Nuno Vieira está a ajudar a dar uma nova imagem à União Europeia
Tem 22 anos, é um artista portuense e foi um dos escolhidos para ir a Amesterdão discutir novas estratégias para a comunicação da UE. Em breve vai publicar um livro fotográfico sobre a emigração dos pais (...)

Nuno Vieira está a ajudar a dar uma nova imagem à União Europeia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 9 | Sentimento 0.068
DATA: 2018-06-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Tem 22 anos, é um artista portuense e foi um dos escolhidos para ir a Amesterdão discutir novas estratégias para a comunicação da UE. Em breve vai publicar um livro fotográfico sobre a emigração dos pais
TEXTO: À medida que as vozes de extrema-direita e anti-europeístas ganham amplitude e a participação nas eleições europeias continua a diminuir, torna-se cada vez mais evidente que União Europeia (UE) está a deixar de ser atractiva para os europeus. É isso que o fotógrafo Wolfgang Tillmans e os arquitectos Rem Koolhaas e Stephan Petermann querem mudar, vontade que os levou a juntar 50 criativos em Amesterdão para debaterem o que está a correr mal na comunicação da Europa e fazerem um rebranding à UE, tendo em vista as eleições europeias de Maio de 2019. Não foi tarefa fácil escolher as vozes desta discussão — em Março, foi feito um call for ideas, que gerou mais de 400 propostas de 43 países. Dessas, apenas 30 foram seleccionadas. A de Nuno Vieira foi uma delas. Foi por isso que, em Maio, o artista de 22 anos foi convidado para ir à Holanda participar no Eurolab, na segunda edição do Fórum sobre a Cultura Europeia, uma espécie de “jam session para os melhores pensadores culturais europeus ajustarem e trabalharem a ideia da Europa”, disse um dos organizadores ao The New York Times. Aos 30 criativos seleccionados, juntaram-se outros 20 convidados, entre os quais está outra portuguesa, Maria Sá Carvalho. O desafio feito ao jovem fotógrafo chegou de forma inesperada. Depois de se ter licenciado, Nuno propôs um estágio com Wolfgang Tillmans, a partir do programa Erasmus+. Não funcionou — apesar de o fotógrafo alemão ter gostado do portfólio, explicou-lhe que não trabalhava com estagiários. Um mês depois, Nuno soube da open call do Eurolab: “Estava reticente em candidatar-me mas, dois dias antes das candidaturas fecharem, recebi um e-mail da equipa do Wolfgang a pedir que enviasse as minhas propostas. ” Não hesitou mais e enviou vários posters e algumas fotografias retiradas do livro que pretende publicar acerca da emigração dos seus pais. A Eurovisão, a comida portuguesa e Cristiano Ronaldo são alguns dos protagonistas dos cartazes enviados, inspirados nos que Tillmans fez para a campanha anti-Brexit, mas adaptados à cultura portuguesa e a transbordar humor — “Even Ronaldo needs teamwork to get the job done”, lê-se num; “If the EU had a divorce, who would keep custody of Eurovision?”, questiona outro. Os posters são todos eles compostos por duas imagens e frases da autoria do artista português, mas a ideia de Nuno é conjugar trabalhos de pessoas de toda a UE, “para criar uma campanha muito mais rica, mais viva em termos de assuntos e imagens”, explica ao P3. Com a emigração dos pais, há três anos, o tema da União Europeia começou a tornar-se mais próximo do recém-licenciado da Escola Superior Artística do Porto. Aliás, uma das fotografias que enviou na candidatura (e que será incluída no futuro livro) retrata os seus pais a verem a paisagem a partir do forte da Bastilha, em Grenoble, na altura que a LePen ganhava poder em França e em que os emigrantes receavam o futuro. Acima do casal, flutua a bandeira da União Europeia, pacífica. Os quatro dias em Amesterdão, de 31 de Maio a 3 de Junho, foram intensos. Depois de lerem e relerem estudos acerca dos feitos e dos defeitos da UE e assistiram a várias palestras de alguns dos seus representantes, começaram a surgir ideias, slogans, mais ou menos humorísticos, em várias línguas, para vários públicos. “Durante aqueles dias, estive no Stedelijk Museum a trabalhar num auditório gigante com 50 pessoas de toda a Europa cheias de ideias a efervescer e a discuti-las entre si. Havia gente de campos variadíssimos — designers gráficos, antropólogos, professores de política, arquitectos, artistas plásticos, copywriters”, conta o artista ao P3. E, coincidência ou não, um dos slogans que saiu do grupo de trabalho de Nuno Vieira cruza a noção de família com a união dos países: “Not perfect but still a family”. Outros foram aprovados, sob a supervisão de Tillmans, como é o caso do “Our grandparents fought for it, our children depend on it, you just need to vote for it”. Por sua vez, o grupo mentorado pelo arquitecto Stephan Petermann focou-se em formas originais de comunicar dados, como o facto de 1500 espécies raras de animais e plantas serem protegidas pela UE, ou o orçamento anual da UE equivaler a 513 “Neymars”. Já o arquitecto holandês Rem Koolhaas aceitou, na retórica, uma das propostas dos nacionalistas: “Se querem repatriar toda a gente que não ‘pertence’ àquele país, então vamos ver quanto é que custa fazer isso em toda a UE”. A resposta: 114, 6 mil milhões de euros, mais de um milhão e meio de operation officers e 2, 3 milhões de alemães deportados são alguns dos números. De Amesterdão não saiu nenhum produto final, mas o objectivo é que este se concretize mesmo fora do Eurolab, razão pela qual os mentores têm mantido contacto com os participantes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para já, o jovem fotógrafo está focado em projectos próprios, como o livro Grenoble Paradis que retrata, através de cerca de 80 fotografias, a emigração dos pais: “É uma forma de mostrar como a vida deles está a melhorar, como são bem recebidos e como a cultura deles está a crescer por estarem numa melting pot gigante de pessoas de todas as etnias e religiões. ” Por outro lado, é um projecto que não esquece o contexto. O dia em que Nuno fotografou pela primeira vez Grenoble foi o mesmo em que se deu o atentado em Nice — de tarde, a parada gloriosa do 14 de Julho, de noite, o terror. Este ano, vai voltar à cidade para fotografar os festejos do feriado e concluir o projecto. O livro, que está a ser todo fotografado em filme e ampliado manualmente, sairá ainda neste ano. Fotografar a filme e a médio formato é, aliás, uma das características do trabalho de Nuno Vieira, cujo portfólio consiste maioritariamente em fotografia de moda. “Fotografar a filme é o mais punk que tu podes fazer, numa altura em que toda a gente quer imagens que demorem meio segundo a criar”, explica. Em breve, o artista portuense vai editar uma série de zines muito limitada. Cada um será um ensaio fotográfico de 20 páginas sobre modelos não-agenciados executado da forma mais livre possível, revela: “Vai ser um espaço em que eu não tenho qualquer obrigação para com uma revista, o stylist não tem qualquer obrigação para com uma marca nem o manequim para com uma agência. ” O objectivo, explica, é orientar os holofotes para talentos desaproveitados e provar que é possível fazer bem e diferente no mundo da moda em Portugal: “Há muitos manequins que, como não têm aquele visual típico de modelo, que na minha opinião é completamente ultrapassado, acabam por não ter trabalho. Queremos pegar nesse pessoal tão interessante de fotografar e dar-lhe um palco. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Papa quer transformar conventos vazios em asilos para refugiados
Francisco defende que os conventos não devem servir para a Igreja ganhar dinheiro. Portugal tem um projecto que responde ao apelo do Papa. (...)

Papa quer transformar conventos vazios em asilos para refugiados
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 18 | Sentimento 0.05
DATA: 2013-09-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Francisco defende que os conventos não devem servir para a Igreja ganhar dinheiro. Portugal tem um projecto que responde ao apelo do Papa.
TEXTO: O Papa Francisco apelou nesta terça-feira às ordens religiosas em Roma para que dêem abrigo aos refugiados nos conventos vazios, ao invés de os transformarem em hotéis de luxo. "Caríssimos religiosos e religiosas: os conventos vazios não devem servir para a Igreja os transformar em hotéis para ganhar dinheiro. Os conventos vazios não são nossos, são para a carne de Cristo, que são os refugiados”, afirmou o Papa durante uma visita a um centro de acolhimento Astalli, gerido por jesuítas, na capital italiana. Segundo o El País, a Igreja Católica italiana é proprietária de 20 a 30% do património imobiliário no país. Entre centros educativos, conventos, igrejas ou hospitais, é o maior senhorio italiano – em muitos casos isento do pagamento de impostos. Algumas ordens religiosas converteram os seus edifícios em hotéis rentáveis. Francisco entende que a Igreja é chamada a “fazer mais, recebendo e compartilhando” os bens materiais. “Todos os dias, aqui e em outros centros, muitas pessoas, especialmente jovens, estão na fila para terem uma refeição quente. Essas pessoas lembram o sofrimento e o drama da humanidade. Mas isso também nos diz que é preciso fazer algo, agora, todos”, afirmou. Durante a visita, o Papa defendeu também que os refugiados têm direito à integração e à participação activa na sociedade e destacou o papel da Igreja nesse processo. E deixou um recado às autoridades: “A misericórdia requer justiça. Só através da justiça se pode fazer com que o pobre encontre o caminho para deixar de o ser. A Igreja, a cidade de Roma, as instituições têm que se unir para que ninguém tenha mais necessidade de uma cantina social, de um abrigo, de um serviço de assistência jurídica para ver reconhecido o próprio direito a viver e a trabalhar, para ser plenamente uma pessoa”. Portugal antecipou desafio do PapaA mensagem do Sumo Pontífice, também ele jesuíta, é “um desafio” ao qual o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) em Portugal se antecipou. O director, André Costa Jorge, adianta ao PÚBLICO que o JRS tem, em parceria com as Irmãs Missionárias da Consolata, um projecto que visa a transformação de um antigo seminário desta congregação, situado na Quinta do Castelo, no Cacém (Sintra), num centro de acolhimento para refugiados. "Em Portugal não há nenhuma experiência do género, nem na Europa. Vamos ser pioneiros", afirma. Desocupado há menos de um ano, o antigo seminário é um edifício do século XIX instalado numa quinta. Terá capacidade para acolher 30 pessoas. Para o transformar, é preciso adaptar os espaços, garantir alimentação, vestuário, recursos humanos. “Temos o apoio do Ministério da Administração Interna, para a comparticipação nacional”, diz André Costa Jorge. O projecto aguarda apoio do Fundo Europeu para os Refugiados para avançar. “Esperamos poder receber refugiados até ao final do ano”, afirma. Mas o apoio financeiro não é o principal. “Transformar espaços em lares de acolhimento até é fácil, difícil é que estes espaços sirvam realmente para a integração das pessoas na sociedade”, considera o director do JRS. Os imigrantes podem permanecer cerca de um ano nestes centros mas depois têm de encontrar o seu lugar na comunidade. Um emprego, uma casa. “Respondemos a uma emergência social mas depois as pessoas têm de continuar a viver”, diz Costa Jorge. "É preciso prudência", avisa. Este responsável admite que a ideia de converter antigos conventos ou mosteiros em asilos para refugiados, ou mesmo para idosos e crianças mais vulneráveis, não é nova mas “era preciso que alguém com autoridade na Igreja o dissesse”. Por isso, recebeu a mensagem do Papa com agrado. Mas lembra que, no caso português, “boa parte dos conventos foram expropriados e são hoje edifícios do Estado, que este não cuida ou vendeu a privados”. Como exemplo, aponta o antigo Convento da Cartuxa, em Caxias (Oeiras), propriedade do Ministério da Justiça, actualmente "mal tratado", mas com condições para se tornar um centro de acolhimento. A maioria dos imóveis que se mantiveram na mão das ordens religiosas “continuam a ter uso, embora com menos pessoas e mais envelhecidas do que há 50 anos”. Além disso, o director do JRS sublinha que algumas ordens estão, tal como o país, a braços com dificuldades financeiras, pelo que a eventual reconversão dos espaços em hotéis será uma importante fonte de receitas para a sua sobrevivência. “Muitas vezes, [os responsáveis] também não sabem como fazer para colocar o espaço ao serviço dos refugiados, porque não trabalham no terreno”, aponta Costa Jorge. Actualmente, o JRS gere o Centro Pedro Arrupe, na Ameixoeira (Lisboa), onde acolhe temporariamente imigrantes em situações de emergência. Desde 2006, já acompanhou quase 300 pessoas. Além deste, Portugal tem outro centro de acolhimento para refugiados na Bobadela, em Loures, a cargo do Conselho Português para os Refugiados, uma organização não-governamental, parceira do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos carne comunidade social género
Recuperados 150 corpos dos refugiados que fugiam da Líbia
Já foram recuperados os corpos de 150 refugiados da África subsariana que tinham desaparecido quando a embarcação em que tinham deixado a Líbia em direcção a Itália se avariou e depois se virou durante as operações de socorro. (...)

Recuperados 150 corpos dos refugiados que fugiam da Líbia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 16 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-06-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Já foram recuperados os corpos de 150 refugiados da África subsariana que tinham desaparecido quando a embarcação em que tinham deixado a Líbia em direcção a Itália se avariou e depois se virou durante as operações de socorro.
TEXTO: O barco de pesca transportava mais de 800 pessoas. Quando se avariou, na noite de terça para quarta-feira, estava a 20 quilómetros da costa de uma ilha tunisina e as autoridades de Tunes resgataram 570 pessoas. Muitos saltaram precipitadamente para o mar, tentando chegar a nado aos barcos de salvamento. “Até agora foram recuperados 150 corpos de refugiados diante da costa de Kerkennah”, afirmou Carole Laleve, do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. As operações de resgate continuam. Mave O'Donnell, da Organização Mundial para as Migrações, explicou que os resgatados contaram ter estado “a navegar durante três ou quatro dias até que o barco chocou com alguma coisa debaixo de água”. “Estivemos encalhados durante uns dias e vimo-nos obrigados a beber água do mar e até do motor do barco”, descreveu um sobrevivente. De acordo com um balanço divulgado na terça-feira pelas Nações Unidas, pelo menos 1200 pessoas que tentaram deixar a Líbia de barco morreram. A ONU estima que 893 mil pessoas tenham fugido do país desde o início da revolta popular contra o regime de Muammar Khadafi, em Fevereiro. A protecção civil italiana diz que 40 mil imigrantes chegaram desde o início do ano às costas italianas.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
2019: Ave, Europa, morituri te salutant
Quantos morrerão antes do tempo, neste novo ano, atravessando o mar e os muros que os separam do futuro que não chegarão a ter? (...)

2019: Ave, Europa, morituri te salutant
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quantos morrerão antes do tempo, neste novo ano, atravessando o mar e os muros que os separam do futuro que não chegarão a ter?
TEXTO: Consta que era assim que os gladiadores saudavam os Césares, em Roma, na arena do Coliseu, inspirados num episódio de batalha naval encenada pelo bizarro imperador Cláudio: “Ave, César, os que vão morrer te saúdam. ”O ano que vem vai ser tempo de morte para muita gente. Nenhum de nós sabe quando chega a nossa vez. Mas sabemos cada vez melhor que para muitos a Senhora da Foice passa e colhe muito antes do momento esperado ou devido. Por doença precoce quantas vezes evitável, catástrofe natural ou provocada por erro humano, ou conflito mortal para quem fica e para quem foge. Das invasões, das bombas, dos snipers ou da fome e da miséria, as pragas de mão humana que continuam a assolar o mundo de forma tão sinistra quanto desigual. A esperança de vida à nascença e a sua indecente variação mundial é prova evidente do elemento sorte que preside à nossa chegada ao círculo dos vivos. Poucas variáveis predizem melhor as nossas futuras oportunidades do que o sítio onde nascemos. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida em Paris, com os votos favoráveis de larga maioria dos então membros (48 em 58), nenhum voto contra e a abstenção de oito Estados (no essencial, os do “bloco comunista”, que entendiam que o documento não ia suficientemente longe), havendo ainda dois que não votaram (Iémen e Honduras). Comovente na sua generosidade, radical na sua ambição, desafiante na sua completude, visionário no seu alcance, o texto da Declaração Universal promete, entre outras coisas, refúgio aos perseguidos e um mínimo decente de vida a todas as pessoas, como direitos que pertencem a todos os seres humanos apenas pelo facto de o serem. “Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países”, reza o Art. 14. º 1, sobre refugiados. De forma realmente universal, o Art. 25. º 1 proclama que “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”. Mas o que verificamos é que quando os que se vêem obrigados a deixar para trás a sua casa, vida, família, amigos porque as suas convicções ou hábitos e formas de vida são perseguidas, ou porque a sua possibilidade de subsistência e dos seus é reduzida ou nula, alguns dos países mais afortunados do mundo viram-lhes as costas, erguem muros, guardas e políticas para estancar a “invasão”, muitas vezes esquecendo a sua própria origem ou o passado recente que os colocou em situação semelhante. Até o modesto Pacto das Migrações, assinado há dias em Marraquexe, já foi alvo de manifestações hostis de habitantes em solo europeu — em Bruxelas, o seu centro político mais evidente, geograficamente falando. Alguns países bem mais pobres e frágeis mostram bem maior generosidade em acolher quem foge da guerra, da insegurança e da miséria que ela sempre traz consigo. Quantos morrerão antes do tempo, neste novo ano, atravessando o mar, o deserto, as montanhas, os muros, os arames e os guardas ou as políticas nacionais ou europeias que os separam do futuro que não chegarão a ter?Quantos portos se negarão a deixar os navios atracar, quantos governos lhes dirão que batam a outra porta, quantos de “nós, europeus” (ainda não consegui entender bem o que isso seja), lhes fecharemos as nossas?Já que estamos em pleno Natal, lembremos que Jesus Cristo era refugiado, tendo fugido de morte certa para país estrangeiro pouco depois de nascer. Como eram ou são tantas personagens dos nossos passados históricos ou imaginários, tantos artistas e gente de ciência que regularmente celebramos. Os países mais desenvolvidos queixam-se de baixa natalidade e falta de população e mão-de-obra, olham apreensivos para o crescimento acelerado da China, mas não aceitam a riqueza material e espiritual, civilizacional que uma maior abertura à imigração lhes proporcionaria. Os nacionalismos populistas e os aproveitamentos dos baixos instintos do egoísmo humano muito têm feito para demonizar os estrangeiros, os imigrantes, os deserdados da Terra que buscam um futuro decente em países que, em muitos casos, enriqueceram à custa do subdesenvolvimento dos seus, feitos colónias, “ultramar”, territórios e populações submetidos à mais desumana e descarada exploração, quantas vezes a ferro e fogo. Legalmente, a escravatura e seus tráficos são história recente. Os caricatos “códigos indígenas” e as práticas coloniais de dominação e saque, ainda mais. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vivemos no século em que a tecnologia avançada num país democrático europeu é capaz de produzir a maravilhosa nova Biblioteca Pública de Helsínquia, um “navio” de três andares equipado com os mais sofisticados instrumentos pedagógicos e comunicacionais, como relatado, por exemplo, no artigo de Thomas Rogers no New York Times de dia 6 de Dezembro passado. Não é estranho que a Europa da União não consiga encontrar alternativa decente ao vergonhoso acordo com a Turquia sobre como “despachar” os indesejados migrantes em busca de refúgio e de uma vida viável?Entre a fragmentação interna e a intolerância que vai tolerando ou até fomentando sobre o exterior migrante, a União Europeia não parece sequer capaz de responder como Cláudio terá feito, no relato de Suetónio, aos condenados que decidiu magnanimamente poupar: “Vão morrer? Talvez não. ”O poder de graça ou misericórdia é o outro lado do poder absoluto, despótico, tirânico. Quando a União Europeia ou os Estados Unidos deixam morrer às suas portas os novos membros do exército de reserva industrial do capitalismo global, o seu gesto de indiferença cruel em tudo se assemelha ao polegar caprichoso do Imperador no lugar de honra do circo do Coliseu de Roma.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte guerra humanos imigração fome doença desemprego refugiado circo perseguição escravatura
Margaret Groff: Entre tecnologia e direitos da mulher não há fronteira
Há 40 anos que Itaipu é propriedade binacional, do Brasil e do Paraguai. Há mais de uma década que promove o fim da fronteira de oportunidades entre mulheres e homens no local de trabalho. Margaret Groff é o rosto dessa luta. E é com oportunidades mais iguais que Itaipu tem a ambição de construir um carro eléctrico. (...)

Margaret Groff: Entre tecnologia e direitos da mulher não há fronteira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-06-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 40 anos que Itaipu é propriedade binacional, do Brasil e do Paraguai. Há mais de uma década que promove o fim da fronteira de oportunidades entre mulheres e homens no local de trabalho. Margaret Groff é o rosto dessa luta. E é com oportunidades mais iguais que Itaipu tem a ambição de construir um carro eléctrico.
TEXTO: Começou, em 2003, por um questionário a 450 mulheres, funcionárias da empresa onde trabalhava ou a ela ligadas. Perguntou-lhes pelas suas maiores preocupações e como as resolveriam. O local de trabalho de Margaret Mussoi Luchetta Groff era nessa altura e continua a ser a barragem de Itaipu, no Brasil, a maior ou a segunda maior do mundo, conforme a perspectiva. Abastece 17% do consumo de electricidade do país, o equivalente ao dobro do que Portugal consome, e tem um orçamento anual de quatro mil milhões de dólares. Margaret Groff, filha de emigrantes italianos e engenheira de formação, administradora financeira executiva do gigante hidroeléctrico desde 2007, tinha então um cargo intermédio. No ano passado, uma década depois do questionário que foi uma das iniciativas a abrir portas a muitas mudanças na vida de três mil trabalhadores, sobretudo das trabalhadoras, o comité formado por prémios Nobel da Paz e da Economia atribuiu-lhe o galardão Negócios pela Paz, em reconhecimento do programa pela cultura da igualdade de género no ambiente de trabalho e que tornaram Itaipu um caso exemplar. O prémio, recebido em Oslo, deu também ao Brasil a sua primeira distinção internacional neste campo. Os 10% de mulheres com cargos de chefia do passado são hoje 23% e elas “estão também mais no topo, no terceiro nível”, ao nível dos executivos, o que não acontecia antes. Margaret Groff afirma que “a qualidade da gestão melhorou muito, não porque as mulheres estão ali, mas porque também estão ali, porque foram capacitadas e dadas oportunidades”. Na “empresa de homens”, não mudaram só as chefias. Passaram a ser contratadas mulheres para cargos em que antes não entravam – operador fabril e segurança, por exemplo – e relações estáveis do mesmo sexo ficaram abrangidas pelos benefícios concedidos como dependentes. O projecto foi levado para as comunidades à volta da barragem, não há ainda números globais do impacto local destas acções, mas conta que "são muitas mulheres, nas pescas, nas energias renováveis”, com casos que se tornaram famosos, como o da jovem “catadora” de lixo. Transportava diariamente o lixo num “carrinho de machucar as costas”. Trocou-o por um carro eléctrico que Itaipu lhe deu, foi estudar e licenciou-se. “Como poderia chegar onde chegou sem ‘empoderamento’?”, pergunta a gestora, que junta o pelouro financeiro de Itaipu a programas de género e de saúde e à mobilidade eléctrica. Quando recebeu o prémio em Oslo, Margaret prometeu que iria alargar a divulgação da igualdade de género aos fornecedores de Itaipu. Em menos de um ano, estruturou a iniciativa, recebeu o apoio do Pacto Global da ONU e da ONU Mulheres, que a ajudaram a divulgar a primeira edição do prémio “WEP Brasil”, inspirado nos princípios das Nações Unidas de defesa dos direitos da mulher (Women Empowerment Principles). “Tivemos 180 empresas a auto-avaliarem-se. É muita empresa, por muito grande que seja o Brasil”. Oitenta e uma responderam a todo o questionário e trinta e duas delas chegaram a finalistas. “Isso é valorizar a empresa”, sublinha, convicta de que as grandes empresas têm particular responsabilidade na “disseminação da cultura da igualdade de género junto dos seus fornecedores”. Convidada para a cerimónia de 2014 dos Negócios pela Paz, voltou recentemente à capital norueguesa para provar que cumprira a promessa e para anunciar o projecto que se segue, na área da mobilidade eléctrica inteligente – uma espécie de passo à frente na forma como as empresas podem integrar a promoção da igualdade de género, a tecnologia, a preocupação com o clima e a prevenção da corrupção. É o que Margaret e o parceiro português de Itaipu para este projecto, o CEIIA, esperam poder levar, em Setembro, à conferência da ONU “Caring for Climate”, em Nova Iorque. Curitiba e BrasíliaA parte mais visível deste projecto, que liga Itaipu e o CEIIA até 2020, começou em Março passado, com o lançamento de um laboratório de mobilidade eléctrica inteligente, na foz do Iguaçu. No próximo ano, o plano é ter bicicletas eléctricas inteligentes a circular na região, mas a maior ambição é o desenvolvimento de um veículo inteligente para o Brasil e o Mercosul, a partir do protótipo do CEIIA, que cedeu entretanto 50% dos direitos de propriedade intelectual industrial do seu veículo a Itaipu. A juntar a esta parte que decorre em Itaipu, a parceria vai iniciar experiências-piloto de mobilidade inteligente em Curitiba e Brasília, nos próximos dias 5 e 9 de Junho, respectivamente, baseadas no sistema de gestão de mobilidade eléctrica, Mobi. Me, desenvolvido em Portugal pelo CEIIA. As demonstrações usarão autocarros e veículos ligeiros eléctricos da Renault. Com estas acções, a parceria procura respostas para as preocupações com o clima, desde a partilha de veículos à monitorização das emissões de dióxido de carbono, entre outras.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU MERCOSUL
É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo. (...)

É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 7 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo.
TEXTO: Numa primeira leitura, tudo aos nossos olhos parece estranho na Nova Zelândia, olhos que estão — literalmente — no outro lado do mundo: os motoristas do Estado são multados por excesso de velocidade com a líder do Governo no carro, o namorado da primeira-ministra é apresentador de um programa de televisão sobre pesca chamado Fish of the Day e a residência oficial do chefe do executivo foi uma clínica dentária durante anos. O pretexto para esta breve imersão é Jacinda Ardern, que acaba de tomar posse como primeira-ministra da Nova Zelândia. Tem 37 anos, é uma progressista de esquerda e junta um estilo, carisma, idade e ideias que fazem lembrar o canadiano Justin Trudeau. Não é por ser mulher que a nova primeira-ministra foi notícia. A Nova Zelândia é um dos poucos países do mundo com três mulheres a chefiar o executivo e, mais raro ainda, duas delas consecutivas. A primeira foi a conservadora Jenny Shipley (1997-99), e a segunda a trabalhista Helen Clark (1999-2008), um dos 13 candidatos a secretário-geral da ONU que o português António Guterres derrotou no ano passado. Também não é pela idade que Ardern faz história — apesar de impressionar e de ser ainda mais nova do que o Presidente francês, Emmanuel Macron. Em 1856, Edward Stafford tornou-se primeiro-ministro da Nova Zelândia aos 37 anos e 40 dias. Quando tomou posse na semana passada, Ardern tinha 37 anos e 92 dias. A BBC foi exacta no título: “Líder mais nova em 150 anos. ” Em rigor, Ardern é a mulher mais jovem de sempre à frente da Nova Zelândia. E, já agora, do mundo. Dentro de toda a peculiaridade neozelandesa, o que é interessante nesta história é outra coisa. Na verdade, são duas. A primeira é a solução política que Ardern encontrou para resolver o impasse saído das legislativas de Setembro. A segunda foi o modo como respondeu ao sexismo que a sua ascensão despertou. Primeiro a política. Os dois partidos que fazem a rotação do poder desde 1935, o Labour (trabalhista) e o National (conservador), ficaram quase empatados. O Partido Nacional ficou com 56 lugares no Parlamento e o bloco Trabalhistas+Verdes ficou com 54. Durante os 26 dias das negociações, especulou-se muito sobre que papel assumiria desta vez Winston Peters, o líder do partido Nova Zelândia Primeiro, que no passado desbloqueou o impasse a favor dos conservadores. Não é só a palavra “Primeiro” (First, no original) que faz pensar em Donald Trump e no lema “America First”. As ideias do partido também. Populista numa versão neozelandesa — é filho de um maori da tribo Ngati Wai e de uma descendente de imigrantes escoceses do clã McInnes, e foi operário na metalurgia e na construção de túneis antes de estudar política e direito —, Winston Peters, 72 anos, defende de corpo e alma três ideias: reduzir a imigração (diz que é “importar actividade criminal”), aumentar as penas criminais e acabar com a “indústria da indignação” em torno do Tratado de Waitangi, de 1840, entre a coroa britânica e os chefes maori, que, essencialmente, deu a soberania do país a Londres. Não é por acaso que dizem que Winston Peters é o “Trump neozelandês”. As coligações são a regra na Nova Zelândia desde 1990. Além disso, os eleitores já viram os mesmos partidos aliarem-se tanto à esquerda como à direita. É o caso do United Future (conservadores), dos Verdes e do Nova Zelândia Primeiro. O próprio Winston Peters foi vice-primeiro-ministro (1996-1998) num governo do Partido Nacional; a seguir, Jim Anderton (do Partido Progressista, de esquerda) teve o mesmo cargo numa coligação com o Labour (1999-2008), e a direita, que agora ganhou mas foi para a oposição na sequência do acordo Ardern/Peters, governou entre 2008 e 2017 em coligação com a Association of Consumers and Taxpayers, o United Future, o Partido Maori e os Verdes (que saíram em 2011). Com 7, 2% dos votos e nove lugares, voltou agora a caber a Winston Peters o papel de escolher o primeiro-ministro. Para surpresa de muitos, fez acordo com a esquerda. Escolheu o Labour ou escolheu Jacinda Ardern? Na Nova Zelândia, fala-se em “Jacindamania”, e o acordo revela, no mínimo, o carisma da nova primeira-ministra, uma mulher de esquerda sem qualquer ambiguidade. Quando anunciou a sua decisão, Peters disse que tinha de escolher entre “o statu quo modificado” e a mudança e que escolheu a segunda. O seu partido ficou com quatro pastas. Peters é de novo vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Jacinda Ardern acumula três pastas: Segurança Nacional e Serviços Secretos; Arte, Cultura e Património, e Crianças Vulneráveis, as mesmas que tinha como líder da oposição. Mal tomou posse, Ardern começou a pôr em prática o lema de campanha: “Let’s do this. ”. Ao lado do seu vice-populista de direita, prometeu mudanças profundas nos primeiros cem dias e um “miniorçamento” até ao Natal. O Governo vai começar pela Educação, aumentando de forma substancial o investimento do Estado: o primeiro ano universitário será gratuito para todos e as bolsas vão aumentar 50 dólares por semana. Como medida de compromisso, e respondendo a uma vontade do seu parceiro de coligação, anunciou também a intenção de suspender a venda de casas a estrangeiros. O segundo tema é o sexismo — ou a pergunta da maternidade. Vai Jacinda Ardern ter filhos? A pergunta foi feita duas vezes de seguida, a primeira sete horas depois de ter sido eleita líder do Partido Trabalhista. Qualquer coisa como “muitas mulheres chegam ao fim dos 30 anos e têm de escolher entre terem filhos ou continuarem a sua carreira. Essa é uma escolha que sente que tem de fazer ou que já fez?”. A resposta:— Não tenho problema em que me faça essa pergunta, porque tenho sido muito aberta em relação a esse dilema e sinto que muitas mulheres o enfrentam. A minha posição não é diferente da das mulheres que têm de ter três empregos ou que têm muitas responsabilidades. Mas no dia seguinte, o tema regressou, noutra entrevista, e foi colocado de uma forma que a irritou. “Acho que é uma pergunta legítima, porque pode ser primeira-ministra, e um empregador numa empresa precisa de saber este tipo de coisas sobre as mulheres que vai contratar, porque as mulheres tiram licença de maternidade. E portanto a pergunta é: é aceitável que um primeiro-ministro tire licença de maternidade quando está em funções?” Outro jornalista que estava no painel interrompeu com um “oh oh oh. . . ”, como quem diz, “calma”, e perguntou a Ardern: “Acha esta questão de ter ou não bebés uma pergunta legítima?”— Para mim — respondeu Ardern — sim, porque me abri em relação a isso. Mas para as outras mulheres, é totalmente inaceitável, em 2017, dizer que as mulheres têm de responder a essa pergunta no local de trabalho. É uma decisão das mulheres quando querem ter filhos. Não deve predeterminar se são ou não contratadas. Na política, como no resto, os clichés sexistas parecem inexoráveis. No livro Head and Shoulders: Successful New Zealand Women Talk to Virginia Myers, de 1986, Helen Clark conta que a campanha para as legislativas de 1981 foi muito difícil: “Por ser solteira, fui massacrada. Fui acusada de ser lésbica, de viver numa comunidade, de ter amigos trotskistas e homossexuais. . . ” Pressionada pelo seu próprio partido, acabou por se casar com o sociólogo Peter Davis, com quem vivia há cinco anos, pouco antes de ser eleita para o Parlamento. Não têm filhos. Agnóstica (tal como Jacinda Ardern), Clark tinha reservas profundas sobre a ideia de se casar e, segundo escreveu Brian Edwards na biografia Helen — Portrait of a Prime Minister, de 2002, chorou durante toda a cerimónia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Austrália, mesmo ao lado, o tema é familiar. Quando Julia Gillard se tornou primeira-ministra (em 2010), o editorial do Sydney Morning Herald dizia: “A sua imagem mediática não encaixa nas expectativas de alguns eleitores: uma mulher solteira, sem filhos, cuja vida é dedicada à sua carreira. ” Claro que, depois do insulto de Bill Heffernan uns anos antes, nada a terá surpreendido. Heffernan, um senador conservador amigo do então primeiro-ministro, John Howard, ainda hoje defende com orgulho a ideia de que Julia Gillard “nunca compreenderá os eleitores porque não tem filhos nem família”. “Se se é um líder, tem de se compreender a comunidade”, disse em 2007. “Uma das coisas importantes a compreender numa comunidade é a família e a relação que existe entre a mãe, o pai e uma caixa de fraldas. ” O mais extraordinário veio a seguir: por ser “deliberadamente estéril”, Gillard não tinha capacidade para liderar. Jacinda Ardern cresceu em Morrinsville (sete mil habitantes) e em Murupara (1700 pessoas), rodeada pela floresta de Kaingaroa. Murupara significa “limpar a lama”. O pai era polícia e a mãe empregada na cantina de uma escola. Em 2017, e depois de duas mulheres a chefiar o Governo, não ter filhos ainda é notícia. Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto. (...)

Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto.
TEXTO: O grande vencedor da noite dos prémios Tony, que distinguem o melhor do teatro musical em cena nos EUA, foi The Band’s Visit, sobre uma orquestra egípcia retida em Israel, e os nomes conhecidos premiados foram Andrew Garfield, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada e Anjos na América. Mas um dos destaques da noite foi mesmo o palavrão endereçado por Robert DeNiro ao Presidente Donald Trump – “Fuck Trump”, bisou. Os alunos da escola de Parkland, atacada num tiroteio que marcou o debate sobre o controlo do acesso às armas nos EUA este ano, actuaram. The Band’s Visit recebeu dez Tony, entre os quais o de melhor musical na Broadway e também os prémios de interpretação para os actores Tony Shaloub, Katrina Lenk e Ari'el Stachel. Só perdeu um dos 11 galardões para os quais estava nomeado. Angels in America, ou Anjos na América em português (a peça esteve parcialmente em Portugal em 1994 e foi adaptada para televisão pela HBO e exibida em Portugal no início dos anos 2000), voltou aos palcos depois da sua estreia em 1993 e o texto de Tony Kushner venceu na altura um prémio Pulitzer e agora o de melhor reposição, tendo também dado galardões de actuação a Andrew Garfield e a Nathan Lane. Os actores dedicaram os seus Tony à comunidade LGBT e a Kushner, cujo texto sobre a epidemia da sida nos anos 1980 e seus efeitos sociais deu origem à peça com mais nomeações da história da Broadway, como assinala o Guardian. Mas foi o blockbuster Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, uma peça que continua a explorar o universo criado por J. K. Rowling em torno de um jovem feiticeiro em Inglaterra, que recebeu o Tony de melhor peça e outros seis galardões. A peça, elogiada pela crítica, bateu recordes de bilheteira nas suas primeiras semanas de exibição nos EUA depois de ter arrecadado milhões de libras no Reino Unido desde Julho de 2016 e de ter recebido nove prémios Laurence Olivier. Glenda Jackson e Laurie Metcalf foram premiadas pelos seus papéis em Three Tall Women e a revisitação de My Fair Lady foi uma das grandes perdedoras da noite, marcada por um Tony especial a Bruce Springsteen pelo seu espectáculo Springsteen on Broadway, que estará em exibição até Dezembro deste ano. Foi precisamente ao apresentar o “boss” que Robert DeNiro deixou a sua marca na cerimónia que a imprensa descreve como tendo sido entre “muito política” e marcada pela “esperança e contenção”. Afinal, os discursos sobre a comunidade LGBT, sobre o feminismo (a comediante Amy Schumer enquadrou My Fair Lady como uma peça feminista, por exemplo) ou imigração e a actuação dos alunos da escola Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, que interpretaram uma música da peça Rent, tinham pontuado a noite. E Tony Kushner tinha apelado, ao aceitar o seu prémio, ao voto nas iminentes eleições intercalares dos EUA para “salvar a nossa democracia e sarar o nosso país”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o “touro enraivecido” obrigou os censores do canal CBS a exercer os seus poderes e a deixar em silêncio na transmissão televisiva o momento em que DeNiro gerava uma ovação no Radio City Music Hall. De punhos erguidos, disse “Fuck Trump”. Foi recebido com risos e aplausos. “Já não é ‘abaixo Trump’, é ‘que se foda Trump’”. E com Springsteen prestes a interpretar My hometown apelou: “Bruce, tu abalas a sala como ninguém. E mais importante ainda nestes tempos perigosos, abalas o voto. Sempre a lutar, usando as tuas próprias palavras, pela verdade, transparência, integridade na governação. E bem precisamos disso agora”. Robert DeNiro é uma conhecida voz anti-Trump e já tinha justificado no passado recente que considera que “a América está a ser gerida por um louco que não reconheceria a verdade nem que ela viesse dentro de um balde do seu amado frango frito”. Em casa, os espectadores não puderam ouvir os palavrões de DeNiro – mas a audiência encarregou-se de espalhar a palavra via Twitter e a imprensa presente também relataria o sucedido.
REFERÊNCIAS:
Um ano depois do pior dia de sempre
Foram cerca de 500 focos de incêndio em pouco mais de 24 horas, foi uma imensidão de área atingida, foram quase 40 municípios abrangidos, sobretudo no centro de Portugal. Um ano depois desse 15 de Outubro, não são só as marcas da passagem do fogo que continuam visíveis na paisagem. Há milhares de histórias de superação, de resiliência, de frustração e de oportunidade. (...)

Um ano depois do pior dia de sempre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento -1.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foram cerca de 500 focos de incêndio em pouco mais de 24 horas, foi uma imensidão de área atingida, foram quase 40 municípios abrangidos, sobretudo no centro de Portugal. Um ano depois desse 15 de Outubro, não são só as marcas da passagem do fogo que continuam visíveis na paisagem. Há milhares de histórias de superação, de resiliência, de frustração e de oportunidade.
TEXTO: Foi o pior dia do ano, que aconteceu apenas dois meses depois da maior mortandade de sempre por causa de um único incêndio florestal, em Pedrógão Grande. Depois daquele 17 de Junho de 2017, ninguém queria acreditar que uma tragédia semelhante voltasse a acontecer. Mas ela repetiu-se logo na madrugada de 15 e 16 de Outubro, quando deflagraram cerca de 500 focos de incêndio e que lavraram quase sem controlo em sete concelhos da região Norte e em 32 na região centro. Talvez tivessem sido as imagens de Pedrógão, e do elevado número de vítimas calcinadas numa estrada a fugir do fogo, que evitou que o número de vítimas mortais fosse maior. Em Outubro morreram 50 pessoas e arderam vários milhares de casas. Foram afectadas 430 empresas e ficaram quase cinco mil postos de trabalho em risco. Os incêndios de Outubro foram a razão do primeiro puxão de orelhas institucional (e em público), dado pelo Presidente da República ao Governo liderado por António Costa. Era preciso não voltar a falhar, era preciso começar rapidamente a reconstruir. A avalanche de donativos que a tragédia de Pedrógão Grande granjeou de imediato não se repetiu em Outubro, e foi o sector público quem assegurou a reconstrução, por via dos fundos comunitários e do Orçamento de Estado. O Estado veio a terreno depois de o sector segurador ter feito o seu trabalho, processo que foi concluído em Julho deste ano. De acordo com os dados da Associação Portuguesa de Seguros, foram recebidas 4636 participações de sinistros (só de casas foram 3396) e foram pagas indemnizações no valor de 226 milhões de euros, naquele que foi considerado o maior sinistro de sempre. No Orçamento de Estado para 2018, e para a reconstrução das casas estavam cabimentados 60 milhões de euros. Para o apoio à reposição da capacidade produtiva das empresas, foi disponibilizada uma linha de financiamento com 100 milhões de euros. Nesta avalanche de números e relatórios, e nesta guerra de candidaturas e projectos, sobram as histórias individuais de quem ainda enfrenta, 365 dias depois, as consequências daquele nefasto dia. Há histórias de superação e resiliência, de frustração e de oportunidade. Aqui contamos apenas cinco. Podiam ser multiplicadas por mil. José Freire, 85 anos e Prazeres Freire, 80. Moradores na aldeia de Coucedeira, Vide, Seia. Foi no dia em que fez 85 anos, a 31 de Março. Nesse dia o pesadelo terminou e José Freire voltou a ter mesa posta e casa cheia, com o filho, nora e netos a cantarem-lhe os parabéns. Eles abalam-se de São Domingos de Rana sempre que podem, e desta vez, e para além do aniversário do avô, e passar a Páscoa, queriam também assinalar o fim das obras que, durante quatro meses, recuperaram a casa de que os avós foram obrigados a sair, escoltados pela GNR, no dia 15 de Outubro. Vieram, de alguma maneira, inaugurar a única casa que foi reconstruída em Coucedeira, uma espécie de aldeia-presépio encravada no vale que desenha a orografia entre a Serra da Estrela e a serra do Açor. Na estrada que liga a freguesia de Vide, no concelho de Seia, a Piódão, no concelho de Arganil, existem vários destes aglomerados. A localidade de Coucedeira foi a mais afectada do concelho de Seia, e das 15 casas que a compõem 13 ficaram destruídas. José Freire e Prazeres Freire, de 80 anos, são os únicos habitantes da aldeia. Dizem que estão no único sitio onde podem ser felizes. Mas assumem que lhes faz falta alguém na vizinhança. Continuam a ter como “vizinho” mais próximo o primo de José Freire que o acolheu durante os quatro meses que duraram as obras. Nas restantes casas, que eram frequentadas sobretudo no Verão, e nas festas da freguesia (em honra de Nossa Senhora da Ajuda, cuja capela se avista da casa dos Freires), ficaram este ano vazias. E ficarão por muito tempo — são segundas habitações, os proprietários e herdeiros, sem ajudas públicas, dizem que não têm dinheiro para as recuperar. As obras na casa de José Freire começaram em Novembro. “O seguro pagou tudo, senão a minha casa estava como o resto à volta, com tudo por fazer”, diz o octogenário, enquanto abre a porta para mostrar o forno a lenha onde a família se preparava para assar umas postas de bacalhau — no fim-de-semana prolongado pelo feriado de 5 de Outubro, a nora e o neto vieram visitar os avós, outra vez. “O seguro foi a nossa sorte”, insiste o homem que trabalhou 16 anos numa quinta e 25 na Docapesca, e que abandonou Lisboa para nunca mais querer voltar. “Tirá-lo [a José Freire] daqui é matá-lo”, concede a nora, Fátima, educadora de infância, nada e criada em Lisboa, mas que se apaixonou por Coucedeira há 32 anos, no primeiro dia que pós os pés na aldeia. A companhia de seguros passou aos empreiteiros um cheque de quase 70 mil euros. É uma pequeníssima parcela dos cerca de 41, 4 milhões de euros que as empresas da Associação Portuguesa de Seguros (APS) gastaram na recuperação de 3396 casas. “Ficou melhor do que o que estava, temos de admitir”, concede a mulher, Prazeres. A lareira aberta passou a recuperador de calor, que agora aquece a casa toda. A casa-de-banho está mais funcional, o soalho a imitar madeira é mais fácil de limpar, as galinhas e os coelhos ganharam uma casa nova com direito a terraço. A cozinha e a sala continuam no sítio de sempre, com as janelas a devolver uma paisagem de sonho, com socalcos verdes e um curso de água, a Ribeira Pequena, ao fundo. José Freire já pode levantar-se todos os dias, como fazia sempre, às sete da manhã, para ir à horta regar o que que for preciso. Mostra orgulhoso as cebolas deste ano e aponta para as vides que lhe deram cem litros de vinho. Brinde-se: “Aqui somos felizes”, diz Prazeres, que logo acrescenta ter pena de “não ter um vizinho por perto”. O incêndio sinalizou-os no Centro de Dia de Vide. Desde então que recebem visitas diárias para entrega de refeições. “E nós em Lisboa sempre estamos um bocadinho mais descansados”, admite a nora. Paulo Rogério, 46 anos. Empresário agrícola, Oliveira do Hospital. Quando o encontramos em Dezembro do ano passado, dois meses depois do incêndio, Paulo Rogério disse que chegou a ter as malas feitas para emigrar. Viu 16 anos de trabalho ser consumidos “por um incêndio que não foi normal”, e teve vontade de deitar a toalha ao chão. Mas ofereceram-lhe ovelhas bordaleiras, convenceu-se a ficar, e a lutar pela empresa que fez crescer (e que assegura, para além do dele, mais quatro postos de trabalho), e satisfeito por ver que a teimosia que o levou a ser o primeiro produtor a fazer queijo Serra da Estrela durante todo o ano começava a ter seguidores. Um ano depois, admite, está pior do que o que estava. “Quando falamos em Dezembro eu ainda acreditava que o Governo se podia convencer que não pode tratar os portugueses de forma discriminatória, nem considerar que quem está à frente de empresas na área industrial são cidadãos de primeira e que quem está à frente de empresas da área da agricultura são cidadãos de segunda”, reclama. Paulo Rogério já temia que tal viesse a acontecer, mas ainda não tinha os comprovativos