vândalos ou visigodos e dos seus descendentes mais directos ou por via colateral. Sabendo que uma das casas (Casa da Corte) estaria ocupada por hóspedes estrangeiros, ficámos curiosos de saber até que ponto notaríamos a sua presença, mas, tirando a entrada ou saída ocasional de um carro, nada. Talvez fossem monges tibetanos em recolhimento que não tocassem trombetas curtas e muito menos das longas, mas que apenas se entretivessem a fazer contas de cabeça, em estado de levitação, sobre o fascinante Orçamento do Estado português. Por isso era preciso submeter a tranquilidade da quinta a um exame mais sério: convidemos três casais com uma composição de 50% de jornalistas e um não-casal com 100% de jornalistas e vejamos se é possível resistir à recriação automática de um ambiente caótico de uma redacção média. Acreditem ou não, a prova foi feita e a tranquilidade prevaleceu. E mesmo considerando o peso de um representante da Fugas para manter a paz e fomentar a concórdia, o facto de a Quinta Lamosa ter resistido, funcional e pacífica, diz muito sobre a sua concepção e a sua gerência. Agora imaginem como poderá ser o ambiente com pessoas normais. . . Assegurado o descanso, que inclui uma piscina exterior de água salgada (o que dispensa produtos químicos desinfectantes), a quinta é uma base para se ir mais além, acrescentando diversão, conhecimento, experimentação, deslumbramento à medida, até chegar à lavagem de almas a seco. A lavagem de alma que o nosso manual de instruções recomenda que façamos de tempos a tempos, para assegurar “a durabilidade do produto” (nós). Se se quiser, há muito para fazer sem se ter a sensação de se estar a fazer alguma coisa. O apoio de João Pedro no acesso ao que nos interessa e as informações que nos pode dar sobre o que dantes não sabíamos que nos viria a interessar tanto são fundamentais. Desdobrando-se em guia que nos conduz com perícia na sua carrinha de nove lugares aos sítios que ele conhece e que nós queremos conhecer, sabe tudo sobre a região, os lugares, as distâncias, sabe guiar-nos para a boa comida (Restaurante O Barriguinhas, freguesia de Parada), para actividades aquáticas no rio Vez, que passa ali, a 200 metros da quinta, com alguém próximo e de confiança (Ricardo Teixeira, do Centro Aventura), ou hípicas, para a ecovia que se pode percorrer a pé ou de bicicleta (na quinta há bicicletas para alugar), para o Parque Nacional da Peneda-Gerês, a aldeia de Sistelo, a serra do Soajo, o Corno de Bico. Perguntem, que ele sabe. E o mais provável é que vos possa levar lá. E nós vamos. A Porta do Mezio é uma das cinco entradas no Parque Nacional da Peneda-Gerês, uma por cada município que lhe dá território. É a entrada do concelho de Arcos de Valdevez, com um conjunto de edifícios e infra-estruturas de apoio ao visitante devidamente tripulados por técnicos formados em várias áreas, com especial incidência na simpatia e na hospitalidade (também pode ser do ar da serra). Ali há várias mãos responsáveis pela administração e pela dotação de meios, devendo destacar-se a câmara municipal e a ARDAL – Associação Regional de Desenvolvimento de Arcos de Valdevez. Atrás do edifício de recepção e orientação dos visitantes há um terreno adjacente à antiga casa do guarda-florestal onde havia um viveiro para reflorestação daquela área do parque. Atrás da casa, recuperada, há um centro de promoção dos produtos regionais onde até se pode almoçar, por marcação. Ali perto, um conjunto de casas em miniatura, em granito, representam a arquitectura tradicional regional, mais acima uma jaula com dois cães representativos de uma raça a que chamam aqui cão-sabujo-da-serra-do-soajo e, finalmente, a cozinha rural com forno de lenha que nos chamou aqui. O nosso mestre é Joaquim Dantas, de 50 anos, natural da freguesia de Rio Frio. Não é apenas “o homem que foi lá fazer uma broa” para nós vermos. É o homem que se meteu, há uns anos, na aventura de, tendo o gosto de fazer broa em casa como a viu fazer à sua avó, investigar a receita que fosse a mais representativa do tradicional, do antigo, do genuíno. A broa faz-se de farinha de milho e de centeio, mas em que proporções? Onde encontrar as farinhas moídas em moinhos artesanais? E a levedura? E os tempos (de levedura, de cozedura)? E o tipo de lenha para aquecer o forno? Fez inquéritos nas zonas rurais circunvizinhas entre os mais velhos praticantes da arte, estudou e sistematizou as respostas, comprou uma escola primária desactivada e começou a fazer esse pão respeitador dos métodos imemoriais, que veio a ser reconhecido pelo movimento internacional Slow Food e a ser conhecido por “a broa de Rio Frio”. Foi esse saber que este estudioso entusiasta trouxe para a Porta do Mezio, incluído no projecto Sabores do Parque, para esclarecer vagas contínuas de ignorantes interessados e para dar exemplo de como interesses como estes podem ajudar a fixar população, tornando viáveis negócios de plantação e colheita, de moagem ou de criação de gado e de aves de capoeira autóctones, pagando-lhes um “preço justo” e preservando os produtos locais, tais como a carne de raça cachena, o feijão-tarrestre (deveria ser terrestre, mas um erro numa candidatura fixou esta forma, que me pede sais de frutos para a escrever), a