A pequena história da grande História na competição do Doclisboa
Os primeiros títulos a concurso sugerem um ano de ouro para o festival. Destaque grande para o filme português Vida Activa, de Susana Nobre. Um retrato resignado e triste de vidas suspensas (...)

A pequena história da grande História na competição do Doclisboa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.09
DATA: 2013-10-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os primeiros títulos a concurso sugerem um ano de ouro para o festival. Destaque grande para o filme português Vida Activa, de Susana Nobre. Um retrato resignado e triste de vidas suspensas
TEXTO: Coloquemos a coisa neste pé: se todas as longas-metragens a concurso no Doclisboa conseguirem manter o altíssimo nível visível neste primeiro fim-de-semana, onde se concentram perto de metade dos títulos, este vai ser um ano de ouro para o festival. Isto não quer dizer que tudo seja igualmente bom - não é -, mas a quantidade de obras acima da média é invulgar. O grosso destes filmes usa a vivência pessoal como porta de entrada ou "cavalo de Tróia" para falar de questões maiores. Na competição nacional, há um exemplo notável em Vida Activa, de Susana Nobre (São Jorge, sábado 26, 19h15, e Cinema City Alvalade, quinta 31, 19h), que condensa em 90 minutos o período que a realizadora passou a trabalhar no programa Novas Oportunidades na zona de Vila Franca de Xira. As múltiplas histórias pessoais que Susana Nobre coleccionou ao longo de meses desenham um retrato resignado e triste de vidas suspensas, ao mesmo tempo que reflectem a realidade do desemprego e de uma visão empresarial puramente utilitária que desvaloriza a experiência pessoal ganha a pulso. Visto numa cópia quase final, é um filme seco, árido, duro, e é precisamente nessa dureza que se ganha. Numa linha semelhante, Kelly, da francesa Stéphanie Régnier (competição internacional; Alvalade, sábado 26, 21h15 e São Jorge, segunda 28, 16h), dá a conhecer as experiências de uma imigrante peruana em Marrocos que sonha em reunir-se à mãe em França. A sua história é a de tantos outros emigrantes que procuram uma vida melhor longe da sua terra natal e que esbarram nos obstáculos da burocracia internacional. Mas, ao mesmo tempo, Régnier levanta questões sobre o papel da câmara que está a filmar Kelly: cria o palco para a projecção de uma fachada optimista, ou é antes o confessionário de uma vida em constante busca do sonho?Sob o signo de BeiruteA câmara é a chave do provocador israelita Avi Mograbi, cujo cinema se faz sempre na visão das contradições do Israel moderno. Once I Entered a Garden (competição internacional; Culturgest, hoje, 22h, e Alvalade, segunda 28, 16h15) é um novo olhar esquinado para o eterno conflito israelo-palestiniano pelo prisma da cultura e da identidade. Ou antes, dois olhares: o de Mograbi, que busca antepassados judeus árabes provenientes de Beirute, e o do seu professor de Árabe, Ali Al-Azhari, palestiniano residente em Telavive e casado com uma judia. Sob o signo de Beirute, sinal utópico de uma paz impossível consubstanciada na presença de Yasmine - filha menina de Ali, que não vê sentido nas divisões étnicas da região -, Mograbi explora os efeitos da História nas pequenas histórias, sempre pontuado pelo humor negro e seco a que nos habituou. Era essa exploração que Maria Clara Escobar procurava em Os Dias com Ele (São Jorge, sábado 26, 16h30, e Alvalade, segunda 28, 21h15): usar a experiência pessoal do pai, o professor e filósofo Carlos Henrique Escobar, militante comunista contra a ditadura militar brasileira actualmente radicado em Aveiro, para lançar luz sobre um período negro da história do Brasil e sobre a sua própria história familiar. O resultado, contudo, desvia-se para o retrato fascinante de uma relação complicada entre pai e filha (Carlos Henrique reconheceu Maria Clara mas nunca casou com a sua mãe), num teimoso duelo de vontades que passa o tempo a tactear à volta do "elefante na loja de porcelanas". A merecer ainda destaque o deslumbrante poema tonal Anita (Alvalade, domingo 27, 22h, e quinta 31, 18h45). Inspirado por Viaggio con Anita, um projecto que Federico Fellini escreveu mas nunca chegou a filmar, o italiano Luca Magi percorre os locais reais onde o filme se deveria passar e ilustra-os com imagens de filmes caseiros de época, numa espécie de fantasmagoria onde a ficção do passado e a realidade do presente se contaminam de modo atmosférico e onírico.
REFERÊNCIAS:
Dia Mundial da Criança: E se fossem eles a mandar no país?
A pensar neste domingo em que se comemora por todo o lado o Dia Mundial da Criança, o PÚBLICO pediu a cinco crianças de 8 e 9 anos que se sentassem a uma mesa redonda a discutir os problemas do país. (...)

Dia Mundial da Criança: E se fossem eles a mandar no país?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-06-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: A pensar neste domingo em que se comemora por todo o lado o Dia Mundial da Criança, o PÚBLICO pediu a cinco crianças de 8 e 9 anos que se sentassem a uma mesa redonda a discutir os problemas do país.
TEXTO: Têm entre 8 e 9 anos e sabem que o país está em crise. Se mandassem, obrigavam os patrões a pagar mais aos empregados. E, sim, sabem para que servem as eleições, só acham que não valem a pena porque “os que são escolhidos cometem sempre os mesmos erros”. A palavra dinheiro surge várias vezes (demasiadas?) durante a conversa e isso é surpreendente porque ainda mal saíram da fase em que se brinca às princesas e aos piratas. Será porventura porque a crise lhes entrou pela porta de casa adentro, traduzida em coisas como a emigração e o desemprego. Sim, sabem que o país afundou numa crise que deixou muitas pessoas sem poder “por exemplo, alugar uma casa e comprar comida”. Por isso, se fossem primeiro-ministro, obrigavam os patrões a “pagar mais aos empregados” e “o mesmo todos os meses”. Não se imaginam com filhos porque, lá está, “se calhar não vai haver dinheiro para comprar roupas e comida”. A pensar neste domingo em que se comemora por todo o lado o Dia Mundial da Criança, o PÚBLICO pediu a cinco alunos do 3. º ano do primeiro ciclo do básico da Escola João de Deus, no Porto, que se sentassem a uma mesa redonda a discutir os problemas do país. Sentados nas cadeiras, chegam bem com os pés ao chão mas apenas porque aquelas são feitas à sua medida. Têm entre oito e nove anos. Francisco, que se destaca do grupo pelos óculos azuis, decidiu que quer ser futebolista quando crescer. Samuel, o mais franzino, também e até já treina no Leixões. Leonor quer ser médica e sabe que a isso a obrigará a “ser sincera e cuidar bem das pessoas”. Beatriz, cabelo preso num rabo-de-cavalo, imagina-se veterinária, por causa da cadela Nina que dorme no seu quarto. João, o mais desenvolvido, casaco de fato-de-treino às riscas pretas e brancas, anuncia que quer ser polícia. “Para prender as pessoas que se portam muito mal”, justifica. “Se calhar vou ter que prender os que estão no Governo também”, acrescenta, dando o mote para a conversa que se prolongou por cerca de uma hora. João: “Eu gosto de tudo [no país] menos do Governo”No léxico de todos, substantivos como crise e desemprego tornaram-se familiares. “Crise é estar sem dinheiro. Os nossos pais trabalham e recebem cada vez menos dinheiro todos os anos”, define Beatriz. “A mãe do Francisco está desempregada. E a minha mãe também esteve”, diz Leonor. “A minha mãe já abriu uma espécie de ATL com a minha avó”, corrige Francisco. A minha irmã também está desempregada”, acrescenta João. “Algumas pessoas que ficam sem emprego perdem a casa”, precisa Samuel, ao que Francisco acrescenta: “E têm que pedir dinheiro porque já não podem comprar comida”. Quanto à emigração, que é “ir para outros países arranjar trabalho”, Samuel e Francisco têm-na como inevitável, mas por razões diferentes das habituais: “Como vamos ser jogadores, se calhar vamos ser contratados por outros países”, explica Samuel. Descontada essa circunstância, todos se mostram pouco confortáveis com a ideia de serem forçados a partir. “Eu não quero, porque gosto muito do meu país. Da paisagem e isso… E deixar cá a família não seria nada bom”, perspectiva Leonor. Ao que João atira: “Eu gosto de tudo [no país] menos do Governo”. Porquê? “Porque é uma coisa má. Só nos deixa obedecer” e temos de estar sempre a pagar!”. Beatriz acrescenta que “o Governo manda pagar menos aos empregados e mais a quem manda nas empresas”. “E obriga-nos a pedir facturas”, soma Francisco. É então que Samuel vaticina, mãos entrecruzadas sobre o tampo da mesa: “Eu, particularmente, acho que todo o país detesta o Governo”. Samuel: “Se fosse primeiro-ministro inventava uma regra que era os patrões darem mais aos empregados”Tendo ficado assente neste quinteto que “quem Governa são os maus” - os tais que João admite vir a prender um dia -, a pergunta que se impõe é para que servem, afinal, umas eleições. Diz Beatriz: “Servem para os nossos pais escolherem os nossos governantes. Por exemplo, agora está um, não sei qual é, o PSD ou algum outro, a governar. Mas depois a parte má é que quem é escolhido faz sempre os mesmos erros. E eu não gosto nada disso”. João também não gosta. Francisco idem aspas: “As pessoas escolhem o seu preferido para tornar Portugal melhor, com mais dinheiro, e depois os preferidos acabam por tirar um pouco mais [às pessoas] ”. Depois de Samuel ter opinado que “as eleições são todos os anos” e que coincidem com o dia em que o seu avô faz anos, Beatriz decide precisar o que pensa sobre o assunto. “Com as eleições nós aprendemos quem é que faz mal ao país e quem não faz. É uma lição para votarmos noutros porque já aprendemos que quem lá está não é bom governante”. Logo, “as eleições servem para dizermos que quem lá está não é bom”.
REFERÊNCIAS:
Lenny, Andy, John e Chris, os que pagaram o preço do riso
A comédia stand up de Robin Williams é indissociável da sua persona fora dos filmes e lembra Lenny Bruce, Andy Kaufman, John Belushi ou Chris Farley, que também sorveram os dias e se extinguiram cedo. (...)

Lenny, Andy, John e Chris, os que pagaram o preço do riso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: A comédia stand up de Robin Williams é indissociável da sua persona fora dos filmes e lembra Lenny Bruce, Andy Kaufman, John Belushi ou Chris Farley, que também sorveram os dias e se extinguiram cedo.
TEXTO: Com mais de uma centena de papéis no cinema e na televisão, Robin Williams é indissociável da velocidade e excentricidade do fluxo de consciência na sua comédia em palco e aparições nos talk shows americanos. Um imitador e um criativo numa forma de exposição voraz que, lembra o colunista da Variety Brian Lowry, “é mais um lembrete de que o riso extraído por alguns dos nossos melhores palhaços muitas vezes vem com um preço pessoal exorbitante”. Andy Kaufman, Lenny Bruce, John Belushi ou Chris Farley são alguns dos comediantes que sorveram os dias e se extinguiram cedo. Lenny Bruce“Se Jesus tivesse sido morto há 20 anos, as crianças dos colégios católicos usariam cadeirinhas eléctricas ao pescoço em vez de cruzes. ” Lenny Bruce (1925-1966) escreveu textos para a revista Playboy, mais tarde editados em livro, que até hoje incomodam. O comediante que cresceu durante a Grande Depressão, foi expulso da Marinha norte-americana em plena II Guerra depois de ter sido apanhado pelos oficiais num número de stand up em que vestia de mulher. Tal como Robin Williams nos seus primeiros anos em palco, recorria às imitações de figuras de Hollywood, do sempre caricaturável James Cagney a Peter Lorre, mas só atingiria o estatuto de “o mais doente dos doentes” dos comediantes na década de 1950 enquanto fazia o circuito dos clubes de comédia e embebia a contracultura e o movimento Beat nos seus números. A sua postura roçava o incómodo, sendo pouco afável para o público e ocupando um espaço de negrume em palco com a sua figura esguia e crítica mordaz. Escatologia, religião, política atravessavam os seus espectáculos. Foi preso inúmeras vezes, acusado de posse de drogas ou de uso de palavras obscenas. O seu fluxo de consciência em palco, dizia, não era escrito de antemão. Allen Ginsberg mobilizou um movimento de apoio a Bruce em que este era enquadrado como “um performer popular e controverso no campo da sátira social na tradição de Swift, Rabelais e Twain”. Lenny Bruce foi encontrado morto aos 40 anos de uma overdose de heroína em Hollywood. Se Brian Lowry descreve Robin Williams como um “dervixe rodopiante”, Lenny era um “xamã cómico” para o professor de História Social Americana na Universidade de Boston. Andy KaufmanTal como Dustin Hoffman foi Lenny Bruce em Lenny, de Bob Fosse, Jim Carrey foi posto ao serviço da loucura adorável de Andy Kaufman em Homem na Lua, de Milos Forman. Foi o encontro de novas gerações com o intangível comediante que se cristalizou como "um dos mais interessantes casos de performance art", como descreveu em tempos ao PÚBLICO Robert J. Thompson, do Centro Bleier para a Cultura Popular da Universidade de Syracuse, ou um “meteoro que cruzou o entertainment americano” que se servia do humor “como um terrorista, para desafiar e dinamitar as convenções do american way of life”, nas palavras do crítico de cinema Luís Miguel Oliveira. A figura de Andy Kaufman era muitas vezes desarmantemente trágica em palco, como quando vestia a pele do imigrante ou do estrangeiro que não conseguia (ou não queria) comunicar. Festivo na sua imitação de Elvis Presley, jogando com os timings e com a tolerância do seu público. A prova da mescla entre a sua personalidade e a sua persona em palco está na duradoura discussão entre os seus fãs à época sobre se o cantor romântico Tony Clifton era ou não uma criação sua. Kaufman sempre foi taxativo quanto ao alcance da sua pulsão cómica: “Não estou a tentar ser engraçado. Só quero mexer com as cabeças deles [do seu público]”. Era o que fazia a lutar com mulheres ou em espectáculos experimentais, além das suas aparições atormentadoras em Saturday Night Live ou nos talk shows. Latka Gravas foi a sua encarnação mais límpida, calorosamente acolhida pelo público da sitcom Taxi. Kaufman nunca se explicava, nem ao seu trabalho. Por isso, quando morreu de cancro em 1984, aos 35 anos, muitos fãs continuaram a pensar que ele podia ter encenado a doença. John BelushiUm dos mais celebrados e excessivos comediantes dos EUA, uma figura contemporânea de Robin Williams nos circuitos de stand up e das festas, “o Bruce Lee da comédia” – assim descrito pelo comediante Tracy Morgan pela sua capacidade de arriscar até ao limite. Sexo, drogas e morte, sketches autobiográficos em que expunha as suas derivas nocturnas intoxicadas até à casa dos amigos e colegas, o pasto de John Belushi era o excesso. Um dos membros do elenco fundador da futura escola televisiva de humor americana, o programa Saturday Night Live onde trabalhou com Bill Murray ou Chevy Chase, ficaria para sempre emparelhado com Dan Aykroyd em The Blues Brothers – O Dueto da Corda (1980), do mesmo John Landis que o tinha resgatado para Hollywood com o delírio de Animal House - A República dos Cucos (1978). Belushi morreu em 1982 de overdose no hotel Chateau Marmont, em Los Angeles, tendo Williams sido uma das últimas pessoas a vê-lo com vida. Tinha 33 anos.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
À procura de um país
Há algo no ar? Uma geração que construiu uma memória idealizada do 25 de Abril anda à procura desse país. A nostalgia e como ultrapassá-la. Is that a metaphor? Era, é: Catarina Vasconcelos a andar com um elefante no Hyde Park em Londres. Tinha de ser suficientemente grande “para caberem dentro estas coisas todas”: a mãe e o país, um cancro e uma revolução. “Os elefantes têm uma memória gigante. E são animais que visitam os seus mortos. ” Catarina respondeu yes, sim, é uma metáfora, o elefante no Hyde Park é o elephant in a room que se evidencia mas que toda a gente finge ignorar. Respondeu yes aos londrinos que s... (etc.)

À procura de um país
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-02-06 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160206113854/http://ipsilon.publico.pt/cinema/texto.aspx?id=333491
TEXTO: Há algo no ar? Uma geração que construiu uma memória idealizada do 25 de Abril anda à procura desse país. A nostalgia e como ultrapassá-la. Is that a metaphor? Era, é: Catarina Vasconcelos a andar com um elefante no Hyde Park em Londres. Tinha de ser suficientemente grande “para caberem dentro estas coisas todas”: a mãe e o país, um cancro e uma revolução. “Os elefantes têm uma memória gigante. E são animais que visitam os seus mortos. ” Catarina respondeu yes, sim, é uma metáfora, o elefante no Hyde Park é o elephant in a room que se evidencia mas que toda a gente finge ignorar. Respondeu yes aos londrinos que se abeiravam com curiosidade. A verdade é que na altura nem sabia o que respondia: o filme estava a ser rodado e ela ainda não o tinha escrito. Escreveu-o depois, com o alinhamento das imagens em cima da mesa. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso está aí, estará no DocLisboa 2014, de 16 a 26 de Outubro. (Acabou por levar a “metáfora” no título. ) E está hoje aqui, nestas páginas, não só porque foi considerado há duas semanas a melhor curta internacional pelo júri do festival Cinema du Réel, em Paris, mas porque é uma narrativa de timing certo: está em busca do 25 de Abril. “Como é que se esqueceu um país?”A interrogação é de uma rapariga de 28 anos que construiu a memória da revolução através da aventura dos pais, que se apaixonaram e foram de Citröen 2 cavalos até à reforma agrária. Dez anos depois da morte da mãe, Catarina e o irmão escrevem-se: sentem-se metades de pessoas, as gavetas recheadas de vazio, habitantes de casas incompletas; estão a ser varridos por correntes de ar, as portas e janelas fizeram greve geral. “Mãe, para onde é que levaste a revolução?”Querem virar a tristeza do avesso. Atravessam a ponte, num país em que “o ministro da Saúde pede às pessoas para não ficarem doentes por causa do Orçamento de Estado”, vão em direcção ao tempo atrás, quando eles nem existiam, “quando não havia cancro” — em direcção ao “tempo das revoluções dentro das pessoas que depois se tornaram revoluções fora das pessoas. ” O cinema é a “máquina de engolir” que torna a viagem possível — engolir para outro tempo. Catarina visita os seus mortos. Dez anos depois da morte da mãe, a catarse e talvez a culpa, palavra pesada, pelo esquecimento que começa a acolchoar a memória, são agitados por aquilo que vê ao longe, como se usasse telescópio a partir de Londres, onde fez mestrado no Royal College of Art em Design de Comunicação. Pelas conversas telefónicas com o pai, pelas notícias nos jornais. O cá dentro, que está dentro de nós, lá fora. “Teria sido impossível fazer este filme se estivesse em Portugal”, diz. É esse o timing de Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, trabalho de mestrado no Royal College: abrir uma narrativa íntima, pessoal, individual, já que se trata de alguém a “deitar coisas cá para fora”, à possibilidade coral, a um “de todos nós. ”“Não me interessa fazer filmes para mim própria. Quero partilhar uma memória colectiva. Era preciso estabelecer esse elo de colectivo. Daquilo que é pessoal e que pertence também a muitos. Porque não é um filme de passado. Interessa-me que seja um filme sobre o presente. ” Sobre isto, por exemplo: “Quando se vêem os filmes da altura, 1974-1975, da altura do PREC, vêem-se muitos debates populares. As pessoas tinham voz. Para onde é que isso foi? Como perdemos, como se desvaneceu, essa memória? O país foi esquecido. Pelo menos aquilo que os meus pais me disseram que foi o 25 de Abril. ” Talvez não haja momento mais tremendo desse encontro entre a história pessoal de Catarina e a emoção de um espectador — e a ser assim será uma sobreposição de tristezas — do que aquele em que ela convoca os avós maternos para visitarem o local onde antes houve casa, em que a mãe cresceu, e onde hoje já não há uma casa e a natureza tratou do assunto. Começa por ser o embaraço dos avós, o embaraço de quem não se olha verdadeiramente porque olha o vazio, que só faz cair para dentro: foi o que ficou depois de eles terem enterrado a filha e terem assim perdido também uma metade. É nesse aspecto cinéma verité da tristeza. É depois o embaraço do espectador que ouve aí ecos de si. “Esta luta entre o esquecimento e a procura das coisas, como aquela casa que ali existiu, é uma metáfora de muito o que tem acontecido. ”Após a nostalgia, avançar. . . E o que tem acontecido? Há algo no ar. Em Setembro de 2012, houve manifestações em Portugal. Margarida Rêgo, outra estudante em Design de Comunicação no Royal College of Art, testemunhou. Viu. Quis “começar a perceber o que é isso de lutar por um país”. Também com memória construída da Revolução, pela família e amigos, Margarida, colega de Catarina em Londres, olha à volta e vê “nostalgia” na sua geração. Fez uma curta. Vai estar em Cannes, Quinzena dos Realizadores: A Caça Revoluções. O título diz ao que vai: sobre uma foto do pai da época revolucionária, Margarida “anima” marcas do tempo, inventando um diálogo entre uma memória rica mas cansada, que desistiu, e uma memória ávida de alimento. “Devemos procurar novas palavras de ordem, novas músicas. As pessoas da minha geração não se conseguem desligar dessa nostalgia. Isso faz com que não se consiga avançar. A revolução não terminou no 25 de Abril, temos de pensar que ela continua e que está sempre em mudança. Vamos estar sempre a fazer a revolução. ”Margarida experimenta, em A Caça Revoluções, com desenhos sobre imagens. “Para saber o que acontece com o passar do tempo, o que acontece a seguir à imagem. ” É o seu encontro sem compromisso com o cinema, fiel apenas à possibilidade artesanal, capaz de engolir tudo, que nele descobriu. Tal como Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso, colagem de ficções do real e uma colagem dos diferentes interesses da realizadora. Que nunca tinha pensado em cinema até que descobriu também essa capacidade de engolir. O seu background é a música, começou a estudar violino aos sete anos no Conservatório. Mas percebeu que não queria ser instrumentista. Fez Design de Comunicação nas Belas Artes. Aí também fez teatro. “Os meus pais não só me passaram os valores do 25 de Abril, também me passaram os valores de fazer algo pelos outros. ” Seguiu os passos da mãe, socióloga, trabalhando em bairros problemáticos. “Não era a reforma agrária, eram outras reformas. Mas vi que não ia salvar ninguém e que fundamentalmente estamos apenas a salvar-nos. ” O passo seguinte foi Antropologia Visual, no ISCTE, embora continue “obcecada” pelo Outro. Metáfora ou a Tristeza Virada do Avesso é um feliz retrato dessas justaposições, até porque permite ao espectador encontrar a sua narrativa. Com humor, a realizadora dá conta de dificuldades encontradas junto dos professores no Royal College: “Os ingleses não são nada poetas, não percebem a poesia; os meus professores achavam que o projecto era demanding em termos de leitura de legendas. ”Está em Londres, estrangeirada, a olhar para o país. Um dia voltará. “Não se esquece que o primeiro-ministro disse para os jovens emigrarem. Há-de haver um momento em que os estrangeirados hão-de voltar. Juntaremos esforços e ideias. Estou num país com o qual não estou de acordo em termos políticos. Mas há coisas que funcionam lá. Também é importante perceber que há coisas que não funcionam nos outros países, não é só em Portugal. Aqui é a minha casa. ”
REFERÊNCIAS:
A brincar se harmoniza vinho e comida
É um livro divertido (e útil), este em que Maria João de Almeida põe alguns dos melhores chefs portugueses a pensar em pratos para vinhos de 13 regiões do país. (...)

A brincar se harmoniza vinho e comida
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um livro divertido (e útil), este em que Maria João de Almeida põe alguns dos melhores chefs portugueses a pensar em pratos para vinhos de 13 regiões do país.
TEXTO: O novo livro de Maria João de Almeida não é dois-em-um, é cinco-em-um – ou, se continuarmos na matemática, é muito mais do que isso. Vejamos: são treze chefs, treze regiões de Portugal e um total de 265 vinhos apresentados neste Vinho à Mesa. Quando dizíamos cinco-em-um era na perspectiva do que oferece ao leitor. Aqui ficamos a conhecer melhor os tais treze chefs — João Rodrigues, Alexandre Silva, Henrique Sá Pessoa, Rui Paula, José Avillez, Miguel Castro e Silva, Diogo Rocha, Ricardo Costa, Justa Nobre, Leonel Pereira, Pedro Lemos, Vítor Sobral e Miguel Laffan —, temos acesso a quatro receitas de cada um, aprendemos mais sobre cada uma das regiões vinícolas do país, descobrimos a história dos tais 265 vinhos e, por fim, aprendemos muito sobre harmonizações entre vinhos e comida. A autora conta na introdução que, quando a editora Saída de Emergência a desafiou a escrever mais um livro (depois de O Vinho na Ponta da Língua), desta vez cruzando vinho e comida, ela quis evitar a fórmula habitual receita/vinho recomendado. Pôs-se a pensar e chegou a este modelo, mais trabalhoso de pôr em prática, mas muito mais variado. Maria João de Almeida Saída de Emergência 25, 50€A isto soma-se ainda um lado bem humorado: para cada chef há uma fotonovela que mostra o dia em que Maria João esteve no respectivo restaurante e os animados bastidores da sessão fotográfica e das provas de harmonização. Há ainda dois prefácios, um de Frederico Falcão, presidente do Instituto da Vinha e do Vinho, e outro de Duarte Calvão, coordenador do projecto Gastronomia da Associação de Turismo de Lisboa, que foram também os protagonistas do sorteio realizado previamente para atribuir as regiões aos chefs. O trabalho não foi fácil, conta Maria João no texto inicial. “Se a selecção de chefs foi terrível (há muitos chefs talentosos que não consegui incluir neste livro pelas mais diversas razões), a de vinhos não foi menos, tal é grande a nossa diversidade e qualidade. Mas lá consegui, contorcendo-me pelo meio. ”O sorteio obrigou assim muitos dos cozinheiros a saírem das suas zonas de conforto (o mesmo é dizer, das suas regiões vinícolas preferidas) e a pensar em pratos que melhor se adequassem a vinhos de regiões que, em alguns casos, eles não conheciam tão bem. Outro ponto importante para a autora é a opção, quase sempre, por vinhos feitos com castas nacionais — a excepção acontece apenas em regiões onde alguns dos melhores vinhos incluem castas estrangeiras, explica. De resto, os vinhos são, também na sua maioria, topo de gama ou de gama média alta. Mas também as receitas são de alta cozinha (e por isso não muito fáceis de reproduzir em casa, embora venham explicadas passo a passo). As propostas são muitas e variadas. Começam com o choco no prato, uma ideia de João Rodrigues (Feitoria, Lisboa) para usar apenas um ingrediente (o choco, cozinhado de várias formas) em harmonização com um vinho feito também com uma única casta, o Covela Avesso. E terminam nos Açores com Pedro Lemos (do restaurante com o mesmo nome, no Porto) e uma sobremesa de banana, alfazema e pérolas de Chico Maria para harmonizar precisamente com o Chico Maria Meio Doce. Aqui, só para deixar um exemplo dos textos que acompanham cada harmonização, Maria João explica como “o caramelo da banana assada e maturada liga muito bem com os melados do vinho e as pérolas de sagu, confeccionadas com parte do vinho; o toque final do gelado de banana com citrinos equilibra-se com a acidez do vinho e, por fim, o perfume da alfazema confere um lado floral ao prato que tão bem liga com o lado aromático do vinho”. E assim, com mais de 50 receitas ao longo do livro, se vai percebendo o que é, na prática, uma verdadeira harmonização entre gastronomia e vinho. Quem conhece o crítico gastronómico norte-americano de origem portuguesa David Leite através do seu site Leite’s Culinária, que reúne inúmeros textos e receitas (foi premiado com o James Beard Award), vai ficar a conhecer a sua história neste Querido Banana – Memórias sobre a gastronomia e o amor. Nascido numa família de emigrantes açorianos em Fall River, Massachusetts, David transporta-nos logo no início para essa casa animada, com os pais, a avó, os padrinhos, o primo e todo o universo cultural (e gastronómico, claro) dos portugueses nos EUA. O livro acompanha depois várias fases da sua vida, a descoberta da homossexualidade, e, aos trinta anos, do transtorno bipolar que veio, finalmente, justificar as suas bruscas mudanças de humor. E, a atravessar toda esta história de vida, a comida, da cumplicidade com a mãe na infância (era ela quem lhe chamava Banana), à influência dos programas televisivos de Julia Child, passando sempre pelos sabores marcantes da cozinha portuguesa. Querido BananaDavid LeiteCasa das Letras21, 90 €Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este é um livro sem medos. Coração de vaca grelhado com manteiga de ervas? Faça-se. Mioleira de porco panada com maionese de cebolinho? Vamos a isso. Túbaros de borrego grelhados com azeite de coentros? Porque não? Estas (e muitas outras) receitas de petiscos portugueses são, dizem Isabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro Gomes (autores já de vários outros livros de receitas e gastronomia), “um desafio para se divertirem na cozinha com refeições, ou petiscos, a baixos preços”. E são também uma homenagem a tradições culinárias portuguesas e um incentivo ao aproveitamento daquelas que são consideradas as partes menos nobres dos animais. Depois de uma introdução sobre a carne, o livro divide-se em quatro capítulos, com textos de enquadramento e receitas: aves, bovinos, caprinos e ovinos e, por fim, suínos. Pelo meio, encontramos ainda provérbios e expressões populares e informações sobre todas as carnes DOP e IGP do país. E porque não começar por uma sopa de cabeça de borrego assada no forno?Petiscos e Miudezas à PortuguesaIsabel Zibaia Rafael e Virgílio Nogueiro GomesEd. Marcador14, 90 €
REFERÊNCIAS:
Crónica de um crime anunciado
No dia 10 de Fevereiro, Manuel Baltazar, conhecido como “Palito”, começará a ser julgado pela morte da tia e mãe da sua ex-mulher, Angelina, e por ter disparado contra ela e contra a filha. Angelina vive no medo de que ele regresse. Só no ano passado morreram 40 mulheres vítimas de violência doméstica. (...)

Crónica de um crime anunciado
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: No dia 10 de Fevereiro, Manuel Baltazar, conhecido como “Palito”, começará a ser julgado pela morte da tia e mãe da sua ex-mulher, Angelina, e por ter disparado contra ela e contra a filha. Angelina vive no medo de que ele regresse. Só no ano passado morreram 40 mulheres vítimas de violência doméstica.
TEXTO: Após matar a tia e a mãe da sua ex-mulher, ferindo ainda esta e a filha de ambos, Manuel Baltazar, "Palito" como é conhecido, escapou pelo cerejal nas traseiras de sua casa e escapou à polícia durante 34 dias. São esses 34 dias, em que - segundo polícia e especialistas - não podia ter sobrevivido sem a ajuda dos seus conterrâneos, que tornam este simultaneamente um dos mais excepcionais e exemplares crimes de violência doméstica dos últimos anos. Semanas antes do início do julgamento de Palito, voltámos a Trevões e Valongo dos Azeites para perceber como foi isto possível. Em Dezembro, Angelina passou a receber um apoio financeiro do Estado; até então, impedida de trabalhar, subsistiu graças aos seus vizinhos, que lhe ofereciam a comida. Também não consegue dormir à noite, recordando constantemente o que sofreu. E está em crer que, apesar de “Palito” — como Manuel Baltazar, seu ex-marido, é conhecido — estar preso, ainda controla cada um dos seus passos. A 10 de Fevereiro, “Palito” começará a ser julgado pelo crime praticado a 17 de Abril de 2014; Angelina vive no medo de que de alguma forma, legal ou ilegal, ele consiga regressar para matá-la. Há uma razão para Angelina temer que ele consiga escapar à prisão — é que já assim aconteceu no passado. Estiveram casados 29 anos, de 2 de Janeiro de 1982 a 12 de Dezembro de 2011. Mas ainda antes do divórcio, em Fevereiro de 2009, Angelina abandonou a casa do casal em Trevões, de onde “Palito” é natural. E a 15 de Outubro apresentou queixa contra o marido, que viria a ser condenado por crimes de violência doméstica, ofensas à integridade física e ameaça agravada contra Angelina, a tia desta, Elisa Barros, e o filho, Rui. A sentença do processo — em que pelo menos dez pessoas testemunharam a favor de Angelina — saiu a 18 de Novembro de 2013. As agressões e ameaças praticadas por “Palito” e dadas como provadas pelo tribunal de São João da Pesqueira são descritas em 26 pontos, tornando-se claro que a periodicidade e o grau de violência de “Palito” aumentaram exponencialmente desde que a ex-mulher saiu de casa: a 8 de Outubro de 2009, “Palito” “apertou com força” o pescoço de Angelina; a 29 de Setembro de 2012, apontou uma caçadeira ao peito do filho Rui, quando este trabalhava com a mãe na apanha da azeitona, dizendo-lhe “chama a GNR, agora, chama”; a 21 de Outubro de 2012, “Palito” conduziu o seu Toyota Corolla na direcção de Maria Angelina, travando bruscamente em cima desta — depois disse-lhe: “Agora já não arreganhas os dentes”; a 5 de Dezembro de 2012, ameaçou-a, bem como aos seus tios Elisa e António Barros, que se encontravam a podar uma vinha: “Hei-de cozer-vos a todos, hei-de pegar fogo à vossa casa”; e a 20 de Setembro de 2013, “Palito” perseguiu, de foice na mão, Angelina no cemitério, agarrando-a pela parte de trás do pescoço até Angelina ficar no chão — quando a GNR a encontrou, escondida num café, a urina escorria-lhe pelas pernas abaixo. “Palito” foi condenado a um cúmulo jurídico de quatro anos, mas a pena foi suspensa e em vez de ser preso, “Palito” foi proibido de se aproximar a menos de 400 metros da ex-mulher e tinha de usar pulseira electrónica. Às 16 horas da tarde do dia 17 de Abril, “Palito”, após cortar a pulseira electrónica e munido de uma caçadeira, dirigiu-se a casa de Elisa, onde as quatro mulheres se encontravam a fazer bolos para a Páscoa, e disparou. Depois enfiou-se serra de São Paio dentro e, durante um mês e quatro dias, escapou ao dispositivo policial montado para o apanhar. Esses 34 dias não são um pormenor, antes constituem o traço distintivo de um crime que tendo contornos excepcionais, também é, em termos simbólicos, exemplar dos restantes crimes de violência doméstica ocorridos em Portugal — e a razão pela qual ao longo de vários meses fomos e voltámos a Trevões e a Valongo dos Azeites. Segundo a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), de 1 de Janeiro a 30 de Novembro de 2014, houve 40 mulheres assassinadas por companheiros, ex-companheiros ou familiares do sexo masculino; outras seis escaparam à mesma sorte. Já a Associação de Apoio à Vítima (APAV) fez saber no final do ano passado que recebeu 7265 queixas de violência doméstica ao longo de 2013; nesse período, a Direcção-Geral de Política de Justiça reporta que, dos inquéritos que o Ministério Público levou a cabo, apenas 3541 casos de agressão doméstica a mulheres foram julgados. Em 2014, apenas 96 homens foram presos por esse crime. Os números não sofreram grandes alterações ao longo dos últimos anos — o que significa que pouco mais de 1% das mulheres que recorrem à APAV vêem os seus agressores condenados. 7265 queixas de violência doméstica chegaram à APAV em 2013. Em 2014, 96 homens foram presos por esse crimePor duas vezes, lê-se na sentença de 2013, “Palito” encontrou a mulher nos refúgios que a APAV lhe providenciou quando saiu de casa. Estas casas são secretas — como foi possível a “Palito” descobrir as moradas?“Isso basta alguém vê-la e dizer [a ‘Palito’]”, responde um GNR da zona. Mas porque é que alguém iria contar a um homem que agredia a mulher onde esta se escondera?Há outras peças importantes para montar o puzzle. Ao atacar a filha, a ex-mulher e a tia e a mãe desta, “Palito” qualifica-se como um “familicida”. Por norma, e como explica Fernando Almeida, psiquiatra especializado em crimes de sangue, “o familicida entrega-se às autoridades, deixa-se apanhar ou suicida-se”. “Palito” não só não se entregou, como o número de dias que andou a monte o torna uma excepção face ao habitual neste tipo de crimes. O mesmo GNR disse à Revista 2 ser impossível um homem andar este tempo fugido sem ajuda dos vizinhos: “Alguma coisa ele tinha de comer. ” Porque é que alguém iria ajudar um duplo homicida?Fernando Almeida tem uma explicação: “Algumas das pessoas que o alimentaram durante um mês pensam: ‘Coitadinho, ele tanto trabalhou para alimentar a família e ela agora vai abandoná-lo? Ela jurou que era para a vida toda. E ele nem a tratava assim tão mal, só enxotava umas moscas de vez em quando. Porque é que aquelas mulheres [a tia e a mãe de Angelina, que ‘Palito’ acreditava serem as responsáveis pela separação] se foram intrometer?’”Os dias de apoio a “Palito” espelham a que ponto a mentalidade que subjaz à violência doméstica está entranhada: a ideia de que o homem tem direito a abusar fisicamente da mulher e — aspecto fundamental para que o abuso se perpetue — que sobre o assunto deve fazer-se silêncio. A conclusão é que, “aquelas pessoas, ao ajudarem-no durante um mês, constituem uma espécie de essência do machismo dominante”, diz o psiquiatra. O silêncio e cumplicidade das pessoas de Trevões é a história de futuras Marias Angelinas. Muitas podem vir a ter ainda menos sorte do que ela. Ao redor destas terras, a serra ergue-se monumental, montes sobrepondo-se como ondas encarpadas em dia de maré zangada, determinando a vidas dos seus habitantes ao mais ínfimo pormenor, como a luz que recebem: Trevões, por exemplo, é mais sombria que a entrada de Valongo dos Azeites — enquanto esta começa numa zona aberta de moradias expostas ao sol, Trevões parece enterrada num socalco da serra, um apêndice de pedra onde a luz não entra. As escassas povoações existem recolhidas em si mesmas, pequenos pontos compactos cor de xisto no imenso verde. Há apenas dois autocarros diários a ligar Valongo e Trevões a São João da Pesqueira: é fácil sentir solidão aqui. Angelina, nascida a 24 de Novembro de 1961, era filha única de Lina (morta no ataque de “Palito”) e Acácio Félix (que morreu em Maio de 1996). Segundo o Registo Civil do Tribunal de São João da Pesqueira, Acácio tinha pelo menos três irmãs: Maria Ermelinda, Maria Judite e Elisa, que foi também assassinada por “Palito” e deixou marido e filhos em França. A população falou-nos em mais duas irmãs: Delfina, que morreu e tem filhos em Lisboa; e Celestina, que morreu deixando os filhos António Félix, Ana Maria e Antero. O Registo Civil não encontrou dados sobre Celestina, mas encontrámos Antero (em Valongo) e Ana Maria e António (em Trevões). Esta disparidade não é caso único na família: no acórdão do tribunal, lê-se que Manuel Baltazar “é o mais velho de nove irmãos”; contudo, no Registo Civil, apenas se encontram sete (incluindo o próprio Manuel Baltazar). Hoje, Carlos, dono do café Século XXI em Valongo, diz que Maria Angelina se “descuidou” em relação à aparência, o que considera “normal, com tudo o que passou”. Mas à época do casamento, Maria Angelina, 18 anos, era “uma estampa”. Sendo casado com uma prima de Maria Angelina, Carlos tem opinião formada sobre a forma como “Palito” a via: “Antes dizia a toda a gente que ela era um espectáculo e que nunca teria hipótese com ela. Quando casou, foi como se tivesse ficado em dívida para com ela. Não acreditava que a tivesse conseguido. Achava-se abaixo dela. ” Apesar dos laços familiares, Carlos teve pouco contacto com “Palito” e Angelina. “Eu vendo calçado — neste tempo todo, ele nunca me comprou sequer uns chinelos. ”É verdade que vende calçado ao balcão. Não fora isso e o café Século XXI podia ser um café de qualquer parte do país: chão em mosaico, mostruário de vidro com tampo em folha de mármore, Chupa-Chups, pastilhas Gorila. Carlos, baixote, ligeiramente careca, tira um par de sapatos de vela debaixo do balcão, enquanto serve vinho do garrafão. Quando a polícia entregou “Palito” ao tribunal, a população brindou-o com aplausos, o que chocou o país — porque raio estaria um homicida a ser aplaudido? O dono de um café em São João da Pesqueira explica os aplausos pela antipatia que o povo tem para com a polícia: “A GNR está sempre à caça da multa. Prantam-se [forma popular de dizer que ficam especados] à espera de quem sai dos cafés e vai guiar. O que irrita o povo, que quer beber em paz. ” Ouvimos a mesma justificação noutros sítios — mas não encontrámos quem admitisse ter aplaudido. Tal como Carlos, Ana Maria tem escassa memória das três últimas décadas de vida de Angelina. A prima diz que “em miúdas [eram] como irmãs”. Depois, “durante mais de 20 anos, nunca mais houve contacto com ela”. Quando deixaram de se ver? “Quando ela se casou. ”Cada um trata do seu lar, ninguém põe a colher no prato do outro, mas bichana-se acerca de todos. ”Da casa de Ana Maria à de “Palito” demora-se cinco minutos a pé. Da de António Félix, seis. No entanto, a mulher de António declara nunca ter tido qualquer contacto com o casal. Nem no Natal?, perguntamos. “A gente aqui passa a ceia com a família de casa. ”Este é um mote constante: cada um vive na sua casa, com a sua família e só se mete no que lhe diz respeito. Pese embora umas semanas na zona nos demonstrem que os homens comentam as vidas dos outros nos cafés, e as mulheres, nos intervalos da lida da casa ou da faina, segredam entre si. Diz Albino [nome fictício], de Valongo: “Cada um trata do seu lar, ninguém põe a colher no prato do outro, mas bichana-se acerca de todos. ”Sabe-se pouco da vida de “Palito” até ao acidente que supostamente o mudou para sempre: a morte dos pais, afogados no Douro após um aluimento de terras derrubar a viatura em que seguiam, a 14 de Fevereiro de 1979. Descobrir o que aconteceu nesse dia depende de quem se ouve: num relato, “Palito” estava na viatura e sobrevivera, visto saber nadar; noutro, uma pedra gigante teria caído em cima do pai de “Palito”, esmagando-lhe o peito. Há narrativas que incluem várias pedras, ocupantes do automóvel que variam, diferentes mortos. Certo é que, após o aluimento, o carro se enfiou num braço do Douro. Segundo um primo de “Palito”, que se recorda bem do acidente, o casal Baltazar fora a uma consulta médica na Régua acompanhado pelo casal Laranjinha, respectiva filha, e um moço chamado João Madureira. No regresso, várias pedras aluíram, tendo uma esmagado o peito de Laranjinha, que ia ao volante — e não o pai de “Palito”. “Palito”, note-se, só o é em Valongo — em Trevões chamam-lhe “Sem-Tripas”. O único que se salvou foi Madureira — o que sabia nadar. Qualquer história em Trevões tem tantas versões como as pessoas que a contam. E é difícil acreditar em tudo o que se ouve: muitas vezes ouvimos “nem os conhecia” dito por vizinhos que viveram 60 anos a dois metros de distância. Há o caso de um homem que no decorrer da nossa reportagem certo dia nos afiançou que não sabia de nada porque fora para França antes do assassinato e voltou já “Palito” estava preso; dias depois, lá lhe escapou: “Até disse ao rapaz para se entregar. ” Inquirido sobre a discrepância, respondeu com “isso agora”, e fechou-se em casa. Os pais de “Palito”, Baltazar e Celiza, eram “gente muito boa”, “com posses” e “às vezes ajudavam quem não tinha que comer”, “dando couvinha ou feijão” — é este o retrato que muita gente em Trevões faz. Depois há Hélder [nome fictício], que também ali mora e se lembra de que “o pai [de ‘Palito’] era bom tanoeiro e tinha um carro de bois”. “Chamavam-lhe ‘Sem-Tripas’” devido à extrema magreza, que o filho herdou. Segundo Hélder, o casal Baltazar “ficava a dever a este e àquele”. “O meu pai era sapateiro e o pai dele [Baltazar] mandou pôr meias solas nuns sapatos. Quando estavam arranjados apareceu lá em casa, calçou as botas e disse: ‘Só posso pagar no fim-de-semana. Posso levá-los já?’ O meu pai fê-lo descalçar as botas. Você veja como era esta gente. ”A casa dos pais de “Palito”, a que os locais chamam “Casa Velha”, dá a entender — pelo tamanho — que o casal não viveria mal. Para lá chegar, é preciso tomar a ondulante N229, inflectir para leste, EM504 adentro, entrar numa estrada ainda mais estreita que as demais e por fim dar com três caixotes do lixo, que dividem a terra entre zona alta (mais moderna) e zona baixa (a mais rude): para a esquerda há um banco (com caixa multibanco, a única até São João da Pesqueira) e, ao fundo da rua, as casas dos primos de Maria Angelina. Por ali também existe um lar de idosos e a escola primária onde “Palito” e os irmãos estudaram — é a única da zona e os miúdos de Valongo ou Penedono iam aprender lá. Maria Angelina, dizem-nos, fez a quarta classe, numa altura em que só as meninas com posses estudavam. Na realidade, confirmaram-nos que Angelina completou o equivalente ao actual 9. º ano de escolaridade. Trevões é vila, Valongo é aldeia. O Paço Episcopal, um par de casas senhoriais, a Igreja Matriz e uma série de capelas indicam que a vila teve uma grandeza que hoje não possui. Disseram que [‘Palito’] esteve na Líbia, numa fábrica de manteigas, nos anos 70. Havia lá fábricas de manteiga na Líbia nessa altura!”À direita dos caixotes do lixo há um caminho estreito, em empedrado, de margens ladeadas por muros de xisto, onde é impossível passarem dois carros: é a zona baixa, o Douro profundo e esquecido pelo tempo — e é a rua de Manuel “Palito”, cuja casa é a segunda quando a estrada começa a subir. A primeira é do seu irmão António. Por trás de casa de “Palito” ergue-se a Casa Velha e depois estende-se o cerejal por onde terá fugido após o duplo homicídio. Acompanhando o muro de granito e xisto que demarca o cerejal, dá-se a volta a meia terra, retornando-se aos caixotes do lixo — no meio do cerejal há um pequeno lago, que tornou impossível seguir o rasto de “Palito” quando a polícia ali entrou com os cães. Este terreno, que ocupa meia Trevões, divide-se em vários, que pertencem a “Palito” e a uma senhora que não vive ali. Há um caseiro, mas a população ou recusa dizer o seu nome ou dá nomes díspares. É difícil dizer em que anos estiveram emigrados quando os próprios familiares transmitem informações erróneas: “Escreveram-se tantas mentiras”, lamentou-se um dia a mulher de António. “Disseram que [‘Palito’] esteve na Líbia, numa fábrica de manteigas, nos anos 70. Havia lá fábricas de manteiga na Líbia nessa altura!” De facto, “Palito” não esteve numa fábrica de manteigas na Líbia; esteve lá na construção civil, bem como na Suíça e em França, segundo dois homens que estiveram com “Palito” na Líbia. Graças à emigração, conta Albano [nome fictício], amigo caçador, “Palito” começou a construir casa e comprou um Toyota azul, do qual tinha muito orgulho. “Isto em 1976, uns anos antes de se casar com Maria Angelina. ”Hélder também afiança que Maria Angelina “agradou-se do carro”, ideia que parece ser unânime na faixa que vai da saída de Trevões até Valongo: “Na altura havia cá poucas viaturas”, lembra António Canela, amigo de “Palito”. Uma familiar de um homem que, segundo vários membros de Valongo e como veremos mais à frente, terá sido assassinado por António Canela, recorda que o carro agradou até à mãe de Angelina; de acordo com este testemunho, ela gabar-se-ia à população de ter encontrado “um bom pretendente para a filha”, a quem obrigara a terminar um namoro com um homem com menos posses (e cujo nome não foi mencionado). Esta familiar considera que Maria Lina sempre foi “má, ruim, afeiçoada ao dinheiro” e que “atiçava” “Palito”, que tratava dos terrenos da família da mulher, “contra o povo [de Valongo]”. De acordo com outros moradores, “Palito” teria o hábito de disparar na direcção de quem atravessasse os terrenos dos seus sogros — não para matar, mas para assustar. A dada altura, diz-nos: “As outras não, mas a Maria Lina mereceu morrer. ”Houve pelo menos um texto na imprensa em que se relatou que a compra do Toyota foi posterior ao casamento. Esta disparidade nos relatos está sempre presente em Trevões e Valongo. Não só a disparidade mas também o secretismo: Canela é apontado pela população de Valongo (vive junto à moradia de Elisa) como a pessoa que terá telefonado a “Palito”, de um telemóvel descartável, a avisar que as mulheres estavam no quintal de Elisa. As teorias de conspiração são discutidas pelos homens; as mulheres não se metem nestes assuntos. O GNR citado acima admitiu ser “possível” a existência da chamada para “Palito”, garantindo não ter sido identificado nem o autor da chamada nem o dono do telemóvel. A acusação a Canela foi-nos contada pela primeira vez num café em Valongo. Aproveitando que o grosso dos homens discutia que arma “Palito” usou, o sr. Sérgio abeirou-se e narrou a história ao ouvido, afastando-se de imediato, de modo a não passar a imagem de delator. A cena repetiu-se várias vezes, com outros homens e versões ligeiramente diferentes. Em todas, o narrador aproveitou um momento em que os amigos estavam distraídos, contou e depois voltou para o grupo. No primeiro dia em São João da Pesqueira, um GNR afirmou: durante anos, “nunca ouvimos a versão dela, só conhecíamos a dele”, a de que Maria Angelina tinha uma depressão. Talvez seja por tudo ser contado em surdina e nada ser muito certo que foi possível a “Palito” criar na população essa imagem de uma Maria Angelina deprimida — em vez de uma Maria Angelina abusada. O funcionário de uma funerária local, que há 13 anos fez um funeral de um tio de Angelina, nunca ouviu de “Palito” mais do que um “ando aqui aflito porque a minha mulher se quer divorciar”, frase que muitos recordam. Desde a separação que o único assunto de “Palito” era a mulher. “Era uma obsessão que ele lá tinha”, diz o sr Carlos. “Na caça”, recorda António [nome fictício], “cada vez que parávamos para comer, lá vinha ele com a história de se vingar das mulheres que ajudaram à separação”. António descreve “Palito” como “um tipo exemplar na caça — mas refilão”. Perito em javalis e perdizes, era o que “mais se enfiava mato adentro”, nunca hesitando em “rastejar pelos trilhos deixados pelos javalis”, sabendo “como não os alertar. Conhece estas serras como a palma da mão” e falava tanto em matar que a dada altura começaram a gozar com ele: “Dizes que matas mas não matas nada, pá. ”Eis um homem não muito bonito, não muito forte, com menos dinheiro que a mulher e que se vê divorciado. Os problemas já vinham de trás. Albano diz que mesmo “no tempo em que o Acácio ainda estava vivo já havia discussões verbais graves entre ele e “Palito”. Depois da morte do pai, a Lina e o “Palito” costumavam discutir à frente de toda a gente”. Conta isto em voz baixa, porque no restaurante está uma familiar de “Palito”. De acordo com Albano, a família de Angelina “nunca [acatou] bem a junção”, em parte porque “tinha mais valores patrimoniais que a do ‘Palito’”. A ideia de que o casal não vinha do mesmo meio é confirmada por outros: “Os pais dela tinham mais dinheiro que os do ‘Palito’. Ela é herdeira de uma vinha com bastante benefício”, lembra Hélder. No acórdão do tribunal, descreve-se “Palito” como sendo “filho de um casal de modesta condição socioeconómica”. O nível de vida de “Palito” melhorou depois de ter estado emigrado. Em Trevões, e quando confrontadas com a hipótese de Acácio e Manuel Baltazar não se darem, as pessoas respondem “isso era lá com eles”. Em Valongo, as zangas são um dado adquirido. É recorrente ouvir-se dizer que Maria Angelina “teve pena” de “Palito”, após este perder os pais, o que a levou a casar. Sendo alguns dos irmãos de “Palito” muito novos aquando do acidente, Angelina terá cuidado deles como se fossem seus filhos. Em Valongo e no Penedono, há quem diga que “Palito” tratou Angelina mal desde o primeiro dia. Em Trevões, ninguém admite tal coisa. Se ao início o casal se dedicava à apanha da azeitona nos terrenos dos pais dela, de “Palito” e de terceiros, entre outras actividades agrícolas, com a morte de Acácio Félix, o casal passou a ser dono de um conjunto de terrenos que permitiam uma boa vida. Na maior parte dos relatos, por esta altura “Palito” já não emigrava — fixou-se na terra quando acabou a casa e não voltou a sair do país após o nascimento do segundo filho, Rui. Contudo, uma fonte próxima de Maria Angelina assegurou-nos que, já com os filhos nascidos, “Palito” ainda emigrava. Isto dá o retrato de um homem trabalhador, empenhado em criar um lar para a mulher e os filhos. Umas semanas em Trevões revelam outro homem — um que a cada regresso passava mais tempo na caça que em casa e estourava dinheiro pagando almoçaradas aos amigos caçadores, enquanto Angelina jornava nos “prédios” (terrenos) do casal e de outras pessoas. É comum, aqui, a violência doméstica? (A pergunta é injusta: a violência doméstica é comum em todo o país. ) O GNR tira o chapéu, coça a cabeça rapada a pente 3 ou 4, e diz: “Isso das mulheres. . . sabe como é. Terra pequena, não há nada para fazer, chega-se a casa todos os dias. . . Elas não ficam mais bonitas com o tempo. Bebe-se uma pinga e quando se dá por ela já só se fala à chapada. É assim. ”É assim, mas ouvindo os moradores de Trevões não era assim com “Palito”, que não bebia. Basta um pulinho ao café Século XXI, ou ao Buraco, em Trevões, onde há uns anos a GNR apreendeu 17 armas ilegais numa só rusga, para encontrar dezenas de homens que concluem que “o crime foi um bocado culpa delas, que não tinham nada que se meter”. “Intrometer-se” era dizerem a Angelina que não tinha de se sujeitar à violência. Ainda há coisa de semanas, uma prima de Maria Angelina repetiu a mesma ideia. Não raro as pessoas têm um rebate de consciência e refazem a afirmação: “Mas o que ele fez foi errado” ou “perdeu a razão quando matou”. Ninguém afirma que “Palito” perdeu a razão quando começou a bater na mulher. Já viúva, mas com a filha ainda casada, Maria Lina deu ordem para se fazer uma vinha nos seus terrenos; na prática arrendava (por 10 ou 20 anos, há informações em ambos os sentidos) os terrenos a “Palito”, que estava incumbido de explorar a vinha e recebia os dinheiros. Esta terá sido a altura do casamento em que o casal viveu melhor. Mas, quando Maria Angelina saiu de casa, “Palito” proibiu-a de entrar nos “prédios” de Maria Lina, o que legalmente podia fazer: “Estava a tentar matá-la à fome”, conta Albano. Já separados, “Palito” “surpreendia-a na jorna e ameaçava-a e a quem estivesse com ela”. Esta agressividade foi aumentando até ao ponto de “Palito” bradar ter uma bala para quem se aproximasse da ex-mulher. É sabido que até à ordem do tribunal para manter os 400 metros de distância, “Palito” passava diariamente à porta de casa dela; em Valongo, diz-se que pagou a um reformado local para vigiar Maria Angelina. O reformado nega qualquer contacto com “Palito”. A separação de Maria Angelina coincide, segundo Manuel [nome fictício], vizinho e amigo de infância de Angelina, com “a altura em que a Elisa obteve a reforma e começou a passar mais tempo em Valongo que em França”. Na realidade, Angelina só saiu de casa quando os filhos — que não foram para a universidade mas acabaram o 12. º ano — já haviam saído. Para o psiquiatra Fernando Almeida, na cabeça de “Palito”, “Angelina pertencia-lhe; podia ter de lhe arrear de vez em quando, mas isso faz parte; ter saído de casa não era uma manifestação da vontade dela, antes fraqueza face às manipulações da tia e da mãe que por isso, pensaria ele, mereceriam ser punidas”. “Palito” estraçalhou o corpo de Elisa ao alvejá-la directamente no peito. A primeira pessoa a relatar publicamente actos de violência de “Palito” foi Filomena, mulher de Mário: “Foi no cemitério, no dia dos Fiéis [do ano passado]”, contou. “Atirou a Sónia [a filha] ao chão, tentou bater-lhe, meti-me no meio e ele derrubou-me e deu-me pontapés. ” De volta a Trevões, “Palito” apertou-lhe o pescoço. Houve uma altura em que o único dado acerca de violência doméstica que se conhecia no caso era que Maria Angelina tinha pedido ajuda à APAV, sendo colocada em casas-abrigo, primeiro em Vila Real e depois, quando “Palito” a descobriu, na Régua, onde voltou a ser descoberta pelo ex-marido. No acórdão do tribunal que puniu “Palito”, lia-se que ele dava chapadas na mulher e recorria a violência para a obrigar a dormir na cama do casal. O motivo do isolamento de Maria Angelina seria a violência doméstica?, perguntei a uma familiar muito próxima de Maria Angelina, em casa a passar a ferro e a dobrar a roupa. “Não”, diz com as mãos a tremer e lágrimas prestes a cair. “Nunca lhe bateu. ” Nunca lhe bateu?, insisti. Ela pára, baixa a cabeça e diz: “Ela não se queixava. ” E o facto de não se queixar indica que não lhe batia? Ela pára de novo, antes de se recompor e voltar a dobrar a roupa. E é ela quem diz: “Os homens, aqui, são do século XVII. Há muita coisa escondida. As telhas escondem muita coisa. ”Insisto: ele começou a bater-lhe quando? Ela começa a chorar — foi a única pessoa que vi chorar nas semanas que passei em São João da Pesqueira. Foi cedo?, pergunto. E aqui sim, ela chora mesmo. E baixa a cabeça e pede-me que saia antes que o marido volte. Última pergunta: porque é que as mulheres dali que apanham não se divorciam? Ela olha-me atónita. “E fazer o quê? Ir para onde? Ao menos aqui sabemos com o que contar. . . O senhor sabe o que se passou, não precisa de mim, deixe-me, eu só quero esquecer. ” Senta-se na cama e chora. “Um rapaz tinha uma namorada, estavam noivos e a rapariga rompeu o noivado. A mãe do rapaz não foi de modas: esperou que os pais da moça saíssem de casa, bateu à porta e quando a miúda abriu: tau, tau, tau, cinco chumbadas nos cornos. ” A história é verificada por vários habitantes das duas localidades. Porque é que ela não quis casar?, pergunto. “Porque não queria levar na tromba. ”Os homens, aqui, são do século XVII. Há muita coisa escondida. As telhas escondem muita coisa. ”A maior parte das mulheres por estas bandas é de idade. “Quando [os homens locais, mesmo os casados] querem acção vão ao alterne” nas terras circundantes, relata um caçador, que não quis ser identificado. Um dia fomos os dois pela serra verificar os casebres onde “Palito” podia ter-se escondido. No trajecto demos com algumas dessas casas, como o 125 Azul, que recebe “brasileiras e tailandesas — as tailandesas são muito bonitas” e “são todas ilegais”, informa. Resolvi perguntar a este caçador — cuja mulher estava emigrada como ama para dar mais algum à escassa reforma — porque perdia o seu tempo a ser meu guia. “Solidão. Ao menos assim, estou entretido. ”Valério diz que em Valongo não há farmácias, o que tem implicações nas mais simples situações quotidianas. “Se uma miúda quiser a pílula, tem de ir a São João da Pesqueira”, conta, antes de elucidar acerca da moral ainda vigente na zona. “Pela vontade dos pais, não é possível uma miúda de 16 anos ter sexo antes do casamento. Elas aproveitam as jornas ou fazerem um recado. Não há precaução, pelo que o sexo é uma roleta: pedem aos homens para se virem fora ou rezam para não engravidarem. Se engravidarem, é simples: levam na tromba e o pai vai convidar o emprenhador a casar. ” Faz uma pausa e entrega a punchline com um sorriso entre o amargo e o resignado: “O convite é feito com uma chumbeira. ”Estávamos sentados na mesa de um café em Valongo: entra-se, há um balcão em U e à direita uma enorme sala de cujo tecto pende uma bola de espelhos. Fazem bailes aqui?, pergunto. “Não. O Buraco, em Trevões, tem uma salinha onde puseram uma bola de espelhos. Esta surgiu por imitação. Foi ‘se tu tens, eu também tenho de ter’. Há uma grande rivalidade entre as terras”, responde Valério. Em Valongo, certa tarde, estavam algumas mulheres a conversar quando uma diz: “Ao menos isto deu para falarem [de Valongo]. ”Nos 34 dias em que esteve a monte, “Palito” foi avistado quatro vezes. A primeira foi no dia imediatamente a seguir ao crime, quando apareceu a José Costa, na quinta do pastor, no Penedono. Costa, amigo de “Palito”, recusou-se a falar, visto os jornalistas serem “todos uns vigaristas”. Um jornalista de televisão disse-lhe que “telefonava a avisar quando saía a peça e nunca mais telefonou”. Um fotojornalista fotografou-o num ângulo que ele não apreciou. Calçado com galochas, Costa move-se com facilidade por entre a lama. A sua quinta tem um grande salão repleto de bandeiras do Benfica — o trabalho, a bola, as cartas e o dominó que joga à noite num café no Penedono são os seus únicos assuntos. “O que é que eu havia de fazer?”, responde quando perguntamos porque ajudou “Palito”. “As amizades aqui são complexas”, explica um amigo que conheceu ambos na caça. “Os caçadores não querem problemas. Há uma época legal para caçar, armas designadas, mas eles caçam fora de época com armas ilegais e têm medo de ser investigados. Por isso ajudam-se. ”Além disso, faz ver, “ele tem razão: o que é que você faria se lhe aparecesse um homem que tinha matado duas pessoas no dia anterior? Aqui as amizades são de caça, de cartas, do cultivo. Mas tem-se sempre uma desconfiança”. António Canela é acusado (por muita gente de ambas as terras) de ter matado o filho de um vizinho que teria, alegadamente, molestado crianças. Certa noite, Canela e um comparsa perseguiram o filho do suposto pedófilo e este fugiu para casa — mas os perseguidores haviam estragado as fechaduras e por mais que o rapaz chamasse pelo pai, este, preso por dentro, não o pôde acudir. Foi morto à paulada à entrada de casa, em Valongo. Uma sobrinha do alegado pedófilo confirma que Canela e um cúmplice terão matado o seu primo. Na sua versão, contudo, alegado pedófilo e filho viviam num dos muitos barracos hoje vagos na serra (e que “Palito” usou para se abrigar, durante a fuga); o pai estaria dentro do barraco, que foi fechado por fora. Esta versão parece mais coerente do que outras, cujo grau de elaboração deverá ser fruto do tempo. Noutra história, e segundo rezam várias almas, os dois irmãos Puges raptaram um homem endinheirado, a quem extorquiram as posses e ataram a um cavalo; açoitaram o animal, que ao fugir desmembrou a vítima. Os dois casos terão ocorrrido há mais de 30 ou 40 anos e fornecem um retrato dos amigos chegados de “Palito”. A maior parte dos habitantes de Valongo acusa os Puges de ajudarem “Palito”, enquanto este andou a monte. Em Trevões, ninguém sabe nada. O terreno dos Puges, que inclui pastagens para os animais, é próximo do cerejal. Era nas manjedouras dos seus animais que um dos Puges deixava diaramente comida para “Palito” — isto segundo os valonguenses. Tal como a própria Maria Angelina, Filomena está assustada com a possibilidade de “Palito” vir a ser libertado. “Dizem que está a preparar-se para [se fazer passar por] doido” durante o julgamento. Dizem que António não trocava uma palavra com Manuel e que Mário ainda tentou manter relações com o irmão — até ao incidente com a mulher. As partilhas não terão deixado os irmãos em pé de igualdade. Mário, além de lidar com os seus pequenos terrenos, tem de trabalhar à jorna nos terrenos dos outros, no cultivo dos produtos locais mais procurados — a vinha, os olivais, os castanhais, a amêndoa e a maçã. A primeira vez que o vimos, em Maio, Mário vinha a subir um carreiro, acartando um saco às costas, quando nos viu à conversa com Filomena. Gritou para a mulher: “Tu, vai para casa que já falaste demais. ” Depois, ameaçou-nos. Por fim, ofereceu cerveja e vinho. É um homem baixo e encorpado, de face rósea, com um bigode alourado. Perdeu recentemente um dedo na lavoura e repete várias vezes que “ainda [está] à espera do seguro”, mostrando o dedo em falta: fala mais deste que do irmão. Está suado do trabalho, com galochas e roupa de trabalho suja, o cabelo empastado do esforço físico e recusa chamar-se Mário, ser irmão de “Palito”, exigindo ser tratado por João — só respondeu quando o tratámos assim. Durante alguns minutos pode ter mentido sobre tudo: “Não sei ler, mas sei estreler”, diz. (Um antigo colega contesta-o: “Estudei com ele e ele fez pelo menos a 4. ª classe. Todos os irmãos fizeram. O ‘Palito’ até deve ter feito mais. ”)O que é que você faria se lhe aparecesse um homem que tinha matado duas pessoas no dia anterior? Aqui as amizades são de caça, de cartas, do cultivo. Mas tem-se sempre uma desconfiança”. “Eu sou um homem que vive com 450 euros e é a minha mulher que os ganha [no lar de idosos de Trevões]. Sem ela, como é que eu vivia?”, diz Mário. Nas semanas em que ali estive, foi a única vez que ouvi um homem elogiar a mulher. “Eu trago dinheiro, ele traz comida, é assim que fazemos vida”, corrobora Filomena, ainda especada à porta de casa. Comem “batatas e azeitonas todos os dias”, que é o que Mário cultiva. “Tirando beber umas minis, que isso bebo, a minha vida é só trabalho”, diz. Mais calmo e já de cerveja na mão explica que “se a [sua] mulher morresse arranjava outra, mas o [seu] irmão não era assim”. Joaquim, que mora a meio caminho entre os dois irmãos, conta que “Palito” repetia muito uma frase: “Aqui entrou uma mulher; a sair alguma, só morta. ” O sr Joaquim só tem uma coisa a dizer sobre o caso: “Tenho ali uma cassete com um filme de Entre-Os-Rios, também deviam fazer um filme disto. ” Ri-se e oferece tinto e chouriço. Segundo Carlos, uma pipa de vinho produz 500 litros e “dá benefício de 2 mil euros”. “Benefício” é o termo técnico para o que um produtor recebe pelo vinho que vende como vinho do Porto; Mário tem uma microprodução de vinho na garagem, que inclui lagar e uma pipa semi-industrial. Faz “250 litros por ano”, isto é, meia pipa: mil euros ao ano. Tem um jipe Nissan que foi topo de gama há anos, remanescente dos dinheiros da emigração na construção civil; mas reclama com a qualidade do sinal dos quatro canais da TDT. É este o paradoxo em que vivem os habitantes de Trevões: uma côdea de dinheiro que restou da emigração, a casa construída a pulso e batatas com batatas para o jantar. Mário, que tem dois filhos emigrados e “um já com contrato!” — dado que repete muito —, aponta para um altar a Nossa Senhora de Fátima erguido numa das paredes de sua casa. “Sou um homem temente a Deus. ” “Fui eu que fiz [o altar]. ” Já quase sem força mas não sem orgulho: “À noite, está sempre ligada. ” E de facto à noite lá está a brilhar no escuro. A última coisa que ouvi deste homem, nessa primeira conversa em que me pareceu um ser ferido, foi: “Se eu pudesse contava tudo, amigo. Mas é família. ” Fiquei na dúvida se por família Mário estava a referir-se só a “Palito” ou a incluir Maria Angelina. Segundo fontes familiares, Angelina não era a única a sofrer violência doméstica. Já separada, Angelina quis ir uns tempos para França; “Palito” ameaçou o transportador e chamou-lhe corno. Os seus actos públicos de agressão aumentaram com a separação e chegou também a apontar uma arma ao filho e agredir a filha. O que espoleta a espiral de violência, diz-nos Fernando Almeida, “é a separação do objecto amado — e no caso admirado”: Angelina sair de casa. “Pelos testemunhos, ela estava uns furos acima do que ele pensaria obter. Torna-se o objecto central da sua razão de vida. A partir daí a existência dele só tem sentido com ela. Ou é com ela ou não é com ninguém. ”O homicídio terá então sido o culminar de um processo de desintegração que se iniciou quando a mulher saiu de casa e que levou o filho Rui, que na altura da separação ficou com o pai, a cortar relações com este. A primeira vez que bati à porta de casa de uma das amigas de Maria Angelina que testemunharam a seu favor no caso contra “Palito”, ela escusou-se a comentar, afirmando ter de “fazer o comer” para o marido. Pela janela, via-se o marido já a jantar — e também se o ouvia a mandá-la para dentro. A segunda amiga disse exactamente o mesmo, mas insisti: o seu marido já está a comer. A violência começou cedo? Ela anuiu com a cabeça. Era muita? Anuiu com a cabeça. Ela evitava contar? Anuiu com a cabeça. Porque é que não queria contar? “Tenho de fazer o jantar para o meu marido. ” E a porta fecha-se. Meses depois do atentado — numa altura em que Angelina, de canadianas, voltara a casa, sendo visitada com regularidade pelos filhos (Sónia andava com uma espécie de corpete a proteger as costas) — um morador em Valongo contou-me: “A Elisa dizia que dava a vida pela sobrinha e deu. Agora você anda aqui a fazer perguntas às mulheres sobre violência doméstica quando a maior parte delas sofre o mesmo. E qual é a lição que este caso lhes dá? Que, se se divorciarem, acabam assim. ”Há dias, voltámos a Trevões e Valongo. Fonte próxima de Angelina disse-nos que “Palito” começou a bater logo ao início do casamento; e que Maria Angelina tentou esconder o facto por vergonha e uma estranha culpa. Mas também porque não valia de nada falar: “As outras mulheres sofrem o mesmo. E em muitos casos os pais [das vítimas] ou não acreditam ou acham que têm de se aguentar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A própria Maria Angelina diz-nos apenas: “Não sei ainda o que vai ser a minha vida; mas vou lutar. ”Pelos testemunhos, ela estava uns furos acima do que ele pensaria obter. Torna-se o objecto central da sua razão de vida. A existência dele só tem sentido com ela. Ou é com ela ou não é com ninguém. ”
REFERÊNCIAS:
Nuno Lopes é um santo no inferno
Portugal e a troika. O mundo do boxe e a família. Nuno Lopes com um santo no seu inferno. Marco Martins e um tour de force ficcional a partir da violência da realidade. Chama-se São Jorge um dos grandes títulos deste ano. Estreia-se na secção Horizontes do Festival de Veneza. (...)

Nuno Lopes é um santo no inferno
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal e a troika. O mundo do boxe e a família. Nuno Lopes com um santo no seu inferno. Marco Martins e um tour de force ficcional a partir da violência da realidade. Chama-se São Jorge um dos grandes títulos deste ano. Estreia-se na secção Horizontes do Festival de Veneza.
TEXTO: Marco Martins começou a pensar num “homem perdido que se movimenta sem saber para onde”. Foi há cerca de cinco anos. “Era o que se passava na altura em Portugal: começava a falar-se de crise mas sem se saber bem do que se falava, a crise não tinha rosto. Era a ideia de alguém que olha para o que está à volta sem conseguir descodificar. O que é que ele sabe? O que é que ele projecta?”. Por essa altura, envolvia-se num projecto, Estaleiros, com 16 trabalhadores dos parados Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a quem dava o protagonismo da peça de Samuel Beckett, À Espera de Godot. Deixando progressivamente Beckett para trás, improvisava com eles, dava-lhes espaço para falarem do trabalho e da falta dele, devolvia-lhes auto-estima e a possibilidade de suspenderem a angústia de estarem à espera das suas vidas. Tinha um cúmplice nessa improvisação com intérpretes não-profissionais, o actor Nuno Lopes (que nas conversas que mantinham lhe falava, há algum tempo, do desejo de interpretar num filme um boxeur: “Tenho ombros largos, achei sempre que era possível, que podia levar porrada mesmo”). Para ambos, Estaleiros, em 2012, foi o embate com um trabalho de matriz política e social – e para Marco, que em 2010 transformara o bairro cigano de Sanguedo, em Santa Maria da Feira, numa instalação artística (o projecto Baralha, com Beatriz Batarda), foi a perda definitiva do medo de trabalhar com não-actores, descobrindo uma forma de contar histórias a partir da matéria documental. “O país estava a mudar. Houve a aproximação à matéria documental sobre a qual nunca tinha trabalhado. Comecei a gostar muito de trabalhar com não-actores”, conta. Passaram então aí os dois, Marco e Nuno, a falar na possibilidade de um filme que documentasse estes tempos. O que é “perigoso”, sublinha Marco, fazer ficção a quente, em cima dos acontecimentos. “Mas não era possível não falar disso, da austeridade”, sublinha por seu lado Nuno. Boxe – para repescar o antigo desejo do actor – e crise? “O boxe nunca me interessou muito, é um ‘género’, não estaria muito interessado num filme sobre boxe, e havia a sombra do Belarmino [Fernando Lopes, 1964]. Belarmino e troika? Não me apetecia. " Marco deu o benefício da dúvida: foi pesquisar, ver o que acontecia. Mergulhou-se na noite do boxe, mundo depauperado povoado por figuras tocadas por uma divisão violenta, boxeurs que trabalham como polícias e seguranças e que para subsistirem fazem cobranças “difíceis” junto de quem, como eles, está em dificuldades e não pode pagar – ao fim dessa noite de pesquisa encontrava-se a ideia inicial de dar rostos aos números e à abstracção chamada crise. Nuno, por essa altura, entrava para o ginásio, para o boxe. Eis o que saiu dali: São Jorge, o filme que esta semana levará o realizador e o actor ao Festival de Veneza (de 31 de Agosto a 10 de Setembro), onde compete na secção paralela Horizontes, que dá atenção às novas correntes do cinema mundial (primeira projecção de imprensa esta quarta-feira). Nunca houve um filme como este em que eu sentisse que também era o meu bebé“Quando fui para o boxe” – na fase mais intensa de treino, seis horas por dia com crossfit, Nuno ficou a pesar mais 20 quilos –, “o que eu procurava era uma osmose. Pelo facto de estar lá, todos os dias, esperava que qualquer coisa deles se pegasse a mim. Não é questão de ‘Método’, porque o meu método varia de filme para filme. Era querer ficar inserido num determinado ambiente para que houvesse algo que se agarrasse a mim. ” Foi conversar para o problemático Bairro da Bela Vista, na margem Sul do Tejo. Ficou com “horas e horas gravadas no iPhone”, a ouvir “as preocupações das pessoas” cujas vidas são interceptadas pela violência, como se estivessem diariamente no boxe. “O grande desejo sempre o foi o de ser verdadeiro. Como estar no meio deles todos e parecer um deles?". É a essência de São Jorge. E da personagem de um boxeur que, para subsistir, para ficar com o filho, para poder ficar com a mulher, imigrante brasileira tão esmurrada quanto ele, passa do estatuto de observador do que acontece à sua volta para o de cobrador. É um tipo com dívidas que, para as pagar, ameaça quem tem dívidas por pagar. A mais forte do Nuno é uma inocência do olhar, que faz com que a personagem espere sempre alguma coisa, continue sempre a acreditar. Isto é muito bonito, e é impossível de ser escritoJorge é, e para voltar às palavras iniciais de Marco Martins, esse homem perdido que se movimenta sem saber para onde. Pouco fala sobre as deflagrações que alastram por ele dentro. Mas devolve-nos com o olhar uma visão do seu inferno. Nuno confirma a importância que teve para o seu trabalho, para além de todos os filmes de boxe que conseguiu ver, para além de Rocco e os seus Irmãos (Luchino Visconti, 1961), dos filmes do neo-realismo italiano e do cinema americano dos anos 70 “em que a personagem era mais decisiva do que a narrativa”, outro homem que olha e que, insone, nos devolve a sua cidade: o Travis Bickle de Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) – “estão ambos no inferno, de alguma maneira são santos”. Mas a personagem Jorge – e Nuno, o actor – é por isso também um intermediário, vulto que paira entre a ficção e a realidade, permitindo a aproximação de uma a outra, para chegar a essa osmose. É que Nuno está muitas vezes nos planos para permitir que os outros falem, sobre política e sobre o bairro, para deixar que o documento comunique as histórias à ficção – redistribuindo assim, perante a câmara de filmar, e sem perder a verdade, os temas que tinham sido elencados e discutidos numa fase de pesquisa com os habitantes do bairro da Bela Vista. Porque nenhum daqueles diálogos, que nasciam durante conversas improvisadas de cerca de quatro horas (“máquinas de argumento”, diz a equipa: eles falavam e a câmara registava), poderia ser “escrito” sem correr o risco de se revelar falso, como diz Nuno. Porque nenhuma daquelas personagens poderia ser “interpretada” por um actor profissional sem risco de intromissão grosseira da ficção – era esse o perigo, o do “retrato caricatural”, concorda Marco. É essa uma das singularidades deste belíssimo São Jorge: a forma como responde com ficção à interpelação da realidade. É uma proposta diferente, por exemplo, da que era trabalhada em As Mil e uma Noites, o tríptico de Miguel Gomes sobre o Portugal da crise, que, e não é apenas coincidência, também esteve nos estaleiros de Viana do Castelo. Também é concretização diferente, na forma de fazer coabitar o ficcional e o documental, dos pressupostos encontrados no projecto Estaleiros. Marco conta que enquanto se procedia à pesquisa, enquanto vibrava a matéria documental à espera de ser colhida, o argumento ia-se aventurando “para a história de uns tipos que andavam atrás de outros tipos para cobrar, e tudo à volta de uma coisa muito americana que é o dinheiro, coisa que temos sempre muito pudor em filmar – e eu queria mostrar o dinheiro”. O pressuposto documental, a pesquisa dentro do bairro, o trabalho com não-profissionais, cuja escolha foi exaustiva, para lhes dar espaço e às suas histórias, começava a ter uma tradução que podia ser contraditória, conflituosa mesmo, com um argumento mais próximo do film noir do que outra coisa – com as possibilidades do digital que Marco utiliza pela primeira vez, muitos planos puderam ser filmados sem um único projector, a imersão na noite e no onirismo foi profunda. Tratava-se, então, de fazer tudo para “conter a matéria documental na ditadura de uma ficção sem perder a vitalidade daquelas histórias”. Em tempos de “ficções do real”, a ficção, assim sem mais, pode ser o elo mais fraco. São Jorge não desiste dela. Nobilita-a – no dossier de imprensa, Marco fala no film noir, cita Robert Rossen (Corpo e Alma, 1947, com John Garfield) e Jules Dassin, cineasta que entre 1947 (Brutalidade) e 1955 (Rififi) foi poderoso a conduzir a matéria documental até um espaço cheio de marcas, as do "filme de género". São Jorge é, nesse sentido, um tour de force. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Nunca houve um filme como este em que eu sentisse que também era o meu bebé”, assume Nuno Lopes. Apesar de Alice (2005) já ter sido uma experiência com um cineasta que, segundo o actor, trabalha sem medo da colaboração (e sem medo da instabilidade da rodagem, que é a continuação orgânica da descoberta artística), São Jorge é um novo código genético para ambos. “Não querendo prever o futuro, acho que não vamos querer perder este mundo social, que conhecemos no Estaleiros, que conhecemos aqui. Até para não deixar órfãs estas pessoas. É uma forma de lhes dizer que foram muito importantes para as nossas vidas”, diz Nuno. “Não foi programado, Aconteceu. Não iria para lá, fui levado, por causa dos convites para os projectos Baralha e Estaleiros, e houve um crescimento. Passou a ser decisivo para a minha forma de pensar a representação”, diz Marco. Alice foi há uma década. Há coisas que não mudam. A forma de Marco inventar as cidades, como aventuras plásticas no desconhecido. E a fidelização de um corpo, o de Nuno, a um espaço familiar, que protege até à loucura e ao excesso. O actor diz que não sabe porque é que o realizador o vê assim, mas propõe: a família é espaço de possibilidades eufóricas, em nome dela tudo pode acontecer – num filme. Marco tem uma resposta: “Sou incapaz de olhar para um actor e esperar que ele seja igual à personagem. Mas no caso do Nuno a característica mais forte é uma inocência do olhar, que faz com que a personagem espere sempre alguma coisa, continue sempre a acreditar. Isto é o Nuno, como pessoa e como actor. O Nuno é muito coração, resolve tudo através da emoção. Isto é muito bonito, e é impossível de ser escrito. "Sobre o boxe, afinal, há poucas sequências em São Jorge. Começam já todos esmurrados.
REFERÊNCIAS:
Entidades TROIKA
Crânio pré-histórico pode ser peça-chave do puzzle da história humana
O fóssil data de uma altura em que a nossa espécie se terá efectivamente cruzado – e terá procriado – com os neandertais. (...)

Crânio pré-histórico pode ser peça-chave do puzzle da história humana
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O fóssil data de uma altura em que a nossa espécie se terá efectivamente cruzado – e terá procriado – com os neandertais.
TEXTO: Um fragmento de crânio encontrado no Norte de Israel está a permitir perceber melhor uma fase crucial da história dos primeiros humanos na altura em que a nossa espécie saiu de África à conquista de outras partes do mundo, afirmam cientistas liderados pelo antropólogo Israel Hershkovitz, da Universidade de Telavive. Os seus resultados foram publicados na revista Nature com data de quinta-feira. Trata-se da parte superior do crânio (ou seja, sem face nem maxilares) e foi desenterrada na gruta de Manot, na Galileia Ocidental. As técnicas de datação permitiram determinar que o crânio tem cerca de 55. 000 anos de idade, ou seja que data de um período em que se pensa que elementos da nossa espécie estavam a emigrar de África. Ainda segundo estes cientistas, as características do crânio sugerem que terá pertencido a um parente próximo dos primeiros Homo sapiens (que, mais tarde, colonizariam a Europa). Por isso, a equipa considera que o crânio representa a primeira prova concreta de que o Homo sapiens viveu naquela região ao mesmo tempo que os neandertais. Para Hershkovitz, o crânio é “uma peça importante no puzzle da grande história da evolução humana”. Terá pertencido a uma mulher, embora não seja possível dizer ao certo. Com base na genética, já se pensava que a nossa espécie e os neandertais terão procriado aproximadamente durante o período representado pelo crânio. É por isso que todas as populações de origem euroasiática ainda são portadoras, no seu genoma, de ADN de neandertal. “Temos aqui a primeira prova fóssil directa de que os humanos modernos e os neandertais viveram na mesma área ao mesmo tempo”, diz o co-autor e paleontólogo Bruce Latimer, da Universidade Case Western Reserve (EUA). “A coexistência destas duas populações numa região geográfica confinada, aliada ao facto que os modelos genéticos indicarem que houve cruzamento entre as duas espécies, abona em favor da ideia de que esse cruzamento ocorreu no Levante”, diz Hershkovitz. Os neandertais, robustos e de sobrolho maciço, prosperaram na Europa e na Ásia há uns 350. 000 a 40. 000 anos, tendo-se extinguido pouco depois da chegada dos Homo sapiens. Quanto à nossa espécie, os especialistas pensam que terá surgido há uns 200. 000 anos em África, tendo mais tarde migrado para outros locais. A gruta de Manot situa-se à beira da única rota terrestre que os antigos humanos poderiam ter percorrido para viajar de África até ao Médio Oriente, Europa e Ásia. Permaneceu vedada durante 300. 000 anos e foi descoberta em 2008 durante a construção de canalizações de esgoto. Armas de caça, conchas perfuradas, talvez usadas como ornamentos, e ossos de animais já foram desenterrados na gruta juntamente com outras ossadas humanas.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
As novas realidades em que vamos viver
A frase-chave de 2017 tem que ver com as realidades paralelas criadas pela ciência e pela tecnologia – de ambientes de realidade virtual a criações de inteligência artificial, passando pela terraformação de outros planetas. É ler, para não sermos surpreendidos pelo futuro. (...)

As novas realidades em que vamos viver
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A frase-chave de 2017 tem que ver com as realidades paralelas criadas pela ciência e pela tecnologia – de ambientes de realidade virtual a criações de inteligência artificial, passando pela terraformação de outros planetas. É ler, para não sermos surpreendidos pelo futuro.
TEXTO: O Future Today Institute lança há uma década o Relatório de Tendências Tecnológicas para o ano que se segue. O trabalho é feito a partir de um mecanismo científico que analisa em contínuo as práticas tecnológicas e científicas que irão ajudar a definir o futuro. Se é verdade que o mundo é cada vez mais complexo e o futuro se parece cada vez mais com um filme de ficção científica, são relatórios como estes que nos ajudam a antecipar o que aí vem e a adaptar comportamentos para os incluir nas nossas vidas. Seguem-se seis tendências para 2017 e três produtos inovadores que já aplicam algumas dessas tendências. A inteligência artificial é uma escolha óbvia nesta lista, tão óbvia que está contida dentro de praticamente todas as outras áreas de destaque. Como explica este relatório, há dois tipos de inteligência artificial: uma fraca, outra forte. A primeira verifica-se nos sistemas de recomendação típicos da Internet (sejam os produtos da Amazon, as músicas do Spotify ou os textos para ler a seguir no PÚBLICO). A segunda é a que permite a um sistema computacional tomar decisões de forma integrada, por enquanto ainda no campo da ficção científica. Alguns dos aspectos mais sedutores do próximo ano neste campo estarão na evolução da aprendizagem que os sistemas artificiais poderão fazer – os algoritmos que lhes dão origem irão induzir uma auto-aprendizagem a partir de uma enorme quantidade de dados disponíveis. Um dos bons exemplos com conclusão para o próximo ano é o Watson, da IBM, que está a aprender a ler e interpretar imagens radiológicas para inferir o historial clínico de pacientes. E, regressando ao relatório, a tendência será a de deixar de programar os computadores. No futuro os computadores “serão treinados como cães”. Várias evoluções no campo da robótica permitem antever novidades muito interessantes para o próximo ano. Uma área a merecer especial atenção é a dos robôs cooperativos, que juntam várias máquinas para executar funções de forma coordenada – de forma bem mais evoluída do que aquela que se vê numa linha de montagem. Também os robôs de companhia apresentam uma lógica promissora, especialmente porque será uma forma de a robótica entrar no mercado de massas. Com o envelhecimento geracional que se verifica nos países ocidentais, a tendência para desenvolver robôs de companhia será crescente. Nesse sentido, o mercado líder para estas transições será o Japão, onde o envelhecimento é maior e o investimento tecnológico está mais canalizado para aí. Este é um novo termo que junta todas as várias tendências que relacionam o mundo real e a experiência em ambientes virtuais: a realidade aumentada, que sobrepõe uma camada virtual ao ambiente que rodeia o utilizador; a realidade virtual, que coloca o utilizador num ambiente totalmente virtual, já usado em jogos e filmes pioneiros; as câmaras especiais de 360 graus que criam vídeo e imagem em rotação completa; os produtos que apresentam hologramas, que são imagens tridimensionais, a partir de ecrãs como smartphones. Estas aplicações vão começar a ser frequentes na indústria de entretenimento (jogos, filmes de terror, pornografia, clips musicais, etc. ), seguindo, aliás, a tendência deste ano. Mas também deverão começar a invadir o ambiente profissional, com apresentações tridimensionais que ultrapassam o PowerPoint normal e com câmaras de 360 graus para aplicações de segurança e transmissão desportiva, entre muitos outros exemplos. Também vale a pena estar atento a aplicações de realidade virtual para tratar doenças como depressões e stress pós-traumático, bem como mecanismos de marketing para levar produtos até potenciais clientes. Se há uma nota a reter no ano informático de 2016, ela tem que ver com os escândalos de segurança. Dos Panama Papers aos emails de campanha de Hillary Clinton, nunca se falou tanto de segurança e pirataria informática – incluindo ao nível diplomático, visto que a mais recente polémica envolve a interferência da Rússia no processo eleitoral norte-americano. Ao mesmo tempo, a pressão por parte desses mesmos Estados para criar mecanismos de intrusão nos aparelhos dos cidadãos tem também consequências na segurança dos mesmos. E se em 2016 o FBI colocou a Apple em tribunal por esta se recusar a dar acesso a um iPhone específico, em 2017 é de esperar que se renove a exigência de produção de um mecanismo de acesso privilegiado a software ou hardware (de perfis de redes sociais a telemóveis, passando pelos computadores pessoais e pelas contas de email). Com a informática no centro das discussões sobre defesa e segurança, é de esperar que se renovem as competências informáticas das entidades policiais e militares – criando novas formas de espionagem e protecção da lei, abrindo também caminho a um reforço dos mecanismos legais para defesa e acusação relacionados com actividades digitais e com implicações legislativas profundas. Em paralelo com as questões de segurança estão, por razões óbvias, as preocupações com a privacidade. O anonimato digital não existe, mas a percepção de que assim é está cada vez mais presente na mente de cada cidadão que abre um browser de Internet. Para evitar a invasão de privacidade ao nível do indivíduo, muitas empresas vão instalar esquemas de privacidade diferencial – um mecanismo em que os dados individuais continuam a ser recolhidos, mas são de tal forma alterados que não podem ser depois individualizados de forma a destacar uma única pessoa. A Apple já anunciou que está a trabalhar nisto e outras empresas, nomeadamente a Google e a Facebook, devem ir pelo mesmo caminho. Daqui decorrem outros problemas, como a gestão da encriptação, abrindo novos mercados para empresas com soluções inovadoras e integradas em todos os passos da vida digital dos cidadãos. Outra área em que a manutenção da privacidade será essencial tem que ver com a evolução tecnológica que permite que o reconhecimento facial seja individualizado ao pormenor. Já é possível seguir alguém numa cidade através das câmaras de vigilância instaladas em serviços públicos (como as de trânsito) e as privadas (como as dos multibancos), graças a softwares de processamento facial muito poderosos. Se a isto adicionarmos mecanismos avançados de captação de imagem em tempo real como os drones e os vídeos de 360 graus, percebemos que os redutos de privacidade no espaço público são algo em vias extinção. Este é mais um conceito nascido na ficção científica, mas que parece estar prestes a ganhar dimensão real. Terraformar um planeta consiste basicamente em importar padrões ambientais da Terra de forma a criar condições para a vida humana. Elon Musk, o visionário da Tesla e da SpaceX, anunciou este ano que pretende chegar a Marte em menos de dez anos – e assim que lá chegar promete adaptar o planeta para receber humanos dispostos a iniciar a imigração espacial. Esta é uma tendência muito nova e o trabalho feito até agora consiste no levantamento de espécies capazes de resistir em ambientes extremos, como micróbios que vivem em temperaturas extremas no deserto do Atacama ou bactérias que se reproduzem em ambientes sem oxigénio nas fontes hidrotermais do fundo do oceano Atlântico. A biologia sintética, outra área de saber em expansão, pode ajudar a manipular organismos artificiais que sejam úteis. Juntamente com os planos detalhados para exploração da Lua e de Marte, é de esperar que se desenvolvam ideias – e experiências – para construir do zero ambientes capazes de criar uma atmosfera com oxigénio, água e alimentos. São microcomputadores que têm a dimensão de um grão de pó. Podem trabalhar de forma integrada, como uma nuvem de pó, captando e transmitindo informação sobre o meio ambiente (desde imagens a sensores térmicos), que depois é tratada por outras máquinas. Dada a dimensão destas partículas, pode ser até algo que se insere no organismo humano para o estudar sem perturbações de maior. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Estónia foi pioneira ao permitir que estrangeiros possam aceder aos seus serviços de cidadania – e em consequência ao mercado europeu. O resultado do "Brexit" pode bem impulsionar uma solução semelhante para os empreendedores do Reino Unido, tal como o crescimento da economia asiática pode promover um esquema semelhante em Singapura para os países vizinhos. Trata-se de um fio utilizado para suturas de feridas que informa remotamente sobre o estado clínico de um paciente, alertando para uma infecção ou antecipando uma situação de emergência como um ataque de coração. É algo que ainda está na mesa de laboratório de várias universidades americanas, mas cujos resultados são muito promissores.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei humanos imigração campo tribunal ataque extinção alimentos cães
Será a ciática europeia contagiosa?
Eis, diante de nós, um pormenor desta Europa política. Guiada não por estadistas, mas por políticos vulgares que não se dão ao respeito. (...)

Será a ciática europeia contagiosa?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Eis, diante de nós, um pormenor desta Europa política. Guiada não por estadistas, mas por políticos vulgares que não se dão ao respeito.
TEXTO: O homem cambaleante, mas bem-disposto, afinal, estava sofrendo de um súbito ataque de ciática. Assim foi diagnosticado por António Costa, pelo chefe de governo holandês e pelo próprio porta-voz da Comissão Europeia, este em jeito de boletim clínico, assim todos nos tratando como néscios europeus. Amparado pelos membros superiores de altos dignitários de Estados-membros mais superiores ou mais inferiores, Jean-Claude Juncker conseguiu descer do palanque e caminhar sem antes dar os seus etílicos beijos. Uma ciática de muitos graus!Eis, diante de nós, um pormenor desta Europa política. Guiada não por estadistas, que esses já quase não existem, mas por políticos vulgares que não se dão ao respeito, nem servem de exemplo credível. Tudo boa rapaziada, numa qualquer função ou disfuncionalmente, entre beijos, abraços e cachecóis de futebol, cheios de “non-papers” e, não raro, vazios de ideias e estratégias. Nas cimeiras aparecem-nos sempre entre sorrisos tão falsos quanto enfastiados, tweetando das salas e corredores para o mundo, fotos de família aparentemente unida, decisões sem decisão. Aparentam andar felizes, entre bolinhos, croquetes, bebidas espirituosas e amendoins. A mediocridade tomou conta do directório europeu. Esta é a Europa que nos querem prodigalizar. Esta é a Europa que dão a entender aos jovens de hoje como sendo o seu farol à distância de uns euros com que tudo julgam ou fingem comprar. CITAÇÃO: “Ninguém me encomendou o sermão, mas precisava de desabafar publicamente. Não posso mais com tanta lição de economia, tanta megalomania, tão curta visão do que fomos, podemos e devemos ser ainda, e tanta subserviência às mãos de uma Europa sem valores" (Miguel Torga em 1993)JARGÃO EUROPEU: Arquitectura organizacional. Geometria variável. Perspectiva integracional e multifocal. Alocar, assignar e impactar. Sinergias e imparidades. Envelhecimento activo. Relatórios de iniciativa própria. Memorando de Entendimento. Adicionalidade. Alavancagem. Estereótipos de género. Bem-estar dos animais. Comitologia. Cooperação estruturada permanente. Mecanismo único de resolução. Abordagem managerial e societal. Empoderamento. Governança. Incumbente e colateral. Etc. , etc. GREGUERIAS: “Os que vêm da chuva trazem cara de copo de água” (isto a propósito da molha de Macron e da Presidente croata na entrega das medalhas no Mundial). Já Putin, indelicadamente, tinha um guarda-chuva só para ele, pelo que se poderia aplicar-lhe uma outra greguería de Ramon de la Serna: “A água não tem memória: por isso é tão limpa”O poliedro europeu atingiu a sua plenitude de imperfeição. Países do Leste são sinceros: só lá estão pelo dinheiro e quanto ao resto estão-se borrifando para as regras básicas da democracia. Na Hungria, o músculo é que conta e ninguém cora pela criminalização da ajuda a desvalidos imigrantes. Na Polónia, essa coisa da separação de poderes foi ao ar, apesar da fingida ameaça de Bruxelas. Visegrado é o itinerário da nova peregrinação contra os que não são deles. A Alemanha já não é o que era e a chanceler – antes odiada como o diabo personificado, ora louvada como o exemplo do equilíbrio e sensatez – limita-se a mudar a cor da jaqueta em razão dos seus aliados e adversários internos ou externos. O Reino Unido procura, com um "Brexit" voluntarista e atamancado, ficar fora da União, mas com um pé dentro, para substituir o estar na União, mas com um pé fora. A primeira-ministra britânica anda aos papéis sem ninguém a avisar do papel que está a fazer! O Presidente francês, sem o ar soberbo e presunçoso dos que o precederam, lá vai tentando aparentar que a França ainda é importante. No Sul, a música é variada e para todos os gostos. Nós, sempre a fazer o papel do bom aluno, seja no ciclo austeritário, seja no ciclo reversitário, com os salamaleques do costume perante figurinhas de doutos comissários e outros altos funcionários de uma bem instalada Comissão. Em Espanha, depois do justo castigo de corruptos e corruptores, está agora uma "geringonça" de largo espectro, entre engasgadelas sobre as autonomias e independentismos e mais preocupada com magnos problemas para o bem-estar da população, como são a “estrutura” do Vale dos Caídos ou as inadiáveis reformas fracturantes. Na Itália, eis a total imprevisibilidade de um governo que olha para a Europa como a Antárctida olha para a Amazónia. Quanto à Grécia desgravatada, a Europa convenceu-a que tem futuro e lá anda a esquerda do poder a fingir que o é. Encharcada em questões de minorias ruidosas e mediáticas, por mais respeitáveis que sejam, a Europa esquece os problemas das maiorias sem voz europeia. Possuída pelas políticas monetárias e subjugada ao magno poder banqueiro, é incapaz de ir além de meras declarações românticas sobre os paraísos e escapatórias fiscais. Nesta Europa decadente de valores, axiologicamente relativista, espiritualmente desertificada, só parecem contar os euros como forma de exercício de poder e permuta de influências. O financeiro domina o político e determina o económico. O social – apesar dos discursos – não é uma premissa, antes um resultado meramente adjectivo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vinha (Vitis vinifera L. )A vinha (videira ou parreira) é uma das sete espécies vegetais da Bíblia, citada logo no Génesis. A Vitis vinifera é a espécie de videira mais cultivada para a produção do vinho na Europa. Trata-se de uma trepadeira cultivada em todas as regiões de clima temperado, com um tronco de forma muito retorcida, folhas grandes e repartidas em cinco lóbulos pontiagudos e flores esverdeadas em ramos. O fruto (a uva) é uma baga com as sementes livres e dispersas no mesocarpo. O cultivo da videira para a produção de vinho é uma das actividades mais antigas da civilização, havendo muitas espécies e múltiplas variedades denominadas castas. Não sei quais serão as castas preferidas pelo actual presidente da Comissão Europeia. Esta Europa, sem verdadeira liderança, é lenta e preguiçosa nos actos, atrasada nas decisões, prolixa no palavreado. Na União (!), todos se demarcam de todos! Todos iguais, todos diferentes. Todos solidários, todos egoístas. Todos unidos, todos de costas voltadas. Todos em cadeia, todos encadeados. Sem visão e sem liderança, a União caminha aos solavancos, não em geometria variável, mas em cacofonia assimétrica. Incapaz de responder, em tempo certo, aos desafios da globalização, a Europa deste alucinante inverno demográfico menospreza a ideia de família e passa de Velho Continente a Continente velho, no nevoeiro de crescente irrelevância. Entre um Trump errático e disruptivo, um Putin ardiloso e jogador de xadrez e um dragão chinês paciente, estratégico e insensível aos direitos humanos, Juncker definiu, ainda que burlescamente, o estado da “Nação Europeia”: sem rumo, trôpega, embriagada com tanta ciática institucional. Será contagiosa?
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos ataque ajuda homem social género espécie chinês