nas mãos. “Fiz o levantamento dos prejuízos todos. Apresentei o projecto como o Governo mandou e quis. Ovelha a ovelha, vedação a vedação, armazéns e palheiros, máquinas que arderam. Só meti no projecto o que me ardeu e preciso de repor. Apresentei um projecto de 108 mil euros de investimento. Foi aprovado. Mas do Estado só vou buscar pouco mais de 40 mil euros. E o resto? Ponho do meu bolso? Como é que o ministro da Agricultura tem coragem de dizer que paga 85% dos prejuízos, como pagou na indústria? É mentira!”, reclama, revoltado. Olhando para o futuro, diz que não percebe como vai continuar a fazer sacrifícios para conseguir produzir alguma coisa. “Já aqui enterrei 16 anos. [vários] 365 dias, sem férias, Natal, Páscoa, feriados. A vida de um agricultor não é fácil, em lado nenhum. Acho que vou aceitar uma proposta que tive e vou experimentar ser agricultor em Angola. Lá, ao menos, prometem-me condições para trabalhar”, suspira. O desalento de Paulo Rogério contrasta com o brilho nos olhos, que faíscam quando chega um cliente para comprar um requeijão e ouve estes queixumes. O cliente pede-lhe para não desistir. Rogério repete ao cliente que sim, que em Oliveira do Hospital já não há nada a fazer. Explica que está a vender 20% do que vendia por esta altura no ano passado, e que os custos de produção não diminuíram. “Nem depois de ter provado, com a atribuição de prémios internacionais, que um queijo feito a 15 de Agosto é tão bom quanto um feito de Inverno. O que interessa é a qualidade do pasto. O daqui foi-se. O pouco que tenho fui eu que comprei, remediei, construí. Não há ajudas para nada. Desisto”. Rogério tem 46 anos e “ainda muita força para trabalhar. “Não me sinto velho. Podia voltar a passar 16 anos a reconstruir tudo, outra vez. Mas acho esta política do Estado desincentivadora. Se eu tivesse só uma queijaria, poderia recuperar 85% dos prejuízos. Como também tenho actividade agrícola e pastorícia, os apoios caem para metade. Não consigo aceitar isto. Estou revoltado”, confessa. Paulo Guerra, 50 anos e Cláudio Guerra, 45 anos. J. Guerra - Fábrica de Sirgaria e Passamanarias, Oliveira do Hospital. Joaquim Guerra fundou a empresa de sirgaria e passamanaria com o seu nome há 60 anos. Agora tem 82, já passou a empresa aos filhos, Cláudio e Paulo, há uma dezena de anos, mas a verdade é que ainda é por lá que gosta de andar. Não se consegue afastar. Acabou, também por ser ele a ter de “salvar” a empresa do encerramento definitivo, já que foi do seu bolso que apareceu o dinheiro que foi preciso para garantir que a empresa não fechava. Com 50 postos de trabalho, a J. Guerra conseguiu segurar quase todos — “só saíram dois ou três funcionários, que já estavam aptos para a reforma”, diz Paulo Guerra. Paulo e o irmão, Cláudio, já apresentaram à linha criada pelo Governo para a reposição da actividade produtiva um projecto de investimento de quase 10 milhões de euros, para assegurar que a empresa poderá regressar ao terreno com quase 12 mil metros quadrados que ardeu por completo na zona industrial de Oliveira do Hospital. Entretanto, já têm mais de 1, 5 milhões de euros gastos. No trabalho de remoção e limpeza dos escombros — no qual os funcionários foram chamados a colaborar passados 15 dias após os incêndios — e também na compra e adaptação de um pavilhão com três mil metros quadrados e na aquisição de máquinas para continuar a trabalhar. “É importante que o mercado saiba que a J. Guerra ainda não acabou. Ainda estamos aqui. Vamos continuar a lutar, para voltar a abrir a fábrica no sítio onde estava”, diz Paulo Guerra, que responde à pergunta sobre se conseguirão repor toda a capacidade produtiva com uma palavra só: “É impossível”. “O nosso pai andou 60 anos a comprar máquinas, tínhamos um parque de 450. Não vamos conseguir isso nem nos próximos anos”, admite, frisando que o problema não é apenas recuperar máquinas que não se fazem em mais lado nenhum. Actualmente, já compraram cerca de 90. Dizem que para trabalhar em velocidade cruzeiro precisam de 150 máquinas. “Tivemos de reajustar a produção. Já desistimos de uma linha de produtos. E também tivemos de ajustar horários, e pedir mais esse sacrifício aos trabalhadores. Temos o mesmo pessoal, e menos máquinas. Criamos dois turnos para podermos continuar a trabalhar, a responder a clientes e voltar a fazer stock”, explica. O projecto de investimento foi apresentado há duas semanas, quase no limite do prazo das candidaturas à linha de apoio público, que foi alargado até 28 de Outubro. “Estas coisas demoram sempre o seu tempo, apresentar projectos, assegurar licenças, manter uma fábrica a trabalhar, segurar clientes, é uma grande empreitada”, justifica-se Paulo Guerra. Se o projecto for aprovado, e conseguirem o financiamento máximo, receberão 8, 5 milhões de euros. Cláudio Guerra, de novo a passear entre os escombros que o incêndio deixou na zona industrial, aponta para a escadaria da porta principal que ficou de pé, depois dos esforços de limpeza e demolição. “Achamos que valia a pena aproveitar esta portaria, para ficar como símbolo do que aqui estava e que, queremos nós, poderemos dizer que não se perdeu. O meu desejo é que o meu pai ainda possa subir aquelas escadas, e entrar na fábrica que ele aqui abriu há 28 anos. E esperemos que ela aqui fique por muitos outros 28”, terminou. Albina Araújo, 58 anos. Gaído, Castelo de Paiva. As paredes estão pintadas de fresco, e os olhares mais atentos notarão que há por ali um telhado novo — até porque, há menos de um mês, o que cobria a antiga escola primária de Gaído, em Castelo de Paiva, caiu e por pouco não apanhava quem lá mora há quase um ano. “A sorte é que o meu marido estava a tomar banho e eu andava no quintal”, conta Albina Araújo, de 58 anos. O filho também não estava em casa quando o telhado caiu sobre a sua cama. "O meu filho teria ficado estendido ali", conta, emocionada. “Depois vieram cá uns técnicos da câmara e disseram que era para pôr aqui umas telhazitas. Mas o empreiteiro disse que nem pensar, isto precisava mesmo era de um telhado novo”, conta Albina. O telhado foi reposto, mas numa solução provisória. Como provisória é a situação de Albina, do marido António e do filho, José Vítor. Há um ano que olham para o outro lado da rua, e se confrontam com as ruínas da casa onde Albina foi criada, juntamente com sete irmãos. Mas ainda não tem nenhuma indicação sobre quando começarão as obras, nem se o projecto está aprovado sequer. “Na terça-feira vou ver com o presidente da Câmara de Castelo de Paiva. Ele mandou-me ter paciência e eu tenho tido muita, mas já passou um ano!”A Comissão de Coordenação da Região Norte, que está a liderar o processo de reconstrução das casas recebeu 71 candidaturas naquele município. Rejeitou nove, ainda está a apreciar três e aprovou 59. Mas até agora as obras ainda não avançaram em nenhuma habitação. “Esta era a casa da minha mãe e a única coisa que me preocupa é voltar a trazê-la aqui. Não lhe quis dar o desgosto de dizer que ardeu tudo, nem agora quando a ouço dizer às vizinhas de Fiães (ela agora está a viver com um dos meus irmãos) que a casa de Gaído está um brinquinho”. Certo é que desde o incêndio nem um prego lá mandaram pôr, garante Albina. E tudo o que foi limpo e melhorado foi à conta das suas mãos. "Não confundo pobreza com limpeza”, avisa. Não precisava de o dizer. Vê-se pelo terreiro limpo da escola, pelos cactos que andou a plantar em troncos ardidos que transformou em vasos. “Tenho andado a vender alguns. Ando sempre a inventar biscates, porque o dinheiro não abunda”, admite esta antiga cabeleireira, já reformada por questões de saúde — teve um derrame cerebral e uma depressão que quase a esgotou. À conta dos donativos, Albina tem a casa, ou melhor, a escola, completamente equipada. Só um frigorifico é que se auto-transformou em arca congeladora, e já não refrigera, só congela. Entretanto, já sabe que vai ter direito a 2500 euros para poder equipar e mobilar a casa. “Não me parece muito, mas a gente cá se arranja. O que eu quero é ver as obras a começar”, admite, inquieta. E Albina volta a falar da mãe e da preocupação que a consome que ela venha a morrer sem ver de pé a casa onde criou os oito filhos, e enfrentou a violência doméstica que lhes infligia o pai de todos eles. “Fomos muito maltratados naquela casa. E fomos muito amados pela minha mãe. Ela é uma princesa. Está sempre a pedir-me para vir a minha casa para eu lhe fazer um arroz de frango. Morro de desgosto se não conseguir fazer isso. A minha mãe já não é nova. Se ela falece antes de começarem as obras na casa, quem morre a seguir sou eu. ”Pedro Dias, 42 anos. Oliveirinha, Bobadela, Oliveira do HospitalEstava em casa dos pais, num jantar de família, quando percebeu que 15 de Outubro não seria uma data normal. O vento arrastou as chamas que rapidamente rodearam a pequena quinta nos arredores da Bobadela, em Oliveira do Hospital, relata Pedro Dias, de 42 anos. Um ano depois, restam apenas as paredes de granito, ao lado das quais a empresa responsável pela empreitada de reconstrução já instalou grua, gerador e alguns materiais. Contudo, os trabalhos ainda não arrancaram. “Ainda andei por aqui a deitar água enquanto houve”, descreve, percorrendo o terreno da quinta onde cresceu. Enquanto o jantar decorria, nunca imaginava que a vivenda que partilhava com mulher, filho de 13 anos e sogra, em Oliveirinha, a cinco minutos dali, mas já no concelho de Tábua, estivesse a arder. As ruínas da vivenda foram demolidas em Agosto. Tudo o que resta no seu lugar é uma cratera onde cresce feijão-verde. “Neste momento é apenas um terreno”, constata Pedro Dias, motorista de passageiros. Desde o incêndio que tem vivido com a família em casa da irmã, também na Bobadela. O ano que passou foi particularmente difícil. À destruição do incêndio somou-se a morte do pai, em Dezembro. “Ele já tinha alguns problemas cardíacos e tudo isto mexeu com ele. ”De volta à quinta dos pais, Pedro Dias vai identificando algumas peças num amontoado de metal oxidado e deformado, o que resta de uma colecção de velharias restauradas: “Isto era um bidé antigo; isto uma armadilha para raposas. ” Agora é tudo lixo. Entre as duas casas, para além do recheio e objectos pessoais, na lista do que ficou destruído contam-se ferramentas agrícolas, um Fiat 600 ou uma motorizada BSA500. “O pior é que foi uma vida de trabalho que chegou a nada. Tinha casa velha, trator velho e carro velho, mas tinha tudo. Perdeu-se tudo. Não tem sido fácil. ”Atrás da casa que foi de dois pisos, escavada na rocha, está uma homenagem ao seu avô, pastor e moleiro que ali passou uma vida. Pedro Dias e Zeferino Monteiro, um escultor local, demoraram um ano a esculpir na pedra uma figura masculina entre um cão e um bode, com a inscrição “um sonho realizado que fica para a eternidade”. O trabalho ficou terminado um mês antes do incêndio, que deixou a pedra intacta. “Queria manter a memória, um simbolismo”, conta. A recuperação faz-se lentamente. Através de um donativo recebeu seis ovelhas e cabras, que ocupam o lugar das muitas mais que morreram no incêndio. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sobre o ritmo da reconstrução, que no seu caso está a cargo do consórcio Edivisa, por conta da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, a informação que tem é o que lhe dizem da construtora. Garantem-lhe que “está para breve”. Mas o que lhe parece é que “há pouca mão-de-obra para tanta obra ao mesmo tempo”. Prepara-se para a espera e o final do ano como meta para a conclusão dos trabalhos parece-lhe altamente improvável. Enquanto espera pelas reconstruções, resta-lhe uma outra habitação que escapou ao incêndio, comprada há 18 anos, e que tem vindo a restaurar nos tempos livres. Espera conseguir acabá-la a tempo do Natal.
REFERÊNCIAS:
Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade. (...)

Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.080
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade.
TEXTO: Muito se escreveu sobre a “imunidade” da Espanha aos populismos de direita e eurocépticos que se multiplicam na Europa. A analista Carmen González Enríquez, do Real Instituto Elcano, publicou em Junho de 2017 um longo estudo que começava assim: “A Espanha é uma excepção no actual panorama político europeu, em que os grupos populistas de direita, xenófobos, antieuropeus e antiglobalização obtêm relevantes triunfos eleitorais: apesar da crise económica e da rápida erosão da confiança política, em Espanha não houve nenhum partido populista de direita que tenha obtido mais de 1% dos votos nas eleições legislativas dos últimos anos. Como se poderá explicar a extraordinária ausência de um parido populista de direita com êxito eleitoral em Espanha?”Deixo, de momento, o debate das causas para lembrar que este Outono trouxe uma mudança de perspectiva. Ela coincide com um mediático comício de um partido de extrema-direita — Vox — na Praça de Touros de Vista Alegre (7 de Outubro), arredores de Madrid, que fez soar os alarmes. Antes do comício, um inquérito do CIS admitia a entrada do Vox no Parlamento Europeu, nas próximas eleições de Maio, com uma média nacional de 1, 9%, mas podendo superar os 4% em algumas circunscrições. O analista Jaime Miquel previu a sua saída da irrelevância: dos 0, 2 % (46. 781 votos) nas eleições de 2016, poderia passar par um patamar entre 500 e 800 mil votos. Em fins de Outubro, uma sondagem da Metroscopia atribuía-lhe 5% das intenções de voto nas legislativas. O que é o Vox? Fundado em 2013 com o objectivo imediato de captar o voto à direita do Partido Popular (PP) e dos seus sectores mais nacionalistas, mas sem regressar à nostalgia franquista, adoptou um programa de extrema-direita “à moda europeia”. Os seus fundadores, Alejo Vidal-Quadras e Santiago Abascal (na foto), vinham do PP: o primeiro foi seu dirigente na Catalunha, o segundo no País Basco. Um rotundo fracasso nas eleições europeias de 2014 levou ao afastamento de Vidal-Quadras e impôs a liderança de Abascal. O processo independentista catalão foi a grande mola da afirmação do Vox. Em Vista Alegre, Abascal apresentou um programa radical, em “100 medidas”. Usou uma linguagem o mais “incorrecta” possível e designou três inimigos: o independentismo catalão, a imigração e o feminismo. O alvo preferencial é a imigração, propondo deportações e um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla. Assume a xenofobia e, em nome da Espanha “católica”, denuncia a “invasão islâmica”. O outro tema é o “hacer España grande otra vez”, copiado de Trump. Pede a revogação da lei contra a violência de género. Perante o independentismo catalão, quer a recentralização do Estado. Propõe um Estado-providência que dê prioridade aos espanhóis. Enfim, ao contrário da maioria dos seus congéneres europeus, é ultraliberal em matéria económica. Abascal copia a direita eurocéptica europeia, inspira-se em Marine Le Pen e admira Viktor Orbán. Os eurocépticos estão a organizar uma frente para disputar as europeias eleições de Maio. Até agora, desprezaram a Espanha e Portugal, considerados terrenos ingratos em que a crítica a Bruxelas teria sido “monopolizada pela extrema-esquerda”. Depois da Vista Alegre, Abascal passou a interessá-los: foi recebido pelo holandês Geert Wilders e espera uma visita do americano Steve Bannon. Durante a Transição, surgiu uma ultradireita franquista, a Fuerza Nueva, de Blas Pinar, que fracassou logo nas eleições de 1979, com 2, 1% dos votos. A nostalgia franquista não era uma boa receita e o seu eleitorado foi rapidamente absorvido pela Aliança Popular, de Fraga Iribarne, que mais tarde dará lugar ao PP. Outras tentativas falharam. O papel do PP como dique perante a extrema-direita manteve-se intocado até hoje. “Não sabemos se se trata de um estado de ânimo pontual ou do início de uma trajectória”, admite Francisco Camas Garcia, analista da Metroscopia. “Mas é uma mensagem para Pablo Casado e Albert Rivera. Não dançam sozinhos na pista. E as eleições europeias são dentro de meses. ” O seu objectivo imediato é sair da margem e entrar na cena político-mediática, que deseja e pode condicionar. Como?O Vox tem possibilidade de obter boas votações em Madrid, Valência, Alicante ou Múrcia, o que pode ser fatal para o PP na sua competição com o Cidadãos pelo mesmo eleitorado. “Dois partidos no mesmo espaço é suicidário para ambos”, observa o politólogo Fernando Vallespín. A primeira reacção de Casado foi endurecer o seu discurso, designadamente no terreno da imigração, para segurar os eleitores mais à direita. “O Vox tem uma alta capacidade de contaminação, sobretudo em matéria de anti-imigração e de recentralização. Pode atirar um fósforo sobre a gasolina”, adverte Andrés Ortega, colunista do El Confidencial. Nas eleições da Andaluzia, não é Susana Díaz quem preocupa o PP. É a brecha que o Vox possa abrir à sua direita. Cenário extremo: a pressão de Abascal pode radicalizar o PP e as posições deste poderão, por sua vez, contaminar a sociedade. Referindo-se ao precedente da Holanda, o politólogo Pablo Simon sublinha o efeito da entrada em cena de rivais extremistas: “Um líder que não tenha à partida ideia anti-imigração pode acabar por a assumir por pressões internas do seu partido e por acumulação de derrotas eleitorais. ”Quando estes partidos crescem, prossegue Simón, surge um “dilema impossível”: “O cordão sanitário faz [os extremistas] capitalizar a oposição, mas incorporá-los no governo promove as suas agendas. ” Por outro lado, “o Vox será tanto maior quanto mais nos escandalizar”, acrescenta Vallespín. Muitos analistas mantêm-se cépticos quanto ao êxito do Vox. “A piscina é pequena”, sublinham. Os simpatizantes do partido encontram-se nas categorias ideológicas mais extremistas, que representam apenas 2, 2% do eleitorado, indicador que se mantém estável há décadas. A sociedade espanhola é dominantemente liberal em matéria de costumes. A questão da imigração está a subir entre as preocupações dos espanhóis, mas apenas 5-8% são “anti-imigrantes”, diz o CIS. Os eleitores do Vox são homens, com uma idade média de 45 anos, na grande maioria de uma classe média próspera com rendimento mensal acima dos 2000 euros. Também não se verifica nenhum indício de deslocação para a direita do voto operário, como aconteceu em França. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O principal teste tem a ver com a tese tradicional, assim resumida por Carmen González Enríquez: “A hipótese de que um passado recente autoritário, direitista e nacionalista actua como uma vacina contra os partidos de extrema-direita que, no presente, se confirma pelas similitudes entre a Espanha e Portugal. ” É o teste à célebre “imunidade ibérica”. De momento, é prudente aguardar o longo ciclo eleitoral que se avizinha, com atenção mas sem alarmes que projectem a imagem do Vox. O seu crescimento parece vertiginoso porque parte de uma base baixíssima. Mas não podemos ignorar o fenómeno.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens lei violência imigração género estudo xenofobia feminismo
A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público. (...)

A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público.
TEXTO: KodachromeThey give us those nice bright colorsThey give us the greens of summersMakes you think all the world’s a sunny dayI got a Nikon cameraI love to take a photographSo mama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome away(. . . )Everything looks worse in black and whiteFoi assim que, em 1973, Paul Simon escreveu sobre a famosa película colorida da Kodak e pôs milhares de pessoas a entoar a palavra que era também uma marca comercial. “Kodachro-o-ome” (aquele “o” repetido três vezes para nunca mais nos sair da cabeça) foi um enorme sucesso. Tanto a música cantada por Simon, como a tecnologia que possibilitou a várias gerações de pessoas em todo o mundo criarem os inventários das suas vidas a cores, convocando familiares e amigos para sessões de slides projectadas nas paredes de casa. Mas as palavras de Paul Simon — “Mamma don’t take my Kodachrome away” — soam agora quase proféticas. A própria Kodak decidiu, em 2009, acabar com a produção da película que inventara em 1935 e com os materiais que permitiam a sua revelação. Em 2010, a única casa fotográfica que ainda revelava kodachrome, numa pequena cidade do Kansas, nos EUA, tornou-se um destino para pessoas de todo o mundo que queriam revelar os poucos ou muitos rolos que ainda tinham em casa. Num tempo em que o suporte digital torna a fotografia imediatamente visível, o que estava em causa era transformar os filmes em fotografias ou, pelo contrário, nunca mais os poder revelar e assim torná-los invisíveis para sempre. A modernidade do kodachrome tornara-se obsoleta. A história de dois desses peregrinos fotográficos foi contada, em 2010, por A. G. Sulzberger no The New York Times: um funcionário dos caminhos-de-ferro vinha buscar os 1580 rolos de filme que guardara em casa e que só agora, perante a iminência do fim, mandara revelar; e uma artista londrina ia, pela primeira vez, aos Estados Unidos para revelar os três filmes que nunca vira e comprar mais uns quantos. Uma fotografia, tirou-a logo ali, ao funcionário dos caminhos-de-ferro que tivera de pedir dinheiro emprestado para poder finalmente ver o slideshow do seu passado. A história do fim de uma tecnologia que tão determinante fora para a criação de imagens, memórias e narrativas visuais da segunda metade do século XX, usada tanto por profissionais como por amadores, acabou por dar origem a um filme produzido pela Netflix em 2018 e dirigido por Mark Raso. Chama-se Kodachrome e conta a história de uma road-trip em direção ao laboratório fotográfico do Kansas, protagonizada por um pai, velho e doente, que fora fotógrafo, e o filho de quem vivera afastado. A morte iminente do pai, como da Kodachrome, acaba por ser a catarse para a reconciliação entre pai e filho. A fotografia analógica, ou o seu desaparecimento, como o ponto de encontro de duas gerações. Helena Corrêa de Barros (1910-2000) começou a fotografar com Kodachrome em 1947, precisamente na altura em que, acabada a II Guerra Mundial, o processo se banalizou enquanto prática amadora e privada. Se começara a fotografar em 1924, com apenas 14 anos, a cor só chegou à sua prática mais de 20 anos depois. O seu pai, o empresário Fortunato Abecassis, que esteve à frente de várias empresas como a Abecassis, a Lusalite ou a Companhia de Seguros Mundial, já fotografava e a materialidade da imagem fotográfica fazia parte do espaço doméstico da família. Num dos quartos da casa, o pai guardava as suas estereoscopias (duas fotografias iguais num mesmo cartão que, quando olhadas através de uma lente, dão a ilusão da tridimensionalidade) e mostrava-as em sessões familiares que, como afirma Paula Cunca no catálogo da exposição sobre uma parte da obra de Helena, terão influenciado o interesse da filha pela película a cores em diapositivo, que se tornou conhecida como slide. A então jovem Helena não tinha a Nikon de Paul Simon, mas a mais sofisticada Leica, de 35 mm. que, aliada ao seu sentido de observação fotográfica, possibilitou a obtenção de tantos “momentos únicos”, como ela própria descreveu no único texto publicado em que reflectiu sobre a sua prática, “A minha fotografia preferida”, Fotografia. Revista Mensal ao Serviço da Arte Fotográfica, Lisboa, 1955. A sua “fotografia preferida” era a preto e branco, tal como continuou a ser a preto e branco aquela que considerava ser a sua prática “artística” e as imagens com as quais se apresentava a concursos amadores e a exposições salonistas. A cor, pelo contrário, marcou a sua fotografia mais privada — muitos milhares de diapositivos —, próxima do seu mundo e da sua experiência individual. A exposição, no Arquivo Municipal-Fotográfico, revela esta dupla vertente do seu trabalho — na sala principal, à entrada, estão as belas cópias digitais a cores feitas a partir dos diapositivos Kodachrome, quase todas agregadas pelo tema da “viagem” e realizadas entre 1947 e os inícios da década de 1970. Lá em cima, no primeiro andar, o preto e branco caracteriza o olhar mais distante da fotógrafa. Não as suas experiências pessoais, mas os temas, tão repetidos ao longo do século XX, de um Portugal visual (e pobre e rural), onde treinava a sua lente “artística”. Helena Corrêa de Barros, que dedicou parte da sua vida a organizar acções de beneficência, fotografou até ao fim. A câmara estava sempre ao pescoço, à espera do “momento único”, que juntasse a lente ao olho. Helena Corrêa de Barros fotografa em kodachrome os espaços onde se move. Não vai lá de propósito para os fotografar. Está lá e fotografa-os. Como anuncia o título desta exposição, Fotografia, a minha viagem preferida, fotografia e viagem ou viagem e fotografia foram movimentos indissociáveis, quer no caso de Corrêa de Barros, quer em geral, quando pensamos na história da fotografia desde a sua invenção em 1839. Com a excepção de uma viagem a Angola, onde se combina o trabalho do marido com a visita a amigos colonos, estas são viagens de lazer, partilhadas com família e amigos, em excursão, em grupo, confortáveis e seguras. São quase todas fotografias felizes. Nos temas como nas cores. “They give us those nice bright colors”São imagens de paisagens, vistas e monumentos. Mas também de pessoas. Pessoas conhecidas (algumas, mulheres e homens, com as suas respectivas câmaras fotográficas penduradas ao pescoço) ou pessoas desconhecidas que, como ela, Helena, também foram à montanha, ao hotel, ao lago, à exposição universal, como a de Bruxelas, em 1958, ou a de Osaka, em 1970. Por vezes, esses outros turistas surgem de costas para nós, porque estão a olhar para o lugar para onde se dirige também a lente da fotógrafa. Ou estão a observar atentos para o guia turístico que lhes dá explicações. Os pontos de vista das fotografias de Helena Corrêa de Barros podem ser muito singulares. Escolhe com frequência ângulos radicais e modernos. Há picados, contrapicados e vistas de pássaro, onde aparecem barcos de pescador (captados da varanda de um hotel), uma mulher de touca a entrar na piscina (trata-se de uma das filhas, mas as próprias brincam entre elas, por não terem a certeza qual das três é que foi fotografada na piscina da casa da Rua de S. Bernardo, em 1950). A fotógrafa não está apenas interessada na imagem que mimetiza o postal turístico. Está também atenta à atmosfera, ao ambiente, às pessoas que estão, como ela, a usufruir da viagem ou do passeio. Ou mesmo às pessoas que não sabem que estão a ser fotografadas. A fotografia faz parte do seu ócio. O seu olhar de viajante é inseparável do seu olhar de fotógrafa. Mais perto: Óbidos, Setúbal, Sagres, Monsanto, Nazaré. Mais longe: Lugano, Cortina, Monte Carlo, Roma, Veneza, Cannes, Florença, e Londres, Granada, Biarritz. Ou ainda mais longe: Angola, Camboja, Japão, Manila, Brasil, Banguecoque, Macau, Singapura. “I love to take a photograph”As viagens implicam movimento, sair de casa, transgredir a distância geográfica. E os meios de transporte tal como os edifícios de partidas e chegadas, tornam-se eles próprios, presença habitual nas suas imagens. À porta do aeroporto, à espera com as malas, ao pé dos autocarros de excursão de onde saíam ou iam entrar. Fotografias de automóveis, sobretudo os automóveis avariados como acontece no seu álbum de Angola, mas também os skis ou as bicicletas de criança no jardim de casa. “They give us the greens of summers”E sobretudo os barcos (ela própria tinha um, era também pescadora), aqueles onde a fotógrafa está com os amigos, em passeios de lazer. Além dos espaços associados às práticas de desportos aquáticos, estão as caçadas, os campos de golfe ou as montanhas suíças onde se faz esqui (uma prática pouco comum no Portugal da época), lugares vividos numa sociabilidade partilhada entre gente “conhecida” ou “semelhante”. As crianças (os seus quatro filhos), a família e os amigos são as pessoas com nome e identidade individual que habitam este mundo a cores. Uma das filhas, Teresa Cardoso de Menezes, conta ao P2 como a mãe lhes pedia muitas vezes para posar, e gostava especialmente que projetassem sombras, quer fosse nas paredes da casa ou durante brincadeiras na praia. A frase, publicitária, do poeta Alexandre O’Neill pode ser aqui usada para pensar no lugar do “mar” na fotografia. O mar é um tema dominante em Helena Corrêa de Barros tal como é um tema dominante da história da fotografia portuguesa do século XX, quer em imagens celebrativas e nacionalistas, quer numa fotografia documental, mais ou menos denunciadora das frágeis condições de vida das gentes que trabalhavam no mar. Por um lado, o mar como lugar de partidas e chegadas: os navios a largarem amarras cheios de emigrantes para o Brasil no início do século; a partida para as colónias dos soldados durante a guerra na década de 1960; a trazerem os contentores com os despojos materiais e pessoais do império colonial em meados de 1970. Por outro lado, o mar como lugar de trabalho, na pesca dos homens ou na venda do peixe e tratamento das redes, das mulheres, ao longo de todo o século. A preto e branco, Helena fotografa inúmeras “fainas”, “redes”, “embarcações de pesca”, “barcos na Nazaré”, “paisagens marítimas” ou “fluviais”, “pesca do atum”, “docas”, “pescadores”, “praias” e “portos”. Mas a este mar em escala de cinzentos, tão presente noutros fotógrafos do século XX, a fotógrafa acrescenta um mar ou um rio coloridos, nos vários tons de azul, que a película kodachrome permitia revelar. É a água dos passeios e das férias. Do Mediterrâneo ao Arno. Do Reno aos lagos suíços. Dos veleiros dos amigos e dos cruzeiros. Das regatas em Cascais ou da praia Grande. Azul, mas de um azul mais claro, é a água da piscina, pequenos mares construídos e controláveis, sinal de distinção e privilégio numa época em que a democratização da piscina, como da praia, era ainda longínqua. “Makes you think all the world’s a sunny day”O seu mar é também o dos cenários das grandes celebrações na capital da nação, como Helena testemunha numa das suas raras imagens de acontecimentos públicos nacionais, com os navios no Tejo a receber o Presidente da República Américo Tomás, no seu regresso de Angola e de S. Tomé (na capa deste P2), em 1963, ou a inauguração da ponte “Salazar” em 1966, hoje a “25 de Abril”. A profissão do marido, Eduardo Costa Lobo Corrêa de Barros, ligado a vários negócios que iam dos seguros aos materiais para obras públicas, explica esta como outras imagens de grandes construções, fotografadas por Helena, em Lisboa ou em Luanda. No labor imagético de Corrêa de Barros poderíamos afirmar que a cor ou a ausência dela servem para distinguir diferentes tipos de fotografia: a cores, um “Portugal próximo”, a sua sociabilidade e experiência de vida, tal como as viagens ao estrangeiro partilhadas com família e amigos; e a preto e branco, um “Portugal distante”, das pessoas e paisagens que nada tinham a ver com a sua esfera social ou o seu quotidiano, mas que por outro lado se inseriam nas tipologias fotográficas de uma “identidade visual portuguesa” com pretensões artísticas, banalizadas desde os anos 1940 em livros fotográficos, exposições, ou guias de viagem. É a preto e branco que surge o “povo”, as pessoas que se fotografam sem se conhecerem. Helena era uma meticulosa arquivista do seu próprio espólio — cada imagem com o seu título e a sua data, o seu espaço e o seu tempo — e o arquivo público preservou as suas palavras, quer nas legendas da exposição, quer na classificação do site onde podemos ver as fotografias digitalizadas. A “lavra da terra”, os “seareiros”, o “campino”, a “pastora”, as “lavadeiras de Águeda”, os “pescadores da Nazaré”, as pessoas na “procissão das festas do Tabuleiro de Tomar” — o Portugal a preto e branco de Helena Corrêa de Barros é, muitas vezes, o Portugal rural, pobre e analfabeto, o do trabalho físico, protagonista de tantos projectos fotográficos do século XX. “Everything looks worse in black and white”Os trabalhos dos pobres em Portugal, como o dos negros, na Angola colonial que Helena Corrêa de Barros visita em 1950, aparecem sobretudo a preto e branco, enquanto a sua lente colorida, focada na sua esfera mais próxima, centra-se mais no lazer do que o trabalho. Talvez seja apenas no álbum de Angola, a preto e branco e mais narrativo, que se veja, em simultâneo, os dois tipos de trabalho, onde a distinção colonial corresponde à desigualdade racial: o trabalho dos homens brancos, administradores e engenheiros que concebem e supervisionam o trabalho braçal das pessoas colonizadas e negras, a construírem edifícios ou obras públicas, sob regimes vários de coerção. Os pobres portugueses (ou os colonizados) parecem ter sido mais fotografados do que os ricos. Não por eles próprios, mas por outros. As máquinas fotográficas nacionais e estrangeiras concentraram-se mais no “povo”, sem nome e sem quase nada. O Portugal a cores da segunda metade do século XX captado por Helena Corrêa de Barros é o país de uma elite portuguesa, que combinava um à-vontade económico com a serenidade de não se opor ao regime político salazarista, um país que “vemos” menos porque está ainda guardado, e invisibilizado, nos álbuns de família, ou nas caixas de plástico com slides, no interior das casas das pessoas que as protagonizaram. Fotografaram-se entre si e para si. Não foram feitas para serem vistas para lá do seu entorno. É também aqui que está o lado mais interessante e original do trabalho desta fotógrafa que, conta Teresa Cardoso de Menezes, era “muito reservada” e pouco dada a tentar influenciar com os seus interesses os que a rodeavam. “A minha mãe não falava muito das suas actividades connosco. Entre tudo o que fez, não tentou passar-nos nada”, conta Teresa, enquanto remexe numa caixa com fotografias de família, onde muito raramente a mãe aparece com a sua câmara. Com o trabalho que foi feito para dar corpo à exposição, que pode ser vista até 23 de Fevereiro de 2019, a filha reconhece agora que a mãe “era uma pessoa à frente do tempo”. “Uma coisa com que ficava fascinada era a maneira ágil com que ela trocava de lentes da câmara, consoante a luz e o que pretendia fotografar. ”Embora a exposição, e bem, tenha optado por destacar as fotografias a cores em kodachrome, Helena Corrêa de Barros também fotografou muito a preto e branco (grande parte do espólio está disponível online no site do Arquivo). E fê-lo sobretudo no seu trabalho mais público, aquele que tinha ambições artísticas. Na década de 1950, tal como analisa Luís Pavão no catálogo da exposição, Helena Corrêa de Barros pertenceu a um clube de fotógrafos amadores — o Foto-Clube 6x6 — e participou em várias exposições, nacionais e internacionais. O 6x6 foi fundado por António Rosa Casaco — antigo inspector da PIDE envolvido no assassinato de Humberto Delgado, que tinha a fotografia como um dos seus principais passatempos — e por outros fotógrafos salonistas, como Harrington Sena, Silva Araújo, Fernando Vicente e Nunes de Almeida. Como contou ao P2 a sua filha Teresa, Helena começou por revelar as suas fotografias a preto e branco em casa e só mais tarde passou a fazê-lo no laboratório colectivo do Foto-Clube 6x6, também porque a comunidade de fotógrafos amadores que ali se juntava a ajudava no processo de selecção do que devia ou não revelar ou enviar a concursos. Em 1954, por exemplo, o seu nome aparece num salon em França — a única mulher na representação portuguesa de 15 participantes, enquanto em 1955, no 18. º Salão Internacional de Arte Fotográfica, voltou a ser a única mulher da secção portuguesa, com a sua “Debandada”, fotografia que apresentou em vários concursos, e que está exposta no primeiro andar do Arquivo Municipal Fotográfico, na Rua da Palma. Ainda em 1955, na Revista Fotografia, Eduardo Harrington Sena assinou um texto onde registou os participantes portugueses em “Salões, exposições e concursos de arte fotográfica”. Referiu a 1. ª Exibição Internacional de fotografias de Foto-Clubes que tivera lugar em Viena e onde Portugal estivera representado pelos “amadores” do lisboeta Foto-Clube 6x6. Ao lado do nome de Corrêa de Barros surge o de uma outra mulher, a Marquesa de Fronteira, Maria Margarida Canavarro de Menezes Fernandes Costa (1915-2004), que chegou a montar um laboratório fotográfico em sua casa, o Palácio Fronteira, em Benfica. Eram amigas e também fotografaram juntas. No Boletim do Foto-Clube 6x6, de Setembro/Outubro de 1956, Helena Corrêa de Barros aparece como sendo a única mulher que participou em exposições de fotografia nesse ano. Um ano depois, em 1957, o mesmo boletim apresenta os nomes de todos os membros que tinham sido seleccionados para participar em exposições: de Montpellier, em França, a Santo André, no Brasil; em S. Bernardino, na Califórnia como em São Paulo; na Malaia como em Moçambique. Entre todos os nomes, apenas uma mulher, o de Helena Corrêa de Barros, com três fotografias seleccionadas. São muito poucos os outros nomes femininos que encontramos durante esta década. Em 1951, a exposição do Grupo Câmara apresenta duas fotografias de D. Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho, de Coimbra, e de D. Anita Alves da Silva, do Fundão. Enquanto em 1953, num Salão Nacional de Fotografia em Castelo Branco surgem dois nomes: Violette Quenolle, de Lisboa, e Maria Manuela Domingos Ribeiro, de Castelo Branco. Helena é também a única mulher na secção de fotografia a preto e branco (uma em seis fotógrafos) da exposição internacional de fotografia organizada pela CUF em 1957, com uma imagem “sem título”. Algo que distinguia esta exposição da CUF, da maior parte das outras, era o facto de ter uma grande secção de diapositivos a cores. Mas o nome de Helena Corrêa de Barros, que tanto fotografava a cores, não vem referido e a única mulher presente é Letícia Maria José, com uma “Maré Vazia”. Porque é que Corrêa de Barros apenas concorre aos salões com fotografias a preto e branco? A sua decisão corresponde à distinção dominante de associar o preto e branco às possibilidades estéticas e não utilitárias da fotografia, e de recorrer à cor e ao diapositivo para a fotografia mais doméstica e biográfica, onde existe uma clara intenção de criar memórias visuais das experiências e momentos vividos e das pessoas que consigo partilhavam tanto o quotidiano da vida familiar, como os momentos mais excepcionais de passeios ou viagens. Fotografia, a minha viagem preferida, sobre Helena Corrêa de Barros não é a primeira exposição histórica que o Arquivo Municipal de Lisboa dedica à obra fotográfica de uma mulher. Entre 2013 e 2014 teve lugar uma mostra, também acompanhada de catálogo, das fotografias de Ana Maria Holstein Beck (1902-1966), tal como esta, comissariada por Paula Figueiredo Cunca e Luís Pavão [Ana Maria de Sousa e Holstein Beck — fotografia privada 1912-1958 (Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa; Scribe, 2014)]. Como no caso de Helena Corrêa de Barros, também se tratou de uma doação familiar de um espólio que se pode inserir na categoria de “fotografia privada”. Corrêa de Barros e Holstein Beck não foram mulheres-fotógrafas, no sentido profissional e remunerado do termo, mas sim mulheres que fotografaram. A fronteira entre “privada” ou “amadora”, por um lado, e “profissional”, por outro, deve, no entanto, ser questionada e pouco revela em relação à “qualidade” da obra. A “qualidade”, aliás, é um conceito subjectivo que historicamente serviu para afastar as mulheres dos cânones do reconhecimento, onde o mérito tendeu a ser sinónimo de masculinidade. Mesmo assim, é relevante pensar que, noutros lugares do mundo durante este período, já havia muitas mulheres a dedicarem-se à fotografia enquanto profissão remunerada, em estúdio privado ou em comissões governamentais. É o caso da fotógrafa profissional Dorothea Lange (1895-1966), cujo trabalho pode ser visto actualmente na exposição Politics of Seeing, agora em Paris no Jeu de Paume (até 27 de Janeiro 2019). Quase contemporâneas, Corrêa de Barros e Holstein Beck (tal como a Marquesa de Fronteira) foram mulheres de um meio social privilegiado, com acesso económico à melhor tecnologia fotográfica e com possibilidade de dedicarem parte do seu tempo às diversas formas de lazer disponíveis às mulheres de uma reduzida elite portuguesa, cosmopolita, viajada e culta. Como temas comuns a ambas, o seu entorno afectivo, familiar e de amigos, os eventos sociais, os desportos e as viagens. Em comum também o facto de as origens nacionais familiares serem tanto prósperas como híbridas: no caso de Ana Maria, a aristocracia transnacional, no caso de Helena, as suas origens, maternas como paternas, em famílias judias originárias de Marrocos, quer do lado dos Abecassis e Bensaúde, paternos, quer dos Benoliel Amzalak e Buzaglo, maternos. Mãe e pai, ambos de nacionalidade inglesa, eram activos participantes em comunidades e organizações israelitas, quer nacionais quer internacionais. A ligação de Helena Corrêa de Barros à Alemanha, deve-se ao facto de ter estudado numa escola Waldorf, em Estugarda, pedagogia ainda hoje progressista, que promove uma educação holística e respeitadora das características individuais. A este cosmopolitismo Corrêa de Barros aliou uma forte participação numa vida social e cívica lisboeta, a esfera onde mulheres dos meios sociais privilegiados podiam trabalhar sem perturbar as convenções sociais que tolhiam os caminhos profissionais femininos. Para angariar fundos para o Centro de Assistência à Maternidade e Infância, fundada pela sua mãe, Sophia Abecassis, Helena demonstrou o seu empreendedorismo e criatividade. O mesmo que demonstrou na construção das suas casas e jardins como no restaurante de “pronto-a-comer” e salão de chá que geriu no fim da vida, o Chef, ponto de encontro dos habitantes do bairro da Lapa. Duas mulheres que também fotografavam e se interessavam por fotografia, e que poderão ser pensadas ao lado de outras mulheres oriundas das elites, são as Rainhas Maria Pia de Sabóia (1847-1911), mulher de D. Luis, e D. Amélia de Órleans (1865-1951), mulher de D. Carlos I. A primeira foi tratada por Teresa Mendes Flores, num número especial sobre “Fotografia e Género” na revista Comunicação e Sociedade (eds. Maria da Luz Correia e Carla Cerqueira); e a segunda foi objecto de uma exposição comissariada por Luís Pavão (2015-2016), que teve lugar no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa: Tirée par. . . a Rainha D. Amélia e a Fotografia. Entre as suas muitas diferenças, também decorrentes das cronologias distintas das suas vidas (Holstein Beck nasceu antes e viveu menos tempo do que Corrêa de Barros), referiremos duas: em primeiro lugar, Corrêa de Barros, ao contrário de Holstein Beck, demonstrou alguma ambição em sair da esfera meramente privada, ao concorrer a inúmeros concursos e exposições de fotografia, nacionais e internacionais. Em segundo lugar, são distintas as tecnologias fotográficas a que recorreram. Ana Maria Holstein Beck organizou as suas mais de 5900 fotografias a preto e branco em álbuns de família, enquanto Helena Corrêa de Barros privilegiou o muito mais moderno dispositivo da película colorida. Este último, revelado em diapositivo, não era passível de ser visualizado em álbuns (quanto muito via-se à contraluz) continuando a precisar de uma “máquina” e da acção humana para se tornar visível através das então populares “sessões de slides”. Conta Teresa Cardoso de Menezes que pelo menos uma vez por ano, Helena juntava a família para mostrar slides, com luzes apagadas e a sua narrativa oral — a voz como legenda — a contextualizar aquilo que dava a ver ou a identificar familiares, mas nunca a falar do seu mérito enquanto fotógrafa ou explicar como tinha captado esta ou aquela imagem. Será possível encontrar uma genealogia de observação de imagens a cores e em movimento desde o século XIX até aos dias de hoje? Da lanterna mágica, aos aparelhos para visualizar estereoscopias, passando pelos diapositivos, e chegando aos modos contemporâneos de olharmos para fotografias, passando-as, com o dedo ou com o rato, no ecrã do telemóvel ou do computador?Tão relevante como a produção fotográfica em si, são as histórias dos espólios fotográficos, na sua passagem do espaço privado para o espaço público. Nos casos de Holstein Beck e Corrêa de Barros, os seus descendentes tiveram consciência da sua relevância e tomaram a iniciativa de doar os seus espólios a uma instituição, como o Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico, já com uma tradição consolidada de conservação e restauro, classificação, divulgação e exposição de fotografia, capaz de assegurar a sua unidade e continuidade. Haverá, ainda, milhares destas fotografias em casas particulares de pessoas que pensam nestas imagens como “memórias familiares” e não “memórias históricas” ou “estéticas”. Mas mais raros serão os conjuntos criados por uma só pessoa, sobretudo por uma só mulher, com a persistência e a solidez de um projeto fotográfico-autobiográfico, como foi o de Helena Corrêa de Barros, mesmo que a própria, não tivesse a consciência do seu valor, e mesmo a sua família, como a própria reconhece, só agora se aperceba da sua real dimensão. O papel das famílias — na preservação e valorização de espólios escritos, fotográficos ou de objectos — é assim, determinante, e a riqueza dos arquivos públicos depende, em grande parte, das iniciativas de privados. A consciência e cultura das famílias que, hoje, possuem arquivos privados em suas casas, é especialmente relevante para o caso da obra de mulheres. Por razões históricas e já muito estudadas desde a década de 1970, a produção intelectual e criativa das mulheres teve menos oportunidades de ocupar o espaço público — da exposição ou publicação — e, por isso, está ainda em grande parte, preservado (ou esquecido) em casas particulares. As abordagens feministas que vieram analisar os processos que levaram à invisibilização da escrita, pintura, escultura ou fotografia feita por mulheres, têm tido um grande impacto na investigação histórica dos últimos 50 anos, e isto é visível no ensino académico, em publicações e em exposições e museus. Estes novos olhares do presente, sobre a cultura intelectual e material do passado, também tem tido um impacto entre aqueles que têm em casa a “obra” de mães, avós, tias ou bisavós. A prática fotográfica e o percurso biográfico de Helena Corrêa de Barros sugerem diferentes reflexões. Por um lado, a de uma história das tecnologias fotográficas no século XX, do preto e branco à cor, luminosa, possibilitada pela nova película, onde não há um “antes” e um “depois”, mas uma simultaneidade em que se multiplicam as formas de fotografar. Por outro lado, a história da fotografia nas suas tensões entre o amadorismo e a profissionalização, sendo as questões de género centrais às negociações de uma fronteira, onde a fotografia pública e profissional tendia a ser sinónimo de masculino, e a privada e familiar, de feminino. As muitas transgressões as estas expectativas têm vindo à luz nos últimos anos, em investigações e exposições de mulheres fotógrafas. Como afirmou uma das suas filhas ao P2, Teresa Cardoso de Menezes, a mãe nunca se considerou “uma profissional” e a própria família não tinha consciência do valor do corpus, consistente em quantidade e qualidade, da sua obra. Só após a sua morte é que os próprios filhos se confrontaram com a riqueza da herança criativa deixada pela mãe. Este processo é muito comum, particularmente com a produção intelectual e artística feminina do passado: a própria autora interioriza a sua subalternização, desvalorizando-se. O estigma do amadorismo feminino — podiam “fazer” mas de modo doméstico e não profissional — era inseparável do contexto social, mas afectava também o modo como as próprias mulheres se imaginavam a si próprias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Parte da produção fotográfica de Helena Corrêa de Barros permite-nos agora fazer uma etnografia de uma elite portuguesa que raramente vemos nos cânones visuais do Portugal do século XX. Não são já as carte-de-visite oitocentistas com que os meios privilegiados se puderam dar a ver, nem os retratos dos políticos (homens) ou das actrizes e cantoras (mulheres) a preto e branco, reproduzidos nos jornais de novecentos. São sim os espaços e as experiências de uma Lisboa que não estava vestida de preto, que não trabalhava com as mãos (porque podia pagar a quem o fizesse), que não era analfabeta (mesmo que nem sempre fosse culta ou intelectual), que vivia em casas grandes e dignas e que tinha segundas casas, na praia ou no campo, que ia ao teatro, à ópera e jantar fora, que praticava golf, ténis e esqui, dentro e fora do país. Era um Portugal que não emigrava, mas viajava no estrangeiro. Que podia aquecer as casas apesar da austeridade dominante. Que usava o mar para nadar ou velejar e não para trabalhar. Que educava as raparigas para casar, não as encorajava a estudar mais do que o essencial ou a ter uma profissão remunerada (o “parece mal” afectava especialmente os percursos das mulheres). Que convivia pacificamente com o regime político não democrático, como com as colónias, que na altura se chamavam “províncias ultramarinas”. Que no 25 de Abril, e por razões políticas, económicas ou pessoais, ou numa mistura de vários motivos, deixou Portugal, para ir viver para Madrid, para a Suíça ou o Brasil. Mas mesmo no interior deste Portugal privilegiado da década de 1940 ou 1960, existem muitas diferenças, e o percurso e família de Helena Corrêa de Barros também o demonstra. Possuía uma distinção social e económica, mas, ao mesmo tempo, era “estrangeira” e cosmopolita, e isso terá contribuído para uma liberdade acrescida. Entre outras escolhas, também pôde usar uma câmara fotográfica. E é nessa capacidade de estar por dentro, sem perder a capacidade de observar e reflectir sobre a sua própria experiência, que ela se distingue. Através da sua lente, próxima e distante, podemos diversificar e enriquecer as “imagens do país” a preto e branco, que têm dominado a visualidade do Portugal do século XX. com Sérgio B. Gomes
REFERÊNCIAS: