LU.CA é o novo teatro para crianças e jovens e abre na sexta-feira
O programa do novo teatro da Calçada da Ajuda será gratuito até ao final de Julho, mediante o levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos. A sala recuperada data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V. (...)

LU.CA é o novo teatro para crianças e jovens e abre na sexta-feira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.118
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: O programa do novo teatro da Calçada da Ajuda será gratuito até ao final de Julho, mediante o levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos. A sala recuperada data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V.
TEXTO: Um novo teatro para crianças e jovens, o LU. CA - Teatro Luís de Camões, em Belém, abre na sexta-feira, em Lisboa, com um programa que se prolonga por três dias como uma "festa popular em grande". O anúncio foi feito por Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, e por Susana Menezes, directora artística do teatro, numa visita à imprensa destinada a divulgar o programa da inauguração e o resultado das obras de restauro iniciadas pela autarquia há mais de dois anos. "Um programa intenso" para assinalar a devolução, à população mais jovem do concelho de Lisboa, da sala que data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V. A abertura do LU. CA coincide com o Dia Mundial da Criança, como explicaram à imprensa Catarina Vaz Pinto e Susana Menezes. E o seu nome surge do jogo lúdico e educativo com as primeiras sílabas do nome de Luís de Camões - por LU. CA ser também um local de aprendizagem para crianças, e porque era necessário distingui-lo, ao nível da comunicação, do Teatro Camões, no Parque das Nações. "Dias de Inauguração!" - assim se chama o programa que começa nesta sexta-feira e se prolonga por sábado e domingo, das 15h às 20h. Para o Dia Mundial da Criança está já confirmada a presença de 80 alunos de uma escola das imediações, informou a directora artística. Um concerto pela Orquestra Juvenil Metropolitana, com narração de fábulas de La Fontaine por sete mulheres, "Biblioteca do Público -- Livros espectaculares (Mesmo!)", iniciativa de livros escolhidos, com curadoria de Sara Amado, autora de um blogue, uma oficina de fotografia (que permitirá às crianças serem fotografadas no teatro a preto-e-branco e depois colorirem as suas fotos) contam-se entre as iniciativas dos "Dias de inauguração!", anunciou Sara Menezes. Uma performance de rua intitulada "Girafas", uma exposição com projectos dos alunos do 1. º ano de design de ambientes da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha são outras das propostas para os três "Dias de Inauguração!", explicou também a vereadora Catarina Vaz Pinto. "Espreitar uma sala com uns binóculos" é outra das propostas para esses três dias, durante os quais as crianças poderão observar os camarotes e as salas do renovado teatro, assim como os frescos que enfeitam o tecto, pintados por Columbano Bordallo Pinheiro sobre tela, e descobertos durante a intervenção agora realizada pela autarquia local, como informou a directora artística, Susana Menezes, que vem do Teatro Municipal Maria Matos. O programa da inauguração, assim como o das iniciativas previstas até final de Julho, será gratuito, mediante levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos, referiu Susana Menezes. Mas na nova temporada, que começará em Setembro, os ingressos para o teatro já serão pagos, como salientou a vereadora. Apesar de ainda não estar definido o custo dos bilhetes, estes terão preços diferenciados, nomeadamente, para crianças, adultos, escolas e escolas carenciadas, acrescentou Vaz Pinto. Após a inauguração, o LU. CA estará encerrado no fim-de-semana de 9 e 10 de Junho, reabrindo a 16, com o programa "Visita ao teatro". Trata-se de uma iniciativa em que se convida a cidade a conhecer o interior deste teatro do século XVII, agora totalmente recuperado, um projecto do arquitecto Manuel Graça Dias e no qual a autarquia despendeu cerca de 1, 2 milhões de euros, segundo a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa. O palco, o subpalco, os camarins, a teia e os escritórios serão mostrados durante quatro visitas de 60 minutos (às 11h, 15h, 16h30 e 18h). Em Julho, haverá oficinas de teatro para crianças com mais de 12 anos, orientadas por Cláudia Gaiolas, e com mais de 14 anos, por Tânia Alves. Em Agosto, o LU. CA encerrará, reabrindo em Setembro, com um espectáculo encomendado ao actor e dramaturgo Alex Cassals, no qual se irá mostrar às crianças as máquinas de cena do teatro, disse Susana Menezes. "Este teatro, embora pequeno, tem tudo o que tem um teatro para crescidos", acrescentou, citando, a título de exemplo, as quarteladas que saem do chão do palco ou as bambolinas que o ladeiam e que fazem o contorno da caixa cénica, ou das que são utilizadas para impedir que as luzes e outros equipamentos de palco sejam visíveis à plateia. Com este teatro - o primeiro municipal exclusivamente vocacionado para crianças e jovens, com uma capacidade de 81 lugares de plateia e 50 de camarotes -, a autarquia pretende diversificar a oferta cultural, promover cruzamentos com outras expressões artísticas, criar sinergias com estruturas locais, como bibliotecas, escolas, juntas de freguesia ou outras instituições, e criar uma oferta cultural mais variada, como disse a vereadora da Cultura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. "No fundo, o que se pretende é mostrar que a arte está em todo o lado", acrescentou, frisando que a abertura deste teatro permite, igualmente, "aumentar e diversificar bastante aquilo que era a oferta do Maria Matos" para este público-alvo. Cem mil euros era o custo estimado da programação anual para crianças e jovens do Teatro Maria Matos, um valor que triplica agora para o LU. CA, segundo a vereadora da Cultura e a directora artística do Teatro Luís de Camões. "Garantir e proporcionar uma diversidade de ofertas, ter ofertas de grande público, mais acessíveis, e programações mais de nicho, porque a cidade vive disso" foram, segundo Catarina Vaz Pinto, factores que estiveram na base do projeto de reorganização dos teatros de Lisboa. "Aquilo que nos compete fazer, enquanto poder público, é promover essa oferta diversificada e dar as ferramentas a cada um, para ir escolhendo", disse a vereadora, sublinhando que, no caso do novo teatro para os mais novos, o que importa é "proporcionar às crianças uma educação artística o mais variada possível, para que elas tenham capacidade de escolha e de reflexão sobre as coisas e o mundo em que vivem", acrescentou. Só assim se obtém uma cidade "mais rica e mais culta", e cidadãos "mais bem preparados" no futuro, concluiu. O novo teatro já tem uma página de Internet própria, estando, igualmente, disponível uma página na rede social Facebook.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola cultura educação rainha social criança mulheres
Fado de um azul Celestial
91 anos e uma vida como já não há. Podia não ter sido artista de variedades, não podia não cantar. Canta desde sempre. Desde que a mãe, que tinha a voz mais bonita do mundo, lhe cantava o folclore da Beira. (Para se ter uma ideia da voz da mãe, pense-se na voz de Amália.) É uma criatura luminosa, delicada. O nome, de que não gosta, vai bem com ela. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro. (...)

Fado de um azul Celestial
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20180807050534/https://www.publico.pt/n1668515
SUMÁRIO: 91 anos e uma vida como já não há. Podia não ter sido artista de variedades, não podia não cantar. Canta desde sempre. Desde que a mãe, que tinha a voz mais bonita do mundo, lhe cantava o folclore da Beira. (Para se ter uma ideia da voz da mãe, pense-se na voz de Amália.) É uma criatura luminosa, delicada. O nome, de que não gosta, vai bem com ela. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
TEXTO: Final da entrevista. Descemos as escadas do Museu do Fado. Uma senhora olhou-a, olhou-a de novo, dubitativa: “É tão parecida com a Amália. ” Respondeu: “Sou irmã. ” São, de facto, de uma parecença espantosa. Cara portuguesa, boca larga, nariz pronunciado, um certo olhar a que se pode chamar profundo. A voz não é a mesma. Mas, sobretudo, a maneira de interpretar de Celeste não é a mesma, e o castiço do fado, a veia popular que foi a sua, também não. Teve cabeça (diz algures) para não imitar a irmã, para seguir o seu caminho. Fiquei a pensar na injustiça que é quando olham para Celeste Rodrigues, apenas, como a irmã de Amália, em encontros como aquele que tivemos e com os quais aprendeu a viver desde o começo. No espaço que teve de conquistar para ela. Celeste é uma fadista maravilhosa (ouçam a Lenda das Algas na versão original e sintam a frescura triste daquela voz), uma referência para a nova geração. Quando fez 90 anos, o cineasta Bruno de Almeida fez-lhe um vídeo de presente e chamou alguns dos seus admiradores para assistir. Aldina Duarte, Camané, Carminho ou Gisela João estavam lá. Mantém-se no activo. Esta entrevista aconteceu num domingo à tarde e foi filmada pelo neto, o realizador Diogo Varela Silva; o filho deste e bisneto de Celeste, Sebastião, fez de assistente de realização. Têm uma relação amorosa e cúmplice a que comove assistir. No final, comentávamos como vai ser daqui a 20 anos, quando os seus bisnetos a virem contar uma vida, a partir desta gravação. Foi por isso que se filmou Celeste sob uma luz de Verão. A pensar naqueles que um dia vão saber como a felicidade lhe ficava bem. Começamos, muito lá atrás, pelas canções que cantava quando descascava ervilhas?Cantava canções da Beira que a minha mãe me ensinava, Milho Grosso. E tudo o que ouvia aos ceguinhos na rua. Que tipo de coisas cantavam os ceguinhos?Fado. Foi aí que ouvi fado pela primeira vez. Com alguém a tocar acordeão ou guitarra ou concertina. Tinha sete ou oito anos. E ouvia nas grafonolas. Antigamente, havia a coisa dos piqueniques. Em vez de jantarmos em casa, armávamos tudo e íamos para o campo. Estava sempre alguém com grafonola. Nós não tínhamos. Isso ainda no Fundão ou já em Lisboa?Cá, em Lisboa. Vim com cinco anos. Ainda se lembra de episódios do Fundão? Só me lembro de quando fui numa procissão vestida de anjo. Eu achava o vestido lindo!, branco com asas. Contava a minha mãe que a cada pessoa que eu encontrava dizia: “Olha aqui o meu vestido tão lindo!” E na igreja, tinha amêndoas no colo, levantei-me e as amêndoas caíram por ali abaixo. É uma imagem feliz, a que associa ao Fundão. Muito feliz. Outra imagem: a de o meu pai a tocar na banda, a dar a volta à cidade. E, numa noite de calor, a minha mãe pegou nos filhos e fomos dormir para o alpendre da igreja. Uma aventura. Eram sete na altura. Conte-me a história da família, que não a sei. Morreram crianças? A minha mãe teve cinco rapazes e depois cinco raparigas. Um rapaz morreu à nascença, outro morreu com 18 meses e outro com dois anos e meio. E morreu uma rapariga aos seis anos e outra aos 16. Portanto, ficámos cinco. Era um tempo de alta mortalidade infantil. E sem saber porquê. “O teu irmão morreu com ataques. ” Sei lá que é isso de ataques. Como é que isso era vivido na família? Era menos traumático, apesar de tudo, do que é hoje?Não. Era muito. Eu deixei de ser religiosa por causa da morte da minha irmã. Ela tinha seis, eu tinha nove. Estava a pedir por ela, na igreja, quando o meu irmão veio ter comigo e me disse que ela tinha morrido. Nunca mais acreditei em nada. Deus, Pai Natal, acabou aí. Tenho impressão de que era mais violento do que agora, porque éramos mais unidos. Também não tínhamos mais nada — a não ser uns aos outros. Como é que se chamava essa sua irmã?Maria dos Anjos. Nome horroroso. A minha mãe pôs nomes feios às filhas. Maria Odete, Amália, Celeste, Ana e Maria Rosário. Ah, não era Maria dos Anjos, era Maria do Rosário. É um lapso bonito. Fazendo dela um anjo. Os rapazes tinham nomes bonitos. A Ana morreu com 16 anos. Era poetisa, escrevia. É impressionante imaginar uma menina de nove anos que tem essa revolta contra Deus quando sabe da morte da irmã. É. Nós gostávamos muito uns dos outros. Devemos isso à minha mãe e ao meu pai. Como é que era a sua mãe?Uma pessoa fantástica. Tinha uma filosofia muito engraçada. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã. ” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se. ” A família era pobre. Quão pobre?Tínhamos carinho. A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam, também. Mas não dávamos por essa necessidade. Só havia uma coisa com que a minha mãe sofria: como tínhamos uma casa pequena [no Fundão], quando nascia um bebé, um de nós tinha de ir para casa de um familiar. Como era a casa?Era sobreloja, primeiro andar e sótão. Deitaram-na abaixo, infelizmente. Cada vez que ia ao Fundão, ia ver a minha casinha! [Riso] Foi onde nasci. “Se me sair a sorte grande, compro esta casa. ” Até que idade sonhou com essa casa?Até agora, que fui lá há pouco tempo. Tive um desgosto. Estava habituada a ver a minha casinha, tão linda. Nunca mais entrou nela?Não. Via-a por fora e já era muito bom. De certeza que nunca teve oportunidade, estes anos todos, de comprar a casa?Não! Nem para comprar uma caixa de fósforos, quase. Não sou como o Tio Patinhas. Nunca liguei ao dinheiro: tenho, gasto. E nunca fui de me preocupar com o dia de amanhã. Como sou muito positiva, penso que amanhã tenho um contrato. Hoje não tenho, amanhã tenho — a minha vida foi sempre assim. Quis verdadeiramente comprar a casa ou bastava-lhe o sonho da casa?Quis. Era como voltar à minha infância. A sua infância foi feliz por causa do amor que sentiu?Acho que sim. Veja a letra que a minha irmã [Amália] fez: “Não temos fome, mãe, já não sabemos sonhar, já andamos a enganar o desejo de morrer. ” Doeu na carne [a privação]? Doeu nada. Dá mais poesia. A pessoa cresce mais depressa. Foi uma infância sem medos? A nossa sociedade está muito marcada pelo medo. Nós brincávamos na rua. Sem medo que nos roubassem os filhos. Tem-se mais sonho quando há dificuldades. “Vou juntar para isto. ”Os sonhos eram?Coisas que a gente gostava de fazer. Viajar. Trabalhávamos no Cais da Rocha e víamos os paquetes, com os passageiros todos. Está a falar do que o dinheiro podia comprar. Agora, aos 91 anos, sonha com quê?Oh, tanta coisa! Estou muito agarrada à vida. Mas não me amargura não fazer [tudo o que tenho vontade de fazer]. Já tenho tanta coisa boa. . . Abrir os olhos e ver esta beleza. Essa infância maravilhosa teve sempre a música. O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza. A voz da sua mãe, como é que era?Um bocado como a da minha irmã, mais forte. Tinha uns agudos maravilhosos, uns graves sensacionais. Havia na sua mãe o desejo de ser cantora?Não. Tinha tanto filho. . . Pertencia a um rancho e cantava. Chamavam-lhe o “rouxinol da Beira”! Tinha uma voz que se ouvia a dois quilómetros. Nem nós. Nunca sonhámos ser artistas. Nem eu nem a Amália. A gente cantava porque gostava de cantar. Cantávamos nas [festas] dos vizinhos, nos baptizados, nos casamentos da vizinhança. Isto surgiu, primeiro com a minha irmã, porque se enamorou de um guitarrista. E eu porque andava com ela, acompanhava-a. Ainda hoje gosto de cantar. Ando sempre lalalala, por casa. Que canções estava a cantar hoje de manhã em casa?Estava a cantar um fado. O fado da andorinha. [Canta] “A manhã é uma andorinha que se esqueceu da viagem. . . ” Canta para si?Canto para mim e às vezes para a vizinhança, que diz: “Continue, continue. ” É bom cantar, é bom. Canta fados antigos?Sim. Fados que criei. [Lenda das] Algas, Saudade Vai-te Embora, Gaivota Perdida. Para recordar a letra. Como é que era um Natal na vossa casa?Ah. Tudo sentado no chão, que éramos muitos e não havia cadeiras nem bancos. Se cantávamos? Claro! Sempre as coisas da Beira. Os martírios — como é que lhe hei-de explicar o que são os martírios? É uma coisa que se canta na Semana Santa. Eu cantei, como se fosse uma oração, para um filme de pescadores bacalhoeiros da National Geographic. Faz arrepiar quando as pessoas cantam bem. Começou em 1945, no Casablanca. Ainda nesse ano fez uma temporada no Brasil com a sua irmã, que já fazia muito sucesso. E já tinha ido a Madrid. E à Madeira. Como é que começou a cantar a sério, profissionalmente?Seis anos depois da Amália. Ela começou em 1939. Eu andava sempre com ela. Porquê? Era uma espécie de dama de companhia? A minha mãe dizia que éramos o roque e a amiga. Andávamos sempre, sempre juntas. Conheci a Amália quando tinha cinco anos e ela oito. Ela estava cá em casa dos meus avós e nós no Fundão. Como é que foi quando a viu?Eu conhecia-a de fotografia. Ela achou-me muita graça porque eu falava à moda do Fundão. Dizia: “Quero meia rate de açúcar e uma onça de chá. ” Fui com ela à mercearia fazer um recado. Também não sabe o que é? Era uma medida que havia naquela altura. Sempre foram muito parecidas. Muito. Confundiam-nos na rua. Eu não podia ir a um cinema. Havia as apostas: “É/ não é?” A pessoa sente-se mal. Ainda por cima não era eu. Já viu que diferença, entre a sua infância e a dos netos ou bisnetos? O Gaspar, aos dez anos. . . Aprendeu a tocar [guitarra] de propósito para me acompanhar — disse ele. E acompanha bem. Já viu que fica com cara de guitarrista quando toca?Fica com uma cara muito séria. Que declaração de amor, aprender a tocar para acompanhar a bisavó. Faz-me uma ternura. Fiquei comovida. O que eu queria dizer: se lhes contar aquelas coisas por que passou, têm dificuldade em imaginar. Eu conto. As dificuldades e as alegrias. Adoram ouvir. Acham espantoso?Espantoso? Naquela altura, vivia quase toda a gente assim. Duas guerras. . . Guerra de Espanha. Era preciso racionamento. E depois a [II] Grande Guerra. Tinham muita informação sobre as guerras?Não. Não tínhamos televisão. Rádio, não havia tempo para ouvir. Trabalhava. No cinema, passavam boletins? Ia ao cinema. Ia. Com um bilhete de dez tostões, para as primeiras filas. Ficava com uma dor no pescoço. Apanhávamos desenhos animados. Quem eram os galãs de cinema com quem sonhava?Tinha uma paixoneta pelo Spencer Tracy no Não há Rapazes Maus. Era tão lindo e representava tão bem! E o Gary Cooper, lindo e alto?Não era o meu tipo. Gosto da expressão, do olhar. Impressiona-me mais do que a beleza do homem alto. O meu marido não era bonito. Era interessante, mas não era bonito. O meu primeiro namorado também não era bonito. Uma expressão melancólica, sonhadora, impetuosa?Sei lá. Era uma maneira de olhar profunda. Sei lá. Você também. . . [riso]Como é que era a expressão do toureiro, o seu primeiro namorado?Era tão engraçado. Era irmão da Casimira, Mirita Casimiro. Com aquele mesmo nariz. Era parecido com ela, portanto não era bonito. Sim, mas só com a palavra “toureiro” já se imagina um homem fogoso. [Riso] Não sabia o que era isso. Tinha 17 anos quando o conheci. Prendeu-me mais pela conversa. A personalidade. Era uma sociedade muito puritana, o código social era restrito para as mulheres. A minha mãe é que dizia, não era a sociedade. Não deixava ir ao cinema com um namorado, sozinha. Nem a mim nem à Amália. Tínhamos de levar o meu irmão connosco. Quanto tempo esteve com o toureiro?Namorei três e depois estive dez anos. Não chegou a casar-se com ele. Zanguei-me antes de casar. Também não vou dizer porquê. Está mesmo à espera que conte porquê. Como foi recebido pela sua mãe, que punha essas regras todas, o facto de ir viver com ele sem se casar? A minha mãe adorava-o. Aceitou. Mais do que o meu pai. O meu pai não nos falava, ao princípio. As minhas irmãs adoravam-no também. Porque é que não se quis casar?Já lhe disse que não digo a razão. [Riso] Ainda não estava na altura de ele casar, e eu também não, que era muito nova. Não sabia cozinhar. Nunca liguei ao casamento. Não queria ter filhos. Achava que não os saberia educar. (Depois tive a primeira e tive logo a segunda. Ahhh, coisa mais maravilhosa é ter um filho. ) Porque é que não me conta? É porque não quer que os seus netos saibam?Não. A culpa foi minha. Aquele complexo da menina de Alcântara. Entendi mal uma coisa que ele não fez e devia ter feito. Achei que era porque eu era de outro meio [social]. Eu achei que ele não queria que as pessoas soubessem que íamos casar. Pronto. [Anos depois] esteve doente e fui vê-lo. Já estava separada do meu marido. Ele beijou-me [a mão]. “Sabia que você vinha. ” Chamou os médicos: “O grande amor da minha vida está aqui. ” Foi chocante. Saber que não me tinha esquecido depois de tantos anos. Sabia tudo o que eu fazia, escrevia-me todos os dias uma carta sem a mandar. Não casou. Eu casei. Que bela história de amor. É íntimo. Porque é que o público está interessado na minha história de amor?Penso que conhecemos muito as pessoas nas suas histórias de amor. Não só com um homem ou mulher, mas no amor de pais e filhos. Normalmente, o melhor das pessoas está nessas histórias. Tenho uma família linda. Todos me adoram e eu adoro-os. Recuemos a 1945. Reza a história que foi à Adega Mesquita, cantou e foi contratada para cantar no Casablanca. Era o empresário da minha irmã, que tinha o Casablanca. É onde é hoje o ABC. Fiquei medrosa. Eu ia lá todos os sábados. Cantava a minha irmã, a Maria Teresa de Noronha, o José António Sabrosa, o Vicente da Câmara, a Lucília do Carmo. A minha irmã dizia: “A minha irmã canta muito bem. ” Um dia tive coragem e cantei uma quadra. O Zé Miguel, que estava lá a almoçar, contratou-me logo. Marcou-me ensaios, tratou-me da carteira profissional, anunciaram-me. Quando ouvi o meu nome, não queria entrar no palco. O locutor empurrou-me e lá fui eu. A minha irmã foi minha madrinha, pôs-me o xaile nos ombros. Ela puxava muito por si, no sentido de a incentivar a fazer?Não. Só naquela altura. Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente. Senão, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela cantar. Amália era três anos mais velha, cantava há mais tempo e era já reconhecida. Era inibidor para si, com o sucesso dela, começar a cantar?Não. Nunca pensei nisso. Porquê? Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela. Então, todas as pessoas que cantavam deixavam de cantar. Sempre achou que ela era. . . Ah, o máximo! Achei e continuo a achar, que nunca mais aparece [uma como ela]. São casos. Como a minha mãe: se tivesse sido artista, não apareceria outra igual. Nunca ouvi uma voz tão bonita como a da minha mãe. No caso da sua irmã, era a voz. . . Era tudo. Era também a maneira como ela se entregava? As pessoas entregam-se, também. Não é isso. Era tímida e crescia no palco. Tímida e humilde e ficava uma rainha. Tinha bom gosto a cantar. A Celeste era muito tímida?Ainda sou. No palco, fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara. Quando a vemos cantar, parece muito enfiada em si. Como se o mundo cá fora não existisse. Não existe. Fechar os olhos é realmente uma maneira de estar connosco. Como é que foi o Brasil? Imagino o deslumbramento. Eu não era para trabalhar no teatro. Ia para acompanhar a minha irmã. O empresário: “A sua irmã está aqui, canta, porque é que não entra também nas revistas?” Aquilo para mim era uma paródia. O nosso empresário tinha cinco cinemas com sessões contínuas. Corria os cinemas. Chegava atrasada ao teatro. Não sabia representar. E tem de se representar bem. O jeitinho não dá. Tenho uma admiração enorme pelos actores. O que é que fez?Uma comédia e uma opereta. Fazia o papel que a minha irmã e que a Hermínia [Silva] fizeram cá n’ A Rosa Cantadeira. Esteve um ano no Brasil. Mudou-a muito ter estado tanto tempo fora?Não. Olhe, as duas. Começámos a lembrar-nos do bacalhau, a ter saudades do bacalhau. Ela tinha um contrato sensacional, 200 contos por mês. E eu, 30. Viemos embora. Considero-me uma pedra de Lisboa. Ela também. O que é que fez a esse dinheiro todo que nem deu para a casinha do Fundão?Comprei um casaco de peles, de lontra! [Gargalhada] Bem giro. Era o que todas as raparigas naquela altura sonhavam ter. Ainda o tem? Há pessoas que guardam tudo a vida toda?Não! Havia de estar cheio de traças. Comprei outras coisas, roupa. Uma vez fui cantar a África, a Cape Town, Cidade do Cabo, não é? Comprei tanta roupa. Ganhei bem. Em 1950, 20 contos por espectáculo. Fiz uma data deles. Comprava presentes à sua mãe?Lá fora, não. O meu irmão, sim. Ele jogava boxe e a minha mãe pedia-lhe para deixar. “Vais jogar?”, “Não, não. ” Trazia sempre um mimo à minha mãe quando chegava a casa. Uma vez não encontrou mais nada, nem flores, nem bolos, e comprou carapaus! Que idade tinha quando a sua mãe morreu?Não me lembro. Não me lembro. Há 50 anos? Há 40? [O neto, que está a filmar, intervém: “Ela morreu com 95 anos. Nem há 30 anos. ”]Nem a minha irmã, não sei a data em que morreu. Não fixo datas. Nem nomes. Dizia-se “artista”, “fadista” ou “cantadeira”?Sou artista de variedades. O meu cartão profissional é de artista de variedades. Antigamente era assim. Uma vez artista, nunca teve vontade de desistir?Não. Cantar é óptimo. Adoro cantar. Cantar e ser artista são coisas diferentes. Para mim, é a mesma coisa. Quando canto, não penso se sou artista. Estou muito agradecida ao fado, que me deu coisas que eu não poderia ter se não fosse o fado. Não poderia ter viajado. E deu-me uma sobrevivência estes anos todos. O que é o fado?O fado são emoções. É como suspirar. É um alívio quando se canta. O meu fado. Não sei se será isso o fado. Se estiver triste, canta melhor?Não. Posso estar triste e cantar mal e estar triste e cantar bem. A beleza não é triste. O fado para mim não é triste: é belo. Dá-me uma emoção enorme que gosto de sentir. Qual é o fado que mais diz quem é?Música? O Fado Menor. Entra logo dentro de nós. Que quadras melhor a dizem?[Riso e pequena pausa; o neto diz: “As que escreveste”] “Sozinha de ilusões naveguei em barco parado no rio, despida de emoções atraquei no cais do meu vazio. Foram levadas pelo vento dos sonhos que outrora tive. Por isso canto no fado aquilo que minha alma vive. Ontem fui, hoje não sou, menos serei amanhã. Sinto que a minha sombra vai fugindo apressada. Está tão cansada de mim e eu dela estou cansada. ” É assim que eu sou. São versos tristes. São, pelo menos, de uma pessoa nostálgica. Adoro o meu passado. Quando se perde família, amores, a nostalgia da pessoa está aí. Quais foram os grandes embates da sua vida? Os momentos em que a vida dá porrada. Ah, a gente aguenta. A vida não pode ser só bom. As perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade. O amor morre. Esse amor de nhanhanhã. Sofreu muito com o divórcio?Um bocado. Desilusão. Eu tinha a pessoa [faz o gesto de a pôr nas alturas]. Engraçado não dizer o nome dele. Disse “a pessoa”. Varela [Silva]. Não gostava do nome: Alberto. Eu chamava-lhe Varela, como toda a gente. Achava que o Varela não era capaz de me fazer [o que fez], visto que, quando nos casámos, lhe disse: “Se algum dia me apaixonar por alguém, digo-te. Se te apaixonares, dizes-me. ” Isso eu entendo. Se disser, sou capaz de perdoar. O engano, não gosto. É uma falta de respeito. Nunca mais teve relação com ele? Depois de anos [de afastamento], fomos amigos. Fui lá vê-lo a casa no final da vida, quando estava doente. Estive com ele uma tarde inteira a conversar. Telefonava aos amigos: “Não adivinhas quem está aqui. . . ” Quis despedir-se dele?Não era bem despedir-me. Não pensava que ia morrer tão depressa. Fui visitar uma pessoa de quem gostava. Tivemos duas filhas. Tenho netos por causa dele. Isso foi a coisa muito boa que me deu, e que tem mais valor do que o engano. Mas na altura fiquei muito magoada. Que idade tinha?Quando me casei, tinha 32. Quando me separei. . . , foi há 40 anos. Vivi 25 anos com ele. Depois do 25 de Abril, fui uma temporada para fora, seis meses. Tive um contrato para o Canadá e os Estados Unidos. Aproveitei. Não havia cá trabalho nem para mim nem para ele. Quando cheguei do Canadá, é que soube que ele andava com ela. Chega? Estou aqui a assar! Já não tenho mais nada para dizer. [Para o neto] Estás a filmar isto tudo? Gosh! Gosh? Fala inglês. . . Desde os 12 anos. Aprendi com um amigo do meu pai, que nos ensinou. De ouvido. Primeiro alemão. [Ele dizia]: “Ich habe Deutsch gelernt als kleiner Junge. Aber ich habe alles vergessen. ” [Eu aprendi alemão enquanto jovem rapaz, mas esqueci tudo. ] Das ist wahr. [Isso é verdade. ] Eu nem sei dizer que não sei falar alemão. Ich kann nicht sprechen. [Eu não sei falar. ] O seu pai devia ser um homem muito aberto. O meu pai, a minha mãe. . . Tivemos uns pais formidáveis. Veja que não temos linguagem de bairro, calão. A minha mãe não deixava. Nem aos meus irmãos. Na Beira, não se fala mal. Só há uma palavra que dizem muito: “Filho da dúvida. ” E dizem “filho da dúvida” ou dizem a palavra mesmo?A palavra mesmo. Vivi no bairro de Alcântara, de varinas e estivadores. Ouviam-se os piores palavrões que há. Uma vez mandei a minha irmã àquela parte — ainda hoje não digo a palavra!, Deus me livre. Era pequena. A minha mãe levou-me à cozinha, partiu uma malagueta e esfregou-ma na língua. Remédio santo. A minha irmã estava a chatear-me, a ganhar-me nas cinco pedrinhas. Como não tínhamos brinquedos, inventávamos jogos. Estava a ganhar-me, a malandra. Disse: “Vai à. . . Não quero jogar mais!”É verdade que a sua amiga Beatriz da Conceição, que é do Porto, não diz palavrões à sua frente? Não. Faz-me uma ternura enorme [que ela faça isso]. Deve ser um sacrifício. Toda a gente diz que ela diz palavrões. Não é fantástico? As pessoas do Norte falam palavrões, mas no fundo não quer dizer nada. Ela também é assim. Voltemos aos grandes embates. Soube que aos 45 anos deu um rim a uma irmã sua. Isso é amor. Lá está: gostávamos muito uns dos outros. Os outros meus irmãos também dariam [um rim, se fossem compatíveis ou pudessem]. Era a Odete. Como foi a história?Teve uma nefrite. Descobriu-se no Rio, onde estávamos as três. A Amália foi cantar e nós fomos com ela. O médico achou que era uma apendicite e queria operá-la. Ela disse: “Não. Vamos para Portugal. A mãe é que tem de dar essa ordem. ” “A mãe é que tem de dar essa ordem?”Então não era? Tinha 17 anos. Vim com ela para Portugal. A Amália tinha um contrato a cumprir no casino Copacabana. Estava cinco meses bem, três meses no hospital. Disseram que era melhor fazer uma transplantação. Procurava-se quem podia dar o rim. Todos os irmãos disseram: “Eu dou. ” Mas o meu irmão Filipe, o boxeur, era diabético. O outro tinha taquicardia. A minha mãe já tinha uma idade avançada. Fui eu. Teve medo?Tenho medo de uma injecção!, que fará. [Riso] Mas a gente nem pensa no medo. Faz-se e pronto. Deixei de fumar e tudo. Seis meses. Foi uma exigência que fizeram. Calhou que o meu rim era bom. Era aquilo a que chamam “match A”. Começou logo a funcionar assim que lho colocaram. Sabe o contentamento que uma pessoa sente por ter salvo a vida a outra? E a pessoa era minha irmã, ainda por cima. Viveu mais 44 anos, teve três filhos depois disso. Morreu no ano passado. Vive entre Lisboa e os Estados Unidos, onde vivem as suas duas filhas. A primeira foi para lá há 30 anos. Há vinte e tal anos, a outra. Nasceu a minha neta. Eu estava a cantar em Providence. Quando acabou o contrato, apanhei o comboio e fui para Washington. Fiquei três ou quatro meses. Depois fiquei seis meses. Depois fiquei nove. A miúda telefonava e dizia: “Gostas mais desse Portugal que de mim. ” Lá ia eu. Quando ia cantar, qual era o seu circuito? Estúdios de televisão? Comunidades portuguesas?Fiz um programa para o Ed Sullivan, cantei na televisão em Providence. Cantava nos liceus americanos. Fiz tournée na Califórnia, Massachusetts, Canadá. Telefonavam: “Venha”, e eu ia. Volto a pensar na casinha do Fundão. Como é que com essas tournées todas não houve guito para ela? Também vai esquecendo. Outros valores mais altos se levantaram: as filhas, os netos. Quando é que o dinheiro deixou de ser uma coisa determinante na sua vida?O dinheiro nunca foi uma coisa determinante na minha vida. Mesmo quando tinha muito pouco?Sim. Tinha a esperança de ter um contrato amanhã. Hoje quem arranja um contrato é o meu neto. Nunca tive agente. Só no começo, o Fortuna. O que me valeu quando foi o 25 de Abril, e andei a cantar em boîtes como todos os artistas, a Simone, todos. . . Agora disse o nome da mulher pela qual o seu marido a trocou. Há bocado disse “ela”. [Riso] Pois, filha. Não lhe tenho raiva nenhuma. Não tem culpa. Não tenho raiva a ninguém. Ter raiva é uma coisa muito negativa. Tenho uma amiga que não entende que eu seja assim. Diz que eu sou mole. Já chega? Ai Jesus. Está satisfeita?Ainda não. O fado tinha no pós-25 de Abril uma aura de coisa fascista. Não sei porquê. Se é uma coisa do povo, como é que pode ser fascista? Porque trabalhou durante o [antigo] regime. . . ? Então não trabalhou toda a gente? Se não trabalhou, era parasita. Sofreu muito com isso?Não. Nunca liguei nenhuma à política. [Em] coisas que não percebo, não me meto. Tenho a instrução primária, só. Tem a instrução primária, só, mas sabe muitas coisas. Tenho um vício: ler. Gosto de Steinbeck, Dostoievski, Hemingway. Os Bichos do [Miguel] Torga, acho uma beleza. Os Maias do Eça. Vai-se aprendendo qualquer coisinha. A dizer mais uma palavrinha. Sonhava chegar aos 91 anos?Não. Achei que morria aos 33. Como Cristo?Não. Não sou crente desde os nove. A minha mãe dizia: “Nosso Senhor”, e eu dizia: “Seu Senhor. Nosso, não. ” Sei lá porque é que achava que ia morrer aos 33! Também achava que ia para freira porque vi um filme com a Deborah Kerr que tinha um fato [de freira] que lhe ficava bem. Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender. Poder cantar. Isso. . . , se não puder cantar, faço lalalá. É muito bom chegar a esta idade. Sou saudável. Tenho macacoas às vezes, mas não ligo. Tenho dores e faz de conta que não as tenho. É uma mulher feliz?Acho que sim. Não há felicidade completa. Também não há infelicidade completa. Há momentos. Tudo faz parte. No documentário de Bruno de Almeida The Art of Amália, a sua irmã conta que estava doente e pensava que ia morrer. Pensou matar-se nos Estados Unidos porque não queria que a encontrassem morta aqui. Nos EUA, começou a ver filmes do Fred Astaire e isso reconciliou-a com a vida. Já via filmes do Fred Astaire antes. Ajuda a passar. A pessoa agarra-se a qualquer coisa. Na altura, ela estava distraída e não pensava na morte. Queria saber se alguma vez teve um momento assim, em que lhe apeteceu desistir de tudo. Não. Nunca. Nunca. A única coisa que me entristece é o desgosto que vou dar à minha família quando desaparecer. Nunca pensei desistir de nada. Também depende do que a pessoa pretende conseguir. Nunca fui ambiciosa. Porquê?A pessoa nasce com isso ou não. Nunca quis ter uma carreira mais. . . Nunca. Pelo contrário. Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar. Isso que sente tem uma relação com o sucesso da sua irmã?Não. Ela também não ligava muito ao sucesso. Há pessoas que com um sucessozinho já se acham o máximo. Ela não. Manteve-se humilde, a gostar de coisas simples. Do seu carapau de escabeche. Mantiveram a relação unha com carne até ao fim?Sempre. Com todos os meus irmãos. [Houve um tempo em que] íamos todos os dias ver a Amália, a São Bento [a casa dela]. Íamos tomar chá. Falavam de quê? Tanta coisa. Da nossa infância, da nossa vida, do que vinha à baila. Mas cada um tinha a sua vida, a sua família, a sua casa, os filhos. Só ela é que não tinha filhos. Sofreu muito, claro, quando ela morreu. Lembro-me de a ver na televisão e da sua cara devastada. Que é que acha? Tanto por ela como pelos outros que morreram. É uma cacetada que nos dão na cabeça. Ninguém aceita. Por isso é que ando a falar com os meus netos e as minhas filhas, a prepará-los. Não querem ouvir falar. Como é que se prepara uma pessoa para a morte de alguém tão querido e tão próximo?É aceitar. Não temos outro remédio senão aceitar. Que adianta bater o pé e dizer não? Não quero velório. Não quero dar às pessoas a tristeza de estarem ali, a velar o meu corpo. Agora está a pôr-me triste. De pensar que vão ter esta tristeza. Está a ver? Se tivesse acabado [a entrevista antes]. . . E se puserem um disco seu no velório? Se a puserem a cantar?Isso está bem. Hum. Também não. Acabou?Acabamos com música. Qual é que lhe apetece cantar? Imagine que cantava agora para a sua mãe e o seu pai. Cantava o Milho Grosso. Normalmente, a minha mãe é que cantava para nós. Pedíamos-lhe sempre. Não me apetece isso [que me pede]. Dá-me tristeza. Fujo à tristeza. Não caio nessa. E não me vai fazer cair! Tenho pára-quedas. O pára-quedas da vida. Aprendeu a defender-se. Exacto. Macaca velha. Vamos acabar. Mas nem lhe perguntei sobre as histórias do fado, das vielas, do Alfredo Marceneiro. . . Já toda a gente falou disso. É corriqueiro. [Riso] Tio Alfredo. Tive o Tio Alfredo contratado quatro anos [na casa de fados que tive]. Ficou lá por causa do Varela, adorava o Varela. “Senhor Varela, como é que hei-de tratar um rei?” Era bem apanhado, ele. (A minha avó dizia que a conversa é como as cerejas. E chamava-me “ganapa”. Eu ficava ofendida. Ganapa? Afinal, era “rapariga”. ) O Tio Alfredo era uma pessoa muito simpática que cantava muito bem o fado. E refilão. Dizia de mim: “Agora é ela que vai miar. ” [Gargalhada] Era só para me arreliar. Quem é que foi o seu maior fã?[Tom muito sério] Desculpe: muita gente. Eu era girinha, girota. Tinha muitos admiradores. As minhas filhas e os meus netos são os meus maiores admiradores. Para eles, sou o máximo. O pequenino, o Gaspar, está sempre a dizer: “És a melhor fadista do mundo. ” Do mundo! Imagine. “Não digas isso à frente das pessoas. ” “Porquê? É verdade. És a melhor fadista do mundo. ”Tinha uma filosofia muito engraçada [mãe]. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã. ” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se. ”O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza. "A minha mãe dizia que éramos o roque e a amiga. Andávamos sempre, sempre juntas. Conheci a Amália quando tinha cinco anos e ela oito. Ela estava cá em casa dos meus avós e nós no Fundão. "Nunca liguei ao casamento. Não queria ter filhos. Achava que não os saberia educar. (Depois tive a primeira e tive logo a segunda. Ahhh, coisa mais maravilhosa é ter um filho. )"Começámos a lembrar-nos do bacalhau [no Brasil], a ter saudades do bacalhau. Ela [Amália] tinha um contrato sensacional, 200 contos por mês. E eu, 30. Viemos embora. Considero-me uma pedra de Lisboa. Ela também. A vida não pode ser só bom. As perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade. O amor morre. Esse amor de nhanhanhã. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Disseram que era melhor fazer uma transplantação [irmã]. Procurava-se quem podia dar o rim. Todos os irmãos disseram: 'Eu dou. ' Mas o meu irmão Filipe, o boxeur, era diabético. O outro tinha taquicardia. A minha mãe já tinha uma idade avançada. Fui eu. Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar. "
REFERÊNCIAS:
Guia para a Lisboa “sem reservas” de Bourdain
Anthony Bourdain visitou Lisboa há pouco mais de um ano para o seu "No Reservations" (Não Aceitamos Reservas). Revisitamos as mesas que fizeram as delícias do visitante. O episódio lisboeta estreou-se na SIC Radical a 14 de Janeiro (...)

Guia para a Lisboa “sem reservas” de Bourdain
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181212205537/https://www.publico.pt/n1816281
SUMÁRIO: Anthony Bourdain visitou Lisboa há pouco mais de um ano para o seu "No Reservations" (Não Aceitamos Reservas). Revisitamos as mesas que fizeram as delícias do visitante. O episódio lisboeta estreou-se na SIC Radical a 14 de Janeiro
TEXTO: Cervejaria Ramiro, rei do marisco e do pregoHá mais de meio século a manter a tradição da arte da cervejaria portuguesa, a antiga "casa de pasto" Ramiro é um reino do marisco e dos petiscos, incluindo os afamados "pregos". A ementa da cervejaria prossegue com a garantia da frescura e de encantar muitos fiéis, entre ostras, amêijoas, percebes, navalheiras, lavagantes, lagostas, lagostins. . . Aqui, Bourdain deliciou-se entre imperiais, elogiados camarões e lagostins ou pregos (a que chamam "a sobremesa"). Sol e Pesca, o bar das conservasSol e PescaRua Rua Nova do Carvalho 44+ na FugasCervejaria RamiroAvenida Almirante Reis, n. º 1H T:21 8851024. Fecha à 2. ª+ na FugasA Tasca do ChicoRua do Diário de Noticias, n. º 39+ na FugasA GinjinhaLargo de São Domingos, 8O Cantinho de AvillezRua dos Duques de Bragança, n. º 7. T: 211992369. Almoços 12h30 - 15h (sábados 15h30), jantares 19h30 - 00h, fecha ao domingo. + na FugasAlma de Sá PessoaCalçada Marquês de Abrantes, n. º 92. T: 213963527. De Terça a sábado, das 19h30 à 1h. + na Fugas100 ManeirasRua do Teixeira, n. º 35. T: 910307575. De segunda a sábado das 19h30 às 02h (cozinha encerra às 00h30)+ na FugasO TrevoPraça Luís de Camões, n. º 48. T: 213468092. De uma velha casa de artigos para a pesca, nasceu um bar, já de culto, que tem a sua força nos petiscos baseados nas conservas portuguesas (e também na decoração piscatória vintage). É no Sol e Pesca, em cenário Cais do Sodré, que Bourdain faz amizade com os Dead Combo. A Tasca do ChicoA casa que fez o fado vadio voltar em grande ao Bairro Alto - e que se tornou de visita obrigatória para muitos turistas -, mereceu a visita de Bourdain em muito interessantes companhias, António Lobo Antunes e Carminho. Na Tasca do Chico, pode ouvir-se fado vadio em noites especiais e não faltam o caldo verde e o chouriço assado. A GinjinhaPara a ginjinha da praxe, segue-se para um dos balcões clássicos da cidade, A Ginjinha do Largo de S. Domingos, dita Espinheira, já que nasceu propriedade de um galego com este apelido - foi mesmo o primeiro estabelecimento de Lisboa a comercializar a bebida. Isto em 1840. Largo de São Domingos, 8O Cantinho de AvillezÀ altura da visita do apresentador de "No Reservations", José Avillez tinha restaurante recente para mostrar, o Cantinho do Avillez. Avillez apresenta uma sala sóbria com apontamentos vintage que oferece uma cozinha "simples, mas sofisticada", "maioritariamente de inspiração portuguesa" mas com "influências de algumas viagens". Na carta, também petiscos ou pregos. Bourdain rendeu-se aos pezinhos de porco e peixinhos da horta. Alma de Sá PessoaHenrique Sá Pessoa continua, desde 2009, a dar Alma ao seu restaurante, uma cozinha contemporânea, alicerçada em produtos de mercado. O chefe de "Ingrediente Secreto", programa de sucesso da RTP, propõe uma ementa que passa por reinventar a gastronomia portuguesa. Na ementa de Bourdain, a cavala, o bacalhau e o leitão. 100 ManeirasSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ljubomir Stanisic, chefe de origem jugoslava com anos de experiência em Portugal, reinventou o seu 100 Maneiras com uma cozinha do mundo, repleta de inspirações "portuguesas, francesas, jugoslavas e do resto do mundo". Em espaço art déco, a carta, além do resto, guarda lugar "para corajosos" onde constam "molejas, caviar, maranhos e demais entranhas e extremidades". Bourdain deliciou-se com o cabrito com arroz de miúdos e no programa surgem também o guisado de coração de cavalo, fígado de touro ou a mioleira de porco. O TrevoUm tradicional café da praça Luís de Camões foi o local escolhido por Bourdain para provar outra incontornável delícia gastronómica lusa: a rainha bifana. Regada a mostarda e acompanhada por uma imperial gelada. «Awesome», declarou o senhor No Reservations. Mas isso foi antes de dar uma trincadela na bifana e elevar o elogio ("that's fucking good!").
REFERÊNCIAS:
Aprender a nadar com um falso disco de Verão
Depois de The Divine Femine, apaixonante e apaixonado disco de 2016, Mac Miller está a nadar com os tubarões. E se isso pode soar perigoso, o certo é que daí resultou um fabuloso, comovente e elegantíssimo disco de um miúdo que largou as bóias e compreendeu que a vida é mais ou menos como a água, ora cristalina, ora turva. Nade-se, que a maré se vai levantar. (...)

Aprender a nadar com um falso disco de Verão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.5
DATA: 2018-09-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de The Divine Femine, apaixonante e apaixonado disco de 2016, Mac Miller está a nadar com os tubarões. E se isso pode soar perigoso, o certo é que daí resultou um fabuloso, comovente e elegantíssimo disco de um miúdo que largou as bóias e compreendeu que a vida é mais ou menos como a água, ora cristalina, ora turva. Nade-se, que a maré se vai levantar.
TEXTO: No videoclip de Stay – decepcionante e nada imaginativo, assente que está numa montagem feita a partir de rígidas planos captados através de um drone –, uma das mais belas canções de um dos mais belos discos de 2016, The Divine Femine, o americano Mac Miller surgia, de pé, rodeado de água por todo o lado, em modo enérgico, vivaço, sorridente. Enfim, feliz. A água não incomodava, dava-lhe pelos pés. Autoria: Mac Miller Warner Bros. RecordsEram tempos cor-de-rosa, esses em que namorava a cantora Ariana Grande (pop star que, dona de um vozeirão clássico, não sabe, infelizmente, o que fazer com ele, perdendo-se em baladas chiclete) e lhe dedicava o disco, o tal em que a “divinizava” (ou em que divinizava, talvez, a ideia de amor em si). Nada ridícula carta de amor em que a própria Ariana ajudava à missa (“matrimonial”, então), ora integrando os coros, ora cantando mesmo em nome próprio em My Favourite Part, de uma cumplicidade irresistível: “You just don’t know how beautiful you are / And baby that’s my favourite part”, verso perfeitamente idealista, próprio de quem observa a(o) amada(o) de longe e só lhe conta as coisas pela metade, guardando o resto para si (amar alguém pode também significar amar as ideias e as imagens que se constroem sobre ela). Mas havia também o vídeo de uma actuação ao vivo, os dois perfeitamente enfeitiçados olhando-se em palco, a certa altura desfazendo-se mesmo numa gargalhada, o profissionalismo traído pelo coração. Entretanto, Miller viu o nível das águas subir rapidamente, já não lhe dão pelos pés, e Ariana já não lhe dá a mão – não obstante ter afirmado que continua a gostar e a admirar Miller do fundo do coração, reconheceu publicamente que a relação era “tóxica”: “Não sou babysitter nem mãe, e nenhuma mulher tem de sentir que o deve ser. Tratei dele e tentei que se mantivesse sóbrio e equilibrado durante estes anos” (coisa que Miller desprendidamente confirmou em entrevista recente à Rolling Stone quando questionado se se encontrava numa nova relação: “Nem pensar! Estou a descansar. Eu mal consigo tomar conta do meu cão”). Ou, então, numa versão mais ancestral, Ariana como a Ariadne que, salvando Teseu do minotauro, é depois por ele decepcionada… Como se vê, a água agora é muita, Miller perdeu o pé, a certa altura viu-se mesmo submerso, teve de espernear, sobreviver, nadar. Swimming. A água, aqui, já se intuiu, é metáfora infinita, banha todo o disco: ela é, desde logo, elemento fundamental sem o qual (nós, Miller) não sobrevivemos; há-a doce e salgada; no cinema americano, e para nos cingirmos àquele que é mais contemporâneo de Miller (ele que tem um álbum intitulado Watching Movies With The Sound Off), a água é tão lúdica como dada à solidão (a de pai e filha no Somewhere - Algures de Sofia Coppola) e à introspecção (o mergulho de Shailene Woodley n'Os Descendentes de Alexander Payne); o “amor líquido” de Bauman, conceito que assenta que nem uma luva à geração de Miller e Ariana. . . SWIMMING demonstra, por outro lado, como o amor pode funcionar em sentidos muito diversos no que à famigerada “inspiração” diz respeito: tanto para a criação de odes apaixonadas, encantatórias, como para sofridas elegias, sim. Mas ainda, como neste caso, para meditações que, se iniciadas sob o signo da ferida, a ultrapassam largamente, permitindo ao seu autor olhar para dentro, respirar, fazer uma avaliação que, antes de tudo, é sobre si e independente, por exemplo, de uma relação amorosa. Come back to earth: assim se inicia um dos mais esplendorosos discos da música norte-americana dos últimos anos, com lata, inclusivamente, para superar o quão refinado The Divine Feminine já era, trabalho que selou o definitivo descolar de Miller em relação ao hip-hop adolescente, convencional e sample-based dos seus trabalhos anteriores. “Há pessoas que acham que a minha música antiga era melhor, pessoas que acham que eu só devia rappar e não cantar e outras que acham que eu devia apenas cantar. É confuso”, confessou ele na mesma entrevista à Rolling Stone. Talqualmente Congratulations, que iniciava o disco anterior, Come back to earth dispensa percussões e vai-se propagando graciosamente com a voz cantada de Miller em primeiro plano, aqui numa orquestração ainda mais complexa (ao wurlitzer e ao violino, juntam-se o baixo e os sintetizadores). Do divino, Miller volta, então, ao terreno, do céu para a terra. É preciso cravar os dois pés, é nela – terra, realidade, o que lhe quisermos chamar – que se encontra a saída (“I just need a way out of my head / I'll do anything for a way out”) para um tipo que, nascido em berço criativo (pai arquitecto e mãe fotógrafa) em Pittsburgh, Pensilvânia, passou por uma juventude problemática cujas “distracções” (drogas, problemas mentais, enfim, uma certa vida de low-life) nunca foram suficientes, felizmente, para abafar o seu virtuosismo. Essa primeiríssima canção, de inaudita fineza, dá, outrossim, o mote para o restante disco, iluminando-lhe o título: “In my own way, this feel like living / Some alternate reality / And I was drowning, but now I'm swimming / Through stressful waters to relief”. É só a primeira das muitas referências à água, a qual, juntamente com outros elementos (vento, calor, frio, chuvas, sol), se não faz certamente do disco um objecto místico, confere-lhe, porém, uma inegável dimensão sensorial, com a luz, a cor e a temperatura a variarem ao longo das 13 canções. Objecto chiaroscuro, então, ou, se quisermos, um falso disco de Verão, tão faux como o famoso “quadro de Verão” de David Hockney, A Bigger Splash, tão pop quanto perturbador. Harmonicamente colorido, luminoso, inclusivamente com referências a mares e piscinas supostamente distractivos, mas de letras e inflexões invernosas, que cantam a dor de um amor rompido, de corpos que não mais se tocam, olhares e sorrisos – como os da tal actuação ao vivo – que se deixam de cruzar (“Turn the ignition, I'm driven and sittin' pretty / Listenin' to Whitney and whippin' it through the city”, referência, em Hurt Feelings, a uma sempre-dilacerada Whitney Houston que não se podia ajustar melhor ao estado de espírito de Miller). Mas não apenas isso: numa outra generosa dose, também a aprendizagem de como lidar com a depressão e a ansiedade (“I'm just tryna start believin' in God / Now when it gets hard I don't panic, I don't sound the alarm / Because I don't need to lie no more / Nowadays all I do is shine, take a breath and ease my mind”, em 2009), a solidão (“My regrets look just like texts I shouldn't send / And I got neighbors, they're more like strangers / We could be friends, voltando a Come back to earth), as dependências e o ruído mediático à sua volta (que o levou, aquando do rompimento com Grande, a eclipsar-se das plataformas online). “Se um monte de gente acha que sou um junkie, que posso eu fazer? Ir falar com todas essas pessoas e dizer-lhes ‘Não, pá, as coisas não são assim tão simples’? Se consumi drogas? Sim. Se sou um junkie? Não”, afirmou à Rolling Stone. Embora Miller saiba sempre manter o humor, a coolness, enfim, um gracioso desprendimento nas letras das canções, como quando trauteia, em Perfecto, “I swear that if I drown I don't care / They callin' for me from the shore, I need more” (ou, numa negra linha de Small Worlds, “Don't wanna grow old / So I smoke just in case”). “Eu posso encontrar qualquer teoria que quiser sobre mim na net. Antes, costumava olhar para o Twitter e para o Instagram e ficar com o meu ego destruído em 5 minutos todas as manhãs. Era demais. Se eu já tenho os meus próprios pensamentos e emoções sobre o que passei, por que raio haveria de guardar espaço para os dos outros?!”, disse, recentemente, a Zane Lowe no programa de rádio Beats 1. SWIMMING significa isso mesmo: nadar, ou melhor, “nadando”, forma gerundial que expressa a perseverança implícita nessa ideia de uma forçosa perpetuidade. O quinto LP do americano não é, por isso, como tantas vezes acontece, o típico disco de “superação”, de bonança depois da tempestade. Wings, com um lindíssimo refrão, é o que mais próximo disso estaremos: “I'd put some money on forever, but I / Don't like to gamble on the weather, so I just watch / Well, the sun is shinin', I can look at the horizon / The walls keep gettin' wider, I just hope I never find 'em”. Por outro lado, não corresponde também ao não menos clássico disco de “dor de corno”, de quem está em pleno processo de dor e (eventual) cura. É, antes, e maduramente, uma reflexão descomprometida com metas, e, mais importante, a aceitação de que o corpo não está – nunca estará – completamente à tona (nadar é, por definição, ter a cabeça dentro e fora de água). Eppur si muove. Ainda assim, vamos nadando (temos que), acelerando quando é o caso, afundando-nos umas vezes, boiando relaxadamente noutras, esbracejando frequentemente. “Putting way too much on my shoulders, please hold me down / I keep my head above the water”, afirma em Hurt Feelings, por contraposição ao que lhe ouvimos, em modo cowboy triste, em Jet Fuel, “Now my head underwater / but I ain’t in the shower and I ain’t getting baptised". Nadar, em qualquer caso, não contra a corrente, mas com a corrente, eventualmente encontrando outras pelo caminho, até porque a maré, por um conjunto de insondáveis factores que não dominamos, não vai estar sempre cheia. Sintomaticamente, no videoclip de Self Care (que explicitamente cita a famosíssima cena de Uma Thurman no Kill Bill de Tarantino), um dos singles pré-anunciados, Miller, conseguindo finalmente sair de um caixão sob sete palmos de terra (“I should've died already”, dizia ele, já em 2014, em Inside Outside, primeira faixa da mixtape Faces), não fica, enfim, “em paz”. Pelo contrário. Quando ainda se está a sacudir da terra, momento em que se dá uma mudança de direcção na canção, uma violenta explosão (terá Christian Weber visto a última sequência de Antonioni em Zabriskie Point?), depois de o atirar em queda livre, mal o deixa em pé, rodeado de chamas. Isso: fogo e água, caminhar e nadar, continuar, pois que o tempo não estica. É para isso que aponta o memento mori (expressão latina para a consciência da morte, da nossa finitude) que Miller inscreve com a navalha na zona do caixão que, uma vez quebrada, lhe permitirá regressar ao mundo dos vivos (a solenidade da cena que a descrição pode insinuar é atenuada pela ironia suicida de, enfiado num caixão onde o oxigénio rareia, Miller ainda se dar ao luxo de acender um cigarro). Esse mundo a que pertencem os seus ouvintes, com quem, afirmou no Beats 1, mantém uma relação genuinamente bonita. “São pessoas que estão comigo desde que eu era apenas um miúdo ingénuo de 19 anos e passei a ser um junkie deprimido e auto-destrutivo, até chegar aqui, em que estou a fazer a música que estou a fazer”. Se juntarmos The Divine Femine a SWIMMING teremos talvez dois dos mais “negros” discos dos últimos anos concebidos por um miúdo de 26 anos, branco, que nem nascido era quando George Clinton e Bootsy Collins partilhavam o mesmo palco, Prince editava Sign O' The Times (1987) ou Michael Jackson apontava ao trono com os seus três discos-charneira (Off The Wall, Thriller, Bad). Pressentimos o génio de Minneapolis e o menino-prodígio da Motown – assim como o património que os antecede (Kool & The Gang, Earth Wind & Fire) – em What’s the Use (que faz as vezes de irresistível malha disco-funk que Dang! já representava em The Divine Femine) ou Ladders (aquele riff de guitarra, muito Isley Brothers, que antecede o hook, ao que se segue a desbragada felicidade personalizada na tríade “soprante” composta por sax, trompete e trombone). Gente contemporânea como os Gorillaz ou os Daft Punk, Toro y Moi e Ariel Pink ecoam igualmente em SWIMMING, sofisticadíssima peça tão melancólica quanto dançante de soul, funk, R&B, pop ou hip-hop – mas, note-se, também de algum indie rock e psicadelismo (Mac DeMarco ou até Beck vêm à memória), como as cordas e as baterias de Wings ou So It Goes o sugerem. Tudo isso vai ressoando por aqui e acolá, mas Miller bem pode puxar à vontade dos seus próprios galões: multi-instrumentista (baterias, teclas, guitarra), rapper, cantor, compositor e produtor, é ele o cérebro, o maestro de um álbum de minuciosos, sublimes, arranjos (para o que muito contribui, claro, Jon Brion, colaborador habitual de Fiona Apple ou Rufus Wainwright, mas também, no cinema, de Paul Thomas Anderson), e de uma não menos majestosa orquestração. Repare-se no modo como Small Worlds termina apenas ao piano, da mesma forma que o violino fecha, sozinho, Dunno (instrumental onde, por mais estranho que isto soe, conseguimos imaginar a voz de B Fachada com à-vontade); em 2009, atente-se na melodia primordial do vibrafone entrecruzada, de fininho, pelo fogacho de órgão e o hi-hat, em cima dos quais Miller parece, sem nunca soar piegas, estar prestes a soçobrar. Ou, enfim, deixemo-nos estarrecer com os sintetizadores que acompanham os versos muito sonhadores, favorecidos pelo uso do vocoder, no final de Jet Fluel (“Fate in your hands / While you're waitin' for me / I'm already there / Already, dear / Now is only now / Head back to the ground, dear”). Como já se percebeu, trata-se de um álbum para cuja escuta umas colunas de som dignas e o ouvido atento são condição absoluta, e onde à ausência de convidados se contrapõe uma riquíssima equipa de colaboradores nos bastidores: Dâm-Funk, Syd e Steve Lacy (ambos dos The Internet), Thundercat (“Sinto que ele tem sempre uma visão própria, é um monstro na sua arte”, disse o baixista sobre Miller, com quem vai entrar em digressão em Outubro, à Rolling Stone), Snoop Dogg, Flying Lotus, J. Cole, Pharrell Williams. A nata da música negra americana actual. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem ouvir o trecho introdutório de 2009 poderá até questionar-se se se trata de música clássica. Obviamente que não é música clássica, mas a alusão deixa transparecer a delicadeza, a filigrana da composição, assim como as emoções que o disco produz no ouvinte do primeiro ao último minuto. O último minuto, portanto, de So It Goes, na qual, após a voz de Miller se arrastar meigamente pela atmosfera lo-fi, caseira, da canção (“Everybody gather round / I'm still standing, sit down”, convida-nos ele, já depois de termos ouvido os latidos do fiel companheiro lá de casa), fechamos os olhos para aquele maravilhoso final de sintetizadores oníricos a ecoarem no êxtase total. Sonicamente coerentíssimo, coesíssimo, SWIMMING revela-se no momento em que encontramos a caneta de Miller no seu pico de inspiração, sem que a melancolia e a poesia despretensiosa de grande parte do texto obliterem por completo as tiradas mais corriqueiras que lhe são características, próprias da idade, e que tão bem lhe ficam pelo que de honesto respiram. Uma equação que joga com a própria indumentária que Miller apresenta na capa do disco: de gravata e fato rosa de excelente corte, mas sentado no chão, cabisbaixo, de pés descalços, wasted (mas, lá está, sentado, já não deitado, derrotado). Atrás de si, uma porta. Será a porta a que se refere em 2009 (“It ain't 2009 no more / Yeah, I know what's behind that door”)? E, se for, o azul que entrevemos na minúscula janela será água ou céu?Há essa tendência (já quase uma convenção), quando se escreve sobre música, para sublinhar a excelência dos discos “imperfeitos”, como se os seus cantos menos polidos, as suas fragilidades, sublinhassem uma superlativa beleza (o "erro” como característica artística superior), por contraposição à ideia de perfeição como algo "excessivo" (excessivamente certo, arrumado, calculado). Pois bem, SWIMMING não é arrumado e de calculado nada tem, mas é perfeito. Não sabemos se é “o melhor disco do ano” (é o que menos importa, na verdade), mas apenas que, enquanto falso disco de Verão para ouvir em qualquer estação do ano, ele é isso mesmo: um disco perfeito.
REFERÊNCIAS:
Criado um atlas da ligação entre a placenta e o útero no início da gravidez
Ângela Gonçalves faz parte de uma equipa de cientistas que fez um novo atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta no primeiro trimestre de gravidez. (...)

Criado um atlas da ligação entre a placenta e o útero no início da gravidez
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-12-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ângela Gonçalves faz parte de uma equipa de cientistas que fez um novo atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta no primeiro trimestre de gravidez.
TEXTO: Durante os primeiros três meses de gravidez, ocorre uma invasão fundamental: as células fetais da placenta invadem o tecido materno e entram em contacto com as células do útero. Caso esta acção não seja bem-sucedida, pode haver problemas de pré-eclampsia ou até a morte do feto. Apesar de ser crucial, ainda se sabe pouco sobre esta “ofensiva” tão complexa. Como tal, uma equipa de cientistas da Europa – incluindo a portuguesa Ângela Gonçalves – entrou no “palco da batalha” e estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células do primeiro trimestre da gravidez. Resultado: criou-se um atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta nos primeiros três meses de gravidez. Ângela Gonçalves começou este trabalho ainda quando estava no Instituto Wellcome Sanger (Reino Unido), onde hoje continua como cientista convidada. Depois, a bioinformática foi para um grupo de investigação no Centro Nacional Alemão de Investigação para o Cancro e levou este trabalho com ela. Agora, conta-nos como é uma investigação importante. “Os primeiros três meses são os mais críticos da gravidez”, aponta a cientista. Porquê? “É nesta altura que a placenta – órgão que permite a troca de oxigénio e nutrientes entre a mãe e o feto – se começa a desenvolver” e se implanta no revestimento interno do útero, que é composto por uma camada de células chamada “decídua”, para criar um bom fornecimento de sangue no feto. E salienta: “Problemas com o desenvolvimento da placenta podem ter consequências graves. ” Entre esses problemas, está a formação anormal dos vasos sanguíneos na placenta, o que pode levar ao desenvolvimento de pré-eclampsia – distúrbio da gravidez que se caracteriza pela pressão arterial alta da mãe, pode levar a convulsões e ser mesmo fatal tanto para o feto como para a própria mãe. Para se perceber o que está em causa na formação na placenta teremos de olhar ao pormenor para a tal invasão das células fetais no tecido materno e para a remodelação dos vasos sanguíneos maternos. “Ao entrarem em contacto directo com as células maternas torna-se necessário que o sistema imunitário materno não rejeite as células do feto”, explica Ângela Gonçalves sobre uma das frentes da invasão. “Por outro lado, as células maternas precisam de evitar que as células do feto invadam o tecido materno de forma excessiva, o que também pode provocar problemas. ” Portanto, convém que se encontre um compromisso na definição da fronteira entre o tecido materno e o tecido do feto. Através da nova tecnologia de sequenciação de ARN de uma única célula, a equipa estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células da placenta e da decídua do primeiro trimestre de gravidez. “Este estudo olha em detalhe para os genes que estão activos nas células maternas e células da placenta para criar um mapa extremamente detalhado da identidade [das células] e da comunicação celular nesta fase crítica da gravidez”, assinala Ângela Gonçalves. Além disso, a investigadora refere que também usaram métodos experimentais que localizam as células em diferentes áreas dos tecidos e criaram uma base de dados das moléculas através das quais as células comunicam. Desta forma, foi possível identificar que tipos de células interagem umas com as outras e de que forma. O que se descobriu? “Descobriu-se que as células fetais e maternas estão a usar sinais para falarem umas com as outras e que esta conversa permite ao sistema imunitário materno suportar o crescimento do feto”, lê-se no comunicado do Instituto Wellcome Sanger. “Pela primeira vez, fomos capazes de ver quais os genes que estão activos em cada célula na decídua e na placenta e descobrir quais deles poderão modificar o sistema imunitário materno”, refere no comunicado Roser Vento-Tormo, do Instituto Wellcome Sanger e primeira autora do artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Nature. “As células fetais da placenta comunicam com as células do sistema imunitário da mãe para assegurar que a placenta se implanta correctamente. Isto permite que o feto cresça e se desenvolva correctamente. ”Ângela Gonçalves acrescenta: “Este estudo revela a existência de vários novos tipos de células e identifica a sua localização no tecido materno. ” A cientista exemplifica que se identificou a presença de três tipos distintos de células maternas NK (do inglês natural killer, ou células exterminadoras naturais), uma população de células do sistema imunitário comum no útero nesta fase da gravidez. Assim, através do estudo das interacções destes três tipos de células e das restantes, concluiu-se que as funções mais prováveis das células NK são o controlo da invasão do tecido materno pelas células da placenta, assim como a coordenação de outras células imunitárias como as linfócitos T. “Em geral, o estudo revela ao nível molecular e celular os mecanismos pelos quais é criado um ambiente pacífico e apropriado para o desenvolvimento do feto”, resume a cientista. “O atlas celular gerado por este estudo serve como referência única para a compreensão da gravidez normal e a investigação dos distúrbios que ocorrem em situações de doença”, diz Ângela Gonçalves sobre a importância e aplicação deste trabalho. É um dos primeiros atlas que estão a ser agora gerados para vários órgãos do corpo humano na iniciativa internacional Atlas das Células Humanas (Human Cell Atlas), que tem a missão de mapear a actividade genética de todas as células do nosso corpo. Num comentário ao trabalho, também na Nature, Sumati Rajagopalan e Eric Long (do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos) sublinham como a grande limitação para se compreender o desenvolvimento humano tem sido a falta de modelos animais representativos. Para estes cientistas, a equipa de Roser Vento-Tormo “fornece uma referência molecular humana”. A partir de agora, poderá comparar-se a gravidez em modelos animais com essa referência molecular, para encontrar características partilhadas com os humanos. “Além disso, dados obtidos em mulheres com complicações na gravidez podem ser avaliados usando este recurso. Isto poderá levar à identificação de biomarcadores em complicações comuns na gravidez. ”E não só. “Ao mapear o território celular e molecular do primeiro trimestre da gravidez, este estudo esclarece-nos como a interface materno-fetal tem um ambiente pacífico e tolerante em que a reacção imunitária é atenuada”, escrevem. Mesmo assim, os cientistas avisam que esta tolerância imunitária pode ter um custo. E dão o exemplo da vulnerabilidade a certas infecções como o vírus Zika e a malária. Os dados da equipa de Roser Vento-Tormo “dão-nos um poderoso enquadramento para avaliar a paisagem do início da gravidez durante estas infecções devastadoras”, comentam ainda Sumati Rajagopalan e Eric Long. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E qual o contributo da cientista portuguesa neste trabalho? Desenvolveu um método computacional e estatístico que permitiu quantificar um conjunto de genes que controla a activação e inibição das células NK do sistema imunitário materno. Essa quantificação permitiu o desenvolvimento de novos modelos de interacção entre as células imunitárias NK e as células da placenta. Actualmente, Ângela Gonçalves está agora a usar métodos de sequenciação genómica e análise computacional para estudar os primeiros passos do desenvolvimento do cancro e, através desse conhecimento, ajudar a desenvolver métodos para uma detecção precoce. “Para detectar o cancro de forma antecipada é necessário identificar alterações celulares muito subtis nos tecidos”, explica a bioinformática. “Para tal, é necessário ter um bom conhecimento do estado saudável dos órgãos. Este projecto foi uma oportunidade única de obter uma referência – ou mapa – do estado de expressão genética em células saudáveis do útero durante a gravidez. ” Ângela Gonçalves explica que o seu laboratório está interessado sobretudo em tumores do sistema reprodutivo feminino, do endométrio e do ovário. E a sua equipa irá usar este mapa (e outros do sistema reprodutivo feminino fora da gravidez) como referência para desenvolver novos métodos de detecção do cancro.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte humanos doença estudo mulheres corpo
“Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra”
Uma antologia com inéditos: foi assim que Aldina Duarte pensou o seu novo espectáculo na Culturgest. Para ouvir fado a fado, palavra a palavra. Esta sexta-feira, às 21h30. (...)

“Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma antologia com inéditos: foi assim que Aldina Duarte pensou o seu novo espectáculo na Culturgest. Para ouvir fado a fado, palavra a palavra. Esta sexta-feira, às 21h30.
TEXTO: No ano da anunciada despedida de Miguel Lobo Antunes como programador da Culturgest (cargo que antes exercera no CCB), Aldina Duarte respondeu sem hesitar ao convite para voltar a actuar naquele palco. Pensou, e agora di-lo em voz alta: “Tenho de fazer um concerto especialíssimo, de tributo a esta sala e dedicado ao Miguel, que acreditou em mim desde o primeiro dia. Acho que ninguém gosta mais do meu fado do que ele; tanto, talvez haja alguns, mais é impossível. ” Foi no Grande Auditório da Culturgest que Aldina fez o primeiro concerto da sua vida. “Estava bastante relutante, até porque não tinha como objectivo levar o meu fado para concertos e muito menos para salas grandes, mas o Miguel achou que a sala era perfeita para pôr o meu fado em concertos, e isso foi feito com a ajuda do Jorge Silva Melo, outra das pessoas que gosta tanto de me ouvir como o Miguel. ” A partir daí, todos os seus discos tiveram estreia naquele palco. “Exceptuando Romance(s) que foi estreado no CCB, porque eu já não tinha como dizer-lhes que não. ”Aldina chamou ao seu novo espectáculo Fado: a Música e as Palavras. E explica porquê. “É uma espécie de antologia, mas com inéditos, feita sobretudo com fados dos três letristas com quem tenho trabalhado sempre: a Manuela de Freitas, o João Monge e Maria do Rosário Pedreira. ” Os dois últimos escreveram na íntegra álbuns para ela e agora assinam dois dos inéditos que ouviremos na Culturgest: A estação dos amantes, de João Monge; e Sem cal nem lei, de Maria do Rosário Pedreira, ambos com música de Armando Machado (1899-1974), o primeiro no Fado Santa Luzia, o segundo no Fado Súplica. Mas é de Manuela de Freitas o inédito mais antigo que Aldina cantará neste concerto, e chama-se Sorte com sentido: “Foi a primeira letra que alguém escreveu para mim, ainda antes mesmo do meu primeiro disco. Não coube em nenhum dos discos que gravei e a única vez que ficou registado foi num programa televisivo. Mas é um tema fabuloso e tem uma letra maravilhosa, que fala da minha relação com o fado. Tem mais ou menos estes versos: ‘Se é certo que fado é sina/ Com meus sonhos de menina/ Joguei meu fado na sorte/ Arrisquei muita cartada/ Fiz muita vaza cortada/ E apostei sempre mais forte. ’ Depois, com uma repetição, muda: ‘Arrisquei muita cartada/ E subi tanto a parada/ Que fui parceira da morte. ’” Manuela de Freitas tinha escrito esta letra inicialmente para Camané. “Mas ele não se sentiu confortável com a letra, e então ela transformou-a para uma mulher e deu-ma a mim”, diz Aldina. “Criei três blocos essenciais, com Apenas o Amor, Crua, Mulheres ao Espelho, Contos de Fados e Romance(s): esta é a antologia. Mas na abertura do concerto e entre cada bloco estão fados que eu nunca gravei e que são doutros, nunca ninguém mos ouviu cantar a não ser na casa de fados. E são fados musicados, não são fados tradicionais. Ou seja: eu fui repescar o tal inédito da Manuela de Freitas, um fado da Lucília do Carmo que cantei no mesmo programa de TV onde cantei esse mas que nunca mais cantei, Não me conformo; canto o Não vou, que é também é da Lucília do Carmo mas que gravei no Mulheres ao Espelho; canto um fado da Fernanda Maria, o Loucura, loucura; e canto ainda um fado que é um tributo à Maria da Fé, a Porta maldita. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O espectáculo abre com outro inédito, Auto-retrato, que João Ferreira-Rosa primorosamente escreveu para Aldina, que ela nunca gravou mas já cantou em palco duas vezes: no São Luiz, na celebração dos seus 20 anos de carreira, em Março de 2014; e na Culturgest, a encerrar o concerto de 3 de Outubro de 2015. Ou seja: no antecessor deste. Começa assim o actual concerto no exacto ponto onde o anterior tinha acabado, o que é uma boa forma de retomar o fio do tempo. “O mais arriscado é que vou estrear os fados do João e da Rosário em palco, coisa que nunca fiz. Estreio-os sempre na casa de fados ou então no estúdio, que sempre dá para voltar atrás. Não sei como resultará, mas acho que devia fazê-lo na Culturgest. Porque sempre arrisquei tudo nesta sala. ”A par desta caminhada pelos fados, haverá um “bloco com a banda”, que corresponde ao “lado B” de Romance(s): “Vou cantar um tema desse disco com o João Cardoso, com o Pedro Vidal na guitarra eléctrica e com o Pedro Gonçalves na guitarra e na viola-baixo. ” Isto liga com o bloco dos Romance(s) à guitarra e à viola, aqui com Paulo Parreira e Rogério Ferreira, respectivamente. “E daí parte-se para o final, que são os hits de cada disco. ”Não haverá efeitos cénicos especiais. “Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra. A única coisa que haverá em palco é uma mesa com uma cadeira, símbolo do intimismo da casa. Quero este que seja o meu espectáculo mais nu, cenicamente, e onde tudo está pensado para nos focarmos fado a fado e com toda a concentração, não só no sentido mas também na musicalidade de cada palavra. ”
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Beatriz Batarda: “Escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia”
Uma conversa sobre actrizes, egos, choro e mamas. Aos 25 anos de carreira, na sua primeira incursão na televisão portuguesa, a actriz Beatriz Batarda é a actriz Sara na série de Marco Martins que se estreia domingo na RTP2. Fê-la rir de si mesma, fê-la desconstruir clichés. (...)

Beatriz Batarda: “Escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma conversa sobre actrizes, egos, choro e mamas. Aos 25 anos de carreira, na sua primeira incursão na televisão portuguesa, a actriz Beatriz Batarda é a actriz Sara na série de Marco Martins que se estreia domingo na RTP2. Fê-la rir de si mesma, fê-la desconstruir clichés.
TEXTO: Sara é uma actriz dita séria que lida com o olhar sobranceiro sobre a novela e os actores que se “vendem à TV”, como a certa altura um fã lhe atira. E é uma série que sobrevoa tanto a imagem do cinema português quanto as modas do abacate e do açaí. Sara é um papel que só podia ser de Beatriz Batarda. E Sara é uma nova série portuguesa que conta a história da actriz dramática que deixa de conseguir chorar. Vai ver como vive a outra metade, nas novelas e no Facebook. Estreia-se dia 7 às 22h15 na RTP2, e não no primeiro canal que tem albergado todas as novas séries nacionais da estação pública. Chega aos 25 anos de carreira de Beatriz como uma série especial. É audiovisual sobre audiovisual. Faz o malabarismo da homenagem aos mestres do cinema e da imagem colorida das novelas, entre o riso genuíno e a solidão. Os primeiros episódios passaram, com sucesso, no festival IndieLisboa. É a estreia de Marco Martins e de Beatriz Batarda na televisão portuguesa e no humor, fruto de uma ideia original (e depois argumento) de Bruno Nogueira após um desafio de Nuno Artur Silva durante o seu principado na RTP. São dois homens que escreveram para e filmaram com uma mulher e uma actriz que conhecem bem: Batarda fez Alice, Como Desenhar um Círculo Perfeito ou São Jorge com Marco Martins, realizador que já foi encenado por ela, juntamente com o marido Bruno Nogueira, na peça Como Queiram, por exemplo. Filha do pintor Eduardo Batarda, também conhecida como Beatriz Moreno, interpreta Sara Moreno. Mas a actriz de A Caixa e Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, nega os paralelos fáceis que se poderão estabelecer com a personagem, que é filha de um conceituado escritor ficcional e que vocifera contra um pretensioso realizador “armado em Tarkovsky, foda-se!”. A série está iminente, mas Batarda está já em palco no D. Maria II com Teatro, de Pascal Rambert, em que também faz o papel de actriz. A conversa decorreu perto do teatro nacional, na Veneziana, com turistas e a Baixa de Lisboa em fundo. A comida estava na ordem do dia, e o gelado em cima da mesa. Na série, a Sara cozinha todas as noites para um pai emocionalmente distante. São pratos bem reconhecíveis. . . Comida tradicional portuguesa. Fui eu que escolhi. Exacto: iscas, carne de porco à alentejana, jaquinzinhos – porque é que era importante que ela cozinhasse sempre comida portuguesa para o pai viúvo?É a minha interpretação do pai, da relação com um pai de um tempo antigo. Construí isso no meu imaginário: é alguém a quem é um bocadinho difícil agradar. E com comida mais antiga, naquele esforço de agradar ao pai, ia buscar receitas que imaginaria que a minha avó faria para ele. Uma ideia de alimento de conforto. Não ia fazer bulgur. Estava à procura de o encantar, de o agarrar pela memória afectiva da cozinha da mãe. Mas sempre a falhar. É comum perguntar aos actores como se relacionam com as personagens, se as levam para casa – no caso da Sara, que partiu da biografia da actriz que lhe dá corpo, como é que isso modula a resposta?Não, da minha biografia não tem nada. Sara Moreno, Beatriz Moreno… Há bastantes detalhes. São as brincadeiras. Eu também propus Sara não só pela Sarah Bernhardt, porque esta [Sara] também é uma grande fiteira, mas também é o nome do deserto. E ela está a perder a capacidade de chorar, está seca, está árida. A minha vida não tem nada a ver com a dela, não sou filha de escritor paraplégico, a minha mãe está bem graças a deus, sou casada com três filhas. A minha vida não é um deserto, é tudo menos árida. E ainda consegue chorar?Ainda choro bastante, gosto muito de chorar, choro pelas coisas mais imbecis – género America’s Got Talent. E o Masterchef Austrália. Portanto de biográfico não tem nada, a única coisa é a coincidência que é a série ser sobre uma actriz e eu efectivamente sou actriz [risos]. E não é uma actriz que se sente conotada, ou convocada, sobretudo para papéis dramáticos?Se quisermos encontrar pontos em comum, que não têm nada a ver com a biografia pessoal, sim, do ponto de vista profissional há uma caricatura daquilo que represento e tira-se partido dessa caricatura. Divirto-me muito a fazer essa caricatura do que represento e da imagem que algumas pessoas — porque não sou uma figura tão conhecida como isso — foram construindo. Uma ideia de uma imagem de uma pessoa arrogante ou intolerante… Tudo o que é extremado, o cliché da actriz esgotada. Não interferi em nada da escrita, fizeram-me [só] uma entrevista sobre rotinas. São pessoas com quem trabalho há muitos anos, sobretudo o Marco, e conhecem a minha maneira de trabalhar mais do que traços de personalidade — não estão interessados em perfis freudianos. Tiraram partido da maneira como trabalho as personagens, de eu as fazer sempre a pôr muitas contradições, mesmo que não estejam lá — comportamentos, reacções e pontos de vista contraditórios - dentro da mesma pessoa. Não gosto de lógica nas personagens e estou sempre a contrariar isso, porque isso da lógica é uma coisa da ficção. E a vida não tem nada de lógica. Nós mulheres somos sujeitas a pressões de muitas ordens diferentes e esse sobrecarregar vai fazendo com que o nosso estado no mesmo dia possa variar imensas vezes. Gosto dessas arestas, dessas facetas, desses buracos meio misteriosos nos perfis femininos e tiro partido disso na construção das personagens. Eles, ao escreverem a série, escrevem a pensar em mim, mas estão a pensar na actriz que sou. Sobre essas pressões, no primeiro episódio há uma explosão da Sara na rodagem de um filme pretensioso com um mau guião: ela grita sobre como só a chamam para chorar ou mostrar as mamas. Há uma responsabilidade ou uma carga sobre uma actriz protagonista de um filme, série ou novela, diferente daquela que tem um actor?Essa cena… não é para levar literalmente. É muito comum um actor, quando não consegue criar foco suficiente para se evadir do aqui e agora e para ir para o outro lugar da fantasia, o lugar ficcional, de outro tempo e geografia que é o que o plano da câmara verá naquele filme, criar bodes expiatórios. De repente tudo é culpado menos a sua própria dificuldade em focar. Sim, a concentração é um exercício difícil, exige muita determinação e energia física e emocional, um lado muito atlético intelectualmente. Pede-se às pessoas que sejam sensíveis a esse esforço e que não criem distracções, que não se mexam, não estejam ao telemóvel na linha do olhar do actor, que não façam barulho. E as equipas nem sempre respeitam isso. Eu já filmei — e não fiz uma cena nessa ocasião, mas é uma história verídica na qual se falou quando estavam a escrever o guião — uma cena em que entrava às 5h da manhã no quarto da minha filha que não tinha vindo dormir à noite e com quem estava muito preocupada. O quarto “vazio” não só tinha uma equipa inteira lá dentro quanto um electricista a ver SMS deitado na cama aos pés da qual eu me sentava. É realmente pedir muito de um actor. De repente a consciência da situação é tão absurda que dá vontade de rir e perde-se o foco. Essa cena é sobre isso: ela não consegue resolver e começa a apontar dedos. Agora, o que ela diz é um cliché — chorar ou mostrar as mamas. Não fui muito uma actriz que tivesse construído uma carreira em cima do corpo porque nunca tive um corpo escultórico espectacular, mas mostrei as maminhas umas quantas vezes. Mais vezes do que os meus colegas mostraram os rabos. Mas percebo que umas maminhas bonitas dão mais vontade de ver do que rabos peludos. Acho que essa questão da mulher tornada objecto não se pode generalizar. Porquê?Fiz formação de artes, de História da Arte. O estudo da beleza, da estética na nossa história da arte ocidental, e o corpo feminino enquanto corpo simbólico do belo, de fertilização, de vida, de milagre, não é uma coisa que me choca nessa celebração. Choca-me mais que deus, neste país, seja um homem. Para mim deus não será nunca um homem, será uma coisa — o nosso planeta Terra —, e se for uma pessoa é uma mulher. A adoração do corpo da mulher não me choca. O que me choca é a confusão entre a troca mercantil e o belo. Quando deixa de ser um gesto de beleza, de adoração…De liberdade?E de liberdade, e passa a ser a utilização do corpo enquanto troca, aí entramos noutra discussão. Uma vez foi-me proposto, para fazer um filme, fazer implantes para ter o peito como a figura que ia representar, porque era uma biografia de uma figura da nossa praça — não vou dizer quem é. Eu estava a propor um duplo para as cenas de nu. A proposta que me fizeram foi fazer uma operação plástica, ao que respondi “não, agradeço imenso, a nossa conversa acabou aqui”. Neste registo, a questão que se põe é como é que te posicionas em relação a isso. E que liberdade e margem que se tem para um determinado posicionamento, porque há situações de maior fragilidade, e pressão…A mulher tem poder de escolha. Não aguento discursos de enfraquecimento da mulher. Não aguento isso. Não me considero fraca. A mulher tem força. Tudo tem consequências — se eu disser “não compactuo com isso, estou fora” tem consequências, mas vou dormir melhor, não vou estar escravizada em nome dos números e dos likes e das visualizações e das revistas, destas novas normas de estética. É uma moda, isto passa e já está a passar, as senhoras usam cabelo branco a partir dos 40, 50. A Sara é uma paródia, uma reflexão, uma revolta, um piscar de olho?Eles apresentam-na como uma sátira. Eu não vejo como uma sátira mas aceito. Recebi a série do ponto de vista da Sara, que é tudo menos sátira. É a crise existencial, dos 40, de uma mulher que se dedicou cegamente à sua arte, àquilo em que acreditava e sacrificou toda a sua vida pessoal em nome disso. E que por ser tão exigente se consumiu a ela própria. Por ser tão crítica, isolou-se cada vez mais. Não acho que a série critique o resto do mundo, o que o torna hilariante é que ela está numa frequência diferente. O choque é que torna tudo muito absurdo. A reflexão não está fechada no meio. É uma reflexão sobre conteúdo e imagem. O que é que aconteceu na nossa sociedade, onde a construção da identidade passou a ser uma coisa menor e a construção da imagem, da realidade virtual, através das redes sociais, passou a ser a prioridade. Os sumos, postar um guião, as plásticas, essa reflexão é importante e é geral. Esta é uma série “meta”. Uma actriz a interpretar uma actriz, um realizador a fazer experiências com géneros. Quão interessante é partilhar alguma técnica com o público televisivo?Quando se começa a entrar no "meta", o actor pode-se permitir abordar-se de outra maneira. Sim, está ao serviço de uma coisa maior, a ficção, mas a parte divertida é que começa a olhar para si e para o seu corpo como uma espécie de objecto artístico ele próprio. Quando tentamos alhear-nos da nossa realidade para abraçar a realidade da personagem dentro da ficção há uma negação da consciência, do olhar crítico, da reflexão no momento. Quando se entra neste tipo de registo fica muito divertido para o actor porque é um saltar permanente de um ponto de vista para o outro: o da personagem e o do actor que está a interpretar a personagem. Um alimenta o outro. É como se se multiplicasse o potencial da ficção, multiplicam-se as realidades. Dentro da cabeça do actor essa multiplicação é muito real. Real e concreto: a figura do Agente, interpretado pelo Albano Jerónimo, é espectral. É o chamado grilo falante. Está impregnado no nosso ADN. Ele diz coisas desconcertantes à Sara — “És um corvo sem asas”; está “quase a conseguir ser uma estrela do prime time”. Ouvem-se muitas coisas assim, como actriz?Ouve-se certamente, as pessoas que dão mais espaço a isso ouvirão mais com certeza. Eu não ouço muito, não sei que imagem construí… [risos] Às vezes umas amigas da minha mãe dizem coisas do género “Não devias ser fotografada sem maquilhagem”; “já não tens idade”. Mas não me chega muita coisa. E quando estamos há tantos anos nisto… São 25 anos… Os tempos mudaram muito, com o aparecimento do Facebook e das caixas dos comentários nos jornais. Não há espaço dentro do nosso afecto para guardar essas coisas. Que normalmente reflectem sim a pessoa que está a escrever. Os actores rapidamente perseguem isso. Mas percebi isso muito cedo, mesmo na altura em que havia crítica de teatro - que já não existe — criei muito rapidamente um filtro. Porque esta viagem de um actor, de um artista — pode-se ser actor sem ser artista — é muito solitária. Procuras o que precisas, procuras satisfazer a tua patologia. Procuras o actor que queres ser. Podes ser um artista, podes ser prestador de serviços. Um não é melhor do que o outro, é uma identidade, não é julgável. Não escolhi ser prestadora de serviços, escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia. Não é em função dos outros, da imagem. Os comentários, as opiniões — não é isso que vai alterar aquilo de que preciso. Quando Sara entra no mundo da novela não só sente e pressente as críticas, como recebe as mesmas críticas de quem faz novelas e a vê como outsider. Ela decide abraçar uma nova identidade, como se fosse uma personagem nova. É uma experiência humilhante ou de humildade?Nem uma coisa nem outra. É uma experiência mercenária. Ela encara aquilo como invenção de uma personagem. Quando percebe que é tudo uma questão de imagem, percebe que é uma persona, não é uma pessoa e vai beber o que as pessoas lhe estão a dizer para construir uma nova personagem. É como se estivesse a brincar com ela própria porque não tem mais nada para fazer, porque a vida dela está enguiçada. É muito triste. Que solidão. E tenta, e tenta. Já fez três séries britânicas, mas é a primeira vez que faz TV em Portugal. Porquê só agora?É agora porque os afectos são uma coisa muito forte, a confiança artística também, e porque se criou tempo para isso. Não sou uma peça numa engrenagem, sinto-me parte da construção do projecto. A ideia do Bruno, a convite da RTP, nasce de mim, não me posso sentir mais parte. E depois foi crescendo, o Marco juntou-se e é meu também. Há uns anos dizia que se fizesse novela ia ser difícil recuperar a sua imagem. Esta acabou por ser uma forma de molhar o pé nessas águas, sem danificar a imagem da Beatriz Batarda “actriz séria”?Isso já foi há muitos anos. E a coisa de espalhar semente pelos vários formatos é coisa masculina, não tenho isso. Mas tenho algum prazer em desconstruir clichés, ideias feitas. Gosto muito de aprender e tenho aprendido muito ao longo destes 25 anos. Acho que só me senti, numa altura da minha vida, a patinar na mesma coisa mas tive a sorte de ter tido sempre propostas estimulantes. Mesmo quando não era hiper-estimulante conseguia usar cada experiência como um passo dentro de uma viagem muito pessoal, dentro de um gesto artístico. Nunca voltei atrás no que estava à procura só para servir um projecto. É sempre uma coisa de casamento, e portanto de verdade, porque nunca forcei servir-me de um espectáculo e de um filme, ou servir tanto que abdicaria completamente de mim. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não vejo a ingressão da Sara pela novela como uma humilhação ou como uma lição de humildade. Vejo sempre como uma coisa mercenária. Não sei se é o meu egocentrismo que não me deixa sentir esse tipo de coisas. Nessa sua viagem de actriz, que papel desempenha a Sara?A Sara permitiu-me duas coisas importantes. A primeira foi rir de mim própria. O que me traz muita saúde, muita alegria, numa zona do meu viver que é muito séria, que é a única séria. Na minha vida não sou muito séria, mas no meu trabalho sou muito séria. Acho-me demasiado séria, às vezes levo-me demasiado a sério e fico angustiada e isso prejudica o resultado e a relação com o trabalho. Poder rir-me disso abre-me uma elasticidade que é interessante manter para o futuro. Depois, foi muito útil continuar a trabalhar um certo atletismo do pensamento que tenho vindo a desenvolver em teatro. Tem a ver com o espectro onde me movimento. Durante muito tempo esse espectro estava mais na zona emocional e das perturbações, das patologias, das contradições movidas pela emoção. E agora estou mais interessada em abrir essa latitude na articulação do pensamento. A construção da ideia, do ponto de vista e o diálogo crítico dentro de nós próprios como gerador de movimento para a frente, para o pensamento. A Sara tem isso tudo, porque tem estes músculos todos muito bem trabalhados na emoção, na velocidade de pensamento, na velocidade das verdades, porque o ponto de vista muda muito rapidamente, o que lhe dá uma humanidade e um espaço para erro que considero comoventes. É algo bonito, porque está muito fora de moda.
REFERÊNCIAS:
“Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo”
Era uma vez o cinema… inventado junto dos krahô, povo indígena do Brasil. João Salaviza e Renée Nader Messora foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, que ele realizou e em que ela foi assistente, foi para eles o estertor. Fugiram. Encontraram. (...)

“Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Era uma vez o cinema… inventado junto dos krahô, povo indígena do Brasil. João Salaviza e Renée Nader Messora foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, que ele realizou e em que ela foi assistente, foi para eles o estertor. Fugiram. Encontraram.
TEXTO: Talvez se entre para Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos com medo do que se vai encontrar. Como se uma parte de nós estivesse em perda com a ruptura que João Salaviza – "sequestrado" por Renée Nader Messora – fez com o cinema e a vida que antes quis e conheceu. Este filme, que os dois apresentam esta quarta-feira na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, foi o resultado de anos de vida com os krahô, povo indígena do Brasil, no estado de Tocantins, que Renée conhece há dez anos e ao qual expôs João na ressaca da produção de Montanha, a anterior longa do realizador. João e Renéé viveram com eles, assistiram à chegada da luz eléctrica à aldeia. Foram tirando a câmara de filmar de dentro da caixa. Foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, filme que ele realizou e em que ela foi assistente, para eles foi um estertor. Salaviza fala do esgotamento da experiência com uma "parafernália" – equipas, luz, actores, produção. Falou até da sensação de fim do seu percurso temático pela adolescência: Montanha teria sido a súmula de luz e escuridão do percurso de Arena (2009), Rafa (2012), Cerro Negro (2012). O que iríamos encontrar, em terrenos em que não raras vezes o cinema cede lugar à antropologia – e nem é o maior dos riscos –, era uma incógnita. As curtas Alta Cidades das Ossadas (2017) e Russa (2018) pareciam filmes incertos, sem encontrar um lugar. Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos é, por isso, uma surpresa. Salaviza reencontra uma potência a céu aberto, a aldeia da Pedra Branca com as suas pessoas, os elementos, os animais (e efeitos especiais), onde fabricou o mundo. Foi assim este "era uma vez o cinema": ". . . pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara-espírito porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar. . . "O filme da fuga impossível do jovem índio Ihjãc, personagem perseguida e atordoada pela "realidade" e pelos "fantasmas" (como antes os jovens de Arena, Rafa ou Cerro Negro nas suas deambulações pela luz e pelas trevas), é o filme da fuga impossível de João Salaviza. Que foi incitado a mudar para, de alguma forma, o essencial ficar na mesma. Fugiu do cinema, encontrou o cinema. E nós encontrámos um dos mais bonitos filmes de CannesA surpresa, João, é reencontrá-lo no mesmo ponto de fulgor clássico em que o deixámos na anterior longa-metragem e a personagem principal ser de novo um adolescente entre a luz e as sombras, como em Montanha ou Rafa (2012). João Salaviza — O filme está indissociável de uma mudança radical na minha vida, o encontro com a Renée, e com este sequestro que ela me fez de me levar a conhecer os krahô. A Renée há vários anos que ia lá. Na rodagem do Montanha, as coisas que ela me ia contando sobre a vida dos krahô era um contraponto absurdo à forma como o filme estava a ser feito – obviamente que estava a ser feito como eu queria, com estrutura grande, equipa, luz, maquinaria, steadycams, toda a parafernália que hoje se calhar não me interessa. Montanha é um filme melancólico, nostálgico. Há um peso dramático que estava ligado às coisas que eu vivia na altura e a uma sensação de esgotamento. Coincidência ou não, fomos ao Brasil, quase para me libertar. E foi nessa altura que começámos a pensar em mudarmo-nos para a aldeia e com o cinema pelo meio. O trabalho que a Renée tem feito com os krahô, mesmo sem ser de ficção e sem sair do indigenismo, tentava trabalhar as questões da imagem, as implicações políticas, sociais e estéticas da imagem. O cinema tem esta coisa incrível que é podermos ir para um lugar sem as coisas ficarem envenenadas pela condição de turista, porque temos um ofício – como uma companhia de circo que pode conhecer o mundo porque tem algo para fazer. O facto de termos filmado com o Ihjãc pode parecer relacionado com Montanha, mas isso nunca nos passou pela cabeça. A Renée conhecia-o desde pequeno e houve um período de dois anos em que olhávamos para ele e pensámos. . . Renée Nader Messora — . . . será?Desde cedo ele estava na vossa mira?R. N. M. — Na verdade tínhamo-nos apaixonado por outro menino da aldeia, mas era difícil aproximarmo-nos. E o Ihjãc estava ali. Quando se chega à aldeia, passamos a fazer parte de uma família que nos acolhe, e o Ihjãc era do meu núcleo. Ele estava sempre ali, e chamava a atenção porque tinha 12 anos e tinha uma namorada sempre com ele: curioso a rondar a minha câmara, os trabalhos e as oficinas que fazíamos. Quando começámos a imaginar Chuva. . . , começámos a prestar atenção nele, ele foi crescendo e deu certo. J. S. — A história do filme é inspirada na história real de um outro miúdo durante uma primeira visita que fizemos. Começou a sentir-se fraco, doente. Há todo um sistema de diálogo entre os pajés [feiticeiro e intermediário espiritual] que enfeitiçam, mas também podem proteger; é uma narrativa quotidiana da aldeia, as disputas, hierarquias e segredos. Aquele miúdo começou a sentir-se mal e um pajé descobriu que tinha sido enfeitiçado por outro pajé. Era um miúdo deslumbrado, curioso pelo menos pelo mundo dos brancos, da tecnologia, e acabou por fugir para uma cidade a 30 quilómetros. Nessa tentativa de fuga começou a sentir a impossibilidade de diálogo entre a medicina dos krahô, que é holística, e a dos brancos, e foi um desencontro de mundos, ontológico, filosófico. Como a dinâmica de fuga era assumida, pensaríamos que a exuberância da ficção abrandaria. O filme aliás é anunciado como documentário. Mas há um deslumbramento enorme, a aldeia e as pessoas são como um estúdio a céu aberto onde se fabrica um mundo. Numa conversa anterior, contou que havia dias em que nem pegavam na câmara; o mais importante era viver. Como é que o cinema aconteceu assim?R. N. M. — O João ficou obcecado com aquela crença na feitiçaria, com aquele miúdo que fugiu, que se matriculou na escola e que passou por todo o mundo institucional brasileiro. Começámos a imaginar caminhos dentro daquele universo, fomos juntando peças. J. S. — O guião foi um mapa que permitia que não nos perdêssemos e que fôssemos filmando seguindo os nossos desejos. Há muitas coisas que são pura fruição lúdica dos gestos, das pessoas, de estarmos com elas. As cenas em que os miúdos brincam com o fogo, à noite: pegámos na câmara e fomos filmar, sem som. Ou a cena em que a rapariga pinta as unhas dos pés, sinal de elementos exteriores a invadir a comunidadeR. N. M. — Foi uma reorganização de coisas que fomos vendo e vivendo, eu ao longo de dez anos, o João ao longo de quatro. . . Como uma longa repérage ainda sem o objectivo declarado de fazer um filme. . . R. N. M. — Exactamente. Aquele momento em que o Ihjãc está no carro dos serviços de saúde e pergunta o que é “hipocondríaco” – foi uma pergunta que um dia o miúdo me fez. Eu expliquei que ele não estava doente, ele dizia que sim. . . Foi uma conversa impossível que transitou desta forma para o filme. Para os krahô, o que era isso de terem pessoas entre eles com uma câmara, diálogos, o “acção” e “corta”?J. S. — Com o Ihjãc foi preciso algum tempo para explicar que era uma história, que queríamos filmá-lo durante bastante tempo. Ele quis estar no filme, mas quando tinha de ir para a roça ceifar ou buscar um parente doente, durante três dias não havia rodagem. Percebemos que havia um lado lúdico. Divertiam-se. Ao terceiro mês de rodagem, ouvimos uma conversa e percebemos que eles se referiam ao acto de filmar como “a brincadeira”. R. N. M. — O filme não era importante, importante era a brincadeira. Cortavam o cabelo, pintavam o cabelo. . . J. S. — O que nos causava problemas de raccord. Um dia que os calções do Ihjãc desapareceram, tivemos que comprar outros e guardá-los – ao fim de três dias, nada é de ninguém, há um sistema que faz com que os objectos circulem. R. N. M. — A certa altura, o Ihjãc estava assustado por mexer com o universo da feitiçaria, de forma lúdica, e achámos que tínhamos de ter uma reunião com um pajé que todos respeitavam. E ele disse: “Não se preocupem. ” Tínhamos explicado a história e o que queríamos, mas só entenderam o que propúnhamos quando chegaram as primeiras imagens do laboratório. Quando pedíamos para eles repetirem um gesto, uma acção, eles não percebiam porquê. Quando viram a montagem, perceberam. . . J. S. — Às tantas o Ihjãc começou ele próprio a dizer “corta” a meio das cenas, quando se enganava. R. N. M. — Antes de começarmos a filmar mostrámos-lhes A Cidade de Deus [Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002] e o making of. Eles não tinham ideia dos dois universos, realidade e ficção. Ficaram chocados, não percebiam como é que aquelas crianças do filme estavam vivas porque viram o sangue. Lateja no filme a enorme fragilidade de um mundo, gente ameaçada de todos os lados, por aquilo a que chamamos "real" e por aquilo a que chamamos "espíritos". J. S. — Nunca tínhamos explicitado isso dessa forma, mas a resposta é: totalmente. Os povos indígenas vivem um cerco que está a estrangulá-los cada vez mais. R. N. M. — Há um conflito, uma impossibilidade de circular, está muito presente. Há muitos preconceitos em relação aos índios naqueles povoados. J. S. — Há uma coisa transversal a todos os regimes desde a chegada dos portugueses, monarquia, ditadura militar, nova democracia: transformar o índio em cidadão brasileiro, logo, em pobre brasileiro. R. N. M. — Essa necessidade é só a face maquilhada do esbulho das terras. À medida que se transforma o índio em brasileiro, ele já não precisa de ver os seus direitos indígenas cumpridos. Mas o índio não se reconhece como brasileiro. Nem como índio. Vê-se como membro da sua etnia – e no Brasil há 280. Essa sensação de fragilidade, de ameaça, é táctil, como na sequência do reflexo de Ihjãc na água. J. S. — Há uma palavra: mecarõ. É o duplo. A imagem na água, a sombra, o espírito. . . R. N. M. — . . . a fotografia, o cinema, o reflexo no espelho. . . Isso tudo é uma imagem, isso é mecarõ. Quando vêem um filme, eles dizem que viram um mecarõ, tal como se se referissem a um espírito. J. S. — Como são animistas, o mundo dos animais, das pessoas, dos espíritos são universos paralelos dispostos horizontalmente. A divisão entre os mundos físico e metafísico não existe, é uma multiplicidade de existências no mesmo patamar. Interpretar uma personagem, repetir gestos, é o quê?R. N. M. — Todos os rituais dos krahô são encenação. Parece aleatório quando vemos pessoas a chorar. Mas é um rito supercoreografado. Há milhões de festas com personagens, pessoas que adquirem papéis. J. S. — Começámos a perceber que o gesto de filmar passou a ser um ritual. O nosso ritual era colocar a câmara no tripé, esperar pela luz e pedir que repetissem coisas quando elas não estavam bem. De que é que fugiram? Que outra vida é esta?R. N. M. — Esta relação tão próxima que tivemos com a vida, estarmos ali com uma câmara e não haver ninguém a dizer-nos nada. . . Tudo tem a ver com o tempo. Numa rodagem normal, tudo é feito para cumprir um plano. O que tira o prazer de estar com uma câmara apontada a uma presença que se quer capturar, porque é preciso tempo para que aconteça e para digerir o que aconteceu. Conseguimos desapegar-nos da parafernália de uma rodagem comum. Há um filósofo krahô que diz que o branco perdeu a paciência do mundo. Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo. Mas a experiência não é replicável. Ou é?J. S. — Vão ser precisos ajustes. Acabámos a rodagem à beira da exaustão. Houve problemas de saúde. Foi duro andar duas horas pelo mato com aquele calor, os nossos corpinhos branquinhos não estão preparados. Não sei se vamos continuar a querer filmar com cobras a aparecer. Uma das cenas mais bonitas é aquela, no fim, em que estão todos a cantar numa casa, a câmara a andar da esquerda para a direita. Na noite em que ia acontecer essa festa, que esperávamos há meses, adoeci, 40 graus de febre. A cantoria ia começar, a Renée foi ter comigo a dizer que não ia dar. Disse-lhe, “vai filmar”. “Ok, não morras aqui”. Fiquei a ouvir cantorias ao longe, estava já em delírio, só me lembro que horas depois a Renée voltou, não sabia o que tinha feito, tinha andado com a câmara para a direita e para a esquerda, não sabia se fazia sentido algum, porque estava sozinha. Quando vimos as imagens, é o momento mais incrível. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não há sequência em que se sinta o trabalho formal abandonado ou ultrapassado pelas circunstâncias. R. N. M. — Isso tem a ver com a nossa conexão com tudo aquilo. . . J. S. — . . . com o facto de estarmos inebriados. Houve cenas filmadas contra tudo o que fazia sentido. E todas as mais pensadas ficaram fora do filme. Ainda pensámos afirmar mais a nossa presença, com câmara à mão, sujar o filme. Filmámos várias coisas assim, mas não resultou justo. Há a sensação de trabalhar com as limitações no máximo e perceber a essência: pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara espírito, porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar. . . Isso é quase studio system, Hollywood. . . R. N. M. — [risos] E tivemos efeitos especiais krahô, fumaças e tudo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos escola negro adolescente medo rapariga circo
Cultura e economia influenciam a decisão sobre quem morre num acidente
Investigação analisou 40 milhões de decisões para tentar perceber quem é que o mundo prefere salvar em caso de acidente com carros autónomos. (...)

Cultura e economia influenciam a decisão sobre quem morre num acidente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Investigação analisou 40 milhões de decisões para tentar perceber quem é que o mundo prefere salvar em caso de acidente com carros autónomos.
TEXTO: Em caso de acidente, devem os mais velhos ser atropelados para salvar a vida de crianças? A profissão ou estatuto social devem ser tidos em conta? A vida de uma mulher grávida é mais importante do que a de um sem-abrigo? Os carros autónomos não terão apenas de saber andar por estradas com outros carros, peões e obstáculos. Também terão de se orientar pelos labirintos da ética quando tiverem de decidir que vidas poupar num acidente e que pessoas (ou animais) arriscar matar. São decisões que têm sido tomadas exclusivamente por humanos e que nem sempre são fáceis de explicar – muito menos de transformar em regras para serem executadas por máquinas. A Experiência da Máquina Moral é um estudo de enorme dimensão que tenta responder a algumas destas questões. Analisou quase 40 milhões de decisões tomadas numa plataforma online por pessoas de 233 países e territórios, que foram confrontadas com cenários de acidentes. O resultado, publicado agora na revista Nature, procura traçar um esboço dos padrões morais que regem o funcionamento das sociedades em várias partes do planeta. A investigação revelou três preferências mais pronunciadas: poupar vidas humanas em detrimento dos animais; poupar o maior número vidas possível; e privilegiar os mais novos. De forma menos acentuada, quase todos os países mostraram também uma tendência para poupar a vida de mulheres em vez da dos homens. Mas uma análise mais fina revelou diferenças nas decisões tomadas nos vários países, com opções sobre quem morre e quem vive que parecem seguir as linhas da desigualdade económica, do funcionamento das instituições e das tradições culturais – e que mostram que há divisões que tornam difícil a criação de regras globais. “Nunca na história da humanidade permitimos que uma máquina decidisse autonomamente quem deve viver e quem deve morrer, numa fracção de segundo, sem supervisão em tempo real. Vamos atravessar essa fronteira a qualquer momento, e não vai acontecer num cenário distante de operações militares”, escreveram os oito académicos autores do artigo, que são investigadores do MIT e da Universidade de Harvard, nos EUA, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e da Universidade de Toulouse Capitole, em França. “Precisamos de ter uma conversa global para transmitirmos as nossas preferências às empresas que vão conceber algoritmos morais e aos legisladores que os vão regular”, argumentaram. Os dados foram recolhidos através da Moral Machine, um site criado pelo MIT em 2016. De acesso livre, mostra aos utilizadores cenários de acidentes, com diferentes tipos de pessoas e diferentes desfechos. O utilizador tem de indicar qual a opção que prefere: por exemplo, deixar seguir o carro em frente e matar um peão, ou desviar o carro para uma barreira e matar os três ocupantes. O teste completo mostra aos utilizadores 13 cenários de decisão. No final, são pedidas informações como o género, idade, ideologia política e religião (perto de meio milhão responderam a este inquérito). A plataforma teve nestes dois anos grande atenção mediática, ajudando os investigadores a conseguirem os 40 milhões de respostas. Já tinham sido divulgadas análises preliminares dos dados e alguns dos investigadores que assinam o artigo também já tinham publicado outro estudo sobre o dilema ético dos acidentes. O site, no entanto, não abarca a complexidade dos acidentes reais, reconhecem os investigadores: os cenários mostrados na Moral Machine têm sempre desfechos de vida ou de morte certa (não há feridos, nem é indicada uma probabilidade morte) e também não estão contempladas questões como a relação entre os indivíduos (por exemplo, se são casados). A equipa ressalva ainda que as preferências morais das pessoas não têm necessariamente de se transformar em leis. Como o artigo refere, a ideia de proteger as crianças é contrária ao que foi decidido na Alemanha, um país com uma forte indústria automóvel e que já estabeleceu regras para o comportamento ético de carros autónomos. A Alemanha determinou que não pode haver discriminação das vítimas com base em qualquer tipo de factor, como o género ou idade. Pelo contrário, na Moral Machine, os tipos de pessoas com mais probabilidade de serem salvos (quando comparados com a probabilidade de um adulto) foram, por esta ordem, os bebés, raparigas, rapazes e mulheres grávidas. É uma lista de preferências em que médicos, atletas e executivos (de ambos os géneros) são privilegiados, onde os mais velhos são remetidos quase para o fim, e na qual os cães aparecem antes dos criminosos. O estudo detectou diferenças de decisão tanto entre países, como entre grupos de países (foram analisados 130, dos quais tinha havido, pelo menos, 100 pessoas a fazer o teste online). A América Latina mostrou uma preferência maior por poupar mulheres e pessoas saudáveis, e uma menor tendência para diferenciar pessoas e animais. Já no Oriente – um grupo onde os investigadores integraram a China, Japão e países islâmicos, como a Indonésia e a Arábia Saudita – a opção de poupar os mais novos é muito menos frequente. Uma análise país a país revelou, por seu lado, diferenças “altamente correlacionadas com as variações culturais e económicas”. Os países mais pobres e onde as instituições funcionam pior tendem a ser mais complacentes com os peões que atravessam fora das passadeiras. É algo que os investigadores sugerem poder estar relacionado com uma maior tolerância face ao incumprimento de regras. Já as sociedades com maior desigualdade económica mostraram uma preferência por diferenciar as potenciais vítimas com base no estatuto social. E a inclinação para poupar mulheres, embora observada em quase todos os países, foi mais forte naqueles em que as mulheres estão mais bem posicionadas em indicadores de saúde e sobrevivência. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Portugal – que neste mês fez testes com carros autónomos em estradas – surge alinhado com a média global em oito dos nove indicadores estudados. A diferença surge na maior preferência por poupar as pessoas cumpridoras da lei. Os dados revelam também uma proximidade ibérica no que diz respeito às opções éticas: Espanha é o país com decisões mais semelhantes às dos indivíduos em Portugal. O país mais distante de Portugal é Angola, que se destaca da média por uma muito menor tendência para salvar peões e uma muito maior preferência por poupar a vida de pessoas com estatuto social elevado. As diferenças observadas “sugerem que os fabricantes e os legisladores devem, se não dar-lhes resposta, pelo menos serem conhecedores das preferências morais dos países nos quais concebem políticas e sistemas de inteligência artificial”, concluem os investigadores. “Mesmo que as preferências éticas do público não devam ser necessariamente o principal decisor de políticas sobre ética, a disposição das pessoas para compraram veículos autónomos e tolerá-los nas estradas vai depender da aceitação das regras éticas que forem adoptadas. ”Para perceber o estado actual das competências digitais dos cidadãos a nível europeu, a rede europeia REISearch lançou o jogo iNerd. Com a pergunta “quão nerd é a Europa”, o objectivo é ajudar os participantes a perceber o conhecimento que têm em áreas como a inteligência artificial. Faz parte da terceira campanha do projecto lançado pelo Atomium – Instituto Europeu para a Ciência, Media e Democracia.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Esta casa de papel nasceu antes da República e resiste para contá-lo
De Saramago a Luandino Vieira, pela Tipografia Lousanense já passaram páginas de perder a conta em 133 anos. Hoje, a empresa já não vive só de livros. (...)

Esta casa de papel nasceu antes da República e resiste para contá-lo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Saramago a Luandino Vieira, pela Tipografia Lousanense já passaram páginas de perder a conta em 133 anos. Hoje, a empresa já não vive só de livros.
TEXTO: O Commercio da Louzã ia no seu segundo ano de vida. O país fervilhava com a implantação da República e, no dia 14 de Novembro de 1910, a primeira página do jornal traz uma peculiar explicação aos seus leitores: “Não se tem este semanário publicado ha 5 semanas, quando o assumpto mais tem abundado por todo o paiz, depois da jornada de 4 para 5 d’outubro; não foi portanto a falta de assumpto nem a nossa má vontade que ocasionou tal interrupção, mas sim a falta duma machina onde está sendo impresso agora, que deviamos receber no fim de Setembro, vinda da Allemanha, e que pelo facto da revolução esteve detida 15 dias naquele paiz sendo só agora recebida”. O curioso relato é um entre os muitos episódios da vida de 133 anos da Tipografia Lousanense. A famosa máquina alemã já não mora na empresa centenária, mas outras há, não desse tempo, mas também antigas, nas instalações da gráfica, no centro da Lousã. É uma verdadeira “casa dos livros” tantos que ali passaram no prelo, recorda Ana Maria Ribeiro dos Santos, herdeira da tipografia, enquanto percorre um dos corredores da fábrica onde nas prateleiras se acumulam edições antigas e se vê ficção, cadernos escolares, livros técnicos. A tipografia nasceu em 1885 e está desde 1898 (há 120 anos) sob a liderança da família Ribeiro dos Santos. Atravessou todas as transformações tecnológicas da indústria gráfica – dos tipos em madeira e chumbo à impressão digital, passando pelas máquinas offset. E resiste, na Lousã, apesar das dificuldades dos últimos anos e da crise do mercado livreiro. Os rostos da empresa, hoje, são três. Ana Maria, de 64 anos, é a administradora, e ao seu lado tem as filhas Filipa (directora de produção, de 39 anos) e Ana Torres (directora comercial, de 29). É um tempo de passagem do testemunho, como já foi no passado. E tempo de mudança: a tipografia já não é apenas a casa dos livros onde foram impressos José Saramago, Álvaro Cunhal, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Daniel Sampaio, Freitas do Amaral, Adriano Moreira ou Marcelo Rebelo de Sousa. É uma casa de papel, que já não se dedica apenas à ficção e à não-ficção, mas a toda uma indústria gráfica que está para além disso – e esse é o segredo da sobrevivência. Bater à porta das editorasTudo começou em Maio de 1885 numa brasonada casa da Lousã, o Palácio dos Salazares, quando o bibliógrafo Aníbal Fernandes Tomás funda um semanário de ideais liberais e republicanos, o Jornal da Louzan, antecessor do Commercio da Louzã e de outros títulos. Bernardino Lopes Padilha, homem da terra, compra a tipografia e mais tarde vende-a ao bisavô de Ana Maria, Júlio Ribeiro dos Santos. É a partir dessa altura que se constrói toda uma história de cinco gerações. Primeiro, chegou a hora de o avô da actual proprietária assumir as rédeas do negócio. Hortênsio trabalhava na Medicina Legal em Coimbra e foi aí, pelos contactos angariados na universidade, que começou a levar as obras de professores para a Lousã. Lucília, a mulher, estava na fábrica e assim os dois a comandaram durante mais de 50 anos. Vem dessa altura a aposta no livro. Júlio, o pai de Ana Maria, assume a empresa depois da morte da mãe em 1983. Ana tinha estudado economia em Coimbra e do sector gráfico “sabia muito pouco”. Mas chegara o tempo de se dedicar à empresa, acompanhando o pai. Decide apostar no crescimento da empresa do livro, o que exigia “uma especialização dentro do sector da tipografia, por ser preciso máquinas especializadas em coser, cortar, vincar e dobrar as páginas”. Foi preciso ir para Lisboa bater à porta das editoras. Ana Maria decide tentar a Caminho, por mais que o pai a avisasse: “Não temos capacidade para isso”. Mas a filha toma a decisão e marca uma reunião. Fato novo e lá foi, acompanhada da cunhada, falar com “o mestre Joaquim Correia”. Acabaram por trabalhar juntos durante décadas. E com outras tantas editoras: a Edições 70, a Almedina, a Plátano, a Didáctica. “A tipografia tem uma história de mulheres: a minha bisavó e a minha avó estiveram à frente da empresa. Mas quando comecei, ainda era a única mulher nas reuniões”, recorda a administradora. Ana Maria conheceu muitos autores e editores: indo às suas casas, outros na Lousã. A gráfica Peres, entretanto encerrada, fazia as grandes tiragens da Caminho e a Lousanense assegurava as mais baixas, de 30 ou dez mil exemplares. Quando José Saramago ganhou o Nobel em Outubro de 1998, Ana Maria tinha em mãos vários títulos do escritor. “Tivemos de garantir 200 mil livros num mês e pouco. Assim que fazíamos três ou quatro mil exemplares de um, mandávamos distribuir; ficavam prontos mais cinco ou seis mil de outro, seguiam. Os distribuidores chegaram a estar à porta à espera”. Coordenou toda essa operação – e um dia Saramago ligou a agradecer. Foi um “privilégio”. Como fora o telefonema de Álvaro Cunhal em 1994, convidando-a a assistir à apresentação de A Estrela de Seis Pontas (Edições Avante!). E Ana Maria lá estava no 14 de Dezembro, no Hotel Altis em Lisboa, a ouvir Cunhal confirmar que Manuel Tiago era o seu pseudónimo. Um “segredo de polichinelo de toda a gente conhecido”, como escreveria Torcato Sepúlveda no PÚBLICO alguns dias depois. Dar a volta e continuarDos anos 1980 até à viragem do século, a tipografia conseguiu crescer em volume de facturação. Depois vieram os anos de chumbo. As empresas à volta encerravam. Na Lousã, os stocks de papel acumulavam-se no armazém, os clientes de sempre não garantiam a cadência das máquinas. O maior desafio surgiu quando o grupo Leya deixou de imprimir na tipografia. “Trabalhávamos com 60-70-80% da produção da Caminho, da Oficina do Livro e da Editorial de Notícias [actual Casa das Letras] e de um momento para o outro ficámos sem editoras”, conta Ana Torres, hoje directora comercial. Foi preciso reposicionar a empresa, fazer certificação da produção, renegociar com os bancos, encontrar um caminho. Ana lembra-se bem desses dias difíceis. “Nunca deixámos de pagar um ordenado, mas tivemos muita dificuldade em pagá-los. Muita. E tivemos de fazer um plano de pagamentos dos subsídios”. A empresa tinha 65 trabalhadores. Uns aceitaram sair, outros aposentaram-se. Hoje são 29 na empresa, onde também o filho mais novo de Ana Maria Ribeiro dos Santos, de 19 anos, já tem tarefas na área digital. Antes da saída da Leya, o livro representava cerca de 80% do portefólio da tipografia, o que obrigou a diversificar a produção, passando a apostar mais em catálogos, materiais de embalagem, manuais de instruções para equipamentos. “Tudo o que não fazíamos passámos a fazer”, conta Ana Torres. Agora há três empresas âncora nesse segmento: uma de fabrico de luvas, uma de componentes eléctricos e uma empresa de licor. Filipa, a filha mais velha, estudou gestão, e Ana fez marketing. E com elas a direcção da empresa foi-se adaptando aos tempos. Resume a mãe: “É uma empresa antiga com um espírito jovem. Os meus filhos criaram uma dinâmica como se a tipografia tivesse meia dúzia de anos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A gráfica continua a imprimir livros – os livros da Fundação Calouste Gulbenkian, as chancelas da editora 20-20 (Cavalo de Ferro, Vogais, Nascente e Elsinore) e muitos manuais escolares de editoras portuguesas que trabalham com Timor-Leste, Moçambique e Angola. Depois do período crítico, a tipografia voltou a crescer no livro, com outra dimensão. Se antigamente quem lá trabalhava se habituara a comprar camiões de papel, agora, o comum é encomendar uma palete de cada vez, à medida da produção. “Em vez das grandes quantidades, temos um novo desafio – produzir uma unidade pelo menor custo possível”, sintetiza Ana Torres. A empresa factura por ano cerca de um milhão de euros. Metade do volume de negócios vem do mercado livreiro e a outra metade das restantes áreas de negócios. Nos momentos mais difíceis, Ana Maria lembrava-se de como a empresa conseguiu sempre resistir, de como o avô tivera dívidas e o pai resolvera a situação, investindo e crescendo. “São ciclos de vida. É preciso ter a resiliência de dizer: ‘Nós vamos conseguir’”. Com esse espírito faz a passagem da empresa aos três filhos: “É mais fácil desistir do que continuar. Continuar é uma luta de todos os dias”.
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