Morreu Lauren Bacall, a actriz do olhar insolente
Chamaram-lhe The Look, brilhou com uma insolência que nunca se vira antes na Hollywood dos anos 1940 e 50, era dura, sem paciência para a falta de carácter, e democrata até ao osso. Ensinou Bogart a fumar e a fazer outras coisas. Foi uma working girl até ao fim. (...)

Morreu Lauren Bacall, a actriz do olhar insolente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-13 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamaram-lhe The Look, brilhou com uma insolência que nunca se vira antes na Hollywood dos anos 1940 e 50, era dura, sem paciência para a falta de carácter, e democrata até ao osso. Ensinou Bogart a fumar e a fazer outras coisas. Foi uma working girl até ao fim.
TEXTO: O realizador Howard Hawks ensinou-a a ser insolente para os homens, ela ficou pronta para ensinar Humphrey Bogart a assobiar e fez mais do que isso, levou-o para casa. Mesmo se só tivesse feito os dois filmes em que Hawks elaborou para o casal, uma cartilha de jogos de sedução e double entendres – o assobio e o cigarro em Ter ou não ter (1944), falar de sexo como quem fala de corrida de cavalos, uns que correm à frente outros que vêm de trás, em The Big Sleep (1946) –, Lauren Bacall já seria uma das criaturas mais extraordinárias que o cinema fabricou. Esta senhora dura, insolente, sem paciência para a falta de carácter e para a cobardia moral, democrata até ao osso, morreu esta terça-feira, aos 89 anos, na sua casa em Nova Iorque, noticiou à AFP o seu sócio na Humphrey Bogart Estate, Robbert JF de Klerk. A actriz teve um "forte acidente vascular cerebral" e não resistiu. Houve um post de fonte da família Bogart numa conta oficial no Twitter: "Com profunda tristeza, mas com grande gratidão pela sua vida incrível, confirmamos o falecimento de Lauren Bacall". Chamaram-lhe The Look, e é só olhar para as fotografias para perceber porquê. Hawks (e é preciso sempre regressar a ele) tem responsabilidades. A mulher do realizador viu-a um dia numa capa da Harper's Bazaar – dia 1 de Março de 1943 – e recomendou-a ao marido. Betty Joan Perske não tinha ainda 19 anos, estudara dança, faltava às aulas para ver filmes com Bette Davies (alguma coisa deve ter ficado nela. . . ), era manequim e contava no seu portfolio com dois ou três fracassos na Broadway. Mas perante a foto da Harper's Bazaar Hawks soube o que fazer. Contratou-a. Ensinou-a a tirar partido da voz grave, porque não haveria coisa “menos atraente” do que uma rapariga guinchar. E lá ia ela (contou na sua autobiografia By Myself) para Mulholland Drive ler alto para os canyons. Três semanas depois. . . Hello, how are ya. Betty Joan Perske metamorfoseava-se em Lauren Bacall. Hawks – ele próprio conta-o no livro de conversas Hawks on Hawks, de Joseph McBride – ensinou-lhe ainda algo de mais essencial: a ser má com os homens para conseguir boleias para casa. "Porque não tentas insultá-los?". E assim apareceu uma rapariga de 19 anos que era tão insolente como a mais insolente das estrelas do firmamento de Hollywood daqueles anos: Humphrey Bogart. Nunca se tinha visto nada assim, embora Marlene Dietrich se tivesse aproximado de Hawks a reclamar o que achava que era dela: “Sabes, aquilo sou eu há 20 anos”. (Hawks sabia-o, era verdade). Em Ter ou não Ter, Bacall chama-se Slim porque era esse o nome da mulher de Hawks. Afinal, é preciso regressar a ela, Slim Keith, mulher do jet set de Nova Iorque, ícone da moda (ela própria apareceu na Harper's Bazaar), inspiração de Truman Capote, fumadora inveterada e, segundo a sua biografia, Memories of a Rich and Imperfect Life, a proprietária das roupas que Bacall usa em Ter ou não Ter e a autora do famoso ''You know how to whistle, don't you?'' – a que, reconhece, Bacall deu um tom pessoal de comic film-noir. O casal Bogart/Bacall tiraria ainda partido da sua química cinematográfica em Dark Passage (1947) e Key Largo (1948), mas Lauren dedicou-se à vida familiar, escolha que, assumiu, prejudicou a evolução da sua carreira. Também não ajudou o facto de ter entrado em vários litígios com o estúdio, a Warner, por recusar papéis, sendo suspensa (12 vezes). Mesmo parecendo sempre inquebrantável, por exemplo ao lado de Marilyn Monroe em How to Marry a Millionaire (1953) – um suplemento de fibra para prender a volátil loura à terra –, ou ainda em melodramas de Vincent Minnelli (Cobweb, 1956, Designing Woman, 1957), ou Douglas Sirk (Escrito no Vento, 1958), Bacall cedo demais ficou um magnífico side-show. (Bogart, de quem teria dois filhos, Steve e Leslie, morreria em 1957 e, entre 1961 e 1969, foi casada com Jason Robards, de quem teve Sam). “Bogart foi um ponto de viragem na minha vida. Ele falava comigo e dizia: ‘Daqui a muito tempo quando eu já cá não estiver, vais lembrar-te disto’. Ele tinha razão. Não consegues apagar do teu sistema aquele tipo de ensinamentos. ”Quando em 1957, Bogart morreu de cancro, Bacall continuou a trabalhar. A ideia de se tornar uma viúva de Hollywood assombrava-a. Sabia, no entanto, que ficaria para sempre lembrada pelo seu casamento. “O meu obituário vai estar cheio de Bogart, tenho a certeza”, disse numa entrevista à Vanity Fair em 2011. “Nunca saberei se é a verdade. Se é o que é, é o que é”, dizia, com a certeza de que durante muito tempo muitos realizadores olharam para ela apenas como “a mulher do Bogart”. “Ele foi o meu mentor, o meu professor e o amor da minha vida. Lembro-me de cada palavra que me disse mas nunca mais o verei. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens mulher sexo casamento rapariga falecimento
“Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”
Há os concertos, prova da diversidade e vitalidade da música feita hoje em Portugal, e há o resto: o público diversificado e a aldeia que o acolhe generosamente. “Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”, disse Samuel Úria. Não estava a mentir. (...)

“Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2014-08-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há os concertos, prova da diversidade e vitalidade da música feita hoje em Portugal, e há o resto: o público diversificado e a aldeia que o acolhe generosamente. “Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”, disse Samuel Úria. Não estava a mentir.
TEXTO: O sol já tudo aquece. No café da Tonita, no Largo do Rossio onde encontramos o palco Lopes-Graça, o principal, os cafés e as sandes saem a ritmo acelerado enquanto, atrás do balcão, se comenta o calor que ainda está para chegar durante a tarde. Mais abaixo, às portas da Rua da Calçada, onde está instalado o palco Giacometti, os burros mirandeses estão ordenados e com crianças no lombo, preparados para iniciar a viagem pelos campos que rodeiam a aldeia. É sábado de manhã em Cem Soldos, início do terceiro dia de festival. Reparam-se pormenores, como a gambiarra recolocada sobre as barracas de venda de material alusivo ao festival (as famosas “tixas”, mascote de festival, compilações em CD das bandas de edições passadas, t-shirts e sweatshirts alusivas ao Bons Sons). Sexta-feira à noite, madrugada alta, o largo estava cheio: os extraordinários Gaiteiros de Lisboa uniam as vozes num canto poderoso: “toca gaiteiro que nós dançaremos!” E sim, tudo dança esta Lenga lenga entoada ao sopro das gaitas e da percussão tonitruante. “Muito obrigado, Bons Sons, vocês são demais”, agradecerá Carlos Guerreiro, antes do encore, antes da vénia final de tudo o grupo. Um grande concerto num dia deles recheado. Antes dos Gaiteiros, no Palco Eira, Capicua, acompanhada como habitualmente pelo DJ D-One e pela MC M7, apresentara Sereia Louca, o seu último álbum, perante uma eira repleta de gente: as palavras são uma arma (“E no Portugal quem consegue resistir? / Quem consegue ver o país mingar sem fazer nada? / É de fazer atirar as pedras da calçada”); as palavras, assim ordenadas, assim lançadas sobre batida hip hop clássica, impregnada de história (José Afonso a ouvir-se, memória viva, presente), são um maná para os nossos ouvidos (o sample de guitarra dedilhada a dar balanço aos versos: “eu tenho um búzio que me diz coisas estranhas ao ouvido / eu tenho um coração de esponja que cresce com a tristeza”). Voz íntima e voz activista, de uma riqueza lírica inspiradora, cantará a sua Casa no campo no cenário mais adequado: “Qual é o teu perfume favorito? Pão quente, terra molhada e manjerico”. E adaptará o groove irresistível de Vayorken à ocasião: “Em Cem Soldos, a gente diverte-se imenso”. Antes do Gaiteiros e de Capicua, no Palco Giacometti de onde sairiam os burros mirandeses na manhã seguinte, Samuel Úria, só em palco, foi Neil Young pela intensidade folk que arrancava da guitarra acústica, foi Lennon (o visto em concerto em telhado londrino) de camisa havaiana, cabelo longo soprado pelo vento. Foi nada disso. Apenas Úria: impressionado pelos tantos que lhe sabiam todas as letras, que pediram “canções obscuras” no encore (saiu uma Ovelha perdida que passou de obscura a verso cantado pelo público), entregue ao momento como homem do rock’n’roll com palavras de cantautor particularmente inspirado na ponta da língua: e ouviram-se as de Lenço enxuto, Teimoso, Não arrastes o meu caixão ou Barbarella e barba rala. “Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”, dirá o bardo. “É a aldeia, são as pessoas da aldeia, é a organização onde estão as pessoas da aldeia. São vocês. ” Samuel Úria tinha razão. Há crianças a ondular os braços como o público nas primeiras filas no concerto de Capicua, há um velhote muito velhote, cansado mas feliz pelas andanças do dia, a dormitar num banco no Largo Rossio, abençoadamente alheio à azáfama à sua volta. Há novos e velhos, freaks e arranjadinhos, famílias a mostrar a aldeia aos filhos e grupos de adolescentes felizes como são os adolescentes no Verão. Samuel Úria apresenta uma música dedicada à sua terra e solta-se um grito entre o público (“Tondela!”), passeamos pelo recinto e vamos ouvindo: sotaque alentejano, sotaque minhoto, sotaque açoriano, ou não houvesse parceria entre o Cem Soldos e o Walk & Talk, o festival de arte urbana de Ponta Delgada. O país todo em harmonia feliz numa pequena aldeia de Tomar. Mais que o país: há aquele grupo de espanhóis surpreendido pela actuação dos Gaiteiros, com os seus São Joões pouco católicos, com as suas Avis raras, dedicadas “a todos os canalhas que no Governo nos sugam o sangue”, com os seus Macaréus, que se entregam àquela música que inventa uma nova tradição feita transe para dança comunal: “Toquem gaiteiros, que nós dançaremos. ” E oh, como dançámos. Dançámos tanto como nos emocionáramos, horas antes, com o fado na Eira – a diversidade também é uma arma, e na noite de Cem Soldos deparámo-nos com a riqueza da que por cá se faz, hoje: saltámos do fado para a folk épica dos Brass Wires Orchestra, deles para cantautor com sangue na guelra, daí para hip hop, daí para a tradição revisitada dos Gaiteiros, deles para o bom gosto do set de Moullinex. O fado na Eira, dizíamos. Gisela João, voz tão cheia, alma posta em cada palavra, a vida vertida em canção: há festa (“lá na minha aldeia, não se vira o vira a bater o pé”), há uma dor que conforta e arrepia (Meu amigo está longe), há o fado totalmente fado (o Voltaste de Beatriz da Conceição), o improviso a capela quando a guitarra de Ricardo Parreira o trai com uma corda partida. Gisela João enche os pulmões de ar e a voz solta-se rica e tremendamente expressiva, o corpo move-se ao sabor das palavras. O contraste entre Gisela, fadista não maior que a vida, precisamente do tamanho da vida, e Gisela, a rapariga de voz doce e muito sorridente que fala entre canções, é quase comovente. O conjunto é, e isso certamente, irresistível. Desde o primeiro dia de Bons Sons, quarta-feira, com a recepção ao campista, passaram por Cem Soldos 15 mil espectadores. O festival recebe este sábado Ricardo Ribeiro, Tiago Sousa, Torto, Noiserv ou Osso Vaidoso e termina domingo com A Presença das Formigas, António Chaínho, First Breath After Coma, Ermo, Amélia Muge ou Sérgio Godinho.
REFERÊNCIAS:
Daltónicos: Ver o mundo com as cores certas
Não existe tratamento médico para o daltonismo. Mas o projecto de um designer, Miguel Neiva, pode ajudar os daltónicos a distinguirem as cores em coisas tão básicas como a roupa, o material escolar, ou as linhas do metro. Como é ver o mundo pelos olhos deles? (...)

Daltónicos: Ver o mundo com as cores certas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.285
DATA: 2010-05-03 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não existe tratamento médico para o daltonismo. Mas o projecto de um designer, Miguel Neiva, pode ajudar os daltónicos a distinguirem as cores em coisas tão básicas como a roupa, o material escolar, ou as linhas do metro. Como é ver o mundo pelos olhos deles?
TEXTO: Parecia uma pergunta de algibeira. Daquelas que têm como único objectivo que nos programas de televisão os concorrentes não percam logo nas primeiras questões e que os telespectadores se entusiasmem ao darem uma resposta acertada. O apresentador pretendia saber de que cor são as ervilhas. Jorge Sousa estava em casa, sentado no sofá, a ver o programa e sorriu perante a facilidade da pergunta. Ainda por cima dava direito a 50 euros. Assim. Sem esforço. Mesmo antes de apresentadas as quatro possibilidades — “amarelas, verdes, azuis, laranjas” —, não hesitou e respondeu para si mesmo: “Obviamente que são laranjas e bem brilhantes. ” O concorrente, por outro lado, disse prontamente que eram verdes e o apresentador deu-lhe razão. Jorge ficou espantado, mas não tanto como seria de esperar. Tem 37 anos e desde criança que sabe que é daltónico, um problema genético que faz com que as cores sejam a coisa mais traiçoeira que tem de enfrentar. Foi ainda durante o ensino primário que um rastreio aos olhos feito na escola veio dar um nome às constantes distracções que o faziam pintar os troncos das árvores de verde e as folhas de castanho ou de avermelhado. Jorge, afinal, não era preguiçoso nem distraído. Não era por má vontade, por birra ou sequer por mau gosto que dava uma nova cor a tudo o que pintava. Ou que por vezes calçava duas meias de pares diferentes. As causas desta anomalia na percepção cromática, que tem origem nos cones que estão nos olhos, são sempre genéticas e no caso das tonalidades verdes e vermelhas estão relacionadas com o cromossoma X. Jorge, como todos os homens, tem um cromossoma X (que herdou da mãe) e um cromossoma Y (que herdou do pai). O seu avô materno já era daltónico pelo que o cromossoma responsável por esta alteração nos cones dos olhos lhe foi transmitido pela mãe. No caso das mulheres, como contam com dois cromossomas X, mesmo que a mãe transmita o cromossoma responsável por este tipo de daltonismo (dicromacia), regra geral, conseguem compensar com o outro “saudável”. O que faz com que este seja um problema muito mais comum nos homens do que nas mulheres. Na população masculina, a taxa de daltonismo é de dez por cento, enquanto nas mulheres não chega aos dois por cento. A família de Jorge confirma a regra: também para o seu irmão e vários primos as ervilhas são cor de laranja. E, nos semáforos, são salvos pelo facto de o vermelho ser sempre o de cima e o verde o de baixo. Contudo, o daltonismo relacionado, por exemplo, com os cones azuis e amarelos (tricromacia) depende do cromossoma 7, que não está relacionado com o sexo, pelo que já não se registam estas diferenças entre homens e mulheres. Há ainda um terceiro tipo de alteração que faz com que o mundo seja visto a preto e branco (monocromacia), mas cuja incidência é ínfima. Em qualquer dos casos, a solução pode estar para breve. E, para já, não é de cura que se está a falar. Código de coresO “ovo de Colombo”, como já lhe chamam muitos daltónicos, nasceu na cabeça do designer Miguel Neiva. Miguel não é daltónico e apenas se lembra de ter tido um colega com este problema na primária, pelo que toda a sua investigação na área foi desencadeada por pura curiosidade. Apesar disso, de tanto pesquisar e ler sobre o tema, já troca praticamente todas as cores, isto é, para cada objecto para onde olha consegue perceber as dificuldades de quem o percepciona de forma diferente. Já pensou nas cores das bandeiras da praia? Em 2008 defendeu na Universidade do Minho a sua tese de mestrado e, desde aí, tem vindo a tratar das burocracias necessárias para proteger os direitos de autor e para implementar o ColorAdd — um código gráfico que criou de raiz e que, através de símbolos geométricos, pretende ajudar os daltónicos a distinguirem as cores em coisas tão básicas e recorrentes como as peças de roupa, o material escolar ou as linhas do metropolitano. “O que mais me espantou em relação aos daltónicos é que não há nada. Não há uma associação que os represente, não há dados oficiais sobre o problema, porque é uma limitação que não é visível e porque os daltónicos também não gostam muito de falar sobre o assunto”, explica à Pública. A falta de informação tornou-se um desafio para Miguel Neiva que, depois de conversar e de submeter vários daltónicos a um inquérito, decidiu que o seu mestrado em Design e Marketing seria direccionado para os portadores desta alteração e que teria como objectivo torná-los mais independentes. De acordo com o inquérito que fez junto de uma amostra de quase 150 daltónicos, cerca de 37 por cento não sabem o seu tipo de daltonismo, 42 por cento sentem dificuldade de integração social, 73 por cento já sentiram algum tipo de embaraço e 88 por cento consideram a escolha e utilização do vestuário um problema. “É uma deficiência que não é visível aos olhos dos outros e que por isso mesmo traz constrangimentos e dificuldades acrescidas em termos de integração. Se vemos alguém com calças roxas, camisola amarela, óculos de sol e bengala percebemos logo que é cego. Mas se a bengala e os óculos não estiverem lá, a primeira coisa que nos ocorre é dizer que a pessoa tem mau gosto. Nunca pensamos que pode ter uma percepção errada das cores”, diz o designer. O código que idealizou está preparado para ser ensinado tanto a crianças como a idosos, estes últimos afectados por patologias que dão problemas semelhantes. “O código tem como base a conjugação das três cores principais (vermelho, verde e azul) com as secundárias numa lógica muito parecida com a da roda das cores. Cada forma geométrica simboliza uma cor primária. ” O azul, por exemplo, é um triângulo com um vértice virado para cima, o vermelho um triângulo com um vértice virado para baixo e o amarelo é uma barra diagonal. Assim, “na etiqueta de uma camisola verde, tendo em conta que esta cor é composta por azul e amarelo, deveria aparecer um triângulo com um vértice para cima e uma barra diagonal”. Para ajudar a distinguir uma tonalidade de verde-escuro de uma tonalidade de verde-claro, a ideia de Miguel é que se coloque ao lado da cor o símbolo do branco ou do preto, que são representados por um quadrado apenas com o contorno ou todo cheio a preto, respectivamente. Uma ideia que poderia ter sido muito útil a Albert Uderzo, um dos pais da banda desenhada Astérix, que por ser daltónico se viu obrigado a contratar um colorista depois de ter pintado de vermelho a primeira relva gaulesa. A cor dos táxisA parceria para a primeira aplicação prática do código acaba de chegar. As tintas CIN estão interessadas em incluir o código junto às cores que têm disponíveis e estão a trabalhar para que o próximo catálogo já esteja adaptado para esta solução. “É um casamento que vem numa óptima altura e que está totalmente de acordo com a nossa estratégia de disponibilizar serviços de cor aos clientes que os ajudem no momento da escolha porque a maioria das pessoas tem dificuldade em projectar a cor num espaço final”, explica Reinaldo Campos, director de marketing, estratégia & business development da CIN. E acrescenta: “Somos pela cor, em qualquer variante, razão pela qual aceitámos o desafio do Miguel Neiva de aderirmos a este novo código de interpretação de cores. ” Miguel quer avançar com prudência para não desvirtuar o código, mas não nega que gostava de o ver espalhado um pouco por todo o lado e em todo o mundo. Roupa, brinquedos, lápis de cor e canetas de feltro, linhas do metropolitano, pulseiras coloridas que assinalam a triagem de Manchester nos hospitais, linhas pintadas no chão que ajudam através da cor a seguir o caminho até uma determinada unidade ou serviço e parques de estacionamento são algumas possibilidades. “Até já me chegou da Rússia uma proposta de incluir os símbolos nos maços de tabaco”, conta. A ideia do designer foi também considerada pela revista brasileira Galileu uma das 40 ideias para melhorar o mundo. “No metro de Lisboa todos os dias circulam 500 mil pessoas. Se partirmos do princípio que metade delas são homens e que dez por cento destes são daltónicos então, neste caso, estaremos a facilitar, todos os dias, a vida a 20 mil pessoas. E é dos primeiros projectos de inclusão que não traz uma legislação à frente. ” Ideias que não podiam agradar mais a Jorge Sousa, apesar de este engenheiro electromecânico encarar com muito boa disposição as experiências caricatas que o seu daltonismo lhe proporciona e de já se ter habituado a pedir ajuda nas mais diversas situações. Mesmo assim, não se escapou a um ou outro episódio que podia não ter acabado da melhor forma. Ainda hoje não