laranja-do-ermelo, a galinha-preta, a galinha-amarela, a galinha-pedrês (para o famoso “pica no chão”). Por qualquer razão, há sempre menos entusiastas em meter a mão na massa do que em a comer, de qualquer modo que seja. Mas a atenção geral estava presa às explicações de Joaquim Dantas e à sua demonstração da produção caseira de uma broa de milho com preocupações de genuinidade e de preservação (prefiro dizer salvação) de processos, receitas e resultados que até há pouco foram tradicionais, nossos, mas em risco recente de perda. Lugar da Zebra, Gondoriz Arcos de Valdevez Tel. : 914509049 Site Preço: entre 60 e 140€Os circunstantes são industriados na arte de amassar, na arte de levedar, de conservar o forno à temperatura óptima, de não deixar o ponto da massa ficar aquém (que não dá broa) ou além (que dá broa azeda) e na proporção tradicional de farinha de milho e de centeio (três partes de milho para uma de centeio). Mas em tudo isto a chave é a prática, a experiência, o olho: as fissuras da massa dão o ponto, a cor do interior do forno dá a temperatura, etc. Enquanto esperamos que a broa coza, passamos às instalações do centro de promoção de artigos locais da Porta do Mezio para apreciar uns petiscos que a amabilidade pôs sobre a mesa, com a co-responsabilidade de Joaquim Dantas e de sua mulher, Maria do Sameiro Dantas, funcionária camarária, de 54 anos, que acrescentou o carinho da transformação de carne de raça cachena em pedacinhos grelhados ou em alheira, o bacalhau em pataniscas, e – e aqui é preciso fazer um parêntesis encomiástico de um lambareiro – arroz em arroz-doce apaixonante, de que muitos restaurantes deveriam seguir a receita, para salvação deles e regalo nosso. Em todos estes processos, é preciso mencionar a coadjuvação dada pela técnica Cristina Rodrigues, de 37 anos, da ARDAL, desdobrando-se na sua função de recepção, orientação e apoio aos visitantes da Porta do Mezio. Da voz do presidente da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, João Manuel Esteves, ouvimos descrições dos pontos de interesse do seu concelho e informações sobre os vários projectos em que o município está envolvido nas áreas mais directamente ligadas ao turismo, seja na manutenção e desenvolvimento da ecovia, do apoio à Porta do Mezio, da instalação de antenas para fornecer wi-fi em plena serra, onde não há rede de telemóveis, e outros de execução programada, como a construção do parque biológico com animais autóctones selvagens (cavalos-garranos, cabras-montesas) e de quinta. Também num futuro próximo, com a ligação da ecovia dos Arcos à ecovia de Ponte de Lima, espera que seja possível ir do mar (Viana do Castelo) à montanha (Sistelo) a pé, acompanhando o rio, num percurso de cerca de 70 quilómetros. Entretanto, existem percursos pedestres para todo o ano, com o programa 12 Meses, 12 Trilhos. Há uma aldeia pendurada na serra que merece a nossa atenção e a de cada vez mais forasteiros. João Pedro leva-nos lá, tal como faz aos seus hóspedes, que pode levar ainda mais acima, a Porto Cova, para que desçam de lá até Sistelo de bicicleta e depois apanhem ali a ecovia com passadiços que vai até Arcos de Valdevez. Em Sistelo, passeamos pelas ruas, visitamos o cruzeiro, o fontanário, os palheiros comunitários com o lavadouro por trás, a antiga escola primária, espreitamos as vistas para os socalcos talhados na serra. E reparamos na adaptação dos moradores a um trânsito de veículos e de pessoas que é crescente, de modo a poderem recebê-los em número. O Café Ti’Amélia tem moedas equilibradas nas proeminências do granito de uma das paredes. Os donos lembraram-se de lá pôr umas moedas antigas, os visitantes quiseram imitá-los e foram deixando moedas modernas. É de manhã, tomam-se cafés, um chá preto, uma água com gás, experimenta-se um quadrado de bolo de cenoura, por sinal, bom. Rapidamente se enche o recinto, rapidamente se sai, está bem organizado, tudo roda sem sobressaltos, tirando uma água sem gás, de um outro grupo, que ficou por pagar. Uma rapariga é enviada lá fora, para ver se localiza o esquecido. Nada feito. Mas, felizmente, o tempo está de Verão, em meados de Outubro. Não resolve o problema do calote, mas traz mais clientes para diluírem o prejuízo da água. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem quer almoçar precisa de conhecer o restaurante que abriu em Maio deste ano, por iniciativa de uma família de Sistelo emigrada em França que voltou às suas origens para abrir a Pastelaria Pérola dos Arcos, na vila, e depois decidiu ir matar a fome aos visitantes da sua aldeia, Sistelo, tal como no-lo disse Ana Rodrigues, de 44 anos. É na parte de baixo da residência paroquial que funciona a sala de jantar, com desdobramento em esplanada, assim o tempo o permita, com vistas de abrir o apetite sobre a serra e os socalcos que os braços lhe foram conquistando em séculos. É o Cantinho do Abade. Com vários pratos e “carne da cachena às 7 maravilhas”, ao fim-de-semana. E uma inovação na doçaria: pastéis de feijão. . . feijão. . . feijão-tarrestre (raios!. . . ). Alguém quer ir-se embora? E o “embora” é de volta à quinta. Ora experimentem. . . A Fugas esteve alojada a convite da Quinta Lamosa
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