sabe se um jipe que teve durante quatro anos era grená ou verde — o que fez com que uma vez num parque de estacionamento estivesse durante uns bons minutos a abrir o carro errado até ser alertado pelo dono para o facto. “Claro que quando o senhor percebeu que a cor do meu carro não tinha nada a ver ficou desconfiado, mesmo depois de eu ter explicado que sou daltónico. Agora estou mais atento às matrículas”, diz. Foi também muito tarde que descobriu que os táxis são pretos e verdes e não pretos e brancos. Ultrapassado este obstáculo há um outro para o qual ainda não encontrou solução: não consegue distinguir pela luz se os táxis estão ou não ocupados, pelo que manda parar todos os que passam. E como faz quanto a clubes de futebol? “Sou do FC do Porto. O azul é das poucas cores que distingo melhor. ” Uma vez engraxou os sapatos castanhos antes de sair de casa para ter a melhor apresentação possível. Valeu-lhe o facto de se ter cruzado com a sua mulher que questionou se havia alguma razão para ter usado graxa vermelha. Hoje já praticamente desistiu de responder à pergunta “de que cor é isto?” Decidiu abrir uma excepção com a Pública para responder durante a entrevista que tínhamos uma camisola castanha. Na verdade, a roupa era verde-garrafa. Sobre a forma como estava vestido, respondeu de forma segura: “A minha mulher disse-me que é um fato castanho com uma pequena risca azul e uma camisa do mesmo azul com uma risca branca. ” Uma carreira abandonadaDesde cedo que Jorge desistiu de fazer compras e é à sua mulher que cabe a tarefa de o vestir a ele e aos três filhos. Em vez de estar organizada por tipo de peças, a sua roupa está arrumada conforme aquilo que combina. “Mas sou tão distraído que, se alguém trocar as coisas, visto na mesma. Não tenho memória para a cor. O daltónico é como um analfabeto das cores. Olho para elas e se estiver com atenção percebo que são diferentes mas não lhes consigo dar um nome, daí que até já tenha assinado documentos importantes com canetas vermelhas ou preenchido cheques a verde. Sou muito mais atento às texturas dos tecidos. ” Quem tem uma visão normal consegue distinguir cerca de 30 mil tonalidades diferentes, ao passo que pessoas com problemas deste género não vão além das 800, sendo que desde pequenos somos treinados para associar as cores aos objectos. Este engenheiro adaptou-se a todas estas rotinas, mas o facto de ser daltónico mudou-lhe os planos de carreira: tentou entrar para a Força Aérea e o seu sonho era ser piloto, mas as cores trocaram-lhe as voltas. É uma das poucas profissões em que esta deficiência é um impeditivo e é precisamente na inspecção militar que as pessoas com daltonismos mais ligeiros acabam por descobrir o problema. Mas também houve uma ocasião em que beneficiou com o problema. “Numa entrevista de emprego pediram-me para ordenar um conjunto de cores, da que gosto mais para a que gosto menos. Como, para mim, tanto faz, ordenei da que me parecia mais clara para a mais escura. A entrevista continuou a decorrer e mais tarde pediram-me para organizar de novo as cores. Fiz exactamente a mesma coisa e o senhor diz que ficou muito espantado com a minha coerência. ” Uma das formas mais comuns de detectar o daltonismo é submeter a pessoa ao teste de cores de Ishihara que recebeu este nome graças a Shinobu Ishihara, um professor da Universidade de Tóquio que em 1917 criou uma série de cartões de cores cujo fundo é composto por bolinhas de uma determinada cor. No centro é desenhado, também com bolinhas, um número que tem uma cor semelhante e que para os daltónicos é muito difícil de percepcionar. No entanto, ser daltónico já chegou a ser visto como um factor positivo e na II Guerra Mundial as pessoas com este problema genético eram escolhidas para as incursões nocturnas e para os raides aéreos por serem muito sensíveis aos contrastes e detectarem com mais facilidade os camuflados do inimigo, em especial de noite. O diagnóstico adiado é mais uma prova de que foi bastante tarde que a sociedade despertou para o daltonismo, que deve o seu nome ao químico e matemático inglês John Dalton, que em 1793-94 publicou um documento intitulado Factos extraordinários relacionados com a visão das cores. Tanto Dalton como o seu irmão tinham um problema nos cones vermelhos e verdes e o investigador estava convencido de que a alteração responsável pela diferente percepção das cores estaria num líquido do seu olho. Conta-se que Dalton adorava cerejas mas que era incapaz de as identificar nas árvores por as misturar com as folhas. Um dos últimos desejos de Dalton foi que os seus olhos fossem autopsiados para poder confirmar a sua teoria, o que não veio a acontecer. O fascínio do arco-írisFlorindo Esperancinha, presidente do colégio da especialidade de Oftalmologia da Ordem dos Médicos, reconhece que o facto de não haver tratamento absolutamente nenhum para os daltónicos faz com que os próprios médicos, por vezes, coloquem a doença mais de lado. “O daltonismo entra um pouco no esquecimento. As alterações mais ligeiras são difíceis de detectar e em qualquer dos casos, como oftalmologistas, o máximo que podemos fazer é aconselhar os pacientes a assumirem o problema e a não entrarem em discussões estéreis sobre a cor. O nosso principal papel está em ajudar as pessoas a lidar e a antecipar os constrangimentos que possam advir desta alteração”, justifica. Gonçalo Reis tem 21 anos e é finalista da licenciatura em Comunicação Social do Instituto Politécnico de Tomar. No seu caso, o diagnóstico foi precoce. O seu pai também é daltónico e a mãe, enquanto enfermeira, sempre ficou muito atenta à forma como o filho percepcionava as cores, e na altura da entrada da escola levou-o a um especialista que confirmou a alteração dos seus cones. “Como a professora sabia, não senti grandes problemas, mas acredito que, para os miúdos que não sabem o que têm, isto possa servir como mais um elemento de gozo”, explica. Apesar da descontracção com que lidava com o problema, a mãe de Gonçalo criou algumas estratégias para facilitar a vida ao filho. “Nos lápis de cor a minha mãe colocou-me umas etiquetas que diziam as cores e eu optava por ter sempre conjuntos pequenos. ” E no exame nacional de História que realizou no 12. º ano precisou que fosse feita uma versão especial para si, pois as cores com que o mapa estava pintado eram todas demasiado semelhantes para as poder entender. Mas na altura de ir às compras Gonçalo continua a contar com o apoio dos amigos, até porque a sua principal dificuldade está nos espectros dos azuis. “Azul, roxo, lilás… para mim é tudo igual. ” Optou, como muitas das pessoas com o seu problema, por escolher tendencialmente cores neutras e nunca fugir muito da mesma paleta de cores no vestuário. “Não gosto de andar colorido e, em caso de dúvida, pergunto. É melhor perguntar do que fazer asneira, certo?” Quanto ao futuro, para já não desiste do sonho de trabalhar na área da fotografia, mesmo com as maiores dificuldades que tem no balanceamento de brancos, o que faz com que algumas das suas imagens fiquem azuladas. “Os colegas e a tecnologia estão cá para nos ajudar a corrigir estas coisas”, insiste, sempre com um sentido muito pragmático. As mulheres daltónicas são poucas e talvez por isso Helena Guimarães, 49 anos, ainda hoje não fale muito sobre o assunto. “O mais cedo que me lembro de ter percebido que era daltónica foi na adolescência e isso nunca foi propriamente um tema de conversa lá em casa. Lembro-me de vestir umas calças laranjas com umas meias que julgava combinar e que afinal eram amarelas e, por isso, passei a usar tons muito neutros. Evito acessórios como brincos, colares ou lenços. O meu marido oferece-me coisas para eu variar mas sinto-me muito pouco confortável a arriscar. ” Helena é directora de marketing numa empresa e as apresentações feitas em computador e os gráficos são os seus maiores inimigos, pelo que se habituou a delegar este tipo de tarefas, mesmo não gostando, algumas vezes, das cores que os seus colaboradores escolhem. Habituou-se a não discutir cores, mas admite que por vezes não gosta do que vê numa folha ou da conjugação de roupa que alguém escolhe e não sabe se os seus olhos têm razão ou se são os genes trocados a funcionar. “Não vejo o daltonismo como um problema e nunca senti que fosse uma grande limitação. É como ser canhota. Mas claro que gostava de ver as cores todas. Nunca percebi o fascínio das pessoas com o arco-íris e só há pouco tempo descobri que só consigo distinguir duas cores. Aí fiquei triste, por perder algo que dizem ser tão bonito. Mas, ao menos, o mar para mim é sempre azul, um azul muito forte. ” Contudo, Helena reconhece que é difícil explicar aos outros que não é por preguiça que não consegue dizer as cores e admite que depender de alguém para ter a certeza da roupa que põe numa mala pode ser limitador. “Talvez por isso odeie comprar coisas para mim e nunca embarque em grandes aventuras. Jogo muito pelo seguro. ” Pedro Pires é engenheiro electrotécnico e tem 42 anos, mas até aos 15 ou 16 pensou que não sabia as cores e que algo tinha falhado nesta aprendizagem de criança. “Quando fiz os testes para a tropa, confirmaram-me que sou daltónico, mas fiquei apto na mesma e até me disseram que era bom para ir para os pára-quedistas por ser sensível aos contrastes das cores. ” Na faculdade, a principal dificuldade que sentiu foi nas aulas sobre resistências, onde cortar um fio baseado na cor podia ser um risco. É por este motivo que em profissões como electricista o daltonismo pode ser um impeditivo. Pedro baralha essencialmente verdes, castanhos e avermelhados, mas foi com o preto que teve a maior surpresa: numa loja tinha uns atacadores pretos na mão e insistiu se não vendiam nenhuns mais escuros. Caminho para a cura?Todos estes daltónicos gostariam de ver os seus cones repostos — se não houvesse riscos. Contudo, as experiências bem sucedidas no sentido da cura são todas em animais e há muito poucas a destacar. Até porque é um problema que não evolui e que além do incómodo social não provoca qualquer dor ou desconforto ao seu portador, pelo que é visto como pouco interessante. Ainda assim, em 2008 os cientistas Jeremy Nathans e King-Wai Yau foram agraciados com o Prémio Champalimaud de Visão, no valor de um milhão de euros, por terem ajudado a desvendar a forma como a visão transforma as cores numa linguagem que o cérebro consegue perceber. Investigador da prestigiada universidade norte-americana de Johns Hopkins, Nathans dedicou-se a perceber a forma como a luz é absorvida pela retina e o seu colega Yau tentou entender como é que esta energia luminosa era convertida em electricidade para chegar ao cérebro. A principal investigação de Nathans já tem 20 anos e consistiu precisamente na identificação dos genes que codificam os três pigmentos existentes na retina e que absorvem as cores vermelho, verde e azul. Estes pigmentos correspondem aos três tipos de foto-receptores em forma de cones que existem na retina humana e que são responsáveis pela visão das cores. Ao lado dos cones existem outros foto-receptores, os bastonetes, que são em muito maior número e que ajudam a distinguir apenas níveis de luz mas não cores. Os cientistas conseguiram isolar estas moléculas e, posteriormente, os genes que as codificam, para finalmente poderem afirmar que estes genes, quando alterados, influenciam a percepção da cor. Agora, Nathans tem tentado perceber como é que esta visão tricromática dos humanos terá evoluído a partir de organismos mais simples como os dos mamíferos inferiores. É que animais como cães, gatos e ratos têm uma visão semelhante à dos daltónicos, já que têm apenas dois sensores de cor e não três. O investigador conseguiu injectar no rato um terceiro tipo de cone e este passou a ver como um humano com uma percepção normal da cor. Para Nathans, o que é surpreendente é que isto não implicou qualquer intervenção no cérebro, o que, além de tornar o procedimento mais simples, mostra que estão no bom caminho para encontrar uma cura para o daltonismo. Mais recentemente foi a vez de a experiência ser realizada em macacos, que partilham o mesmo tipo de visão que uma pessoa sem problemas. No final do ano passado, um grupo de investigadores da Universidade de Washington e da Universidade da Florida, ambas nos Estados Unidos, anunciou que utilizou com sucesso uma terapia genética que foi capaz de curar dois macacos daltónicos. O estudo, conduzido por Jay Neitz e agora publicado na revista Nature, demonstra que os macacos — que nasceram sem distinguir o verde e o vermelho —, depois de lhes terem sido injectados genes com o código de ADN necessário para distinguir as cores, passaram a ser capazes de identificar desenhos vermelhos que apareciam em fundos verdes. Esta terapia resultou de um intenso trabalho de dez anos em que os dois macacos, Dalton e Sam, foram ensinados e treinados para poderem dizer que cores estavam a ver a cada momento. Enquanto o ColorAdd não é aplicado, resta a Jorge, Gonçalo, Helena e Pedro o sentido de humor e muita imaginação. Há já também algumas máquinas para cegos que quando colocadas junto a um objecto dizem a sua cor e aplicações para telemóveis com câmara fotográfica que permitem fotografar um objecto e apontar para a zona em que se está com dúvidas sobre a cor. O problema é que estas tecnologias, às vezes, também parecem ter problemas de percepção e um preto e um castanho ou um vermelho e um laranja-escuro podem ser muito parecidos.
REFERÊNCIAS:
O primeiro meio século de um milagre médico do século XX
Claudia Goldin e Lawrence Katz, economistas da Universidade de Harvard e especialistas da evolução do trabalho feminino ao longo do século XX, são peremptórios. Já o escreveram há dez anos, por ocasião do 40.º aniversário da pílula, na revista do Milken Institute (um think tank norte-americano de economia): a pílula é um "milagre médico". (...)

O primeiro meio século de um milagre médico do século XX
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.020
DATA: 2010-05-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Claudia Goldin e Lawrence Katz, economistas da Universidade de Harvard e especialistas da evolução do trabalho feminino ao longo do século XX, são peremptórios. Já o escreveram há dez anos, por ocasião do 40.º aniversário da pílula, na revista do Milken Institute (um think tank norte-americano de economia): a pílula é um "milagre médico".
TEXTO: Nesse texto, os cientistas interrogam-se: "Podemos dizer que a pílula teve um papel-chave na decisão de milhões de mulheres de investirem na sua formação profissional e ter uma carreira?" E logo a seguir: "Para nós, a resposta é um rotundo "sim". " Claro que também estavam criadas outras condições para isso acontecer - nos anos 1960, diversos movimentos sociais contribuíram para a women"s lib. Mas isso não os impede de afirmar que foi a pílula que "mudou radicalmente a vida das mulheres. " E não estão a falar sem provas: em 2002, mostraram que havia uma clara relação, a partir do início dos anos 1970, entre a legalização total do acesso à pílula pelos diversos estados norte-americanos e o crescente acesso das mulheres desses estados aos estudos universitários. Por exemplo, enquanto apenas 10 por cento dos estudantes de Direito do primeiro ano em 1970 eram mulheres, em 1980 já eram 36 por cento. O "poder da pílula" (expressão usada no título do seu estudo) esteve para as mulheres como o flower power esteve para o movimento hippie. Contactada telefonicamente pelo PÚBLICO, Claudia Goldin reitera a sua convicção: "A pílula teve mesmo muito impacto. " A 9 de Maio de 1960, as autoridades de saúde norte-americanas aprovaram o uso do primeiro contraceptivo oral feminino, vulgo "a" pílula. Os pequenos comprimidos hormonais que mais de 200 milhões de mulheres no mundo já tomaram diariamente já foram acusados de fomentar a promiscuidade sexual e de provocar cancro da mama. Mas foi pela positiva que mereceu as suas credenciais. "Nós estudámos o comportamento das mulheres mais novas e mostrámos que, a partir dos anos 1970, quando o uso da pílula chegou a um maior número de jovens, elas começaram a casar mais tarde e a adquirir mais frequentemente competências profissionais. " Um invento paradoxalIronia do destino, a pílula foi inventada nos anos 1950 por dois cientistas que tinham objectivos aparentemente opostos. Por um lado, Gregory Pincus estava empenhado em conseguir bloquear quimicamente a ovulação nas mulheres. Ex-professor de Harvard, tinha nos anos 1930 sido um precursor da fertilização in vitro e descobrira que a hormona feminina progesterona bloqueava a ovulação em diversos animais. Por outro lado, John Rock, conhecido especialista de infertilidade, queria desenvolver um tratamento hormonal para devolver a fertilidade a mulheres estéreis. Os objectivos parecem contraditórios, mas não são: promover e impedir uma gravidez podem ser vistos como duas faces da mesma moeda. Esta colaboração - inspirada pela enfermeira e activista Margaret Sanger e financiada pela fortuna de Katharine Dexter McCormick, a segunda mulher a diplomar-se pelo Massachussets Institute of Technology - culminou, em 1955, com o desenvolvimento de uma formulação hormonal oral destinada às mulheres, que seria aprovada em 1957 para tratar "perturbações femininas" como a irregularidade menstrual. Mas foi a Alemanha Ocidental, logo em 1956, o primeiro país a comercializar a pílula como método anticonceptivo - e inaugurando assim o primeiro medicamento da história, como faz notar um extenso artigo numa recente edição da revista Time, a ser receitado a pessoas que não sofriam de doença alguma. Nos EUA, a aprovação da sua utilização para fins de controlo da natalidade pela Food and Drug Administration, a agência reguladora dos medicamentos, sob o nome de Enovid, dos laboratórios Searle, só aconteceria a 9 de Maio de 1960. Mas a pílula permaneceria ilegal em grande parte do país durante vários anos. Seria preciso esperar até 1965 para que o Supremo Tribunal decretasse que o direito à privacidade (e daí, o acesso à pílula) estava consagrado na Constituição norte-americana, obrigando os 50 Estados a legalizá-la. Mesmo assim, no início só podia ser receitada a mulheres casadas. . . e foi apenas em 1972 que as mulheres solteiras ganharam também esse direito. A fama chegou depressa e o seu impacto nunca deixou de ser reconhecido: a revista Time fez capa com ela logo em Abril de 1967. E, no fim de 1999, a revista The Economist escolheu-a como o maior avanço científico e tecnológico do século XX. Altos e baixosDesde o Enovid, a composição da pílula foi modificada: diminuíram-se as doses de hormonas e acrescentou-se à progesterona a segunda principal hormona feminina: o estrogénio. A composição actual da pílula possui muito menos efeitos indesejáveis do que a formulação inicial. Nos anos 1970, contudo, um estudo concluiu que a pílula fazia aumentar o risco de contrair cancro da mama. Mas há apenas umas semanas, isso foi desmentido no maior estudo de sempre sobre o tema, da autoria de Philip Hannaford e colegas, da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, num artigo no British Medical Journal. Os cientistas, que acompanharam 46 mil mulheres britânicas ao longo de 40 anos, concluem que a pílula poderá mesmo contribuir para aumentar a longevidade das mulheres. Mas como nem tudo são rosas, um outro estudo vem agora dizer que a pílula pode provocar disfunções sexuais nas suas utilizadoras. Porém, os autores deste estudo - Lisa-Maria Wallwiener, da Universidade de Heidelberg, e colegas - que acabam de publicar os seus resultados no Journal of Sexual Medicine, admitem que eles ainda precisam de ser confirmados. Hoje existem também pílulas abortivas e pílulas do dia seguinte. E há laboratórios a tentar desenvolver formas de contracepção masculina. Mas nada supera "a" pílula original, que tem características que a tornam única: não parece ter efeitos prejudiciais para a saúde, é o método mais fiável quando devidamente utilizada, é fácil de usar e permite que sejam as mulheres a controlar a sua fertilidade. Uma última ironia: o aniversário da pílula cai por acaso no Dia da Mãe norte-americano. "Não há melhor maneira de celebrar o ser-se mãe", diz Terry O"Neill, da National Organization for Women, a maior organização feminista dos EUA, citada pela AFP, "do que celebrar o ser-se mãe por escolha própria. Podemos ter orgulho pelo facto de as mulheres terem hoje o direito legal de escolherem ser mães. "
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
A monja que trocou a astronomia pelo carmelo
Há uma monja que estudou para observar os astros e aterrou no carmelo. Outra que jogava futebol e agora faz hóstias. Uma terceira que deixou as belas-artes para só oferecer "o seu rir ao seu pequeno Deus". A Pública foi conhecer como vivem as monjas dentro da clausura monástica em Bande, Paços de Ferreira. (...)

A monja que trocou a astronomia pelo carmelo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-05-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há uma monja que estudou para observar os astros e aterrou no carmelo. Outra que jogava futebol e agora faz hóstias. Uma terceira que deixou as belas-artes para só oferecer "o seu rir ao seu pequeno Deus". A Pública foi conhecer como vivem as monjas dentro da clausura monástica em Bande, Paços de Ferreira.
TEXTO: Aqui, a vida é ritmada pelos tempos de oração, ao sabor dos nomes tradicionais da liturgia das horas, rezada nos mosteiros. Hora térciaDeixar os astros, regressar à fonteA irmã Filipa do Coração de Maria, 35 anos, tem as mãos apoiadas na enxada, chapéu quase até aos óculos, a cruz sobre a veste de trabalho - azul, bem diferente do hábito castanho. "Troquei as criaturas pelo Criador. " É como quem diz: deixou a Astronomia, área da Matemática Aplicada em que se licenciou na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, e aterrou na clausura no Carmelo do Coração de Maria, em Bande, perto de Paços de Ferreira. "Não estava à espera de ser freira nem monja. Pensava continuar a fazer investigação, mas Deus trocou-me as voltas e começou a chamar-me de mansinho. " Buscou o caminho em outros mosteiros, estava mesmo quase a desistir quando apareceu o carmelo de Bande. Chama-se sachar batatas e é a primeira vez na sua vida que a irmã Filipa o está a fazer. Mas como chama Deus de mansinho? Recorda-se de ter assistido a uma conferência da madre do mosteiro, Vera Maria, sobre a oração. "Fui para o último banco, a ver se aquilo não se pegava", diz, voltada para a prioreza, ali ao lado. Riem ambas. Mesmo assim, gostou do claustro, do coro, de ver um carmelo sem grades. . . Conversou com a madre. "Quando saí do portão, dei comigo a perguntar: o que estou aqui a fazer fora? O meu lugar é ali dentro. "Deixou então a especialização e o trabalho que iniciara no Planetário do Porto e foi para o mosteiro das monjas carmelitas, em Outubro seguinte. Aqui tem estado, até hoje, dia em que a falta de um jornaleiro fez com que, pela primeira vez, a actual conselheira da prioreza tivesse de cortar ervas daninhas que rodeiam as batatas. "As pessoas do campo têm uma grande sabedoria. As ervas daninhas são muito parecidas com as outras plantas e temos de as saber distinguir bem, para não cortar as batatas. "Em volta, uma paisagem toda transformada pelas monjas. Enquanto se construía o mosteiro, desde 2001, foram plantando um pequeno bosque de choupos, um pomar com figueiras, pereiras, pessegueiros, ameixoeiras, diospireiros, aveleiras ou macieiras, e ainda cultivando batatas, abóboras, couves ou ervas aromáticas. Cinco hectares de terreno que ajudam a reduzir a factura mensal - já iremos fazer contas a quanto custa viver aqui. Quando entrou, recorda a irmã Filipa, era a festa das Vésperas de Santa Teresa (d"Ávila), um dia importante no calendário carmelita. "Uma grande mulher, ainda pouco entendida na visão futurista que tinha. Há quem se agarre ainda à santa Teresa do século XVI, mas ela dizia que se deve ir sempre para melhor, regressando às fontes. "Uma mulher que enfrentou incompreensões e obstáculos numa Igreja marcada pelas tensões e conflitos que culminaram na Reforma protestante. "Foi ela que deu um cunho apostólico aos carmelos", diz a irmã Filipa. Mas há outras mulheres importantes que não foram canonizadas e são referência: uma outra religiosa que conheceu, chamada Teresa Castro, "e a nossa madre". Percebe-se o carisma de Vera Maria, 55 anos, há 30 no mosteiro, junto das suas irmãs. Está no terceiro ano do quarto mandato como prioreza. Fez dois mandatos de cada vez, intercalados com dois triénios como mestra de noviças. Além dos dotes pessoais na pintura, na música ou no conhecimento de plantas, por exemplo, tem um forte papel na liderança espiritual que imprime à comunidade. Ri, pouco à vontade, quando Filipa a aponta como referência. Aproveita a pergunta sobre outros nomes de mulheres na história do cristianismo para desviar: Hildegarda de Bingen, a mística do século XII, "é, se não o maior, um dos maiores vultos medievais. Praticava medicina, música, exegese da Bíblia, sabia grego e latim. . . " E, nas suas visões espirituais, sonhava com mulheres no altar. . . Numa altura em que tanto se debatem questões como o celibato ou as infidelidades de membros do clero, Vera Maria assume que a mulher tem um papel importante. "Está diluído pela imagem masculina da Igreja, mas é uma realidade. "Temas que não são tabus neste mosteiro: "Sim, falamos sobre o assunto", respondem ambas, quando perguntadas se o sacerdócio feminino é conversado. "Não é a nossa prioridade, mas falamos e debatemos o assunto. " Há opiniões diferentes? Sim, concordam de novo a madre e a irmã Filipa. "A nossa prioridade é como regressar hoje a Jesus e ao evangelho. Nem sempre é fácil saber como voltar à fonte, porque fomos enchendo cisternas e esquecemos a fonte", diz a irmã Filipa. E a prioreza completa: "Faz parte da nossa vocação este anseio de voltar a Jesus e ao evangelho, despirmo-nos de coisas que os séculos foram acumulando, para poder mostrar o verdadeiro rosto de Jesus. "Hora sextaUm livro de desassossegoO ritmo no carmelo, nesta manhã, está muito alterado por causa da falha do jornaleiro que costuma ajudar as monjas nos trabalhos da horta. Várias delas tiveram de largar o trabalho das hóstias, encadernação, artesanato, para dar uma mão na agricultura. E a oração que junta a hora sexta e a hora noa tem de ser adiada meia hora. Boa parte do sustento das carmelitas está, hoje, na horta em redor do mosteiro. Mas quando Filipa bateu à porta do carmelo, em Fevereiro de 2000, as monjas estavam ainda no Porto: o carmelo situava-se na cidade, entre o trânsito, o comboio e os prédios altos com vizinhos que, em alguns casos, chegavam a vir de binóculos ver as monjas a trabalhar na horta. "Não somos bichos raros", diz a madre. Certo é que, aqui, também houve necessidade de proteger algumas zonas com pequenos taipais, para que as irmãs não se sentissem vigiadas a cada momento. Há muito a fazer e a perguntar nos trabalhos da horta. Já veio o estrume? O problema da água está resolvido? É preciso sachar, cortar ervas daninhas, podar, transportar estrume ou alfaias no tractor, tratar de uma ramada que qualquer dia dará uvas, zelar pelas estufas de morangos ou pelas árvores de fruto. Há também um pequeno jardim bíblico e mais uns quantos canteiros para cuidar - o caminho até ao pequeno cemitério, onde já estão enterradas três monjas, é um enlevo para o olhar e um bálsamo de aromas. Um livro de desassossego, a vida destas irmãs. Até por causas externas. Queixa-se a madre Vera Maria que a EDP colocou dentro do mosteiro uma linha muito baixa, que obrigou ao corte de vários choupos. "Não nos indemnizaram as árvores até agora, apesar de prometerem", diz. E quando transborda a pequena ribeira que ali passa, o rio Carvalhosa, o campo alaga e a água chega às árvores. "Pode ser suficiente para electrocutar alguém. "Hora de recreioDuas crises que preocupam "No Porto, tínhamos mais gente a aproximar-se do mosteiro. Aqui, ganhámos um maior ambiente de silêncio e de solidão, é a vantagem de estar na aldeia. " Mas há uma dificuldade: "Temos o silêncio e a paz que procurávamos, mas pagamos uma factura muito elevada por causa das infra-estruturas", reconhece a madre superiora. Electricidade, tratamento de águas, alfaias agrícolas não ficam baratas. Com mais o ordenado de uma cozinheira e uns 300 a 400 euros para a farmácia, dá seis mil euros por mês, contas por alto. Na alimentação, as 18 carmelitas gastam muito pouco - quase tudo vem do pomar, da agricultura ou da criação de ovelhas e galinhas. O pequeno-almoço é tomado entre as 9h e as 10h, depois da oração de laudes e à medida do horário de cada monja. O primeiro tempo de trabalho vem a seguir, até às 11h, quando se interrompe para uma hora de lectio divina, nome dado à leitura individual da Bíblia. As irmãs distribuem-se pelos trabalhos agrícolas, encadernação, compotas, fabrico e embalagem de hóstias, artesanato, pintura de ícones ou de iluminuras. . . Depois de almoço, e até às 14h, há um curto tempo de recreio e convívio, enquanto se fazem pequenos trabalhos - bordados, artesanato. . . As monjas querem saber melhor o que os jornalistas pretendem. "Era bom que não olhassem para o mosteiro como um mistério, como algo esotérico. " Só desejam, repetem, buscar Deus "na eternidade do tempo". Eram pessoas com carreiras ou empregos, trocadas por um apelo interior. Há no mosteiro uma antiga enfermeira, licenciadas em Ciências da Educação, Ciências Religiosas ou Educação Social, uma ex-pianista, uma licenciada em Belas-Artes, outra que foi contabilista e uma ex-educadora de infância. Além, claro, da irmã Filipa. A maior parte do tempo do recreio é para falar da horta. Será viável a sua exploração? E falam ainda da situação crítica da economia portuguesa. A madre Vera Maria pede também orações pela crise que a Igreja está a viver, por causa dos abusos sexuais de membros do clero. "O primeiro impacto foi ficarmos demasiado tristes. O mosteiro é um universo pequeno, o sofrimento da Igreja é o nosso", admite, falando sobre o tema da pedofilia. Não há televisão no carmelo, mas as notícias vão-se sabendo. "Foi motivo de muita dor. . . "Nada, neste assunto, fica de fora do debate das monjas: "Talvez tenha falhado qualquer coisa como uma presença feminina, de uma mãe ou de uma irmã, junto dos seminaristas; se calhar houve uma ausência total dessa presença. " Contrapõem-se outros argumentos: "Mas há padres e bispos excelentes e são a maior parte. " Ou ainda: "Não se pode generalizar e criar pânico social. "Hora noaDo futebol para as hóstiasPode uma ex-jogadora de futebol produzir hóstias? De cada vez, as mãos da irmã Miriam, e das outras monjas, colocam 25 litros de massa na máquina. Saem transformadas numa lâmina de hóstia que depois será cortada em pequenas partículas redondas. Setenta sacos saem do carmelo de três em três meses, 50 quilos por saco. Para a missa de sexta-feira com o Papa, no Porto, as monjas estão a fazer 50 mil hóstias. A irmã Miriam chegou a jogar futebol feminino nos Olivais, em Lisboa. Após um tempo, começou a não gostar do ambiente. Trabalhava em serigrafia e um dia veio ao carmelo de Bande visitar uma amiga. Gostou do que viu. "O mais importante que aqui encontrei foi a união da comunidade, a atenção das monjas umas para com as outras. "Ainda esteve numa comunidade religiosa de uma nova congregação em França, mas preferiu o carmelo, onde entrou em 1998. "Nunca tinha pensado em vir para a vida religiosa. A culpa foi da minha mãe, que rezou sempre para ter uma filha religiosa", diz, a rir. Riem e sorriem muito estas irmãs. Não há um rosto sério nem triste. Enquanto coloca a massa na máquina de cozer, Miriam vai rezando. Rezam muito as mãos, enquanto trabalham. "Vou rezando e estando com atenção para que o termómetro não fique demasiado quente. " No corte das hóstias está a irmã Gabriela de Santa Maria. É autora de algumas pinturas que se podem ver pelo mosteiro. Formada em Belas-Artes, já não quer saber de qualquer eventual carreira artística - apesar de ter feito uma exposição com quadros seus e da madre Vera Maria na Câmara de Paços de Ferreira. "Não me importava só de varrer o chão, desde que fosse para contemplar Jesus. "É uma lâmina redonda que, como uma guilhotina, corta várias placas de hóstia ao mesmo tempo. As partículas caem directamente para uma caixa, para serem embaladas posteriormente. "A única coisa que hoje desejo é buscar o meu Deus, mesmo que ninguém mais o busque", diz a irmã Gabriela. "Sou apenas um ser humano que deseja permanecer aqui, oferecendo a sua vida, o seu respirar, o seu rir, ao seu pequeno Deus. "As hóstias são, além da horta, a principal fonte de sustento das monjas. Começaram em 1993, numa altura em que também passaram mal. "Eu tinha pouco tempo de prioreza, não havia encomendas de pintura. Não tínhamos comida. Em Julho, pedi a alguém que ao menos me arranjasse abóboras, sem saber que só em Setembro é que haveria", recorda a madre Vera Maria. Duas benfeitoras ofereceram as duas máquinas de cozer hóstias, 75 mil euros cada (15 mil contos na altura). "Depois começámos também a fazer compotas, ícones por encomenda, terços, lençóis, bordados. . . "Tiveram de se colectar como panificadoras, nas finanças, e não conseguem tirar um ordenado inteiro. Além de que o fabrico de hóstias tem um grande desperdício: mais de metade vai para os animais. Agora, está a ser embalada uma encomenda de 200 mil partículas para uma livraria de Fátima. Nesta tarde, ao mesmo tempo, há uma monja a fazer compota, outra na portaria, uma a trabalhar na enfermaria, uma outra a fazer hóstias e três na triagem e embalagem. Mas há também uma na cozinha, uma a trabalhar na horta, outra na rouparia e uma na contabilidade. A irmã Miriam veio agora ajudar a madre Vera Maria na encadernação. Foi um investimento passivo que não se irá pagar: compraram máquinas em segunda mão, muito dinheiro mesmo assim. É "uma arte antiga, típica dos mosteiros", mas da qual as monjas de Bande nunca esperam ter lucro. As horas que dedicam a cada trabalho ficam longe de ser pagas. Um pequeno espelho serve para ver se as letras - colocadas nos compositores, os suportes utilizados - estão na posição certa, antes de as gravar. O ferro vai a aquecer no "inferno", nome que dão ao pequeno forno eléctrico, antes de experimentar a textura da gravação - algo que só se aprende pela experiência e com tentativas. Vera Maria aprendeu encadernação há cinco anos. Nas encadernações - livros de registo de paróquias, edições mais antigas para recuperar - lá está a marca entretanto registada pelas monjas para os seus produtos e trabalhos: Bande Monakai. Monjas de Bande, em grego. Vamos reencontrar Filipa, agora com a irmã Maria do Rosário, a fazer restauro têxtil, outra das tarefas em que as monjas se empenham. Este estandarte-guia veio de Ovar. É tecido em damasco, com bordado em fio de ouro, e perfaz três metros. A franja, muito danificada, que envolve o tecido, foi originalmente bordada no próprio pano, o que torna mais difícil e moroso fazer o restauro. Um pequeno biombo separa as duas monjas. "É para cada uma sentir o seu espaço de solidão", diz Maria do Rosário. Filipa ri de novo: "Mesmo assim, dá para mandar umas bocas daqui. " É um trabalho "bonito, criador, pacificador", que "não deixa de ser arte", diz a irmã Filipa. Um trabalho moroso e lento: um manto de uma imagem da Maia esteve três anos no mosteiro. "Se cobrássemos o custo real, seria uma fortuna. É um trabalho artesanal, uma ajuda à Igreja. "E uma ajuda a quem precisa: ao lado das bancadas onde estas duas irmãs trabalham, estão dois teares. Para tecer a lã das três dezenas de ovelhas criadas na quinta do mosteiro. Saem daqui mantas para as monjas, se necessário, mas sobretudo para os pobres que pedem socorro. Nem de propósito, a irmã Filipa estava a ler um texto do evangelho de São João. É quando Jesus lava os pés aos discípulos como gesto simbólico do serviço: "Se eu, o senhor e o mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. "CompletasVozes para lá do tempoNa oração de completas, é a irmã Filipa que substitui a madre Vera Maria, ausente para uma consulta com outra irmã. A igreja está ainda na penumbra quando, às 20h40, o sino roda contra o céu que entretanto se nublara, convocando as monjas para a oração. São três sinos, toca normalmente o do meio, um acorde perfeito de Mi maior. Corre uma brisa a tranquilizar o calor quase estival que fizera durante o dia. "Em vossas mãos, Senhor, entrego o meu espírito", cantam as monjas, seguindo a irmã Filipa. Cruza-se a harmonia do canto com os chilreios que subsistem, o ladrar dos cães da aldeia ou o motor de algum carro ou moto que passa de quando em vez. O coro está iluminado apenas por um foco por cima de cada lugar. São vozes para lá do tempo, suspensas da eternidade. Mas estão agora tão suaves quanto de manhã cedo, mais do que nas orações da tarde ou do meio-dia. Como quem já quer descansar do dia. Além dos focos, está aceso o círio pascal e outras quatro velas, junto à imagem da Senhora do Carmelo. Os únicos pontos de luz na igreja. Vem à memória Jorge de Sena: "Uma pequena luz/ que vacila exacta/ que bruxuleia firme/ que não ilumina apenas brilha. " Ou um hino da liturgia das horas, cantado nos mosteiros: "Luz terna, suave, no meio da noite, / Leva-me mais longe. . . "Os sete tempos diários de oração são o centro da vida do carmelo. Às seis da manhã (as monjas levantam-se às cinco e meia), rezam-se as vigílias, seguidas de oração pessoal silenciosa e das laudes, ou oração da manhã, antes de novo silêncio e da hora tércia. Ao meio-dia rezam-se a hora sexta e noa, juntas por uma razão prática. Às 17h25, são rezadas as vésperas (oração da tarde), seguidas da missa. Às 20h45, a oração da noite, ou completas. Há uma diferença deste carmelo para a maior parte dos mosteiros de clausura: a oração é aberta a quem nela quiser participar. A opção vem de há uns 15 anos, ainda no Porto, tomada pela comunidade - qualquer decisão sobre a vida do carmelo é de todas as monjas. E traduz-se mesmo na organização do espaço: o coro das monjas está no meio da igreja e junto das pessoas. "Queremos ser uma única assembleia, com estilos de vida diferentes. ""Pretendemos ajudar as pessoas a encontrar Deus, sem deixarmos o nosso estilo de vida", explica a madre Vera Maria. De vez em quando, aparece alguém de manhã ou na oração do meio-dia. Ao domingo, vem muita gente para a missa, mas na oração da tarde - é hoje o caso - há uma dúzia de pessoas (mas chega a haver 15 ou 20) a rezar com as monjas. Há solenidade em cada gesto. Antes de rezar, procura-se a tranquilidade necessária para o tempo de oração. As monjas vão-se concentrando na statio. Uma espécie de antecâmara onde cada uma veste a capa branca, que pretende ser símbolo de festa, e pára por quatro ou cinco minutos. Voltam-se todas para a parede de frente, onde uma iconóstase ajuda a concentrar: o ícone da Trindade, de Rubliov, mais um de Nossa Senhora, outro com o rosto de Jesus e ainda dois anjos. À excepção da imagem da Virgem do Carmelo, as esculturas no mosteiro estão guardadas para o claustro. "Preferimos os ícones. O facto de não ser tridimensional torna-o mais imaterial", explicara Vera Maria de manhã. "O ícone é uma escrita, não uma pintura, é catequese, uma presença do que representa. "Quando o canto irrompe, com o órgão, começa a oração. Os hinos das laudes e das vésperas são cantados alternadamente em duo, soprano e contralto, ou em coro. A música parece nascer de todos os cantos da igreja. A acústica da igreja amplifica o efeito, como um surround, um eco que devolve a harmonia. Se existem anjos, as suas vozes podem ser parecidas com estas. Ao lado de cada partitura, há uma reprodução de um ícone. A luz, filtrada pelos vitrais, espelha-se no mármore branco do chão. Na oração, seguem o ofício da liturgia das horas, que há séculos ritma a vida dos mosteiros. Mas no Carmelo do Coração de Maria cantam-se todos os salmos, ao contrário do que acontece em alguns conventos ou mosteiros ou no texto oficial da liturgia das horas, em que os textos são seleccionados. Há uma harmonia quando se sentam, quando se levantam. Ou mesmo quando os passos apenas deslizam, quase levitam, caminhando em fila, no final da oração, em direcção ao refeitório. Escuta-se apenas o canto do salmo 130: "Senhor, ouve a minha prece (. . . ) Em ti encontramos o perdão (. . . ) A minha alma volta-se para o Senhor, mais do que a sentinela para a aurora. "A comunidadeLugares de hospitalidade e solidãoSentam-se à volta da mesa comprida e rectangular, apenas interrompida pela cadeira e pelo ambão onde uma monja se senta a ler diariamente (excepto aos domingos) uma obra de espiritualidade ou teologia. Nesta semana, é à irmã Gabriela de Santa Maria que calha ler algumas páginas de Jesus - Uma Abordagem Histórica, do biblista espanhol José Antonio Pagola. Uma obra que alguns bispos espanhóis consideraram pouco ortodoxa, quando foi publicada há pouco mais de dois anos. No excerto de hoje, Pagola fala do modo como Jesus lidava com os mais desprotegidos do seu tempo, considerados impuros: "Jesus introduzia assim uma verdadeira revolução. O "código de santidade" gerava uma sociedade discriminatória e exclusiva. O "código da compaixão" proposto por ele gerava uma sociedade compassiva, acolhedora, inclusiva, mesmo até para esses sectores sem honra nem respeitabilidade. A experiência que Jesus tinha de Deus não levava à separação ou à exclusão, mas ao acolhimento, ao abraço e à hospitalidade. "Foi por se sentir acolhida que a irmã Anabela de Jesus, 39 anos, decidiu vir para o carmelo de Bande, há quatro anos e meio. Licenciada em Educação Social, trabalhou com sem-abrigo e, antes, como operária fabril. Uma passagem por Taizé, a comunidade monástica ecuménica do Sul de França que reúne católicos e protestantes, fê-la pensar que estava a "fugir do projecto de Deus". É uma das três que ainda não fizeram a profissão solene, ou os votos perpétuos, como se dizia - o tempo de preparação dura até seis anos. A irmã Maria do Rosário, 33 anos, no mosteiro há cinco, fará a profissão solene em Julho. Chegou a estagiar como professora do ensino básico. Mas, como sempre sentira o apelo da vida religiosa, decidiu experimentar o carmelo depois de uma passagem da madre Vera Maria pela sua paróquia, em Vale de Cambra. "Às vezes tenho saudades dos meus meninos, mas Deus preenche tudo. "Numa comunidade predominantemente jovem, a irmã Maria de São José está há mais tempo no mosteiro: 48 anos. Leva-nos pelo caminho do pequeno cemitério, por entre medronhos, frutos silvestres, morangos, framboesas, ervas aromáticas, plantas medicinais, cerejeiras e um jardim das oliveiras que teimam em crescer. Há ainda outro pequeno bosque com noivas-da-floresta, árvores de folha caduca e tronco branco. "Quando fazemos o nosso retiro, tudo isto é repousante. " Adivinha-se que sim, com este final de tarde tranquilo e a luz límpida que agora domina o carmelo. No cemitério, repete-se de novo o motivo da cruz da ordem de Cristo e ali repousam já três corpos: duas monjas do carmelo e o padre Manuel, monge que viveu quatro anos num dos eremitérios junto da hospedaria - e que servem para as irmãs passarem alguns dias no ano numa solidão mais vincada. Os corpos são enterrados sem urna, outra opção da comunidade. A prioreza desce à cova para receber o corpo. O coveiro vai deitando terra lentamente, monjas e magnólias por testemunhas. "Tripeira de gema", a irmã Maria de São José não sabe ainda se irá à missa com o Papa, no Porto. Lá estarão seguramente algumas das monjas. "Pela presença e para mostrar que estamos com ele, com tudo isto que se está a passar na Igreja. "Na cela, daí a pouco, a irmã Maria de São José lê os escritos de Isabel da Trindade (1880-1906), carmelita francesa que viveu apenas cinco anos no mosteiro. A cela é o lugar da solidão. "O sítio onde mais gostamos de estar. " Um lugar despojado: além da cama e da casa de banho, há um canto de oração, uma secretária de leitura e duas pequenas mesas. "Caminhai em Jesus Cristo, enraizada nele", escrevia Isabel da Trindade. "A nossa vida é como a raiz, uma vida escondida. . . ", diz agora a irmã Maria, que esteve quase para fazer Economia, tirou o curso para ser professora primária e acabou com "Jesus no meio do caminho". Foi quando um dia se viu a rezar, "qualquer coisa" lhe tocou e passou "uma noite sem dormir". O espaçoDespojamento e criaçãoO despojamento é o traço arquitectónico do mosteiro e da igreja. Os vitrais da charola da igreja vieram do Porto. Representam símbolos marianos, eucarísticos e as armas do carmelo - a flor-de-lis da fundadora, Mariana Ignez de Sampayo y Mello Bourbon, da família dos Bourbons; o escudo martelado, por ser uma ordem medieval; a cruz de Cristo, porque a família de Mariana Inês estava muito ligada à Ordem de Cristo; e a esfera armilar, símbolo do diálogo com outras culturas. "Já não só com outras culturas, mas também com outros credos", diz Vera Maria. E esta dimensão traduzida nas armas "corresponde à vocação da comunidade". Os vitrais da parede lateral são contemporâneos, pintados pela madre do carmelo. Três dípticos, sempre com inspiração bíblica, que falam da criação do mundo: "O espírito de Deus pairava sobre as águas"; da nova criação trazida por Jesus: "Eis que faço novas todas as coisas"; e da vida monástica como radicalidade do cristianismo: "O homem que coloca a confiança em Deus é como a árvore plantada à beira do rio. . . "O presbitério, a zona elevada onde está o altar, é circular, uma tradição em muitas igrejas abaciais. O altar é uma pedra única, de oito toneladas. Não há outros adornos que não sejam alguns vasos e jarras com plantas e flores e dois ícones. Jesus crucificado e ressuscitado está no maior. É semelhante a uma pintura de afresco que se pode ver na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, está a ser "escrito" também pela madre Vera Maria. "Jesus não morreu sozinho, houve testemunhas cósmicas - o sol e os astros escureceram", diz, justificando a presença do sol e da lua. A mãe de Jesus também é representada, em contemplação. A pintura mostra um contraste, entre a noite do universo e a luz que irradia das testemunhas. E, em grego, lê-se: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. "No segundo, está Maria Madalena. "Se calhar é a primeira apóstola, é ela que vai anunciar a ressurreição de Jesus", diz a madre do carmelo. Na frase, a expressão de dúvida apenas suaviza a convicção. O outro espaço importante é o claustro. Uma fonte no meio, a recordar as referências à "água viva", tantas vezes presente na Bíblia. De novo a cruz de Cristo, omnipresente no mosteiro. "Queríamos continuar a mergulhar raízes na grande tradição monástica. O claustro une os lugares comuns e as celas. É quadrado, como símbolo do paraíso. "Com a ajuda do arquitecto Alexandre Rodrigues, o carmelo fez também opções ecológicas: águas sanitárias aquecidas por painéis solares, a igreja mantida a 15 graus de temperatura com aquecimento geotérmico. A enfermaria comunica com o mosteiro só por um lado, permitindo visitas de familiares quando há doenças terminais ou mais prolongadas. Ao fundo da quinta, 200 metros andados, está a hospedaria. Para silêncio, reflexão e paz, aberta a crentes de qualquer religião e a não-crentes, diz a madre do carmelo. São 13 quartos, com as regras do respeito pelo silêncio e da participação nas orações. No caminho, encontramos José Freitas Rodrigues e a mulher, Ana Maria. Ele, piloto aposentado da Força Aérea, ela, doméstica. São os pais da irmã Filipa. Passam aqui algumas temporadas, tomando conta da hospedaria, fazendo pequenas tarefas, dedicando-se à comunidade e à liturgia - José Rodrigues compõe também e alguns dos cânticos são de sua autoria. E canta, nas orações em que participa: "Estou aqui para lhes dar música. Se ouvirem uma irmã de voz grossa na igreja, sou eu", avisa. Também eles trocaram a longa viagem que queriam fazer quando o marido se reformou pela dedicação ao mosteiro, depois da prioreza lhes pedir esse apoio. Mas não é um truque para ver a filha: "São todas nossas filhas. Vemos a irmã Filipa uma vez por mês, como acontece às outras irmãs com os seus familiares. Às vezes é mais fácil falar com as outras. "Filipa confirma: "Quando por vezes me cruzo com eles na quinta, digo bom dia senhor Rodrigues, bom dia dona Ana Maria. "Às sete da tarde é a ceia ligeira. Antes de uma hora livre, que cada uma ocupa livremente - pode ser a passear, a rezar, a escrever, a tratar da sua roupa, a ler algum livro da vasta biblioteca. Depois da oração de completas, sobram uns 30 ou 40 minutos para pequenas tarefas, antes de todas apagarem a luz às 22h. Na oração de vésperas, ao final da tarde, as monjas cantavam o salmo 138: "Senhor, tu conheces-me, sabes quando me sento e quando me levanto; vês-me quando caminho e quando descanso; estás atento a todos os meus passos. "
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
David Servan-Schreiber: "A minha saúde é muito melhor do que antes de ter tido cancro"
Todos somos portadores de células cancerosas, a partir de certa idade. Mas apenas uma pessoa em cada quatro vai morrer de cancro. Qual é o segredo das outras três? As suas defesas naturais, afi rma o médico e cientista francês David Servan-Schreiber. E é possível estimularmos essas defesas naturais através do nosso estilo de vida, para prevenir ou lutar contra o cancro. (...)

David Servan-Schreiber: "A minha saúde é muito melhor do que antes de ter tido cancro"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.125
DATA: 2010-05-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Todos somos portadores de células cancerosas, a partir de certa idade. Mas apenas uma pessoa em cada quatro vai morrer de cancro. Qual é o segredo das outras três? As suas defesas naturais, afi rma o médico e cientista francês David Servan-Schreiber. E é possível estimularmos essas defesas naturais através do nosso estilo de vida, para prevenir ou lutar contra o cancro.
TEXTO: David Servan-Schreiber tem 49 anos e formou-se em Neuropsiquiatria pela Universidade de Pittsburgh, nos EUA. Aos 31 anos, soube que tinha um tumor maligno no cérebro. Mas ainda cá está e diz-se de óptima saúde. Sorte? Nada disso, explicou em duas conferências – uma para médicos, a outra para o público – durante o 3. º Congresso de Medicina Antienvelhecimento, que teve lugar há uma semana, em Cascais. A luta de Servan-Schreiber contra a doença mortal com a qual convive há 18 anos levou-o a tentar desemaranhar o novelo dos inúmeros estudos científicos sobre o cancro e a tentar dar-lhe sentido, para perceber o que torna umas pessoas mais resistentes ao cancro do que outras. As suas respostas estão no livro Anticancro – Uma nova maneira de viver, editado em Portugal pela Caderno em 2008 e que se tornou um best-seller mundial. Servan-Schreiber é um divulgador espectacular e convincente. Mas há ainda muita coisa por demonstrar cientificamente nas suas ideias. Até agora, tudo o que afirma baseia-se em estudos epidemiológicos ou em experiências in vitro e em animais. Mas argumenta que as mudanças de estilo de vida que preconiza não podem fazer mal nenhum – e que, se funcionarem, mais vale começar a aplicá-las já do que esperar. Antes de escrever o livro receou que a sua abordagem desse falsas esperanças a outros doentes com cancro. Mas percebeu que o que acontece é que eles vivem numa situação de “falso desespero”, porque sentem que não têm qualquer controlo sobre a sua doença e a sua vida, e decidiu transmitir-lhes as suas “mensagens de verdadeira esperança”. Como um verdadeiro guru. Você teve um cancro. Qual é a sua história?Eu era um jovem médico universitário, cientista, director de um laboratório de estudo das emoções através de imagens do cérebro obtidas por ressonância magnética. Tinha 31 anos e era muito ambicioso. Num fim de tarde, o voluntário que devia submeter-se à experiência desse dia faltou e decidi ser eu a entrar no scanner para o substituir. Foi assim que descobri que tinha um cancro do cérebro. Tive muita sorte, porque o tumor foi apanhado muito cedo e fui operado bastante depressa. Mas o cancro voltou. Tudo correu bem até à recaída, há dez anos, em 2000. Dessa vez foi mais grave, porque o tumor era maior e mais agressivo. Tive de ser novamente operado e de fazer quimioterapia e radioterapia. Foram a cirurgia e os outrostratamentos do cancro que lhe salvaram a vida das duas vezes. Claro. Mas foi nessa altura que pensei que provavelmente isso não seria sufi ciente: as estatísticas de sobrevivência a este tipo de tumores não são boas. E decidi ver o que eu próprio podia fazer para reforça a capacidade de o meu corpo combater a doença. No seu livro Anticancro descreve uma série de regras simples de estilo de vida que podem ajudar a combater a proliferação cancerosa. Quais são?Ter atenção ao que comemos para que, se possível, a comida que ingerimos três vezes ao dia contribua para fazer abrandar a proliferação cancerosa. Como se tomássemos pequenas doses de medicamentos todos os dias. Não têm qualquer efeito tóxico – antes pelo contrário, só trazem benefícios para a saúde. Também é preciso manter um certo nível de actividade física, pois isso estimula todas as capacidades promotoras da saúde do corpo – e em particular o sistema imunitário e a eliminação pelo organismo das substâncias cancerígenas. Por outro lado, temos de aprender a gerir melhor o nosso stress através de métodos simples de relaxação e de relacionamento com os outros. E, por último, devemos evitar ao máximo os produtos tóxicos cancerígenos. Ao ler o seu livro, fi camos com a ideia de que ter um cancro para si foi quase uma coisa boa, que melhorou a sua vida. Sem dúvida. E muitas pessoas que tiveram cancro dizem a mesma coisa – que agradecem ao seu cancro por lhes ter permitido pôr ordem na sua vida. Isso também acontece, aliás, às pessoas que sofreram um enfarte. É uma grande martelada, mas leva muitas pessoas a arrumar as suas vidas. Mas o que mais me espanta é que a minha saúde é muito melhor hoje do que antes de ter tido cancro. O meu estado de saúde é melhor aos 49 anos do que quando tinha 28 ou 29 anos. Afi rma que assistimos actualmente a uma epidemia de cancro, com maior incidência nos jovens do que no passado. Os médicos estão cientes disto, nomeadamente em relação ao cancro da mama. Quais são as causas desta epidemia?Uma mistura de factores alteraram completamente o nosso estilo de vida a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em particular nas sociedades da Europa ocidental e da América do Norte. A nossa alimentação foi totalmente transformada, passámos a ter muito menos actividades físicas, as redes sociais e de amizade foram-se degradando – e reduzimos a nossa exposição ao sol (e, portanto, os níveis de vitamina D no organismo). Ao mesmo tempo, começámos a ser expostos a produtos químicos com uma intensidade sem precedentes. Juntos, todos estes factores criam um terreno propício à progressão do cancro no corpo humano. Não diria que provocam forçosamente o cancro, mas criam um terreno propício. Fala-se muito da predisposição genética para o cancro e fica-se com a ideia de que há pessoas a quem calhou um “mau” número na lotaria genética. Um exemplo disso são os genes BRCA1 e 2, responsáveis pela maioria dos cancros hereditários da mama e do ovário. Mas, na sua opinião, o nosso destino não fica determinado à nascença. Acha mesmo que temos o poder de contrariar essa lotaria?O que nos dizem estudos recentes é que, se as mulheres que têm mutações nesses genes não fizerem nada de particular, o seu risco de contrair cancro da mama é de 80 por cento. Mas também nos dizem que, quanto maior a quantidade de legumes na alimentação dessas mulheres, mais pequeno o risco. E isso apesar das mutações: as participantes com mutações nesses genes que comiam as maiores quantidades de vegetais viram o seu risco de cancro da mama reduzido em 73 por cento em relação àquelas que comiam as quantidades mais pequenas. Cerca de 15 por cento dos cancros têm uma componente genética. Mas mesmo quando essa componente existe, os factores ligados ao estilo de vida desempenham um papel importantíssimo, tanto para fazer com que esses genes de cancro se expressem como para impedir a sua expressão. Na alimentação, o que é que promove o cancro?Para além do tabaco e do álcool, em primeiro lugar o açúcar e as farinhas brancas. É pena, porque as farinhas brancas são muito apetitosas. Mas no corpo elas transformamse imediatamente em açúcar. Depois temos os óleos de girassol, soja, milho; a carne e os produtos derivados de animais criados com rações à base de soja e de milho (em vez de pastagens). Do lado dos contaminantes químicos, certos pesticidas, certos produtos químicos presentes nos perfumes e nos cosméticos (parabenos e ftalatos), o tetracloroetileno (o solvente da limpeza a seco) ou o bisfenol A (BPA), que é libertado pelos plásticos duros quando são expostos a alimentos ou líquidos quentes. É uma agressão permanente. . . É. Mas isso não quer dizer que todas as pessoas que tenham bebido uma chávena de chá aquecido no microondas numa caneca de plástico duro vão morrer de cancro, porque existem imensos factores que podem compensar esse efeito. Também fazem parte da equação, do equilíbrio, o facto de ser fisicamente activo, de comer com frequência legumes anticancro, de ter bons níveis de vitamina D no organismo e uma rede social de qualidade. São os desequilíbrios que fazem aumentar as probabilidades de o cancro se desenvolver. Mas, apesar de todas estas mudanças supostamente perigosas de dieta e outras, a esperança de vida – e de vida com qualidade – aumentou nitidamente nas sociedades ocidentais. Isso não é paradoxal?A esperança de vida que aumentou foi a das pessoas que nasceram antes de 1950. A esperança de vida das crianças que nascem hoje nos Estados Unidos é inferior à dos seus pais. E é a primeira vez na História da humanidade que isso acontece. Aquilo a que chama alimentos “anticancro” – biológicos, em particular – continuam a ser mais caros do que os outros. Como comer “anticancro” quando se tem uma família para alimentar?Não é totalmente verdade que os alimentos biológicos sejam muito mais caros. Tem mesmo havido estudos sobre a questão. Mas, sobretudo, é preciso passar para uma alimentação de tipo mediterrânico, com quantidades muito mais pequenas de produtos de origem animal. Basta cortar na quantidade de carne que comemos para poupar dinheiro. Se substituirmos a carne por lentilhas e feijões, garanto que o orçamento alimentar da família diminui. E não somos obrigados a comer apenas alimentos biológicos. É melhor, mas não é vital. Mais vale comer brócolos, mesmo que tenham resíduos de pesticidas, do que não comer brócolos nenhuns. A carne não é importante para o crescimento das crianças?As crianças vegetarianas têm um crescimento tão saudável como o das outras. A alimentação tem de fornecer proteínas, mas uma mistura de feijão e de arroz, por exemplo, fornece a mesma quantidade de proteínas que um bife. Há uns anos, um grande estudo sobre suplementos de betacaroteno revelou-se não só decepcionante mas sugeriu mesmo que os comprimidos de beta-caroteno faziam aumentar a incidência de certos cancros. Por que é que os especialistas insistem neste tipo de estudos se, como já referiu, um único ingrediente não chega para combater o cancro?A medicina procura sempre extrair um agente activo. O que eu tento mostrar é que isso não faz sentido. O cancro é um desequilíbrio entre inúmeros factores que o promovem e inúmeros factores susceptíveis de o travar. Se pretendermos utilizar apenas um ingrediente, o mais provável é que não observemos qualquer efeito. Isso também vale para os ómega-3 [gorduras essenciais, contidas nomeadamente no peixe]? Explica que os ómega 3 são gorduras anticancro cruciais, mas sozinhos também não chegam?Não, não chegam. É óbvio. E o que é melhor, tomar um comprimido de ómega 3 ou ir buscar o ómega 3 aos alimentos?Ir buscá-lo aos alimentos. O peixe, por exemplo, que contém muito ómega 3, também tem outras coisas muito úteis, como o selénio, o iodo, para além de ser uma boa fonte de proteína animal sem muitos dos inconvenientes da carne. Considera o álcool como um agente de cancro, mas o vinho tinto como uma excepção. Mais vale engolir um comprimido de resveratrol [o ingrediente “anticancro” responsável pelos benefícios do vinho tinto], beber vinho tinto ou comer uvas pretas?Há menos resveratrol nas uvas do que no vinho tinto, porque a fermentação contribui para extrair o resveratrol das uvas. É difícil dar uma resposta, porque a vantagem dos comprimidos é que não contêm álcool. Mas é um facto que um pouco de vinho tinto (mesmo pouco!) parece contribuir para a eliminação do cancro e favorecer a saúde em geral. E não devemos esquecer que o vinho tinto é também benéfico para a saúde cardiovascular. Mas mal ultrapassamos certas doses, verifica-se o efeito contrário: o vinho torna-se promotor do cancro. Diz que as margarinas que fazem baixar o colesterol contribuíram para fazer aumentar não apenas a incidência do cancro, mas também a das doenças cardiovasculares. Não é o que costumamos ouvir. Acontece que podemos fazer diminuir o colesterol e ao mesmo tempo aumentar os riscos de doenças cardiovasculares – e é o que este tipo de margarina faz [contém ómega 6, uma outra gordura essencial que, em níveis excessivos, tem sido apontada como promotora de doenças cardiovasculares e de cancro]. A questão do colesterol é muito complexa, mas o nível de colesterol é de facto menos importante do que o equilíbrio ómega 3/ómega 6, porque não temos medicamentos para mudar este equilíbrio – que depende, portanto, unicamente da nossa dieta –, mas temos medicamentos para diminuir o colesterol. Fala-se muito do colesterol e não o sufi ciente do equilíbrio ómega 3/ómega 6. Se não devemos pôr nem manteiga nem margarina na nossa torrada do pequeno-almoço, o que é que nos resta?Azeite. É delicioso. Mas comer pão também não é uma grande ideia. Mesmo pão integral?O pão integral também não é a melhor escolha, tem de ser multicereais. E, mesmo assim, é muito mais aconselhável comer muesli (ou uma mistura de cereais e frutas) com um iogurte biológico ou de soja. Isso é que contém muitas coisas que vão estimular a saúde do nosso corpo, não o pão. Só deveríamos comer produtos frescos?O que é preciso evitar são os chamados ácidos gordos trans – que são gorduras que não ficam rançosas e, por isso, são muito utilizadas na indústria alimentar. Mas isso, toda a gente o diz. E se consumirmos conservas, é melhor escolher as que vêm em boiões de vidro. Também podemos comer alimentos congelados. Diz que os médicos continuam a transmitir aos seus doentes com cancro uma mensagem de “falso desespero”, ao dizerem que, em termos de estilo de vida, não há muito a fazer. Chegam a dizer que, para tal ou tal cancro, o doente pode continuar a fumar, porque isso não faz grande diferença. É possível mudar essa atitude “derrotista”?É o que tento fazer. Nas minhas conferências, falo de um estudo que mostra uma redução de 68 por cento do risco de cancro da mama em mulheres que aprenderam a mudar o seu estilo de vida. Mas, mesmo quando há um ensaio como este, ninguém ouviu falar dele. Porquê? Porque ninguém convida os médicos a passar dois dias em Cascais, com todas as suas despesas pagas, para se inteirarem dos benefícios das frutas e dos legumes, do jogging ou das técnicas de relaxação. Há muito pouco dinheiro para fazer estudos quando não há nada que possa resultar numa patente. Mas é preciso ter em conta que cada um destes elementos, isoladamente, pesa muito pouco na balança. Comer apenas brócolos não trava o cancro. Fazer jogging e mais nada não trava o cancro. É quando começamos a juntar todas estas coisas que obtemos resultados. Existe uma pressão sobre os médicos por parte dos laboratórios farmacêuticos para não falarem de alterações do estilo de vida?Não é preciso. Os laboratórios farmacêuticos não têm sequer de mexer um dedo, porque as barreiras que impedem que isto penetre a prática médica são muito efi cazes. Os médicos não recebem mais dinheiro por darem conselhos nutricionais aos seus doentes, antes pelo contrário, uma vez que acabam por passar mais tempo com cada doente. Considera-se livre do seu cancro hoje?Não. E não pensa que, no fundo, teve sobretudo sorte – pelo facto de o seu tumor ter sido operável e de a quimioterapia e a radioterapia terem resultado?Eu não sou uma experiência científi ca. O que digo no meu livro não se baseia no sucesso ou no fracasso do meu caso pessoal – e ainda bem. Não possuo nenhum método garantido a 100 por cento, não sei o que me irá acontecer daqui a três meses ou três anos. Mas isso não altera a validade do que digo. Tento pôr todas as chances do meu lado, mas em relação ao resto não tenho qualquer controlo. Claro que poderíamos dizer que tive sorte: quando olhamos para as estatísticas, há menos de dois por cento das pessoas com a mesma doença que eu e que estão hoje no mesmo ponto que eu. O que faz actualmente?Lancei um programa de investigação com o Centro de Estudo do Cancro MD Anderson de Houston [Universidade do Texas], para testar a minha abordagem através de medições biológicas. Queremos ver como é que as mudanças de estilo de vida modifi cam a natureza do terreno do corpo, fazendo com que as células cancerosas tenham menos hipóteses de proliferar. E estou a trabalhar num livro de receitas de cozinha, com indicações muito precisas em termos de alimentação. É que convém que o resultado seja saboroso. DicasAlguns ingredientes do estilo de vida "anticancro", a consumir em simultâneo
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Entrevista em 2008: "É como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada"
O escritor português deu uma entrevista ao Ípsilon em Novembro de 2008, um ano depois de uma doença grave. (...)

Entrevista em 2008: "É como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.25
DATA: 2010-06-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: O escritor português deu uma entrevista ao Ípsilon em Novembro de 2008, um ano depois de uma doença grave.
TEXTO: José Saramago num sábado à tarde. Sala aquecida, luz fria de um Inverno que ainda não é, chilreio de meninos que passam no bairro. Talvez de alguns pássaros, também. Ele parece ser maior do que a casa; melhor, as pernas parecem não caber no sofá, no espaço disponível. Troca-as, destroca-as, o joelho sempre erguido e pontiagudo. Tem ainda a imponência de um gigante. Mas agora seco, delgado - como o avô Jerónimo - o cabelo ralo, um fio de voz. De muitas palavras -ao contrário do avô Jerónimo. Nessa tarde, Saramago foi assim. Ganhou peso, tem uma espécie de protuberânciazinha no lugar da barriga. Há um ano julgou que morria. Pensou que não avançaria nas 40 páginas já escritas. Avançou. Ganhou peso. Ou, como Saramago diria, porque é muito ordenado no pensamento, ganhou peso, avançou. Chegou ao seu destino. Escreveu "A Viagem do Elefante". Saramago empenhou na escrita do livro a sua palavra e a sua vida -como se pode ler. Por agora, o destino é esse. Depois, não pode ser outro senão a morte. Conversa com um homem lúcido. O livro relata a viagem de um elefante, presente de casamento do rei Dom João III e Dona Catarina a Maximiliano de Áustria, de Lisboa a Viena. É uma "visita sentimental de um bruto paquiderme", que passa por Valladolid, o mar, Génova, as montanhas; Viena, por fim. Passa por lobos e desfiladeiros, aldeias curiosas, em ambiente de campanha. Atravessa a Igreja Católica sedenta de um milagre e as lutas internas com o luteranismo. O condutor do elefante não é aquele que conduz a história - esse papel fica para o narrador. Tem um nome indiano que significa branco. E o elefante, quem é? E para onde vai, além de Viena?Começamos pelo livro: "A ressurreição, afinal, estava sobretudo, dependente da livre vontade de lázaro e não dos poderes milagrosos, por muito sublimes que fossem, do nazareno. Se lázaro ressuscitou foi porque lhe falaram com bons modos, tão simples quanto isso". Na sua doença, foi você que quis viver ou foi Pilar [mulher do escritor] que lhe falou com bons modos? Eu não lhe podia falar com maus modos. Nem tinha forças. E ela muito menos. Comunicávamos com as frases que eu conseguia arrumar na minha cabeça, entre o cá e o lá em que me encontrei numa fase -demasiado longa, para meu gosto. Salvarme, transformou-se no objectivo e desejo de todos os meus amigos, e, no caso de Pilar, numa obsessão. Enfim, escapei. Dizer que lhe devo a vida. . . Devo-lhe a vida a ela, aos médicos, a toda a gente que me manteve à tona, e também devo a vida a mim mesmo. Antes disso, estava entre a consciência e a inconsciência? Tenho a memória de que qualquer coisa na minha cabeça entrava em deriva, e eu deixava-me ir. Não era ir atrás dos pensamentos, porque, em rigor, não posso dizer que estava pensando. No quarto, já com largos períodos de consciência total, ficava por vezes numa espécie de limbo. E eu via isso. Era como se fosse um ecrã. A comparação maior é o céu negro com quatro estrelas. Mas no meu caso não eram estrelas. Eram simplesmente quatro pontos brancos, dispostos em quadrilátero, não regular. Era para mim claríssimo, e defenderia essa ideia contra quem fosse, que eu era aquele quadrilátero. Como se se visse de fora? Sim. Esta complicadíssima experiência teve outro efeito: usamos uma linguagem que não é sempre a mesma, que vai variando consoante os tempos que vivemos. Somos um armazém de sedimentos, ou extractos linguísticos. São os que usámos e retivemos nos diferentes períodos da nossa vida. Claro que quando estava na aldeia, na minha adolescência, tinha uma linguagem, não só da época como do lugar. E ficou cá. Quando a minha vida mudou, em Lisboa, e aos 24 anos publico um livro, já era outra pessoa, outra linguagem, outro modo de entender as coisas. No livro, duas personagens mudam de nome. O condutor do elefante passa de Subhro a Fritz e o elefante de Salomão a Solimão. Como se uma palavra diferente dissesse respeito a uma outra identidade. Exacto. O que é que aconteceu durante a minha doença? É que a ordem destes sedimentos alterou-se. Encontro-me diante de uma evidência, que demonstraria com o próprio livro. Este livro está escrito de uma maneira que é simultaneamente moderna e quase arcaica. Algumas coisas que estavam lá no fundo, nessa revolução interior de extractos linguísticos, passaram à superfície. Na hora de escrever o livro apresentaram-se-me construções frásicas, certas utilizações de verbos, palavras que não recordava ter usado nos últimos 40 anos. É pela palavra que nos fazemos, que nos criamos, que nos salvamos. Não temos outra coisa. É que não temos outra coisa. Somos as palavras que usamos. A nossa vida é isso. Se eu digo: estou pensando, e me perguntar: "em quê?", a minha resposta só pode ser com palavras. Não posso tirar o pensamento da cabeça e pô-lo em cima da mesa: aqui está o que eu estava pensando. O livro anterior a este é um livro de memórias, em que se volta, sobretudo, para a infância -um sedimento muito antigo, onde as palavras eram outras. O inconsciente tê-lo-á guinado para aquele lado? Como é que passa de um livro ao outro? O livro d' "As Pequenas Memórias" [2006] é escrito com linguagem que uso hoje. No caso d' "A Viagem do Elefante" é como se houvesse outra mão que me guiasse. Para que eu aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e expressões. O que mais caracteriza este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O narrador é uma personagem numa história que não é sua. Sempre defendi a ideia de que o narrador não existe. Neste livro resolvo a questão -pelo menos resolvo-a para mim, que é a única coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim, mas autor-narrador, não dissociado. Assumo tudo. É o narrador-autor, aquele que conduz a viagem. Mas está também nas outras personagens? No cornaca (aquele que guia o elefante), no comandante (que se pode imaginar ser um alter-ego seu), no elefante. Provavelmente estou em todas as personagens. Os dados históricos comprovados que se referem à viagem deste elefante cabem numa página, e ainda sobra. Portanto, este livro é um livro de invenção. As personagens históricas, o arquiduque, a arquiduquesa, D. João III, a Rainha Catarina, vejo-os mais como comparsas -embora estes últimos tenham um papel, o que têm para dizer tem importância no contexto do livro. O resto, o capitão de cavalaria, os austríacos, toda a gente que se vai encontrando pelo caminho, são produto da imaginação. Eu não seria o arquiduque, embora certas manifestações poderia aceitar como minhas. A arquiduquesa é uma sombra que passa, destinada a parir 16 vezes. E temos o elefante. É fácil olhar para ele como metáfora da própria vida. É. Não há nada que o elefante faça que possa ser interpretado como consequência de um pensamento seu. Diz, aliás, ao longo do livro, que não se pode saber o que o elefante pensa. Ele não tem palavras, não usa palavras. Se os elefantes pensam, eu não sei como é que pensam. Se nem sei muito bem como é que pensa o meu cérebro. . . O Torga, nos "Bichos", que são uns contos magníficos, antropomorfizou tudo -aqueles bichos pensam. Eu não queria isso. Queria que o meu elefante fosse levado de Lisboa a Viena como um animal que não sabe onde o levam, que não tem nenhuma ideia de qual possa ser o seu destino e que vai andando, porque outros o levam, e também vão andando. Realmente, é um pouco como a vida. O que dá sentido a este livro é o final -o final da vida deste animal, Salomão. Como tinha que acontecer, esfolam-no. A pele é oferecida pelo arquiduque a um conde qualquer. E há aquele detalhe medonho: de usarem as patas para pôr bengalas e bastões. As mesmas patas que poderiam ter produzido um milagre, no miolo do livro. Sem isso, provavelmente o livro não existiria. A viagem do elefante, a autêntica viagem, é o que o leva a isso. As suas pernas andaram milhares de quilómetros, estiveram na Índia antes de o trazerem para Lisboa, serviram-no. E essas mesmas pernas são cortadas e transformadas irrisoriamente num recipiente para pôr as bengalas, os guarda-chuvas, as sombrinhas. Esse é o destino do elefante que faz essa viagem, com episódios épicos, e que acabou ali. A epígrafe do livro acompanha isto: "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam". Claro que em termos latos, aquilo que nos espera é sempre a mesma coisa: a morte. Neste caso, não é só a morte, é o destino final. Caricato. Disseram-me que até há pouco tempo, essas patas ainda estavam no lugar onde tinham sido postas. Escreve na primeira parte do livro: "É a lei da vida: triunfo e olvido". Perguntam o que vai acontecer ao elefante, e a resposta é: vão dar-lhe umas palmadas -que nós diríamos nas costas -, vai haver muita gente nas ruas, e depois esquecem-se dele. Consigo, também vai ser assim? Inevitavelmente. Não vale a pena que tenhamos ilusões. Pode não acontecer em 50 anos, e talvez em 100 anos ainda haja quem me leia. Depois passo a ser um nome. Um nome que algum excêntrico vai ler e conhecerá. Quem é que, no momento em que estamos aqui a conversar, está a ler o Camões? -para além dos que tenham de lê-lo por obrigação. Quem é que está a ler o Gil Vicente, Dom Francisco Manuel de Melo, ou Padre António Vieira? Quem é que tem paciência para ler sermões, mesmo que eles sejam um esplendor? Desde quando tem a noção de que a sua vida será também triunfo e olvido? Desde sempre. Este pendor relativizante começou por mim mesmo. Depois do "Ensaio sobre a Cegueira" disse que se pudesse ser recordado por alguma coisa no futuro, que me recordassem como o criador do Cão das Lágrimas. Já vê que é pedir bastante pouco. . . Ninguém escreve para o futuro, ao contrário do que se julga. Somos pessoas do presente que escrevemos para o presente. Também pode acontecer que os livros deixem de ser livros e que o nome do autor continue como uma referência. Abrimos uma chaveta para dizer: José Saramago, aquele que inventou o Cão das Lágrimas, escritor, comunista. Pensamos nas palavras cardeais do seu universo: ironia, compaixão, imaginação. Acabamos por converter-nos em conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir -naquilo que deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm sobre aquilo que deixamos, e que podem não coincidir com as nossas. Mas sobre isso não podemos nada, já não estamos cá. De qualquer forma, o olvido está garantido, mesmo que não seja total. Uma das coisas que me dá uma satisfação íntima. . . O meu avô morreu em 1948, a minha avó viveu ainda uns bons anos mais. Aí, o processo de esquecimento começava exactamente no momento em que cada um deles morreu. Dá-me uma satisfação que talvez nem saiba exprimir o facto de ter-lhes dado uma vida. Ao recordá-los, ao nomeá-los. Eu não deixei que morressem. O nome deles nunca mais seria citado, nunca mais se falaria nisso. A família está reduzida a quase nada: estou eu, a minha filha, um vago primo que talvez ainda os recorde. Estavam condenados a desaparecer já. Escrevi sobre eles. E em qualquer parte do mundo, alguém que se interesse por aquilo que faço, já sabe que tem que aguentar com os meus avós. Citou o seu avô no discurso que fez na Academia Sueca e apontou-o como o homem mais sábio que conheceu. Foi o princípio da minha conferência. E aí deixo o nome deles: Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha. Falar deles nestes termos pode levar a uma certa idealização. E sim, servindo-me deles como personagens literários, idealizeios. Mas não imaginem que eram extraordinários: eram pessoas comuns. Eram analfabetos. Porque é que ele era para si o homem mais sábio que conheceu? Porque eu era garoto. Era um homem alto, seco, delgado, de poucas palavras. Olhava para ele, não como se fosse o super-homem, ou um anjo caído do céu, porque era um homem, um camponês, não conhecia uma letra; contudo, como não tinha outros mestres, além dos da escola primária, aquele, sem que alguma vez lhe tivesse chamado isso, foi um mestre de vida. O próprio não sabia que era mestre, eu próprio não sabia que era seu discípulo; simplesmente vivíamos juntos na mesma casa. É possível que haja aqui muita elaboração mental. Mesmo que assim seja, no centro da questão está. . . O amor. Também. Eles não eram muito carinhosos. Não tinham tempo nem tinham sido educados para a expressão do afecto. Já muito tinham em que pensar -tendo comido ao almoço, se tinham comida ao jantar. Chamemos-lhe o momento mágico da infância para resolver esta questão -que não fica nada resolvida, claro. Um pouco como o narrador-Saramago que resolve no livro uma coisa por elipse, com um plof! Imagine se eu tivesse que resolver o processo. . . assim não: plof, e já está! Falei de imaginação, lucidez, ironia, compaixão, que comummente se dizem ser os pilares da sua narrativa. Quando recuperou da doença, temeu ter perdido alguma destas faculdades? Não. No que tem que ver com ironia e humor, nos diálogos que mantinha com os médicos usava uma ironia por vezes agressiva. A Pilar olhava para mim com os olhos esbugalhados; não era a dizer como é que eu me atrevia -estávamos a falar de igual para igual; mas afinal de contas estava muito vivo na minha cabeça. O corpo, estava um desastre, os pulmões encharcados, a perder peso a cada hora que passava, até aos 51 quilos com que saí do hospital. A prova de que não devo ter perdido nada do que era meu antes está no próprio livro. Mas isso só percebeu na escrita do livro? Quando partiu para ele, tinha uma insegurança de algum tipo? O livro foi escrito em duas fases. A primeira desde Fevereiro do ano passado até ao Verão, em que escrevi umas 40 páginas. Depois o meu estado agravou-se e o estado em que me encontrava tirou-me o apetite de escrever. E nisto passaram-se meses. No fim de Outubro, fui quatro dias a Buenos Aires - um disparate. Praticamente não comi. A certa altura meteu-se-me na cabeça que queria maçãs assadas. Mas é impossível encontrar na Argentina maçãs para assar e alguém que as saiba assar. Vim de lá muito mal e fui para uma clínica em Madrid, onde me fizeram uns quantos exames. Não acertaram com o diagnóstico. Fomos para Lanzarote. Aí entrei na rampa e comecei a deslizar para o fundo. Não tive uma dor, não posso dizer que sofri, dá mesmo a impressão que não estava lá. O meu estado era de tal ordem que no hospital tiveram dúvidas em aceitar-me. Porque não queriam que morresse no hospital deles! [riso] Se eu queria morrer, que fosse morrer noutro sítio! Aí a Pilar armou-se em Joana D'Arc e convenceu-os de que não podiam fazer isso, e revelaram-se pessoas e médicos extraordinários. Esteve três meses no hospital. Quando voltou a casa, de quanto tempo precisou até voltar a escrever? Eu era uma sombra. As minhas pernas eram incapazes de suster-me, agora imagine andar. . . Vinte a quatro horas depois já estava sentado à mesa a trabalhar. Porque é que escrever foi indispensável? Aquele trabalho tinha sido interrompido. Durante o tempo em que estive doente cheguei a dizer à Pilar: "Não sei se vou conseguir acabar o livro". A Pilar, falando com os médicos, chegou a dizer-lhes: "Garantam-lhe a vida por mais três meses para que ele possa terminar o livro". Há que dizer que três meses não bastariam. A Pilar sabe pedir. . . Sabe falar com bons modos. . . Sabe, sabe. A Pilar, se quer alguma coisa, é irresistível! [riso] Essa dedicatória que pus, "a Pilar que me agarrou pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço" [na verdade, o que está escrito no livro é: "A Pilar, que não deixou que eu morresse"], figuradamente é isso. Curiosamente, a palavra pilar aparece no livro uma única vez, para dizer "pilar da fé". Um pilar é algo que nos sustém. É o pilar da sua vida? Foi, tem sido, e espero que continue a ser o meu pilar. Além de ser intimamente a minha Pilar, é também o meu pilar. Voltemos à necessidade de 24 horas depois estar a trabalhar. Era uma forma de manter-se vivo? Vivo estava eu. Não era o corpo que queria escrever, era a cabeça. Essa ideia -não sei se vou conseguir acabar o livro -continuava cá dentro. A primeira coisa que fiz foi rever tudo o que estava escrito. E corrigir. Se me pergunta: tinha cabeça para correcções? Tinha cabeça para o que fosse. Quando cheguei ao fim dessas correcções, engatei a história, e terminei o livro no dia 12 de Agosto. É um livro muito luminoso. É surpreendente, sabendo de onde vem. . . Embora a mim não me surpreenda. Tenho uma capacidade de distanciamento muito, muito grande. E neste caso, um distanciamento em relação ao doente que tinha sido, ao convalescente que continuava a ser. Não reflecti: posso ou não posso escrever. Já se veria se podia. Abri o computador, procurei o que estava há meses parado, numa certa palavra, e recomecei sem dramatismos. Detesto dramatismos. Detesto aquilo que os escritores cultivam muito: a relação dramática com a escrita. Porque é que detesta esse dramatismo? Porque acho que é falso. Fala como se o que faz fosse simplesmente um ofício. Escrever é um trabalho. Da mesma maneira que um médico, o que faz, é um trabalho. Essas histórias em volta da página branca, o horror da página branca. . . No seu passado de editor ou jornalista estava em contacto directo com as palavras; mas era para si um ofício diferente. Não é a mesma coisa estar no "Diário de Lisboa", e escrever o editorial, ou no "Diário de Notícias", e escrever os meus apontamentos; mas não difere muito. Num caso e noutro estou a usar as palavras, e as palavras de um romance são as mesmas, vêm do mesmo depósito de palavras. Quando eu era um escritor que ninguém conhecia já pensava: isto é um trabalho. Eu poderia ter as melhores ideias para livros, as inspirações mais fulgurantes, mas tenho que as pôr no papel. Pode acontecer, e acontece, que aquilo que eu julgava fulgurante afinal não o é tanto. Isso é trabalhar a forma. Quem trabalha a forma trabalha o conteúdo, quem trabalha o conteúdo trabalha a forma. Comparo o trabalho ao computador com o trabalho do oleiro. O oleiro agarra num bocado de barro, põe-no no torno, o torno gira e ele começa a trabalhar o barro até chegar à forma que quer. Há qualquer coisa de artesanal com o trabalho no computador. Não teve dificuldade em retomar o fio, em engatar, como disse? Nenhuma. Não tem virtude nenhuma. É simplesmente uma maneira de ser. Você está a ver a excelente ocasião que perdi para fazer do reatamento do meu trabalho um drama, uma angústia, uma ânsia, e agora como é que vai ser?, vou ser capaz? Nunca foi um angustiado, pois não? Nunca, nunca, nunca, nunca. E ainda bem. Tive os meus momentos de abatimento, mas entrar em depressão, nunca entrei. O que é que o segurou? O que é que fez com que nunca caísse em depressão? Já não o pensava há muitíssimos anos, e é simplesmente uma frase, mas é como se houvesse dentro de mim uma parte intocada. Ali não entra nada. E que se traduz numa certa serenidade, que se acentuou com a doença. Se alguma coisa pude aproveitar dela foi este sentimento de extrema serenidade. Passei pelos momentos maus e bons que todas as vidas têm, mas nunca perdi esta. . . , não quero chamar-lhe segurança de mim mesmo. . . É um pouco como o olho do furacão: em redor é morte e destruição, mas ali o vento não sopra. Essa noção, de ter essa parte intocada, tem-na desde quando? Desde que é possível ter consciência de uma coisa como esta. Pode ter sido aos 30 anos -ponhamos assim. Mas quando tive consciência, percebi que já antes era assim. Que auto-estima tinha esse homem que está para trás? O homem que foi na primeira parte da sua vida. Isso que descreve, parece ser uma coisa por sua conta, autónoma. De certo modo. Eu tinha 18 ou 19 anos e tinha um grupo de amigos -como éramos cinco, chamávamo-nos Pentágono! E um dia conversando sobre umas quantas coisas sérias -o que é que era a vida? -disse esta frase que recordo tal qual e que me ficou para toda a vida: "Aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter". Na boca de um rapaz, nos anos 40, uma frase como esta parece reflectir um fatalismo radical. Falame de auto-estima: creio que sempre a tive e que esta frase pode ser interpretada nesse sentido. Como nunca fiz projecto de carreira, como nunca fui uma pessoa ambiciosa, como na minha vida não houve cálculo, realmente não fiz nada para que as coisas acontecessem. A não ser o trabalho que tinha de fazer a cada momento. Fez todos os trabalhos com o mesmo empenho? Fazia o melhor que sabia e podia, quer fosse na oficina de serralharia onde comecei, quer nas actividades que vieram depois. Vou contar-lhe uma coisa: o Nataniel Costa era o director editorial da Estúdios Cor. Encontrávamo-nos no Café Chiado. Eu não tinha quaisquer credenciais. Tinha os meus amigos, os tais do Pentágono -portanto, ficava numa mesa à parte. E ouvia os outros, os Abelairas, essa gente, ali reunida. Passado tempo, o Nataniel entrou na carreira diplomática e falou comigo. Seguimos juntos pelo passeio, em direcção à Brasileira. "Queria perguntar-lhe se está disposto a ocupar o meu lugar na editora enquanto eu estiver ausente, e depois logo se verá". Porque me dizia aquilo a mim? "Não faltam pessoas a quem poderia ter falado; mas não tenho a certeza de que não aproveitassem essa circunstância para me apunhalarem pelas costas". Isto é dos momentos mais importantes da minha vida. Alguém que não tinha sido pago para isso nem tinha razões afectivas para o fazer, disse o que disse. Além de confiarem na sua lealdade, foi o início de um período, em que foi editor. É como se pudesse dizer-me: tenho razão em ter feito a minha vida como a fiz até hoje. Durante anos escrevíamo-nos, trocávamos ideias e sempre nos entendemos sem o mínimo atrito, nunca houve roçadura de pele. A imaginação, a ironia, a compaixão estão para o autor como a moral, a coerência, o comunismo estão para o homem? Contaminam-se, e são do mesmo? São, são. Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard Pivot [na televisão francesa] que veio com essa: "Como é que você ainda se considera comunista?" Disse espontaneamente: "Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso deixar de o ser. Pode dizerme: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou". Ele riuse muito. É isso. Mais recentemente converti isto na declaração: o comunismo é um estado de espírito. Dois camaradas atacaram isto, em nome do materialismo dialéctico. Não entenderam. Voltando ao livro, há momentos de provação. Como quando a caravana enfrenta o desfiladeiro ou os lobos. O que há numa situação e noutra é o medo. Não sei da sua relação com o medo. Nunca me encontrei em situações em que o medo se desencadeasse fora do meu domínio. Pondo esta salvaguarda, não me considero uma pessoa medrosa. Também não sou um exemplo de valentia -nunca fui posto à prova. Vamos à experiência mais recente, a doença. O medo da morte, que é um medo tão comum, nunca tive. A probabilidade de morrer era alta. Talvez não tenha tido medo por causa da costela fatalista que tenho -o que tiver de ser, será. É evidente que o elefante não pode sucumbir aos lobos, ou cair no desfiladeiro -ou seja, nas partes menos boas. Se transportar isso para a vida, é uma forma de optimismo. E que liga com aquela frase dos 19 anos. Escreve para ser amado? Escrever é uma forma de ser amado? Pode ser entendido assim. O Gabriel García Márquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. Ser amado pelo outro não está na nossa mão; podemos escrever para que isso aconteça, e depois acontecerá ou não. Já que temos que morrer, que alguma coisa fique. Não é imortalidade - isso seria um disparate; é um reconhecimento por algum tempo mais. Notícia corrigida às 16h03
REFERÊNCIAS:
O melhor de José Saramago pelos nossos leitores
O PÚBLICO convida os leitores a partilharem as suas passagens preferidas das obras de José Saramago. Os excertos devem ser enviados para o endereço de correio electrónico leitores@publico.pt, com o título "José Saramago – a minha escolha", o nome do leitor, localidade e o nome da obra de onde foram retirados. (...)

O melhor de José Saramago pelos nossos leitores
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2010-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O PÚBLICO convida os leitores a partilharem as suas passagens preferidas das obras de José Saramago. Os excertos devem ser enviados para o endereço de correio electrónico leitores@publico.pt, com o título "José Saramago – a minha escolha", o nome do leitor, localidade e o nome da obra de onde foram retirados.
TEXTO: Colette Johnston, Valladolid - Espanha"O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que nao foi visto, ver outra vez o que se viu já. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já. "in "Viagem a Portugal" Maria Pereira, Elvas Jeová não conhecem nem o nome. Enfim, mais duradoiros são os rancores dos deuses do que dos homens. Os homens são estes pobres diabos, capazes sim de terríveis vinganças, mas a quem uma coisita de nada comove, e, se a hora é a certa e a luz propícia, cai nos braços do inimigo, a chorar esta estranhíssima condição de ser homem, de ser mulher, de ser gente. in "Levantado do Chão"Hugo Rosário, Lisboa"sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam"in "A Viagem do Elefante" "O José Dinis morreu. As coisas são o que são, agora se nasce, logo se vive, por fim se morre, não vale a pena dar-lhe mais voltas, o José Dinis veio e passou, choraram-se umas lágrimas na ocasião, mas o certo é que a gente não pode levar a vida a chorar os mortos. "in "As Pequenas Memórias" Jorge Ribeiro, Coimbra"(. . . ) não somos o que dizemos, somos o crédito que nos dão (. . . )" in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Rosângela Ferreira de Carvalho Borges, Brasil"Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação" in "Levantado do Chão"Eduarda Gil Lopes Barata, Amadora"Quando entrou na sala, todos continuavam sentados nos seus lugares. (…) A mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, Aqui tens a água, bebe devagar, devagar, saboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. Onde a encontraste, é água da chuva, perguntou o marido, Não, é do autoclismo, E não tínhamos ainda um garrafão de água quando nos fomos daqui, perguntou ele de novo, a mulher exclamou, Sim, como foi que não me lembrei, um garrafão que estava em meio e outro que nem encetado estava, oh que alegria, não bebas, não bebas mais, isto dizia-o ao rapaz, vamos todos beber água pura, ponho os nossos melhores copos na mesa e vamos beber água pura. Agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava por ele, fazia cintilar a jóia que tinha dentro. Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. No fim disse, Bebamos. (…) procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar. in "Ensaio Sobre a Cegueira"Paulo Batista"Se a música pode ser tão excelente mestre da argumentação, quero já ser músico e não pregador, Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha música fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso, Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma. A isto não respondeu o música, e o padre rematou, Todo o pregador honesto o sente quando baixa do púlpito. Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente. " in "Memorial do Convento"Paulo Rato, Queluz"Poema a Boca Fechada Não direi:Que o silêncio me sufoca e amordaça. Calado estou, calado ficarei, Pois que a língua que falo é doutra raça. Palavras consumidas se acumulam, Se represam, cisterna de águas mortas, Ácidas mágoas em limos transformadas, Vasa de fundo em que há raízes tortas. Não direi:Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, Palavras que não digam quanto seiNeste retiro em que me não conhecem. Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, Nem só animais boiam, mortos, medos, Túrgidos frutos em cachos se entrelaçamNo negro poço de onde sobem dedos. Só direi, Crispadamente recolhido e mudo, Que quem se cala quanto me calei, Não poderá morrer sem dizer tudo. in ""Os Poemas Possíveis"Marina Tavares, Sobreira - Viseu"Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma". in "O Conto da Ilha Desconhecida" André Figueira, Funchal"(. . . ) Assim é, minha filha, e quanto mais se for prolongando a tua vida, melhor verás que o mundo é como uma grande sombra que vai passando para dentro do nosso coração, por isso o mundo se torna vazio e o coração não resisto, oh, minha mãe, que é nascer, Nascer é morrer, Maria Barbara. "in "Memorial do Convento"Manuela Matos Monteiro"Na morte a cegueira é igual para todos. ""Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa somos nós"in "Ensaio sobra a cegueira"Amadeu Gonçalves, Vila Nova de Famalicão"(. . . ) a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis (. . . )"in "História do Cerco de Lisboa""Tendo nascido, nasci no princípio da minha morte, portanto quase morto. "in "Manual de Pintura e Caligrafia""Deus é tanto mais Deus quanto mais inacessível for (. . . )"in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo""Há ocasiões, e se é verdade que na ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução (. . . )"in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Rui Pedro Vasconcelos, V. N. Gaia "Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. . . "in "As Intermitências da Morte"Paulo Gonçalves"(. . . ) o que é que em nós sonha o que sonhamos, porventura os sonhos são a lembrança que a alma tem do corpo"in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Ana Soares Barbosa“Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio”in "Cadernos de Lanzarote"Miguel Torres Preto“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”in “Ensaio sobre a Cegueira”Joana Pimentel Alves, Coimbra"Não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos. "in "Memorial do Convento"Maria Teresa Magalhães" O chefe do Governo pôs a mão direita em cima do telefone. Não chegou a esperar um minuto, Senhor primeiro-ministro, começou o ministro do interior, Já sei, não diga mais, cometemos um erro, Disse cometemos, Sim, cometemos, porque se um se equivocou e o outro não corrigiu, o erro é de ambos. . . . . "in "Ensaio Sobre a Lucidez"Ana Luísa Carvalho, Aldeia do Meco"Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez. Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. "in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Ivo Raposo". . . a convulsa realidade do universo em que somos um fiozinho de merda a ponto de se dissolver. . . "in "As Intermitências da Morte"Catarina Reis"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu. "in "Memorial do Convento"Miguel Cardoso - Viseu"Acham eles que passando nós fome nas nossas terras nos devíamos sujeitar a tudo, mas aí é que se enganam, que a nossa fome é uma fome limpa, e os cardos que temos de ripar, ripam-nos as nossas mãos, que mesmo quando estão sujas, limpas são, não há mãos mais limpas do que as nossas, é a primeira coisa que aprendemos quando entramos no quartel, não faz parte da instrução de arma, mas adivinha-se, e um homem pode escolher entre a fome inteira e a vergonha de comer o que nos dão, quando também é certo que a mim me vieram chamar a Monte Lavre para servir a pátria, dizem eles, mas servir a pátria não sei o que seja, se a pátria é minha mãe e é meu pai, dizem também, de meus verdadeiros pais sei eu, e todos sabem dos seus, que tiraram à boca para não faltar à nossa, e então a pátria deverá tirar à sua própria boca para não faltar à minha, e se eu tiver de comer cardos, coma-os a pátria comigo, ou então uns são filhos da pátria e os outros são filhos da puta. "in "Levantado do Chão"Catarina Campinas Furtado, Roterdão“Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais. ”in “Levantado do Chão”Rui Valente, Coimbra"Voar é uma simples coisa comparando com Blimunda"in "Memorial do Convento"Alexandra Godinho, Lisboa"Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não vêem"in "Ensaio Sobre a Cegueira"Ângela Pisco" Releu o que escrevera. . . como se estivesse a tomar conhecimento de um recado deixado por alguém de quem não gostasse, ou o irritasse mais do que é normal e desculpável. . . Agora que está começado vai ser preciso acabá-lo, é como uma fatalidade. E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é a aquela que a começou, mesmo que ambas tenham nome igual, que isso só é que se mantém constante, nada mais. ""Há ocasiões assim. Acreditamos na importância do que dissemos ou escrevemos até um certo ponto, apenas porque não foi possível calor os sons ou apagar os traços, mas entra-nos no corpo a tentação da mudez, a fascinação da imobilidade, estar como estão os deuses, calados e quietos, assistindo apenas. "in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Albano Mendes de Matos"A queima vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquela extremo arde um homema a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltazar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda. "in "Memorial do Convento"Alexandre Sousa"Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já. "in "Viagens a Portugal"Paulo Gonçalves, Porto"Em verdade, em verdade vos digo, há certas maneiras de ser feliz que são simplesmente odiosas. "in "Cadernos 2"Fernanda Damas Cabral"Epitáfio para Luís de CamõesQue sabemos de ti, se só deixaste versos, Que lembrança ficou no mundo que tiveste?Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos?Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?"in “Os Poemas Possíveis”, ed. 1999, p. 33Jorge Moita"Quem dele [João Domingos Serra] me falou pela primeira vez foi Maria João Mogarro: “E está aí o João Serra, de quem se diz que escreveu a sua vida, nunca vi, mas deve ser certo. ” Imagina-se o meu alvoroço, um camponês escritor, um António Aleixo da prosa… “Uns apontamentos, não?”», perguntei eu a fingir um cepticismo que não sentia. “Que não”, respondeu ela, “«pelo menos é o que me têm dito. ” No dia seguinte fomos bater à porta do João Serra, que não estava, estavam, sim, as filhas, “O nosso pai está no hospital”, disseram. Expliquei ao que ia, que estava a escrever um livro sobre o Lavre e que seria para mim uma grande ajuda poder passar uma vista de olhos pelo que ele tinha feito. Pusemo-nos de acordo em esperar que o pai saísse do hospital, aonde o tinham levado certos achaques agravados da velhice, e, finalmente, uns quantos dias depois, recebia das mãos do próprio João Domingos Serra o fruto do seu labor. Com o caderno debaixo do braço corri para o meu refúgio e pus-me a ler, com a ideia de ir copiando à mão as passagens mais interessantes, mas rapidamente compreendi que nem uma só daquelas palavras poderia perder-se. Não terminei a leitura. Meti uma folha de papel na máquina e comecei a trasladar, com todos os seus pontos e vírgulas, incluindo algum erro de ortografia, o escrito de João Serra. Tinha enfim livro. Ainda tive de esperar três anos para que a história amadurecesse na minha cabeça, mas o Levantado do Chão começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar. "Prefácio a "Uma Família do Alentejo"João Pedro Gato"Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça. ” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito. ” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece. " E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito. ” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite. "Prefácio a "Terra", de Sebastião SalgadoDaniela Brasil". . . olhava como se olha o vazio, no vazio não há perto nem longe onde parar os olhos, em verdade, não é possível fixar uma ausência. "in "O Evangelho Segundo Jesus Cristo"Daniel Carolo“Já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é saber que parte há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma quando Blimunda levanta as saias e Baltasar deslaça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando. ” in “Memorial do Convento”Alice Loureiro, Braga "A vida é assim, está cheia de palavras que não valem a pena, cada uma que ainda formos dizendo tirará o lugar a outra mais merecedora, que o seria não tanto por si mesma, mas pelas consequências de tê-la dito"in "A Caverna"Lauro Lopes"(. . . ) A solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio de uma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz. "in "O Ano da Morte de Ricardo Reis"Ana Alexandre"Bastar-te-ás a ti próprio enquanto puderes aguentar, depois confia-te a quem mereces, melhor se esse for alguém que te mereça. " in "A Jangada de Pedra"Paulo Sousa, Alcabideche“Vou a tempo, disse, e era certo, ia a tempo, no fim de contas é como sempre vamos, a tempo, com o tempo, no tempo, e nuca fora do tempo, por muito que disso nos acusem. ”in "A Caverna"Nuno Santos Carneiro, Porto"Servem as palavras para isto: tão certas são para errar, como erradas para acertar"in "Que farei com este livro?"
REFERÊNCIAS:
Joshua Sofaer: "Apesar dos problemas, o Porto "tem uma vida cultural vibrante"
Daqui a um ano, no máximo, o Porto vai ter uma rua nova, e este é o homem que vai fazer disso (aliás já fez) uma festa. As práticas artísticas, acredita Joshua Sofaer, são a melhor maneira de fazer com que o poder pertença, efectivamente, ao homem da rua. (...)

Joshua Sofaer: "Apesar dos problemas, o Porto "tem uma vida cultural vibrante"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.005
DATA: 2010-06-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Daqui a um ano, no máximo, o Porto vai ter uma rua nova, e este é o homem que vai fazer disso (aliás já fez) uma festa. As práticas artísticas, acredita Joshua Sofaer, são a melhor maneira de fazer com que o poder pertença, efectivamente, ao homem da rua.
TEXTO: Joshua Sofaer, o britânico que o FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica convidou para vir ao Porto convencer cidadãos anónimos a darem o nome a uma rua, já pôs os japoneses de Moriya a contemplar numa galeria as toneladas de livros e revistas que deitaram ao lixo em apenas 24 horas, os noruegueses das Lofoten a folhear o catálogo das colecções (de selos, de chávenas de café, de bonecas, de fl ores) de todos os habitantes do arquipélago e os ingleses de Londres a revirar a cidade em busca de animais esculpidos em cenouras. Parece uma brincadeira, mas não é: a arte, diz ele, é o único lugar onde cidadãos anónimos se permitem fazer coisas que nunca lhes passariam pela cabeça. Incluindo governar (das grandes às pequenas decisões, como a de escolher o nome de uma rua) a cidade onde vivem. PÚBLICO – Quando é que vão inaugurar a rua do Viver a Rua? JOSHUA SOFAER – Gostávamos de concluir o processo até daqui a um ano. Nesta fase, o nosso painel de juízes está a escolher o seu top pessoal de cinco nomes, por ordem de preferência. A seguir iremos verifi car o rigor das histórias por trás destes nomes e confirmar que os proponentes querem mesmo avançar com a proposta. No fim, levaremos uma lista definitiva à Comissão de Toponímia da cidade, e depois depende. Quando houver decisão queremos inaugurar a rua a sério, com uma festa. Como é que se lembrou de convidar a cidade a discutir que nome dar a uma rua?Antes de vir ao Porto, já tinha lançado dois projectos semelhantes no Reino Unido, Name in Lights e Rooted in the Earth. Em Birmingham, propus que se escrevesse o nome de uma pessoa num néon gigante em pleno centro da cidade; em Londres, propus que se fizesse mais ou menos a mesma coisa, mas desta vez escrevendo o nome de uma pessoa com flores, em canteiros públicos de praças e parques da cidade. Em Novembro, o Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC) convidou-me para vir ao Porto fazer um workshop sobre como promover a inclusão social e activar uma cidade através das práticas artísticas, e nessa altura ficou decidido que eu voltaria com um projecto para o FITEI. O NEC queria que fosse uma coisa muito visível, mas que custasse muito pouco dinheiro, e então resolvi que seria isto: envolver os cidadãos do Porto na discussão acerca do nome a dar a uma nova rua. O que é que tinha na cabeça no início do Viver a Rua? Participar na escolha do nome de uma rua da cidade onde vivemos é mais do que mandar palpites e sugerir que as pessoas de quem gostamos fiquem imortalizadas no espaço público. É uma discussão que nos obriga a pensar sobre que tipo de pessoas queremos como modelo e o que realmente significa ser cidadão. É sobretudo nisso que estou interessado. Se no fim do dia as pessoas concluírem que não há ninguém que mereça ter o nome numa rua, para mim o projecto é um sucesso na mesma. É o processo, e não o resultado, que vale. Aqui, o que é importante é que este nome, o nome que um cidadão anónimo como outro qualquer propôs, vai fazer parte do tecido da cidade, vai ficar no mapa. Acho que é a primeira vez que faço uma coisa que me vai sobreviver. Vai haver pessoas a viver e a morrer nessa rua, talvez alguns bebés venham a ser feitos nessa rua. Pensando bem, é incrível. Quantas propostas receberam?Estava um bocado inseguro sobre a adesão que iríamos ter. Quando fizemos o Name in Lights em Birmingham, houve milhares de propostas, mas basicamente apenas pedíamos às pessoas que nos enviassem um nome. Aqui fomos mais exigentes, as pessoas tinham de escrever um pequeno ensaio a explicar por que razão sugeriam aquele nome. . . Tivemos 253 propostas, mas, uma vez mais, não quero que isto seja sobre números e resultados. De qualquer modo, esperava que houvesse pelo menos cem propostas, portanto os resultados praticamente duplicaram as minhas expectativas. Que tipo de nomes apareceram? Todo o tipo de nomes. Desde figuras históricas até familiares dos proponentes, pessoas que obviamente não merecem uma rua mais do que qualquer outro cidadão, e até personagens de ficção. Apareceram muitas histórias tristes. Curiosamente, várias pessoas propuseram nomes de figuras históricas que na verdade já têm uma rua no Porto. O que mostra, por um lado, que as pessoas não conhecem bem a cidade, mas também que a Comissão de Toponímia está a fazer um bom trabalho. No Porto, muitas pessoas propuseram nomes de jogadores de futebol. . . Pelo contrário, os nomes vencedores dos seus anteriores projectos eram sobretudo de cidadãos anónimos dedicados à comunidade. . . No Porto essas pessoas não apareceram?No Porto, os cidadãos anónimos também foram maioritários. Mas claro que os nomes mais repetidos correspondem a jogadores de futebol. Em Londres, quando fizemos o Rooted in the Earth, a maioria dos votos foi para o “Baby Peter”, um menino que tinha sido assassinado pelo padrasto, num caso que sensibilizou imenso a opinião pública. Os juízes decidiram não escolher esse nome porque o espírito do projecto é celebrar figuras anónimas da comunidade, e não aquelas de que os jornais falam todos os dias. Vai ser interessante perceber como pensam os júris do Porto. Eu, pessoalmente, acho que esta é uma oportunidade para fazer uma coisa que de outra forma nunca seria feita: dar o nome de um cidadão vulgar a uma rua. Provavelmente, mais cedo ou mais tarde, esses jogadores de futebol acabarão por ter uma rua, com ou sem o Viver a Rua. Acho mágico passar numa rua e ver um néon enorme com o nome de uma pessoa que não faço ideia quem seja. É completamente a negação do star system que caracteriza a cultura contemporânea. Também por isso, gostava que a placa que vai ficar na rua não dissesse nada acerca da pessoa além do nome dela. Quero que as pessoas passem por ali e fiquem intrigadas. Se explicamos tudo, qual é a mística? Trabalha muito com nomes. O que é que o fascina tanto nos nomes?Os nomes são como guiões. Não os escolhemos, mas recebemo-los à nascença, e depois passamos a vida a desempenhá-los [performing]. Penso muitas vezes como é que seria a minha vida se tivesse outro nome, mesmo que tivesse exactamente a mesma cara e a mesma psicologia. Se tivesse um nome islâmico, por exemplo. Fascina-me o modo como os nomes operam. A primeira coisa que fazemos quando conhecemos um estranho é perguntar-lhe o nome – e é extremamente desconfortável falar com uma pessoa que não sabemos como se chama. Porquê? É só um nome. Acredito que, num certo sentido, os nomes são inescapáveis. O meu nome, por exemplo, significa escriba. E o que realmente faço na vida é escrever; neste caso, escrever os nomes das outras pessoas. E na rua, como é que correu o processo? Tivemos voluntários a ir para a rua para mobilizar as pessoas. E correu muito bem. Sobretudo porque houve desenvolvimentos inesperados, e coisas que são muito particulares do Porto. Por exemplo?Uma das coisas com que nos deparámos várias vezes foi a incredulidade das pessoas. As pessoas não acreditavam que isto era mesmo a sério. Diziam-nos: “Ah sim, é muito giro, mas claro que não vai acontecer. ” A segunda pergunta era: “E o que é que a câmara vai achar disso?” É bastante evidente que os portuenses se sentem excluídos do processo político de tomada de decisões acerca da vida da cidade, que se sentem sem poder, empurrados para fora da infra-estrutura política. Não lhes parece que possam ter uma palavra a dizer sobre o rumo da cidade. E isso, para mim, provou a absoluta necessidade de um projecto como o Viver a Rua. O que estamos aqui a fazer é a dizer às pessoas: “Esta cidade é vossa. Os burocratas que estão no poder actuam em vosso nome, mandatados por vocês, para fazerem aquilo que vocês acham melhor para a cidade. ” Ao permitirmos que escolham o nome de uma rua, estamos a encontrar uma maneira muito simples de dar aos cidadãos uma voz directa na coisa pública. Outra coisa curiosa: as pessoas queriam saber que tipo de rua estava em causa: “É que se for uma rua assim muito pequena não estou interessado. ” Fez-me pensar no tormento que é estar dentro de um aeroporto gigante, tipo Charles de Gaulle ou JFK, a correr para apanhar um avião, ou a desesperar porque as malas não aparecem. Os aeroportos são sítios desagradáveis e impessoais, e ainda assim a maior homenagem pública que se pode fazer a uma pessoa é dar o nome dela a um aeroporto. Depois da morte da princesa Diana houve uma enorme discussão em Londres para decidir se se devia dar o nome dela ao aeroporto de Heathrow. Por falar em discussão, o projecto incluiu uma série de workshops. Como correram? Organizámos workshops de escrita criativa, de história local e de reflexão sobre conceitos de cidadania e de família. A ideia não era garantirmos, através dos participantes nos workshops, um número mínimo de nomeações. Mas foi compensador que esses workshops nos tenham levado a trabalhar com escolas, e que vários grupos de alunos tenham feito propostas de nomes. O que é que aprendeu sobre o Porto?Aprendi que as pessoas do Porto adoram a cidade, apesar de passarem a vida a resmungar e queixar-se dela. Quase todas querem saber o que eu acho do Porto comparado com Lisboa, mas eu ainda não fui a Lisboa. No Reino Unido não existe uma divisão semelhante?No Reino Unido todas as pessoas que vivem fora de Londres odeiam Londres e todas as pessoas que vivem em Londres seriam incapazes de viver noutro lado. E como lhe pareceu a cidade em termos de participação cultural?Acho que o Porto está num ponto de viragem. Quando vim cá em Novembro, a cidade pareceu-me envelhecida; agora, nesta segunda visita, o tempo estava fabuloso e a cidade saiu completamente cá para fora. É incrível a quantidade de coisas que aconteceram na mesma semana numa cidade tão pequena: a Feira do Livro, o FITEI, o Serralves em Festa, o Clubbing. . . Quais são os pontos fortes e os pontos fracos da cidade, em termos de participação artística?Prefiro falar em bons e maus exemplos. Um exemplo brilhante é o Clubbing. Estive lá numa das últimas noites e vi um público completamente diversificado a responder com igual entusiasmo a programas complexos de música erudita e a sessões altamente experimentais de electrónica. Um mau exemplo, tenho de admitir, é o Serralves em Festa. Foi uma enorme desilusão. Achei que os projectos apresentados eram paternalistas, para não dizer mais. O mínimo denominador comum, absolutamente: novo circo, teatro de rua, balões, palhaços em andas. . . A arte contemporânea não é aquilo. É uma pena que consigam reunir tanta gente naquele espaço e que depois o Serralves em Festa não passe de um dia no parque. A câmara desinvestiu na cultura nos últimos anos. É um erro, nesta fase de euforia à volta das indústrias criativas? Acho que toda a participação financeira, pública e privada, nas práticas artísticas é saudável. Já se percebeu que, nesta área, os subsídios geram efectivamente emprego e riqueza. Nesta fase de severa crise económica, é óbvio que é politicamente mais aceitável cortar na cultura, mas a cultura é o que nos define como civilização. Logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra quis diminuir os gastos com a cultura, o Winston Churchill (não acredito que estou a citar o Winston Churchill) perguntou: então para que é que estivemos a lutar? Não pode haver Europa sem cultura. Ouvi falar do Rivoli mal cheguei ao Porto, falaram-me da ruptura que houve com a sua cedência a um produtor comercial. Mas o que me parece é que, quaisquer que sejam os problemas de bastidores, o Porto tem uma vida cultural vibrante. Mas é claro que é sempre possível fazer mais, e sem gastar muito mais dinheiro. Esta cidade tem imensos prédios e lojas ao abandono, a câmara podia e devia relaxar as regras de acesso e ocupação desses espaços, ceder licenças temporárias para a apresentação de espectáculos; não há razões para que os artistas tenham dificuldade em encontrar espaços. Acima de tudo, o papel do poder local é activar a noção de que as coisas são possíveis. E aqui, claramente, pelo menos no que depende da câmara, os artistas acham que as coisas são impossíveis.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte guerra cultura comunidade social princesa circo
O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos
Esta é a história nunca contada de um menino pobre que percebeu aos 30 anos que estava milionário. Um casapiano que acreditou no slogan da sua empresa: "We make it possible." (A Urbanos foi considerada a melhor PME para se trabalhar em 2010.) Como é que ele tornou isto possível? (...)

O fabuloso destino de Alfredo Casimiro, um casapiano milionário aos 30 anos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2010-07-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esta é a história nunca contada de um menino pobre que percebeu aos 30 anos que estava milionário. Um casapiano que acreditou no slogan da sua empresa: "We make it possible." (A Urbanos foi considerada a melhor PME para se trabalhar em 2010.) Como é que ele tornou isto possível?
TEXTO: Nasceu em 1966. Ontem. Viveu uma vida pobre, arrumada, limpa. Teve a noção do que eram cinco tostões, um tostão, dois tostões. "Os outros miúdos tinham jogos, brinquedos; as mães iam ao intervalo levar um bolo; a minha mãe, às vezes, conseguia comprar-me um bolo, mas de casa eu levava uma sandes. " Fez o seu primeiro negócio aos dez anos. Foi aluno da Casa Pia. Encontrou um preceptor que lhe disse que ele não tinha jeito para nada. (Estará ele a ler a entrevista - pergunta-se Alfredo Casimiro?) Casou e teve filhas cedo. Fundou uma empresa eleita em 2010 como a melhor PME para se trabalhar. Envolveu a família. Cresceu. Enriqueceu. Qual é o segredo de Alfredo Casimiro?A entrevista acontece em casa, no country club de Belas. É uma casa imensa, de linhas despojadas, que não revela de forma ostensiva o património que acumulou nos últimos 20 anos. Não é um exibicionista. Nas fotografias pede, sem pedir, algum recato. Não pretende confirmar o cliché do novo-rico que posa na casa com piscina, exuberante. Desfaz-se num sorriso quando a filha mais nova anuncia que chegou a casa: "Pai, pai, pai!" Tem mais duas filhas, do primeiro casamento. A vida delas nem por sombras se parece com aquela que o pai teve. Mas ele teve o prazer de vencer. A voz é tonitruante. Conta detalhadamente o que viveu. Não esquece pormenores como o de a carne vir da aldeia já arranjada. Ou o gesto do empregado que um dia não lhe deu uma bola de Berlim. Ou o olhar do pai numa conversa decisiva. Ou os anos em que não teve férias para fazer prosperar a empresa. (A Urbanos é hoje muito mais do que uma empresa de mudanças; Casimiro indica que apenas 20 por cento do volume de negócio resulta dessa área. ) A história desta entrevista começa há quase dois anos, quando pela primeira vez quis contar a vida de Alfredo Casimiro. Com polidez, recusou. Só este ano, depois da atribuição do prémio de melhor PME para se trabalhar em Portugal, e sobretudo depois da morte súbita do irmão, anuiu. Está mais sozinho. E dá a cara por um império que está a ser erguido. Tem quase 44 anos. Às vezes parece que foi há uma eternidade, e não ontem, que tudo começou. Quando é que teve a noção de que a sua vida podia ser uma coisa extraordinária?Não tive essa noção. Tive essa necessidade. Que quadro de vida era o seu? Como é que o vivia? Para perceber a necessidade que sentiu de o mudar. Os meus pais são migrantes de uma aldeia perto de Alenquer, Cabanas de Torres. O meu pai foi criado no campo, fez o serviço militar, fez a guerra, instalou-se em Lisboa. Nasci em Julho, eles terão casado em Março ou Abril de 1966. Alugaram o chamado "quarto com serventia de cozinha". A minha mãe empregou-se numa fábrica de pilhas, a Tudor. Eu ficava com uns tios-avós que moravam perto, que me mimavam muito. Os donos da casa onde os meus pais viviam não tinham filhos. O homem era contrabandista, daqueles que nos anos 60 iam a Badajoz buscar chocolates e rebuçados para revender em Lisboa. Um dia comi chocolates até quase morrer, literalmente. Aos 16 meses, tive uma colagem completa dos intestinos e estive três semanas internado no hospital Dona Estefânia, no vai não vai. Foi filho único até 1972. Quem eram os seus amigos?O bairro onde morávamos era em frente a um bairro de barracas. Essas pessoas, que moravam num ambiente degradado, eram os meus amigos. Jogávamos à bola, passávamos o tempo na rua. Quando fui para a escola primária, fui em condições distintas dessas pessoas. Como era muito irrequieto, os meus pais fizeram um esforço adicional e puseram-me num pseudojardim infantil aos quatro anos. Era a casa da Dona Celeste, uma professora reformada que dava explicações na salinha de jantar. Quando fui para a primária, já sabia ler e escrever correctamente. Estes meus companheiros de rua tinham normalmente problemas de aprendizagem, agravados pelo alcoolismo dos pais, pela desestruturação da família; era eu que os ajudava nos trabalhos de casa. Alguns tinham mais dois, três anos do que eu e andavam na primeira classe. Estamos a falar de um tempo anterior ao 25 de Abril, os castigos corporais eram frequentes na escola. Por causa disso, desde pequeno, fiquei com um grupo de guarda-costas privativo! [riso] O seu pai arranjou emprego na Carris. Fazia o quê?Começou por ser guarda-freio, depois passou a cobrador, depois passou a motorista; fez toda a sua vida profissional, até se reformar, como motorista da Carris. A minha mãe era doméstica e simultaneamente fazia costura para fora. Éramos o que se pode definir como família de classe média-baixa. O meu pai ganhava 900 escudos por mês e pagávamos 513 de renda. É um valor que retenho porque a partir dos dez, 11 anos, era eu que ia à Caixa Geral de Depósitos depositar esse dinheiro todos os meses. Era uma grande responsabilidade. Era mais de metade do que o seu pai ganhava. Tinha medo de o perder, de ser assaltado? Esses temores assaltavam-no?Não. Para colmatar as nossas necessidades, o meu pai alugou um pedaço de terreno perto de casa e fez uma pequena horta. Cultivámos feijão verde, tomate, cebola, alho; todos os produtos hortícolas normais, para não termos de gastar dinheiro na praça. Quando tínhamos excesso de legumes, que não consumíamos inteiramente, vendíamos as sobras. Eu tinha seis, sete anos, e ia vender aos vizinhos. Achavam-me graça e eu tinha habilidade para falar com as pessoas. O dinheiro era muito esticado para que não chegássemos ao final do mês sem dinheiro. Eram conversas que tinham consigo, que ouvia? Responsabilizavam-no?Fui envolvido desde a mais tenra infância. Falávamos sobre o valor das coisas, o valor do trabalho, as contas da casa. Faziam-se malabarismos. Antes de o último tomar banho, desligava-se o gás para se gastar a água quente que estava ainda nos canos. Sempre me habituei a tomar duche muito rápido. O meu pai dizia que era por uma questão de robustez física que tomava banho de água fria (até morrer, nunca tomou banho de água quente); mas não acredito, acho que fazia isso para não gastar gás. E poupávamos imenso. Quando fui para a primeira classe, no primeiro dia, a minha mãe foi ter comigo ao recreio e levou-me um pacote de batatas fritas. Um luxo absoluto! Esse gesto da sua mãe revela um cuidado consigo. Com o que é que acha que eles sonhavam?Sonhavam dar-me a mim e aos meus irmãos uma vida melhor do que aquela que tinham. Cada um deles só estudou até à quarta classe. Esforçavam-me muito. O meu pai folgava um dia por semana, fazia muitas horas extraordinárias. Na minha primeira infância, passava os Verões em Cabanas com os meus avós. O meu avô paterno, António, tinha a alcunha de gajão; quando era novo, era bonito, imponente. O meu pai era o mais velho de seis irmãos. Os meus tios iam à guerra e os meus avós vestiam de preto - como se tivesse morrido alguém. Os meus avós estiveram de luto desde que o meu pai foi à tropa, em 1961, até ao 25 de Abril. A antecipar a morte de um filho, que felizmente nunca aconteceu. O Verão na aldeia: tranquilo, com os meus avós, em casa, com o gado. Era uma vida muito pobre - digo: a pobreza do tempo de Salazar. Com pouco cash, mas razoável abundância de tudo. Os meus pais tinham falta de roupa e de sapatos, mas para comer havia sempre pão, carne. Nunca passei fome, nunca andei roto, nunca andei miserável. Apesar de tudo, o quadro que descreve não é desesperado. O que é que o faz dar o salto, sentir a necessidade de que a sua vida fosse outra?[Pausa] Não o consigo identificar. Há um fenómeno que é importante referir. Em 1969, morre uma irmã da minha mãe, que era muito próxima. A minha mãe ficou muito abalada. A forma de se recompor passou pelo encontro com as Testemunhas de Jeová. O meu pai continuou católico até ao fim da vida e sempre com mágoa por a minha mãe praticar uma religião diferente. Mas as meninas são dos pais e os meninos são das mães. Não tenho memórias de práticas religiosas que não sejam as das Testemunhas de Jeová. O que é que aprendeu?Coisas fabulosas. O código ético é muito apertado. É muito difícil convencê-la a ser Testemunha de Jeová, é preciso uma grande capacidade de convencimento, e para isso somos treinados desde que lá chegamos. O objectivo é que me torne um reprodutor dessa mensagem, um pregador dessa palavra e um angariador de mais Testemunhas de Jeová. Isto molda profundamente o meu carácter, e venho a aproveitá-lo em toda a minha vida. Por que é que saiu? Hormonas. Estive até aos 14 anos. Havia uma total proibição de relacionamento entre sexos. Mas, durante os anos em que estive, aprendi muito. Que o não é o princípio do sim. Que é preciso insistir e conseguir. A sua relação com a sua mãe era a célula fundamental da sua vida. A passagem pelas Testemunhas de Jeová é expressão disso. Como era em casa?Ajudo a minha mãe em casa, na costura, a passar a ferro, a tirar linhas. Era uma casa cheia. Todos os irmãos do meu pai passaram por nossa casa depois de regressarem da guerra. Ficaram seis meses, um ano, dois anos, até casarem. Posso dizer-lhe que nunca tive um quarto. Quando é que teve o seu primeiro quarto?Quando me casei. Até lá, dormia sempre na sala ou no divã. Nunca tive essa privacidade. Estava lá, por exemplo, o meu tio-padrinho, que hoje é meu sócio e por quem tenho um profundo carinho. O meu pai tentou metê-los a todos na Carris. Ele sentia essa preocupação em relação aos irmãos? Era o patriarca. Que é, no fundo, hoje o seu papel na família. Os amigos podemos escolher, a família é nossa. Se Deus me deu este dom e esta capacidade de me autodesenvolver, de construir alguma coisa, tenho esta responsabilidade perante a família. Qual foi o primeiro dinheiro que ganhou? Vou falar do primeiro negócio que fiz. Sempre gostei muito de ler e não tinha dinheiro para comprar livros. Só tinha livros emprestados. Os livros da escola primária que tinha eram livros de alguém que já tinha andado na escola primária. Usados, rabiscados, sujos. Em Odivelas, junto à paragem das camionetas, havia uma barraca-armário e um velhote que trocava livros. Deixávamos um livro, trazíamos outro. Um livro custava 25 tostões, pagávamos 10 tostões e trazíamos outro que ainda não tivéssemos lido. Na minha zona não havia nada igual. Então, aos dez anos, tinha uma valise de carton - do género Linda de Suza - com livros. Investia todo o dinheiro que me davam e que ganhava em livros. Passava duas horas por dia, entre as 17h e as 19h, na paragem do autocarro, a vender e a trocar livros. Foi esta a minha fonte de rendimento até ir para a Casa Pia. Sempre sozinho. Contava consigo e partilhava o que vivia com a sua mãe?Exactamente. O salto: em 1972, o meu pai conseguiu comprar um carro velho, uma Renault 4L castanha. Ainda me lembro da matrícula: DG/46 /26. Gostava de saber onde está esse carro. . . Gostava de o ter?Adorava! O meu pai vendeu-o quando tinha 16 anos, com grande pena minha. Queria tê-lo por ter sido o primeiro carro da família, um símbolo de uma certa ascensão?Seguramente. Dava-nos uma sensação de quase riqueza. Estávamos desenraizados. A nossa referência não era o sítio onde vivíamos. Era a aldeia; e na aldeia, estávamos claramente acima da média (porque os meus pais tinham comprado um apartamento próprio, um carro). Em relação ao bairro de barracas, passa-se a mesma coisa. O meu pai comprou o carro e no fim-de-semana fomos a Cabanas de Torres, trouxemos uma quantidade enorme de comida (couves, alfaces, coelhos, galinhas, carne já arranjada). A minha mãe pediu-me que levasse umas coisas ao meu tio, que morava na outra ponta de Odivelas. O meu tio dava-me sempre um dinheirito e naquele dia deu-me 25 tostões. Vim todo contente com a moeda branca no bolso, e na Rua da Memória vi uma pastelaria com uma montra cheia de bolos. Eu sabia que uma bola de Berlim, na padaria, custava 15 tostões. Tenho a cena como se fosse hoje, felliniana. . . Chego-me ao balcão com o meu metro e dez de altura, peço ao empregado: "Quero uma bola de Berlim, se faz favor. " Um empregado vestido de branco, de lacinho. Vai ao armário, tira a bola de Berlim, mete em cima de um guardanapo, em cima de um prato, em cima do balcão. Estico-me e entrego os meus 25 tostões. Ele diz: "São três e quinhentos. " "Obrigado, não tenho. " Retirei a moeda, ele retirou o bolo, venho por aí fora. Penso muito, muito nessa bola de Berlim. Aliás, gosto pouco de bolos. Acho que tem a ver com isso. Determinou que ia ser diferente? Talvez o salto seja este. Sinto que tenho de ganhar dinheiro. Não vou passar a vida inteira a perguntar primeiro quanto é que as coisas custam, para saber se as posso comprar. Esta é a história da minha vida até aos 12, 13 anos. Antes de avançarmos até à adolescência e à Casa Pia, conte-me de um brinquedo que tenha tido na infância. No Natal, a Carris dava brinquedos aos filhos dos funcionários. Nesses brinquedos vinha um saco com balões. Eu gostava tanto de balões. Imaginei que se iriam romper e estragar, e por isso guardei um em cima do reposteiro. "Daqui a uns meses, quando não tiver mais brinquedos, brinco contigo. " Mas, dali a uns meses, o balão estava completamente comido, provavelmente pelos bichos. Fez-me compreender que as coisas têm de ser vividas no dia-a-dia. Este exercício que estamos a fazer, de olhar para o passado e perceber que marcas há dele na pessoa que é hoje, é uma coisa que faz amiúde?Não o faço de forma tão sistematizada. Faço quando olho para as minhas filhas, e as vejo, como este fim-de-semana, a encher balões de água e a rebentá-los na piscina. Fiquei a pensar que tristeza seria se o visse na minha infância. Encher balões e rebentá-los de propósito era inconcebível. Ainda demorou muito na sua vida até assistir a cenas dessas, na piscina? E a dar-se com ricos? Muito tempo. Na minha infância só via ricos na televisão. Sempre estive integrado em grupos de pessoas do meu meio. Entretanto, a minha mãe ficou grávida da minha irmã, quando eu tinha 12 anos. Os meus pais tinham conseguido juntar algum dinheiro e começaram a construir uma casa na aldeia. Planeávamos inaugurá-la nas festas de Cabanas, no dia 3 de Setembro. No dia 2, a minha mãe, no fim do tempo, pôs-se em cima de um banco para limpar umas coisas; um banco de madeira, que se desmanchou todo. Caiu, destruiu o pé e o tornozelo, foi operada ainda antes de a minha irmã nascer. Esteve no hospital uns seis, sete meses. O meu irmão e eu ficámos sozinhos em casa, a minha irmã foi viver com uma tia. Estávamos em 1979, com uma inflação galopante. Por via desta falta da minha mãe em casa, da sua orientação, entrámos numa situação financeira crítica. O meu pai trabalhava incessantemente, 20 horas por dia, em grande desespero. Eu cozinhava, aguentava a casa, tomava conta do meu irmão. Chumbei o sétimo ano. Um dia disse ao meu pai: "Não vou estudar mais. " O meu pai olhou-me profundamente; não me lembro onde foi a conversa, mas lembro-me do olhar dele. "Nem penses nisso, está fora de questão. " Foi o olhar da determinação e da autoridade?Não foi um olhar autoritário. Foi o olhar de quem dizia que aquela seria a última opção. "Tens de te salvar pelo estudo"?Sim. "Tens de ser melhor. " A solução encontrada foi a Casa Pia?Foi. O meu pai transportava todos os dias uma senhora que trabalhava na secretaria da Casa Pia. Inscreveu-me, em Outubro de 1980 entrei como externo. Acordava todos os dias às cinco da manhã e chegava a casa às oito, nove da noite. Ia de autocarro de Odivelas até Belém. Associado a isto, tenho uma história com este homem que moldou a minha vida. O seu avô materno, cuja fotografia trouxe para perto de si durante a entrevista. O meu avô Alfredo. Por causa dele, mudei de nome aos 14 anos. O meu nome é António Alfredo. Toda a gente me chamava António, Toninho, Tonho, Tó. Nessa altura em que vou para a Casa Pia, o meu avô chama-me à parte e dá-me 500 escudos para comprar os livros. O homem que está nesta fotografia não sabia ler nem escrever. Na aldeia, pobre, foi o primeiro a ter uma vaca para produzir e vender leite. Foi o primeiro a comprar sementes de couves e a semeá-las. A alcunha dele era o Moca das Couves. Até então, as pessoas comiam cardos. Criou oito filhos e trabalhou noite e dia a sua terra. Quando cheguei à Casa Pia, "como é que te chamas?". Fiquei Alfredo, nome com o qual me identificava. É um tributo ao meu avô, que mudou a minha vida. Sempre vestido de preto, punha o barrete ao domingo, escondia os cigarros Porto dentro. Ainda lhe fiz a barba algumas vezes antes de morrer - dava-me um prazer enorme. Já tinha sucesso quando ele morreu? Em que fase da vida estava quando fez a barba ao seu avô?O meu avô morreu no final de 1992. Já ganhava muito dinheiro. Como foi a entrada na Casa Pia?A Casa Pia é uma escola fantástica a quem devo uma grande parte do que sou hoje. Se tenho continuado no ensino normal, teria desistido no ano seguinte - não acabaria o 9. º ano. Ter-me-ia desestruturado. Não sei se estaria cá hoje. Não sei se me teria acontecido o que aconteceu a mais de metade dos meus amigos, que morreram por problemas relacionados com a toxicodependência; outros estão presos. Aquilo era francamente duro. Heroína, crack. Nunca foi por aí?Nunca. Fumei o meu primeiro charro aos 14 anos, na Casa Pia. Recusei as drogas duras porque representam a alienação do mundo real. E é no mundo real que quero estar. É no mundo real que tenho de lutar. Na Casa Pia encontrei um ambiente hostil. Trinta por cento dos que lá estavam eram brancos; os outros eram negros, mulatos, timorenses (estávamos no fim do processo de descolonização). Miúdos com muito ressentimento, raiva, dor. A hierarquia era vincada, dos mais velhos sobre os mais novos. Tinha 14 anos, consegui socializar bem. Até porque trazia esta esperteza de rua, este street smart, que aprendi com os meus amigos das barracas. Queria licenciar-se, tirar um curso técnico para poder começar a trabalhar rapidamente? Qual é a opção?Vou para os cursos técnico-profissionais. Serralharia, marcenaria, electricidade, electrónica. Fiz uma série de testes psicotécnicos e um preceptor, que estava a licenciar-se em Psicologia, o Silva, viu os meus exames e disse-me: "Tu não tens jeito para nada. " Foi uma farpa que me espetaram. "Filho da puta, vou provar-te que estás enganado. " Nunca mais vi o Silva. Deve ser, com certeza, um funcionário público medíocre. Era um autoritário estúpido, que batia nos miúdos por prazer. Dedico-lhe grande parte das minhas vitórias. De cada vez que tem uma vitória continua a ouvir o Silva a dizer que não tem jeito para nada?Não. Continuo a ouvir o Silva em cada momento de ameaça. Sempre que me sinto acossado, encostado ao canto. Nas vitórias, ouço os meus amigos e a minha família. Na luta, vou buscar a força ao que o Silva me disse. Como não tinha jeito para nada, durante o primeiro ano passei de oficina em oficina. O que eu queria era electrónica. Por alguma razão especial?Era o mais limpo. Era o mais intelectual. Era onde estavam os melhores. E era aquilo para que tinha mais jeito. Encontrei aí alguns dos meus mestres. Na mesma altura, comecei a trabalhar nas férias e aos fins-de-semana. Ajudava a montar equipamento de som em bailes dos Alunos de Apolo, na Feira Popular, nos Bombeiros Lisbonenses. Ganhava algum dinheiro para os cigarros. Um dos bailes era frequentado mais do que tudo por prostitutas e empregadas domésticas - as denominadas "sopeiras". Entre os meus 14 e 18 anos, só tive namoradas sopeiras. Porque eram aquelas a que tinha acesso?Não. Porque cozinhavam muito bem e estavam normalmente sozinhas em casa durante o dia. Como andava com o grupo de baile, encontrava muitas. Especializei-me. . . Quantos anos esteve na Casa Pia?Quatro. Não foi só o estar na Casa Pia, foi o sair da Casa Pia. Saí na primeira fornada de cursos técnico-profissionais e com oferta de três empregos. A RDP, a RTP e a Control Data. Um grande amigo, já falecido, o João Soares Louro, fez-me a oferta para trabalhar na RTP. Um ex-casapiano, também. Não há ex-casapianos. Um casapiano é um casapiano para sempre. Durante este processo Chernobil da Casa Pia, repugnante, todos foram apelidados de ex-casapianos. . . É-se aluno da Casa Pia quando se está lá. É-se um casapiano o resto da vida. É uma coisa que fica, como se nos acrescentassem um apelido. Serei um casapiano até morrer. Como assistiu a todo o processo Casa Pia?Uma instituição com mais de dois séculos, que deu a este país homens únicos, tem estado debaixo de fogo. O crime é hediondo. Durante os anos em que estive lá, apercebi-me de que existia prostituição juvenil. Que é uma coisa completamente diferente de pedofilia. Havia alguns rapazes, internos e externos, que apareciam bem vestidos, alguns compravam motos. Todos nós sabíamos de onde vinha esse dinheiro. "Iam aos paneleiros" - dizíamos. Prostituição. Como havia na tropa. Enquanto estive na Casa Pia, nunca me dei conta de nenhuma situação de pedofilia, com crianças. Nem depois, quando saí. (Fui responsável e presidente do Casa Pia [Atlético Clube]. Mantive uma relação próxima com os órgãos [sociais] da Casa Pia. ) Teria sido o primeiro a revoltar-me. Estava a contar que quando saiu da Casa Pia teve várias ofertas de trabalho. Um outro casapiano, Jaime Ribeiro, convidou-me para a Control Data, em Palmela. Eu e os meus cinco colegas fomos todos. Sentimos que era ali que estava o futuro. Estamos a falar de uma fábrica de discos; um disco de 40 megabytes era maior do que uma máquina de lavar roupa de hoje em dia. A fábrica era subsidiada pela CIA (soube-o mais tarde), para travar a força dos vermelhos no concelho. Estive seis meses na fábrica de Palmela, ganhei muito, muito dinheiro. Foi a primeira vez que teve um emprego que não era precário e onde ganhava bem?Foi. Com 17 anos, a dias de completar 18, fiz um contrato para ganhar de base 75 contos por mês (375 euros). O meu pai ganhava 20 na Carris. No final de Junho, quando me pagaram o ordenado e o subsídio de férias, comprei uma moto. A partir do primeiro mês, tinha dinheiro a rodos. Na fábrica, éramos 70 homens e 700 mulheres; e tive na família em casa de quem aluguei um quarto, em Setúbal, uma segunda mãe e uma segunda família. Nem aí sentiu que podia descarrilar? Era a primeira folga, a primeira possibilidade de respirar fundo. Senti um bocadinho. Aqueles meses foram o meu Woodstock. Ao fim de meio ano, fui convidado para vir para Lisboa. Uma proposta difícil de aceitar, mas que me motivou bastante. Era um estágio de um ano ao cabo do qual passaria a contrato. Ordenado: 25 contos(125 euros)por mês. Era especializado em discos e podia especializar-me em informática de uma forma geral. Aceito vir para Lisboa, volto para casa dos meus pais, fiquei a contrato. A vida corria-me muito bem. Como é que fundou a Urbanos?Senti, por via dos meus skills naturais, e daqueles que aprendi enquanto Testemunha de Jeová, que tinha skills comerciais e que estava a desperdiçá-los na Control Data. Queria crescer. No departamento comercial só podiam entrar licenciados. Estava liquidado. Estávamos em 1988/89, tinha acabado de me casar. Casei com 21 anos acabados de fazer, quando saí da tropa. Na tropa fui para um batalhão de transportes. Larguei os cento e tal contos que já ganhava por 1200 escudos por mês, para fazer o serviço militar obrigatório. Fui com uma raiva muito grande. É a primeira vez que fala de raiva. Em todo este processo, e apesar das coisas por que passou, não disse nenhuma vez: "Fiquei enraivecido. " Para a tropa, fui realmente enraivecido. Porque era um revés? Porque contrariava anos de ascensão?Porque não fazia sentido. Dois terços dos mancebos eram dispensados de forma aleatória. Fui obrigado, não houve nada que pudesse fazer. Chorei dias seguidos. Mas quando saí da tropa trazia um know how precioso: como é que funciona uma frota de camiões, quais são os custos, onde é que se tira vantagem, como é que se faz uma mudança. Transportes e logística. As bases para a empresa que veio a montar. Por isso a montou?Em Portugal, não havia nenhuma empresa de logística especializada em transporte de tecnologia. Na Control Data, os meus colegas e eu estávamos qualificados para transportar os equipamentos, para abrir as caixas de madeira, passar cabos por baixo do chão. Era um trabalho que qualquer pessoa podia fazer desde que não estivesse bêbeda, mal apresentada, não cheirasse mal e tivesse a barba feita. Como é que partiu para a constituição da empresa, com que dinheiro?Comecei a estudar Gestão, fiz uma série de cursos e candidatei-me a um programa de apoio a jovens empresários. Uma verba de 20 mil contos a fundo perdido. As taxas de juro estavam quase a 20 por cento! Fui apresentar o meu projecto ao Palácio das Laranjeiras, num dia quente, em Julho de 1990. No fim, o meu interlocutor perguntou-me, en passant, se eu era filiado no PSD. . . Desisti dessa possibilidade. Falei com a minha mulher, mãe das minhas filhas mais velhas, e apostámos na Urbanos. Com os dois mil contos que tínhamos, comprámos uma carrinha. Envolvi a família: fiz um acordo com o meu pai e com o meu padrinho (o meu pai já estava reformado e o meu padrinho trabalhava por turnos). Dava 20 por cento a cada um se trabalhassem de borla durante um ano. Foi assim que começámos. A Paula em casa a tratar dos papéis, eu na Control Data, simultaneamente, e a conduzir à noite. Correu bem desde sempre?Não tínhamos custos além do gasóleo, e ao fim de um ano tínhamos cinco carros, sete ou oito empregados. Tínhamos uma série de serviços relacionados com a tecnologia, com a importação de bens perecíveis e o transporte de materiais francos que vinham do aeroporto ou do porto de Lisboa, tabaco e uísque para abastecer os navios que estavam a reparar na Setenave. Montar a empresa de raiz, nessas circunstâncias, é um processo ousado. O que é que o fez confiar tanto em si? O passado. O lado dinâmico, empreendedor e de vendedor vem da minha infância. Em Fevereiro de 1992, despedi-me. Deixei os 500 contos e o carro e vim ganhar 167 contos para a Urbanos. Era o necessário para pagar a prestação da casa, para vivermos com alguma qualidade. Arrisquei tudo e não estou nada arrependido. Passei seis anos consecutivos sem férias. Por que é que quis arriscar tudo quando já estava numa situação confortável, com 500 contos e carro? Para quem vem de uma situação de carência como a sua, aquilo já era extraordinário. Mas não lhe bastava. O problema era que aquilo era a prazo e não tinha perspectivas de crescimento. Já sabia que queria ser alguém. Queria que as minhas filhas tivessem uma vida diferente da minha. Queria viajar pelo mundo inteiro, ter acesso às coisas boas. Queria ter uma vida diferente daquela que tive até aos 14 anos. Quando é que o dinheiro deixou de ser uma preocupação? Quando é que deixou de olhar para o lado direito do menu?Quando me divorciei, pesava 118 quilos, trabalhava e fazia uma vida desregrada. Só nessa altura é que percebi que estava milionário. Entre 1991 e 1998, não tive a noção do património que estava a acumular. Estava preocupado em fazer mais, em fazer crescer a empresa, em contratar as melhores pessoas. Mas ainda não estava a desfrutar?Não, de forma nenhuma. Ofereço a mim próprio o meu primeiro presente no dia em que fiz 33 anos. Comprei um Mercedes descapotável, que ainda hoje tenho e que quero guardar como relíquia. O primeiro brinquedo foi a moto. Sim, mas este teve uma carga especial. Porque era inimaginável?Era a consumação de um facto, a consagração, o abrir da garrafa de champanhe. É a fase em que começo a desfrutar. Comecei a ir para a Quinta do Lago e para Vale de Lobos. Nesse ano conheci a Eugénia, com quem vivo e tenho uma filha. Nunca teve complexos de nenhuma espécie? Nem quando o Silva lhe disse que não tinha jeito para nada. Nem quando nas Laranjeiras lhe perguntam se tinha cartão do partido e vê as portas fecharem-se. Não tenho complexos de inferioridade. Parto de uma base muito baixa para um patamar simpático, onde estou, tanto profissional como económico e social. Em cada sítio onde chego, aprendo, adapto-me, não me sinto complexado. Uma vez ou outra senti-me rejeitado. Dói-me bastante, quando acho que o fazem, não por causa do meu valor, mas quando outros valores se levantam. Nunca teve raiva de ricos?Pelo contrário. Há duas atitudes possíveis. Ou estamos na paragem do autocarro a olhar para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Um dia hei-de ser como tu"; ou olhamos para o tipo que passa no Mercedes e dizemos: "Filho da puta, um dia hás-de andar de autocarro como eu. " Sempre usei a primeira fórmula. Esta é uma característica que o nosso povo tem. Apetece-me esganar os nove milhões e 800 mil que às vezes sentem isto. Nunca tive raiva aos ricos. Sempre disse que um dia seria como eles. Mas nunca teve a subserviência que muitas vezes os pobres têm em relação aos ricos. Não. Começou a viajar quando? - era outro dos seus anseios. A primeira vez que fui ao estrangeiro foi quando me casei, em lua-de-mel. Fui de carro a Paris no Renault 5 que tinha. Fiquei em casa de uns familiares, e depois em casa da madrinha da minha mulher, na Suíça. Fizemos um pequeno tour, dez ou 12 dias a ver o mundo e a ficar de boca aberta. A comer McDonalds, aquele sabor único que fica do primeiro que se come. Estive a fazer as contas: já visitei 64 países diferentes. Durante muito tempo, só se deu com pessoas do seu meio. Quando é que os ricos passaram a ser pessoas com quem se cruza na rua, ao almoço?Começo a relacionar-me com pessoas de um poder económico e de um mundo diferente do meu em 1996, a jogar golfe. Percebeu que os negócios passavam pelo golfe?Claramente. Tive sempre muitas ajudas. O meu grande segredo foi nunca desiludir as pessoas que apostaram em mim. Não são os "Silva" desta vida que me fizeram chegar onde cheguei; são aqueles que disseram que eu era capaz, que ia ser bem sucedido, aqueles que me deram oportunidade de fazer um negócio com responsabilidade. Os "Soares Louro" desta vida, os "Manuel Mateus" desta vida. Não podemos desiludir as pessoas que estão connosco, os nossos colaboradores. E nas bases é o mesmo processo: é fazer pequenos "Alfredos Casimiros". Pegar em ajudantes de mudanças e transformá-los em directores de unidades de negócio. Este ano, a Urbanos foi considerada a melhor empresa para se trabalhar em Portugal. O segredo é dar a cada pessoa a noção de que pode progredir?Para além das instalações, do salário, da água, da fruta, é a formação e a possibilidade de crescer dentro da organização. Oitenta por cento da nossa equipa comercial é constituída por pessoas que vieram de baixo. A empresa, culturalmente, está desenhada para motivar, apoiar e acarinhar os melhores membros dentro de cada área, sejam ajudantes ou motoristas. Um caso que ilustre isso que diz. O Bernardino Neves é um study case dentro da Urbanos. Foi para lá com 16 anos e o 2. º ano do ciclo, hoje tem o 12. º ano, está a fazer Gestão, é director de uma unidade de negócio, está a um passo de ser administrador do grupo. Encontro pessoas com um valor extraordinário, que vestem a camisola, que precisam da formação certa. E as pessoas sentem esperança. Isso é uma necessidade de retribuição?That"s business. Também tem a ver com retribuição, mas é um modelo de negócio. O meu negócio não é logística ou transportes, são as pessoas. Trata assim as pessoas porque acha que é assim que profissionalmente a sua empresa pode crescer?Exactamente, com o crescimento dessas mesmas pessoas. É isto que faz com que as pessoas dêem a sua last mile, aquela milha extra quando se corre a maratona, quando é preciso suar e ir buscar energias onde elas já não existem. Estão com esta motivação, este drive, porque têm os exemplos dos outros. E os exemplos são tudo, não podemos escrever por decreto e depois não dar o exemplo. Consegui fazer isto na Urbanos e noutros negócios em que tenho estado envolvido, numa série de empresas que comprei e vendi (foi também isso que me deu mais alguma folga económica). É aquela velha máxima de Sun Tzu: "Não existem maus soldados, existem maus generais. " Tem várias edições na estante de A Arte da Guerra, de Sun Tzu. Também tem pelo menos duas edições de O Príncipe, de Maquiavel. Infelizmente não li a edição inglesa. O meu inglês não é suficientemente bom. Mas o das minhas filhas já é. O golpe mais rude da sua vida foi a morte do seu irmão?Foi. O meu irmão era um grande back up. A existência dele dava-me a possibilidade de estar fora o tempo que fosse necessário, sabendo que em termos profissionais e familiares estávamos à distância de um telefonema. Demorei muito tempo a processar a morte do meu irmão. Chorei nos primeiros cinco minutos, depois parei. Entrei num estado de semitranse em que a única preocupação era fazer controlo de danos na família, nos filhos dele, na minha mãe, fazer umas exéquias fúnebres dignas. Só ao fim de 12 dias é que consegui chorar. Fui a nova Iorque em trabalho, e no terceiro dia não saí do quarto; estive convulsivamente a chorar entre as sete da manhã e as seis da tarde. Tinha-me custado muito a morte do meu pai, mas era mais natural, embora tivesse apenas 61 anos. A morte de um irmão mais novo, um companheiro, um compincha. . . Foi como se fosse uma parte de si?Sim. Tinha 37 anos, foi um ataque cardíaco fulminante, um aneurisma. Fez-me pensar, e faz-me repensar, muito a vida. É evidentemente uma dor imensa. Mas o que é que muda em si, em que é que muda a sua atitude?O meu irmão vivo dava-me a garantia de poder fazer as asneiras que quisesse. Se me acontecesse alguma coisa, tinha alguém que trataria das coisas. O meu irmão morto obriga-me a ser muito mais conservador naquilo que faço, nas viagens, nos riscos que corro. Nos riscos financeiros também. Fiquei com uma grande responsabilidade às costas. Já era o patriarca, agora estou mais isolado e sozinho. Sinto um vazio muito grande dentro de mim. Tem três filhas. Qual é a sua grande preocupação em relação a elas?Quero mandá-las estudar nos melhores colégios, nas melhores universidades, licenciatura, master, o que quiserem. Quero dar-lhes uma ferramenta forte, prepará-las para o futuro. Para que possam ser elas a fazer a sua vida. Não quero correr o risco de, daqui a 30 ou 40 anos, estar às portas da morte e ter três filhas imbecis, à espera que o pai morra para meter a mão em 20 milhões ou 30 milhões de euros cada uma. Elas sabem disso?Têm a noção de que o pai não lhes vai deixar nada. Se as deixar bem financeiramente, vou tirar-lhes o prazer de vencer, de construir. Se amanhã se alavancarem no dinheiro do pai, não vão ter esse prazer. Vão ter o complexo de fazer mais ou melhor que o pai; ou então entregam-se à morte: "Vamos lá torrar o dinheiro que o pai nos deixa. "Quando diz que não lhes quer deixar nada, significa literalmente, nada, além da educação? É uma declaração retórica, tem planos em relação a isso?Tenho. Estou a constituir uma fundação onde quero deixar parte considerável dos meus bens, e onde, naturalmente, se alguma coisa lhes acontecer, em termos de saúde ou incapacidade, tenham um apoio. Mas "toma lá um milhão para começares a vida", isso não?Não, definitivamente. Quero muito poder comprar o primeiro carro e a primeira casa e depois "faz-te à pista". O objectivo desta fundação é devolver à sociedade aquilo que ela fez por mim. Numa primeira fase quero que o projecto contribua para a formação de pessoas com valor que estão desaproveitadas, que as possa motivar e ajudar a encontrar aquilo que realmente querem fazer. Mais do que terem um canudo, um degree, ajudá-las a encontrar a vocação. E, simultaneamente, apoiar, em termos empresariais, micro e pequenos empresários. Pegar em empregados de longa duração, ou nos que estão desempregados aos 55 anos, que dificilmente vão voltar ao mercado de trabalho, que têm a ambição de ter o seu próprio negócio, e dar-lhes formação, ensinar gestão, tesouraria, a lidar com os impostos. Só tem 43 anos, mas por ter começado tão cedo, e por ter tanto que contar, às vezes parece que estou a falar com um homem mais velho. Mesmo a propósito da fundação: é raro ouvir um jovem falar assim do seu futuro. Sente-se velho?A fundação é uma ideia que venho a desenvolver há cinco ou seis anos. O falecimento repentino do meu irmão fez-me acelerar este processo e anunciá-lo publicamente. A morte dele fez-me perceber que não somos nada e que a qualquer momento desaparecemos. Isto faz com que fiquemos com um sentimento de maior maturidade, de envelhecimento precoce. Mas não me sinto nada velho. Sinto que mereço descansar um pouco mais. O que é que ainda o faz correr? No começo da entrevista falou de necessidade e não de vontade. É a competitividade, o vício de ganhar. Ganhar e construir coisas dá-me muito prazer. O dinheiro é importante, mas já não é só isso: é fazer, é ser o melhor, ter a melhor equipa. Por que é que perto de si tem a fotografia do seu avô e o quadro do leão? Quis colocar-se estrategicamente nesta posição, de modo a poder vê-los. É uma peça de um autor austríaco do século XIX. Foi a primeira extravagância, ou melhor, investimento, que fiz, em 1995, em Basileia. Revejo-me neste leão, nos finais de dia, quando chego a casa cansado depois de uma luta feroz. O meu avô, porque foi uma grande referência para mim. Ele e o meu padrinho são dois dos homens que, se tivessem sido apoiados pela fundação que quero constituir, teriam sido grandes homens. Gostava de contribuir para colmatar essas falhas e dar a essas pessoas com esse valor intrínseco, com garra e vontade, a oportunidade que tive, e que infelizmente poucas pessoas têm. Entrevista publicada na revista Pública de 27 de Junho de 2010
REFERÊNCIAS: