Melhorar é a palavra de ordem para Portugal e Marrocos
Selecção africana, com o toque de Hervé Renard, tenta sobreviver no Grupo B. Fernando Santos quer equipa ao nível do Euro 2016. (...)

Melhorar é a palavra de ordem para Portugal e Marrocos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Selecção africana, com o toque de Hervé Renard, tenta sobreviver no Grupo B. Fernando Santos quer equipa ao nível do Euro 2016.
TEXTO: Primeiro foi uma Espanha “em crise”, vítima das suas próprias idiossincrasias, mas que mostrou em Sochi ter sabido resolver os problemas antes de entrar em campo. Hoje será Marrocos, selecção que chegou ao Mundial 2018 moralizada por um ano inteiro sem qualquer derrota, mas que surpreendentemente caiu na estreia frente ao Irão, deixando presa por arames a auto-estima e a sua relação com os exigentes adeptos. Sem margem de erro, o francês Hervé Renard, seleccionador do segundo adversário de Portugal, terá, assim, que recuperar no Estádio Luzhniki os créditos que fizeram de si um dos mais cobiçados treinadores em África. Com menos problemas para resolver, Fernando Santos vai mexer no ataque e resgatar uma parceria de sucesso: Cristiano Ronaldo e André Silva. Na Zâmbia é considerado um herói; na Costa do Marfim é lembrado com saudade; em Marrocos já há quem o chame de “mágico”. Pouco reconhecido na Europa, o treinador do segundo adversário de Portugal no Mundial 2018 tem, aos 49 anos, um currículo invejável em África e é o grande responsável pela enorme evolução da selecção marroquina nos últimos anos. Em 2012, Hervé Renard conseguiu levar uma modesta selecção zambiana a uma vitória inédita na Taça das Nações Africanas (CAN). O sucesso no continente despertou o interesse do Sochaux, mas, de regresso ao seu país, Renard não foi feliz: acabou despromovido à segunda divisão francesa. O falhanço em França motivou novo regresso a África. Destino: Costa do Marfim. Resultado: Nova vitória na CAN (2015). Renard tornava-se no primeiro treinador a vencer a prova por dois países diferentes. A proeza não passou despercebida. Com nova proposta saída de França, Renard cedeu ao convite do Lille, mas seis meses depois, com 13 pontos em 13 jogos, acabou despedido. Sem clube, o técnico voltou a “casa”. Em Fevereiro de 2016, o francês foi apresentado como novo seleccionador de Marrocos e precisou de um ano para, duas décadas depois, voltar a apurar os marroquinos para um Campeonato do Mundo. E o registo, num grupo no qual estavam também a Costa do Marfim, o Gabão e o Mali, impressionou: zero derrotas e zero golos sofridos. Mas qual é o segredo do sucesso de Hervé Renard em África? O francês coloca o mérito em Claude Le Roy, actual seleccionador do Togo, de quem foi adjunto e de quem recebeu um importante conselho na primeira vez que trabalharam juntos em África: “Disse-me que o importante é ser tolerante. Não podemos chegar a África e dizer que em França se fazem as coisas desta ou daquela maneira. É preciso esquecer tudo, deixar de lado as comparações. Se mantivermos o espírito aberto sobre a cultura, as tradições e a mentalidade, podemos ter sucesso. ”Ontem, na sala de imprensa do Estádio Luzhniki, Renard mostrou que as suas qualidades não se ficam pela forma como gere o ego dos sempre problemáticos balneários africanos. Com habilidade e diplomacia, o treinador soube não hostilizar o grande trunfo do seu adversário — “Cristiano Ronaldo é um jogador excepcional, tentaremos que seja menos excepcional” —, mas fez questão de deixar claro que Portugal não se resume a um jogador, por muita qualidade que tenha: “Se colocar três a marcarem o Ronaldo, quem marca os outros? Ele lesionou-se na final do Euro 2016 e Portugal venceu a França”, recordou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E um dos “outros” que os marroquinos terão de marcar no palco da final do Mundial 2018 será, muito provavelmente, André Silva. Fernando Santos escondeu o jogo na antevisão da partida, mas o avançado do AC Milan deverá ser titular em Moscovo, contra Marrocos, reeditando, com Cristiano Ronaldo, uma dupla que foi de enorme sucesso ao longo da fase de qualificação. A outra previsível alteração em relação ao jogo com a Espanha é a entrada de João Mário, relegando Bruno Fernandes para o banco de suplentes. Neste cenário, o médio que na última época esteve emprestado pelo Inter Milão ao West Ham deverá ocupar o corredor esquerdo, com Bernardo Silva a surgir novamente do lado oposto. “Temos capacidade para fazer melhor do que fizemos contra a Espanha”, anotou ontem Fernando Santos, garantindo que “Portugal está pronto e preparado” para o segundo jogo no Mundial. O técnico português reconhece que Marrocos “tem um treinador experiente, jogadores de qualidade, que actuam nos melhores campeonatos europeus, e é uma equipa muito organizada”, que “disputa o jogo no limite”. Independentemente dos predicados do adversário, para o selecionador de Portugal só há um caminho a seguir, o mesmo que tem trilhado a selecção nos últimos anos: “Basta jogar ao melhor nível, como fizemos no Europeu. Se fizermos isso, acredito que vamos ganhar. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura campo ataque marfim
O bolsonarismo na favela
O novo Presidente do Brasil atacou verbalmente mulheres, gays, negros e pobres. Jair Bolsonaro, que toma posse no dia 1 de Janeiro, teve forte apoio da elite branca. Mas nem por isso a periferia deixou de votar nele. O que terá levado tantos moradores de favelas a escolhê-lo? O P2 esteve em algumas do Rio de Janeiro à procura de respostas. (...)

O bolsonarismo na favela
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 9 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O novo Presidente do Brasil atacou verbalmente mulheres, gays, negros e pobres. Jair Bolsonaro, que toma posse no dia 1 de Janeiro, teve forte apoio da elite branca. Mas nem por isso a periferia deixou de votar nele. O que terá levado tantos moradores de favelas a escolhê-lo? O P2 esteve em algumas do Rio de Janeiro à procura de respostas.
TEXTO: Na sede do circo Crescer e Viver onde trabalha Richard Gomes Estrela, 20 anos, há uma enorme tenda de lona azul de onde sai e entra gente. Hora de almoço e a cantina serve carne, feijão, legumes grelhados. Estão a organizar um festival e a actividade é intensa. Richard acabou de ganhar um prémio na mostra competitiva de abertura do festival com um número de acrobacia e lira. Passando pelos cartazes a anunciar espectáculos, aponta orgulhoso para um deles, onde um corpo está contorcido na lira, de uma flexibilidade impressionante: “Aquele ali sou eu. ”O Crescer e Viver é um projecto que junta arte e transformação social, desde os seis anos fazendo acrobacia, contorção, aéreo, malabarismo, teatro, dança e ballet. Neste momento, Richard só se dedica mesmo ao circo, deixou de estudar. No início, o Crescer e Viver era “tudo isso aqui”, diz. Aponta para uma área onde agora há prédios altos na Praça Onze, à boca do metro. É uma zona com carências sócio-económicas e privações habitacionais, onde as casas estão visivelmente degradadas. Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal) chegou a Presidente da República — toma posse a 1 de Janeiro — e a extrema-direita no Brasil venceu em várias frentes, com grande apoio de cidades mais ricas, incluindo o Rio de Janeiro, mas nem por isso deixou de ter votos da população mais desfavorecida e discriminada. No estado do Rio de Janeiro chegou quase aos 68% e na capital passou os 66%. Entre quem estava no escalão económico mais baixo de todos, segundo uma sondagem do Ibope, a maioria votou Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores, PT) mas na fatia seguinte — a de quem ganha até dois salários mínimos, 440 euros — Bolsonaro teve uma ligeira vantagem (47% contra 53%). Foi também entre os jovens dos 25 aos 34 anos que o candidato da extrema-direita conseguiu a maior aceitação, com 49%. As mulheres também preferiram Bolsonaro a Haddad. Não foi o único candidato com posições extremistas a vencer. Estando no Rio, há que acrescentar a eleição de Wilson Witzel, com quase 60% dos votos como governador, um homem que defendeu a intervenção militar nas favelas e a licença para matar quem fosse visto com armas. “O correcto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correcto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”, disse. Richard Estrela foi um dos que elegeram Bolsonaro. Leva-nos a sua casa bem no meio do bairro. Passamos por uns edifícios degradados, ele bate numa das portas de onde sai música alta. Há raparigas de biquíni a tomar “banho de lage”; usam copos de água para refrescar o corpo estendido ao sol para bronzear. A casa de Richard vai sofrer em breve remodelações. Numa das áreas da entrada, sem tecto, espalham-se latas de bebidas gaseificadas e outros objectos entre as ervas que crescem. Da cozinha saem dois gatos magros. “Estão rolando muitas críticas sobre Bolsonaro, mas a gente em casa votou nele no segundo turno”, comenta. “Pela segurança. Aqui é um bairro muito perigoso à noite por causa de traficantes e tiroteios”, diz. “Sei que ele pode acabar com projectos sociais, que ele pode liberar as armas. Mas votei mais nele para colocar respeito na sociedade, que falta. ” Como é que Bolsonaro o fará, Richard Estrela não sabe. Mas acredita que arranjará forma de colocar os bandidos na cadeia, “botar mais polícia na rua”: “Todo o momento tem assalto, alguém sendo baleado. Talvez com ele a segurança seja melhor”, responde sem grande convicção ou ideia de como, na prática, o Presidente irá resolver aquilo que ele quer que resolva. Nunca foi assaltado, mas no bairro onde vive já ouviu serem disparados muitos tiros. Jovem negro e assumidamente homossexual, Richard Estrela diz que o discurso homofóbico de um Presidente que fala em “cura gay” e fez vários comentários racistas não o impediram de votar nele. “Ofender até ofende. Eu saio à noite e tenho o maior medo de encontrar homofóbico na rua e querer me bater. Mas não acho que Bolsonaro está incentivando, não. Criaram um fake [news] em cima dos discursos dele. ”A família sempre o aceitou, tanto que chegou a apresentar o único namorado que teve. Mas Richard acha-se diferente de outros homossexuais. Não concorda “com tudo o que fazem os gays”. Por exemplo, não concorda que os casais homossexuais expressem os seus afectos como os heterossexuais, beijando-se em público em frente a crianças. Acredita, por isso, que de alguma forma Bolsonaro irá colocar ordem na “moral e bons costumes”. A dada altura, ele e o padrinho, com quem vive desde os seis anos, falaram sobre em quem votar na segunda volta. De camisa de alças, este ex-motorista que agora está reformado chega à cozinha para nos explicar que o seu voto foi para Bolsonaro por ser “uma verdadeira incógnita”. O sentimento anti-Partido Trabalhista (PT) é grande. “O Haddad sei que seria mais corrupção, uma bandalheira. ”No escritório do Crescer e Viver, o coordenador Júnior Perim, 46 anos, ex-secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro, comenta que Bolsonaro “falou ao imaginário popular porque a população é vítima de crime”. Continua: “Há uma certa hipocrisia que pode minar a democracia brasileira, uma incapacidade de os sectores progressistas da intelectualidade fazerem autocrítica sobre a ausência de uma agenda para a segurança pública pela esquerda. Não são apenas as operações policiais que geram danos colaterais, é também o cara que está a ser assaltado numa comunidade [favela] e que comprou o celular em dez meses. ”Segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2016 houve mais de 62 mil vítimas de homicídio e 71, 5% foram negros. A taxa — que é superior a 30 mortes por 100 mil habitantes — é também 30 vezes mais alta do que a da Europa. No Rio de Janeiro, depois de uma descida entre 2003 e 2010 de 44, 6 para 29, 8, a taxa de homicídios voltou a subir para 31, 7 em 2016. Júnior Perim critica o Governo PT por ter estado 14 anos no poder sem resolver o problema da segurança, sem dar resposta aos homicídios no Brasil. Perim quer acreditar que “a dimensão litúrgica do cargo e a instituição Presidência da República vão reorganizar a fala de Bolsonaro”. A questão da segurança é central para muitos dos analistas. Atila Roque, historiador, ex-director executivo da Amnistia Internacional e actualmente director da Fundação Ford no Brasil, sublinha que a violência está concentrada nas periferias, com os jovens e negros a ser as principais vítimas: “Se compararmos as taxas de homicídio no Leblon [bairro rico do centro do Rio] são tão baixas quanto a Suíça mas se pegar na Baixada Fluminense [periferia da área metropolitana do Rio de Janeiro] vai chegar a patamares altíssimos. A violência é selectiva em termos territoriais e de perfil populacional. ”Apesar de o racismo, o machismo e os preconceitos fazerem parte da sociedade, a novidade foi existir um candidato que teve apoio de pessoas que não são necessariamente racistas e homofóbicas, mas que não encontraram opção e votaram nele, analisa. “Não devemos cometer o erro de achar que todo o mundo que votou Bolsonaro foi cooptado pelo pensamento dele. Temos de escutar com atenção o que é que o campo dos direitos humanos não foi capaz de conquistar ao longo destes últimos dez anos e perdeu para as igrejas evangélicas fundamentalistas: não tratámos da segurança pública e eles foram avançando. ”Com 23 anos, Luca Santana sai todos os dias às 10h de casa, na Vila Kennedy (uma favela na zona oeste) para demorar cerca de 1h30 ou 2h até ao emprego de vigilante num banco na zona sul (a zona abastada). Trabalha em part-time, ganha um salário de menos de mil reais (228 euros), que dá para “sobreviver, não para viver”. Ainda mora com os pais e com os irmãos. Muitos lá em casa — nem todos — votaram em Bolsonaro. Ele não deu o seu voto ao actual Presidente na primeira volta, apenas na segunda. “Não penso nele como um salvador, nem votei por gostar dele. Mas a gente não atura mais o PT. E não votei em Bolsonaro, votei nas propostas dele. ”Isto porque depois de ler as propostas dos dois candidatos concluiu que “entre Bolsonaro e Haddad era impossível votar em Haddad”. Por exemplo, o candidato do PT queria “reduzir as penas” de prisão — mais concretamente, sugeria alterar a lei para dar prioridade a pena de prisão para crimes violentos e ter penas alternativas para crimes não violentos. “O Bolsonaro é o oposto, o preso tem que permanecer na cadeia, não tem que ser solto. Acho que soltar o presidiário só ia aumentar o crime. Já dá para ver que ele [Haddad] não vive a mesma realidade, não fala a mesma língua do povo. A gente vive assassinato, estupro…”Assaltado duas vezes, ameaçado porque não tinha nada numa delas e “salvo” porque a polícia apareceu, Luca Santana considera que a questão da segurança no Brasil só se resolve com o “confronto directo”. Não é que concorde com tudo o que Bolsonaro defende, nomeadamente a posição de que “bandido bom é bandido morto” ou com a castração química para violadores em troca de redução da pena. Mas acha que “é preciso reprimir, apertar o cerco, não abrir o espaço para que os bandidos tenham acesso às armas”. As ideias de Bolsonaro são “as mesmas que o povo sente de revolta com toda esta situação”, diz. Porque “ele conhece esse espaço e as pessoas que enfrentam este tipo de situação”. Concorda “plenamente” com a solução que apresenta de reforçar a polícia federal e a polícia civil. Quanto ao radicalismo do Presidente, é algo que não o incomoda. “Sinto a raiva que ele tem por essa situação do Rio de Janeiro. A questão do racismo, da homofobia e misoginia, não vi nada disso. ”Embora não tenha ilusões de que Bolsonaro vá mudar o Brasil, acredita pelo menos que vai “melhorar”. Para chegar a Chapadão, em Pavuna, uma das favelas no Rio de Janeiro com menor índice de desenvolvimento humano, tem de se atravessar a cidade e andar quase uma hora de carro. Estamos em meados de Novembro e a viagem é suficientemente longa para perceber que chegámos bem à periferia, fora do centro do poder. Passamos por várias favelas com as suas casas de tijolo, fios eléctricos pendurados, contentores de água azuis, antenas de televisão a perder de vista. Na Pavuna, como em todas as outras favelas brasileiras, há néones de igrejas evangélicas. Numa das entradas do complexo onde vivem quase 209 mil pessoas está justamente o edifício moderno da Igreja Universal do Reino de Deus. Do terraço de casa de Sinara Rúbia, a vista não é muito diferente do que fomos vendo pelo caminho noutras favelas. Nem tudo na paisagem é homogéneo: há casas inacabadas e outras que podiam ser uma moradia em qualquer outra zona do centro da cidade. A Pavuna tem sido notícia sobretudo por causa de episódios de violência como assaltos, mortes ou fogos ateados em autocarros. A feijoada está pronta. Passam-nos uma cerveja e indicam-nos os pratos para encher com arroz, couve mineira e laranja, tudo o que compõe uma das mais conhecidas refeições brasileiras. À mesa sentam-se vários jovens que participam da Agência de Redes para a Juventude, um programa que estimula pessoas entre 15 e 29 anos — e que são moradores de favelas e periferias — a transformarem ideias em projectos de intervenção. Marcus Faustini, 47 anos, é o mentor. Cresceu em favelas diferentes, nomeadamente em Cesarão. Formado em teatro, faz cinema e usa a arte como metodologia, formando jovens que ajudam outros jovens. A agência já actuou em 40 favelas e pôs na rua projectos de cem pessoas, estando presente em vários locais do Brasil e Reino Unido. No grupo há vários evangélicos, todos moradores de favelas. Ao declarar o seu apoio a Bolsonaro, Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da RecordTV, facilitou-lhe um enorme apoio. Quando o candidato da extrema-direita se tornou, então, Presidente da República, algumas igrejas evangélicas fizeram festa nos seus espaços, conta Ellen Rose, 26 anos, arquitecta. “Isso é muito grave”, comenta esta jovem, uma possível futura pastora que dirige uma célula da igreja. Tem tatuado à volta do braço “nada nos poderá separar do amor de deus que está em cristo jesus nosso senhor”. Ellen Rose está muito distante do radicalismo de algumas igrejas evangélicas no Brasil, nomeadamente as neopentecostais. Tem uma atitude bastante crítica em relação ao Presidente. “Na minha igreja tem gente que votou no Bolsonaro, mas tem gente que não votou também. ” Ela confessa que conseguiu “virar o voto” de umas 20 pessoas ao falar do lado violento do Presidente: “As pessoas caíam na real. Diziam: ‘Espera aí, de facto estou votando numa pessoa horrível, que é uma pessoa inaceitável. ’ Inaceitável pelo discurso anti-democrático, de apologia à tortura, violento, racista, xenófobo, homofóbico. Nada disto é velado, é tudo muito aberto. ”Bolsonaro disse abertamente ser a favor da tortura e da ditadura militar, proferiu discursos de ódio homofóbico e racista e não teve pudor em defender posições machistas, nem afirmar que irá banir os opositores. Estão disponíveis na Internet, em vários vídeos no YouTube, as imagens. Ellen Rose diz que alguns eleitores evangélicos se identificavam porque ele foi vendido como alguém com ética. João Baptista, mais conhecido como “Big” por causa do seu porte físico, estudante de audiovisual com 20 anos, também evangélico, sublinha que entre a comunidade os argumentos para votar em Bolsonaro passavam muito por: “Não negoceio meios princípios e Bolsonaro tem princípios cristãos. ”O discurso teve aceitação porque o Brasil é conservador, acrescenta Ellen Rose. Mas não só: “Há uma onda americanizada. Ouvi demais a galera falar que o Bolsonaro é o nosso Trump. Os evangélicos norte-americanos também elegeram Trump e há pastores que fizeram a cabeça de pastores nacionais. Nós sabemos que o povo evangélico elegeu Bolsonaro. ”Os jovens evangélicos que se sentam nesta roda de conversa não são como aqueles que defendem Bolsonaro. Foram reunindo as razões pelas quais os que lhes são próximos votaram nele. Carol Du Pré, 24 anos, lembra-se de ter ouvido como explicação dos seus irmãos a promessa de Bolsonaro poder “trazer ordem e acabar com a corrupção”. No seu projecto social, acontece muitas vezes, por causa dos tiros na favela, que algumas crianças não apareçam. “A gente vive numa favela dominada pelo tráfico. Aquilo que diziam é que Bolsonaro era o candidato que mais trazia uma ‘solução’ para a guerra das drogas. Muito moleque é preso, sai da cadeia e volta a cometer os mesmos crimes, ou então roubam e matam, mas só tardiamente são punidos ou nem chegam a pagar pelos seus crimes. A justiça é tardia, falha. E o discurso do Bolsonaro fala sobre a justiça que nos atinge directamente, que é a do tráfico”, explica. Outro tema que as irmãs falavam muito lá em casa: “Criou-se uma aversão ao PT, diziam que o Haddad ia soltar o Lula. Isso deixava elas indignadas porque ele foi preso por corrupção. ”Carol du Pré dinamiza aulas de pintura na igreja, mas o objectivo não é a doutrinação. O pastor cedeu uma sala para o seu projecto com as crianças. Aqui está um exemplo de uma das razões que faz o sucesso e crescimento dos evangélicos, apontam: o facto de ocuparem um espaço deixado vazio pelo Estado nas zonas mais pobres. Como lembra Veruska Delfino, coordenadora da agência, a igreja acolhe a comunidade, tem as suas políticas de assistência local para a melhoria da vida das pessoas. E reúne um atributo importante: “É confiável. ”É confiável porque está ali, completa Marcus Faustini. “O Governo só vai às favelas com a polícia. E a esquerda também não vai lá. ”Veruska Delfino explica: “Se um líder de uma igreja fala que tem que votar no candidato X, que ele é o cara de Deus, que o outro traz um kit gay que vem com cartilha ensinando que pode beijar menino e menina e é contra os princípios da igreja, mesmo que isso seja falso, ele vota. ”Na verdade, o Brasil “é racista, homofóbico mas estava encoberto pelo politicamente correcto”, diz César Varella, 19 anos, actor que conhece de perto pessoas mais conservadoras, como o pai. Extrovertido, falador, vai acrescentando dados a conversa: “Quando chega alguém como Bolsonaro que fala isso e não é punido, as pessoas que estão caladas há muito tempo vêem ali a oportunidade de ser quem são sem terem de se moldar, sem sofrerem represálias. ”Foi determinante, acrescenta Marcus Faustini, o tema da segurança, algo que afecta a vida das pessoas mais pobres no Rio de Janeiro que “não gostam” de acordar com armas, com tráfico e violência. “A esquerda esteve muito tempo no poder, esquecendo as favelas como qualquer outro Governo. ”Acabado de ser pai e a escrever um livro sobre essa experiência, Felipe Salsa, 27 anos, dançarino, toca noutro ponto importante, que é a capacidade de comunicação de Bolsonaro. Muitos políticos “falam bonito” mas “nem toda a gente de comunidade entende”: “Você também tem que saber traduzir, explicar. ” Já “Bolsonaro falava directamente, era simples. ”Esta é uma questão central, continua Marcus Faustini, porque as causas como o feminismo ou a luta de minorias fecharam-se sobre si próprias e entraram “numa linguagem de classe média universitária”, critica: “São lutas numa estrutura de linguagem de elite, comportamental” que não chega às favelas. Veruska Delfino complementa: “Quando a esquerda radical vem comunicar com a base, traz aquilo que acha que é bom e não procura saber como a gente constrói o mundo que a gente quer. Quem cresce na periferia sem pai quer ter uma família tradicional. Bolsonaro traz uma radicalidade que é contra esses princípios da diversidade, diz que vai botar ordem na escola. Depois aparecem as notícias falsas. Fica muito difícil lutar contra a sua candidatura. . . ”Até porque é uma candidatura que vem sendo preparada há muito tempo. Juliana Carmo, 19 anos, estudante de Engenharia de Alimentos, lembra-se de ver a cara de Bolsonaro a circular na Internet há uns anos, mas como motivo de gozo entre os seus amigos. De repente, o gozo tornou-se realidade. “A campanha dele foi toda muito virtual. Entrávamos no Twitter e as pessoas acreditavam nas fake news e replicavam-nas. Ele conseguiu mexer com gente mais jovem, mas também com o pai e a avó”, analisa. O pai “superconservador” concorda quando ele diz que não quer um filho gay ou quando fala de bandidos mortos porque isso “replica o que muita gente diz há anos”. Marcus Faustini nota ainda que Bolsonaro ganhou em favelas onde os chefes do tráfico disseram para as pessoas não votarem nele. “Então foi um voto de rebeldia, um voto revolucionário, de esquerda. De alguma maneira, Bolsonaro captou uma energia de esquerda, de oposição, anti-sistema. ” Por isso também conquistou jovens. No grupo trocam-se impressões sobre a postura física de Bolsonaro, as frases bombásticas, a rapidez com que discursava e desaparecia deixando os eleitores com “bombinhas”. Sinara Rúbia acentua: a forma de ele falar, “a irritação, a energia, o tom de voz”, o “não querer ir à televisão” aproximou as pessoas. O mais grave: “Ele não precisou de explicar qual o plano de Governo, qual o projecto dele para o Brasil. ” César continua: “Ele chegava com um textinho, só o título, enquanto a esquerda falava de segurança de uma forma que as pessoas não entendem. ”Ouviu-se muitas vezes a crítica à falta de informação dos eleitores. Na verdade, são comuns entre os apoiantes de Bolsonaro atitudes negacionistas sobre as suas posições mais radicais: “Não disse, não fez, são fake news. ” Quem votou no Bolsonaro é mal informado?Veruska Delfino acha que é necessário um maior diálogo com o eleitor que não é activista mas está preocupado com a saúde, a segurança, a educação. Não é óbvio para esse eleitor que Bolsonaro viola direitos. Até porque falta formação política no Brasil, analisa. Tem-se falado muito da radicalidade do novo Presidente, catalogado como extrema-direita, mas poucos usam a palavra “fascista”. César Varella não sabe se ele tem força suficiente para ser um fascista ou se o seu discurso já o torna um fascista. “Pessoas negras, professores e educadores votaram no Bolsonaro mesmo ele falando tudo o que ele falou. ” Isto explica-se, diz Faustini, porque é errada a ideia da esquerda de “que as pessoas se reconhecem prioritariamente na sua identidade de origem”. É um retrocesso a sua eleição: aumenta os riscos de ataques a direitos fundamentais, afirma. A questão, acrescenta Carol Du Pré, é que a Constituição no Brasil proíbe a tortura e Bolsonaro defende-a. As pessoas concordam com as ideias extremistas, aprovam-nas e “já vira lei”. Juliana: “O Bolsonaro não vai chegar aqui e matar todo o mundo, quem vai fazer é o clube de fãs dele. ”Sinara Rubia, activista do movimento negro, faz uma autocrítica. “O voto de pessoas negras ou mulheres no Bolsonaro mostra o nosso distanciamento dessas pessoas enquanto activistas. A nossa produção intelectual está falando de quem para quem?” O seu medo é de que, se não forem tomadas precauções, o risco de alastramento de fascismo seja maior. “Aí o bicho vai pegar e vai ser uma era. Eu tenho muito medo. ” Juliana vai mais longe: “Tenho medo de morrer. ”Já depois da roda, com música a tocar e a festa a começar, Sinara Rubia encosta-se ao muro do terraço, com a Pavuna e os seus telhados desalinhados a estenderem-se pelo horizonte. Com o semblante preocupado, confessa: “Acho que somos um país muito mais conservador do que a gente pensava. Hoje entendo a força da palavra ‘tolerância’. Quando você trabalha a tolerância você vai trabalhando politicamente, no imaginário das pessoas, o respeito, o tolerar aquilo a que elas têm resistência. Quando um governo como o do Bolsonaro legitimiza e impulsiona a intolerância, ninguém mais vai precisar de tolerar. ”Quem sai e quem entra do Rio de Janeiro a partir do aeroporto passa necessariamente entre o complexo da Maré, um conjunto de 16 favelas que foi artificialmente unido, com 140 mil pessoas e uma autêntica cidade dentro da cidade que começou a ser ocupada na década de 1940. A carrinha onde seguimos é parada por um jovem de espingarda em punho, sem camisola, a vigiar quem entra e sai e num cerco a quem travar o tráfico de droga e de armas. Para se ter uma ideia da dimensão, mais de 96% das cidades no Brasil não têm este número de habitantes, diz Eliana Sousa e Silva, 56 anos, que chegou à Maré com sete anos. Há 20 iniciou aquilo que viria dar origem ao projecto Redes da Maré, organização para o desenvolvimento daquele território, que se divide em várias áreas, do apoio a mulheres até às crianças e segurança. Contabilizam as violações de direitos e homicídios — por exemplo, em 2017, houve 42 vítimas de homicídios na Maré em sequência de confrontos armados com a polícia ou o tráfico, as crianças tiveram menos 35 dias de aulas (ou seja, 17% dos dias lectivos) e os postos de saúde funcionaram menos 45 dias por causa disso. Se o processo continuar, aos nove anos uma criança terá menos um ano e meio de escola, afirma Eliana Sousa e Silva. Isto numa favela em que em 1997 apenas 0, 5% tinham acesso à universidade: hoje essa percentagem cresceu e 1200 moradores já entraram para a universidade. “A favela é vista como única e por isso a polícia vem em carros blindados para enfrentar o exército inimigo que somos todos nós”, diz a fundadora numa visita às várias valências do projecto, que inclui biblioteca para crianças. “O direito à segurança pública não foi estabelecido aqui. Isso foi responsável pela violência. ”Na Redes da Maré há um projecto em que se contabilizam o número de violações de direitos pela polícia, comunicam por WhatsApp com outras redes. Por exemplo, desde que Bolsonaro foi eleito que Eliana Sousa e Silva tem recebido mais imagens chocantes nos seus grupos de chat. Mostra algumas com vídeos e fotografias de operações policiais. Numa delas vemos um monte de corpos em cima uns dos outros numa carrinha, mortos. “A relação dos políticos com a favela sempre foi muito conservadora e clientelista”, afirma. “E isso faz com que as pessoas nas favelas não tenham a noção real da importância do seu voto e de que isso vai trazer uma mudança directa para a sua vida”, analisa. “É por isso que o voto é conservador. Bolsonaro pegou um discurso muito forte de que teria de haver uma mudança, atingiu intermediários que têm acesso a essas pessoas e que passaram esse discurso muito bem. ”Há anos que Eliana Sousa Silva se debate com as diferentes oposições ao seu trabalho social. Chegou a ser questionada pelos chefes de tráfico sobre as suas intenções, é questionada por outros poderes sobre a origem dos fundos — a Redes tem financiamento de organizações internacionais como a Open Society Foundation. Analisando em maior profundidade, acha que “é chocante” o facto de a favela se identificar com um discurso que contradiz a sua própria vida e as suas escolhas — “pessoas negras, homossexuais, que foram os mais atacados”. É por isso que há uma lição a estudar, afirma, pois esse voto “foi para além da sua identidade, daquilo que as representa”. Por outro lado, “muitos que vivem na favela têm a mesma visão preconceituosa e estereotipada da favela onde vivem” do que os outros. Um dos objectivos da Redes é precisamente romper com essa representação negativa: “Porque há grupos armados, violência, acção violadora da polícia e existe a visão de que todo o mundo que mora ali tem relação com esses grupos armados e com as actividades ilícitas”, diz. A Redes da Maré conseguiu a colaboração da justiça para ajudar a cumprir direitos básicos dos cidadãos durante as operações da polícia, como a obrigatoriedade de mandado nas rusgas. “E Bolsonaro diz que a polícia pode agir do jeito que achar. Imagina um policial despreparado e doido para matar. ”Nem todos ficaram surpreendidos com a eleição do Presidente de extrema-direita. Moradora da Maré, a deputada estadual Renata Souza, do PSOL — foi chefe de gabinete de Marielle Franco, assassinada este ano —, é uma delas. “Porque não foram votos apaixonados de defesa intransigente da sua agenda. O que a gente ouviu muito foi que votariam no Bolsonaro porque ele ia atacar os corruptos, que ele era ético e que essa coisa de ele falar contra os negros e as mulheres era bobeira porque ele faz muita brincadeira. Bolsonaro foi encarado como essa pessoa de fibra que tem capacidade de fazer frente contra a corrupção. ”Agora, acrescenta, vai ser preciso mobilização, trabalhar com os sectores mais vulnerabilizados, a população LGBT, negra e as mulheres. “A gente tem que estar forte e organizado a partir de debates concretos dentro e fora do Parlamento. Vamos ter que nos reorganizar na nossa sociedade para que a barbárie não vire política pública e o medo não seja o instrumento principal dessa política. ”A análise da coordenadora pedagógica da casa das mulheres da Redes da Maré, Andreza Jorge, também moradora, é um pouco diferente. Entre um percurso pelo complexo em dia de chuva, com valões onde boiam garrafas, lixo, ratos e outros animais que são portadores de doenças contagiosas, vai comentando aquilo que moradores de outras favelas repetem: a distância do poder político com estes espaços. “Dentro desses micro-universos, o voto em Bolsonaro pode ser uma forma que os eleitores encontraram de fazer justiça contra os civis armados e contra o tráfico de que eles discordam. O lance é que esses eleitores não entenderam que ele é visto como parte do pacote. ”Falta ainda outra dimensão importante, a da comunicação e das redes sociais que chegam em força à periferia. Bolsonaro é um Presidente eleito pelo WhatsApp e pelas redes sociais, dialogando directamente por estes meios com os eleitores sem passar pelo confronto político e ideológico com os adversários. Neste momento com 8, 8 milhões de seguidores na página de Facebook, Bolsonaro tinha a maior percentagem de eleitores com acesso a redes sociais, segundo uma pesquisa do Datafolha. Também era entre os seus eleitores que estava a fatia maior de pessoas que liam notícias sobre política no Facebook e WhatsApp. Dríade Aguiar, 28 anos, é gestora de comunicação da rede de colectivos Fora do Eixo e uma das fundadoras do Mídia Ninja, um projecto alternativo de informação que tem 16 milhões de seguidores. Sempre conectada às redes sociais, a especialista divide os eleitores de Bolsonaro em vários tipos. Há os que realmente acreditam naquilo que ele diz e que, apesar de serem a maioria discursiva, em termos numéricos são uma pequena percentagem: “É essa galera que faz barulho, comenta e gera ódio” Há o grosso dos votantes, pessoas “esperançosas” — a combinação de instabilidade política, crise económica e caos mediático levou a que a maior parte votasse anti-PT. E há uma terceira fatia que “se encanta pela personagem de Bolsonaro como aquele ‘pai’ que vai resolver as coisas”. Num país onde há periferias sem água canalizada, mas com Internet, Bolsonaro tirou partido da utilização das redes sociais em grande escala, inspirado por eleições como a de Donald Trump. “A grande sacada é que ele entendeu onde estão as pessoas e como chegar a elas de forma mais efectiva. Ele sabe que na política a verdade é um detalhe e conseguiu jogar com isso. A gente está falando de um homem que tem um certo apelo carismático, extremamente menosprezado e que é limitado politicamente. A grande coisa é que ele tem uma máquina e sabe o que colocar nela. Soube fazer uma matemática que vai para além da máquina e que é uma falha que a esquerda mundial não conseguiu calcular. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Usou também, como nenhum outro candidato, o discurso identitário, forçando “todos os candidatos” a “navegar” com ele, considera esta mulher negra e defensora de direitos LGBT. O Brasil é estruturalmente um país conservador, analisa, com uma grande fatia da população que não concorda com as quotas para negros ou direitos homossexuais mas “que não votaria contra”. “A área progressista do Brasil é programa social e desenvolvimento económico, mas a disputa por direitos não é de todos. Sabia que essa é a nossa existência, mas não estava à espera de que um líder usasse isso como plataforma. Porque até agora os líderes ignoraram isso, até o Lula. Ele não falava sobre mulheres, sobre negros, era o avanço de classes. ” De qualquer forma, Dríade acha que este debate foi “de nicho”: na hora de votar, o que pesou ao eleitor foi educação, segurança, saúde. Quem ficou com medo agora foram pessoas que ainda “não tinham elaborado sobre os problemas que tiveram”. Os negros, a comunidade LGBT, as mulheres têm medo, mas não vem de agora. “Por muito tempo o medo era inconsciente: se você é uma pessoa negra, LGBT, de periferia e mulher nasce com medo. Depois passa a vida descobrindo que esse medo tem nomes: pode chamar racismo, machismo. O medo agora tem um nome próprio: Bolsonaro. ”Na Mídia Ninja, a “atitude mais revolucionária” que vão ter é continuar com os projectos. “Não estou a dizer que a gente não vai fazer uma frente de resistência. Mas se a gente parasse ia perder o grande trunfo que é sermos nós mesmos — e é justamente disso que ele tem medo. ”
REFERÊNCIAS:
Madrid vai multar quem acampar, pedir esmola ou solicitar prostitutas na rua
Um novo conjunto de proibições poderá entrar em vigor no próximo ano e as multas vão até aos 3000 euros. (...)

Madrid vai multar quem acampar, pedir esmola ou solicitar prostitutas na rua
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 9 | Sentimento 0.416
DATA: 2013-10-09 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um novo conjunto de proibições poderá entrar em vigor no próximo ano e as multas vão até aos 3000 euros.
TEXTO: Abordar prostitutas; pedir esmolas; acampar em espaços públicos; fazer truques de malabarismo; alimentar ou dar banho a cães na rua. Este é parte do cardápio de proibições que a Câmara Municipal de Madrid quer pôr em prática na capital espanhola. As multas para “acabar com os costumes pouco respeitosos ou conflituosos nas ruas” vão dos 750 aos 3000 euros, de acordo com o jornal El País. Os novos regulamentos prevêem três tipos de proibições com punições em conformidade com a gravidade dos actos. As multas até 750 euros são aplicadas a quem solicite serviços de prostituição na via pública; peça esmolas à porta de um centro comercial; cuspa ou atire papéis para o chão; ofereça folhetos nos semáforos; perturbe os vizinhos enquanto rega as plantas; faça malabarismos; suba a uma fonte ou alimente ou dê banho ao cão na rua, entre outras. As multas ascendem a 1500 euros por comportamentos racistas, xenófobos ou sexistas; condutas de mendicidade perturbadoras dos transeuntes; solicitação de serviços de prostituição perto de colégios ou centros comerciais; oferta de jogos ou apostas com dinheiro; urinar ou defecar na rua; ou danificar mobiliário urbano. Finalmente, as contra-ordenações mais graves, com multas até 3000 euros, visam aqueles que têm comportamentos discriminatórios e perturbam menores, idosos ou deficientes; utilizam menores incapacitados para pedir esmolas; promovem a prostituição junto de colégios ou exercem-na na rua; transportam toxicodependentes a pontos de tráfico de droga; ou ainda que coloquem jarras nas varandas sem protecção adequada. É esperado um aumento das multas, de acordo com a câmara, mas “não existe nenhum interesse na indemnização”, garante Dolores Navarro, vereadora dos Assuntos Sociais. O município não prevê o aumento do policiamento nas ruas para assegurar o cumprimento do novo regulamento. Apesar do valor elevado das coimas, haverá uma ponderação de acordo com critérios que levam em conta a capacidade económica do infractor. Segundo o El País, desta forma, as multas leves podem chegar aos 750 euros, mas também se podem ficar pelos 90 cêntimos ou por serviços comunitários, de acordo com a decisão do município. A aprovação dos novos regulamentos está prevista para o início de 2014.
REFERÊNCIAS:
Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura
Há três anos, com Esse Cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca de raça, género, identidade. Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente. (...)

Djaimilia Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há três anos, com Esse Cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca de raça, género, identidade. Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente.
TEXTO: O nome de Djaimilia Pereira de Almeida apareceu na literatura há três anos quando publicou Esse Cabelo (Teorema, 2015), ficção autobiográfica, situada num sub-género que recebeu o nome de auto-ficção. É uma espécie de romance-ensaio que despertou a atenção de leitores e da crítica para a que parecia uma voz inovadora de uma geração que falava de raça, identidade, género, questionando clichés associados à condição de negritude ou do que é viver num mundo de estranheza seja no lugar onde nasceu, Angola, como naquele onde cresceu e vive, Portugal. Djaimilia foi então comparada a outras escritoras femininas que surgiram nos EUA, Inglaterra, em países de África como a Nigéria ou a Etiópia; mulheres que escrevem desafiando o que se espera delas. Aos 36 anos, regressa, confirmando que aquele livro não foi um acto solitário numa obra que quer construir, assume aqui, distanciando-se desse eu narrativo inicial e autobiográfico, para se aproximar da invenção mais pura. Está a descobrir o que isso é. Luanda, Lisboa Paraíso (Companhia das Letras) é um passo nessa direcção. Em pano de fundo há a guerra, a pobreza, os retornados, os que ficaram, os que sobrevivem em território estranho, a doença, a exclusão. . . Mas há, entre tudo isto, dois homens como protagonistas, um pai e um filho, e a memória de cada um; um passado que se quer esquecer, alguém que decide que não será mais angolano. É uma construção de identidades condicionada por um presente que nunca se compadece dessa memória, que não a respeita. Esquece-se para se sobreviver no novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora que acaba também de ganhar uma bolsa de criação literária. Esse Cabelo foi um livro muito bem recebido que a conotou, enquanto autora, com as questões de raça, feminismo, identidade, a partir da escrita autobiográfica. Como se vê no modo como a situaram na literatura?Não se pode controlar a maneira como se é recebido nem o que os leitores fazem com o que nós escrevemos. Portanto, lido com todas essas categorias, rótulos de leituras, o que for, com enorme curiosidade e também alguma surpresa. Não aconteceu, até agora, ter sentido que não me estivessem a fazer justiça. Se calhar não utilizaria todas essas categorias para descrever o que fiz, mas recebo-as com grande serenidade. Imaginemos que lhe seriam dadas a escolher categorias que a identificassem. Preferia não escolher. Há muitos aspectos da história da literatura portuguesa que são importantes para mim. É a tradição que conheço melhor e a que está na minha cabeça quando estou a escrever. A literatura portuguesa, a língua portuguesa. Mas a literatura portuguesa é uma coisa muito vasta e todos esses rótulos são leituras a posteriori. Além disso, os livros surgem num certo momento e a recepção que têm é percepcionada pelos momentos históricos que estamos a viver. Esse Cabelo surgiu num momento muito particular em que fez sentido ser abraçado por uma série de causas. Veio num tempo que o recebeu bem. Exactamente. Nessa vastidão histórica e geográfica da literatura portuguesa há espaços e temas que estão, no entanto, menos explorados, periféricos. A sua escrita traz essa experiência. Sim, reconheço-me nessa descrição de que o género de histórias que tenho contado até agora é o de história periférica, mas não me sinto periférica em relação à literatura portuguesa em geral, sobretudo como leitora. É verdade que tenho um percurso de vida parecido com o de muitas pessoas que vieram de África; algumas até nasceram cá; pertenço a esse conjunto de pessoas. Mas tive um acesso privilegiado à tradição literária que muitas dessas pessoas não têm. É natural que quando começo a contar histórias, elas venham de um lugar de onde até agora têm vindo poucas histórias, mas nunca premedito fazer isso. E também não sei se vou continuar a fazer sempre isso, porque interessa-me explorar também o atrevimento de que uma pessoa que venha de uma posição mais periférica possa contar histórias que não se cinjam à periferia. É trazer para a conversa pessoas que se calhar nem sequer chegariam a ler os livros. Interessa-me também, porventura, falar de outras coisas de um ponto de vista menos periférico. Há três anos, quando falámos, já dizia isto, que é preciso que comecemos a ouvir as histórias de pessoas de várias periferias. Tenho muita curiosidade por muitas histórias. Não só pelas de afrodescendentes, mas pelas de outras comunidades que vivem em Portugal. Por exemplo, anseio pelo momento em que comecemos a ouvir as histórias dos asiáticos que vivem em Portugal, ou das comunidades indianas. Não encaro isto como se de repente pudéssemos aceder a todas essas identidades, mas que todos possamos participar numa conversa, que é uma conversa muito antiga, a que se chama literatura portuguesa. De que nomes, dessa tradição, se sente mais próxima e a fazem ter esse sentido de pertença?Não me cinjo à literatura portuguesa, porque pude ler muitas outras coisas. Aliás, os autores a que volto mais vezes são, sobretudo, franceses. Mas na literatura portuguesa interessa-me muita coisa que vai desde Sá de Miranda até. . . nem sei por onde começar [risos], mas Raul Brandão, Fernando Pessoa, muitos poetas. Aos 18 anos, quando comecei a pensar que gostaria de escrever, de fazer isso na minha vida, andava a ler Manuel Gusmão. Sou uma pessoa de livros mais do que de autores; portanto, mais do que dizer autores, sei os livros que me marcaram. O livro do Manuel de Gusmão chama-se Teatros do Tempo [Caminho, 2001] e foi muito importante para mim. Durante certa altura o Álvaro de Campos. Noutra fase, ainda muito jovem, li muito Herberto Helder. Entretanto comecei a alargar as leituras. Mas há livros muito marcantes, Os Pescadores, do Raul Brandão, foi muito importante num certo período e acompanhou-me ao longo de muitos anos. Neste momento, no presente, volta ser muito importante para o que vou fazer a seguir. Há pouco dizia que já não se lembra do que está no seu novo livro. Acaba de sair. Como é que essa memória se apaga assim?Não sei. Mas depois do livro estar feito e publicado, normalmente não o volto a ler. Custa-me bastante, e vou-me esquecendo. No momento em que o livro está pronto sei-o todo de cor. Depois fecho e esqueço. Lendo agora o Esse Cabelo é uma surpresa ver o que lá está porque já me esqueci. Voltou a esse livro?Não. Mas quando vou, quando calha a ir por qualquer razão, já não me lembro de nada. Apagou-se. É um mecanismo de defesa, medo de encarar o texto?Não. Acho que preciso de esvaziar o espaço para o ocupar com outras coisas. Quando publico um livro estou sempre nervosa e começo logo a pensar noutras coisas. Já começou?Sim. Quando estou mais ansiosa, escrever ajuda-me muito. Nos momentos de maior tensão ponho-me a escrever. Normalmente, ponho-me a escrever outra coisa e vou esquecendo o que ficou para trás. Este novo livro traz uma grande oralidade à escrita, uma oralidade quase antiga. Concorda?Nunca tinha pensado nisso. Mas sim, não fiz nenhuma pesquisa. Se calhar são coisas que não sabia que sabia e emergem à medida que vou escrevendo, aparecendo naturalmente; modos de falar, pronúncias. . . Estão num subterrâneo qualquer e a imaginação abre uma caixa. Esta semana estava a pensar nisto, de como é esta coisa de fazer um livro. Agora que estou dedicada a um texto que é passado num outro período, noutro século, e estava a pensar que é como agarrar num prato de vidro ou um jarro de vidro, atirá-lo ao chão e ele partir-se em mil bocadinhos. O momento da escrita é como se os muitos, muitos bocadinhos de vidro vindos de muitos lugares se constituíssem num mosaico reconhecível. Há coisas que não sabia que sei, ou já não me lembro que sabia, que passei por elas. Pode ser um olhar visto não sei onde, o aspecto de uma casa que vi em qualquer lado. São vários bocadinhos que depois formam. . . Um sentido?Sim. Vem de um livro-ensaio, onde há um eu assumidamente autobiográfico, para um romance com alguma coisa de autobiografia. Os dois situam-se mais ou menos na mesma época, em comunidades mais ou menos semelhantes, onde sai do eu ficcional. Como é que isso aconteceu?Sim. O que se passou entre um livro e o outro foi que percebi que o conseguia fazer. Só não escrevi Esse Cabelo na terceira pessoa porque acho que ainda não sabia como é que se fazia isso. Passei três anos a tentar perceber como se fazia porque só me interessava fazer isso. Sair do eu?Sim. Completamente. Agora cada vez tenho menos interesse, ou já não tenho nenhum interesse, em escrever do ponto de vista do eu. Interessa-me afastar-me do meu próprio ponto de vista e virar-me para fora, para o ponto de vista dos outros e aproximar-me de outras figuras que não eu. Eu e a minha particularidade deixaram de me interessar. O que interessa é pensar em como é que se conta uma história, como é que se faz um livro e, de projecto em projecto, trabalhar isso. É como se fosse um vector que antes estava apontado para mim e agora passa a estar apontado em direcção contrária, no sentido do mundo lá fora. Há pouco tempo Zadie Smith contava a dificuldade de fazer o percurso inverso, deixar a terceira pessoa e escrever na primeira, o que só aconteceu no último livro dela. Sim, lembro-me de entrevistas antigas de Zadie Smith em que ela dizia que achava fútil estar a escrever na primeira pessoa. Para mim foi o contrário, porque eu gostava de escrever livros como os que gosto de ler e o género de histórias que gosto de ler é de aventureiros e marinheiros. Que resultam da imaginação. Sim. Homens em mar alto, piratas. Há um sentido de aventura que o ponto de vista da primeira pessoa, acabando por se centrar nas nossas próprias angústias, não permite muito. Sobretudo, interessa-me contar histórias e interessa-me contá-las do ponto de vista do número mais variado de pessoas que eu ainda não sei quem são. Como foi essa aprendizagem, por exemplo, a de construir personagens?À custa de muitas tentativas; tentativa e erro. O livro não é muito longo, mas houve muito desperdício. . . Para mim nunca é desperdício porque em todo esse caminho não deito nada fora, vou sempre buscar coisas; acaba sempre por ter um uso, tal como na costura se usa o desperdício para fazer outras coisas. Mas houve muito, muito desperdício. Sobretudo porque neste caso também tentei procurar uma forma clara, mais clara; uma frase mais clara; procurar um certo ritmo, um modo menos reflexivo de expressão. Sair mais do ensaio?Exactamente. E tentar encontrar a forma de contar adequada à natureza das vidas que eu estava a falar. Interessava-me uma escrita mais terra a terra. Talvez isso tenha sido mais difícil do que propriamente construir as personagens. Talvez a coisa mais difícil tenha sido o processo de desaprendizagem necessário para dizer as coisas de uma maneira simples. Na minha cabeça o livro teve sempre o aspecto de um balanço e, a partir de certo ponto, escrevi-o como se estivesse a contar às personagens como tinha sido a vida delas, como se elas me perguntassem: "então como foi a nossa vida?". Interessava-me contar-lhes de maneira a que elas conseguissem entender. Foi muito difícil porque tinha toda uma série de vícios e de tiquesAutoria: Djaimilia Pereira de Almeida Companhia das LetrasAcadémicos?Académicos e não só, que me interessava mandar fora. É preciso muita paciência para isso – paciência para comigo – para chegar aí. O território de Luanda, Lisboa, Paraíso, no entanto, é-lhe familiar. Não foi para um universo imaginário. Ainda não. Até um certo ponto este é um mundo que eu conheço, mas também só até um certo ponto. Não houve grande pesquisa. Houve uma grande recolha de objectos e as personagens foram construídas a partir dos seus objectos. Há a história de uma mala encontrada numa feira de velharias. Sim, está ali [aponta para outro canto da casa]. São objectos que apanho em feiras de velharias. Vou todos os domingos a essas feiras. Levo muito pouco dinheiro e vou à procura de coisas. O que lhe interessa nessa procura? Histórias?Sim, histórias, mas sobretudo gosto de velharias, mas não são coisas valiosas. Faço colecções de algumas coisas e aquilo mexe com a minha imaginação como mais nada mexe. Começo a pensar: está aqui um copo, de quem foi este copo. Dá-me muitas ideias. Faço isto há muitos anos e nunca pensei em histórias a partir daí. Foi acontecendo naturalmente. A certa altura dei conta de que estava a comprar objectos sem nexo, coisas de que não precisava para nada, lixo autêntico, tralha, e depois comecei a olhar para aquilo tudo e a pensar: isto podia ser tudo da mesma pessoa, podiam ser objectos de uma pessoa. Era como se fosse um enxoval de uma pessoa que eu não conhecia. E começou a atribuir um dono àquele enxoval. Exactamente. Tudo coisas de homens. Um cinto, uns óculos escuros. . . Foi assim que eles nasceram. Depois comecei a desenhar, uns desenhos sem interesse, uns homens; no início de tudo foi assim. Depois ganharam nome e foram nascendo. Houve também muitas imagens. Fotografas importantes da história da fotografia, que também me dão muitas ideias; ver livros de fotografia ajuda-me muito, a perceber nuances, princípios de personagens e princípios de histórias. Isso tudo, junto com leituras que estava a fazer, ajudou a chegar a este livro. Um livro em que, como referiu, os protagonistas são homens. . . Foi totalmente espontâneo. Nunca me apareceram como mulheres e, não sei porquê, mas ultimamente sempre que escrevo, escrevo sobre homens, e como não contrario. . . Como chegou à estrutura deste livro que se divide em duas partes?Essa divisão é muito tardia. Gostava de ser capaz de escrever um livro que fosse, da primeira à última linha, sem capítulos, sem interrupções, um texto contínuo. Dou muita importância à mancha; não conseguindo ainda fazer isso, divido-os por capítulos. O livro saiu há pouco tempo, as reacções estão ainda a sair. Como gere este momento?Desta vez, como não houve lançamento, fiquei menos nervosa. Opção sua?Sim. Porquê?Nunca vou a lançamentos [risos]. Não faz muito o meu género e, então, podendo não o fazer, não fiz. Ao mesmo tempo isso também foi um bocadinho estranho. Não houve nada a marcar, e de um dia para o outro o livro estava nas livrarias; ainda não o vi em nenhuma livraria não vou ver nada. Lê as críticas?Sim, algumas leio. Mas também não leio integralmente. Isso não me interessa. O que sinto é que o que eu tinha de fazer já fiz. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas interessa-lhe ser lida. Interessa-me, sim. Se houvesse um lançamento se calhar teria ficado ansiosa. Mas agora sinto-me feliz porque concluí. A maneira como giro esta fase é pôr-me a escrever. Este é um período muito produtivo, em que escrevo muito. É uma espécie de casaco com que me visto. O seu nome numa altura em que há uma curiosidade global acerca de uma escrita feita por mulheres negras e pelo que traz de novidade à literatura. É uma curiosidade que ultrapassa a literatura e é social e política. Sou leitora de algumas dessas pessoas e acho esse contributo importante. Mas quando se fala de escritores com um percurso como o meu às tantas já não se está a falar de literatura. Já só se está a falar de todo esse lado, social, político. . . Acho importante nunca perder de vista também o aspecto literário. O contributo social e político é tão mais forte e perene quanto se misturar com esta conversa; a conversa: essa conversa antiga, a conversa do que se passa nos livros. Interessa-me participar nessa conversa. É tão mais subversivo o contributo de todas essas pessoas quanto mais ele se inscrever nesta conversa e continuar para lá do momento em que as discussões fora da literatura estavam a ser tidas. Os livros preservam o sentido da discussão e mantêm entre si uma discussão própria, que nos ultrapassa, que se prolonga para lá de nós e para lá do momento que estamos a viver. Não se sente representante de algum tipo de literatura. Não. Talvez sinta uma grande responsabilidade. Mas é, antes de mais nada, uma responsabilidade em relação próprio trabalho que estou a fazer e de respeito para com as personagens de que estou a falar. Presto contas às personagens. Mas não me sinto representante de uma literatura. Sinto que estou a contribuir para uma conversa, que também é essa conversa política, social, etc. , mas quando escrevo não estou a pensar nisso. Estou a perceber como é que se faz o que eu gostava de saber fazer. E preservando um certo gozo em fazer isso. Escrever é a coisa que me dá mais alegria. É uma coisa associada à felicidade. Se ainda por cima os livros contribuírem para uma discussão, se chamarem a atenção para coisas, se forem lidos com benefício para pessoas, fico ainda mais feliz. Mas não premeditei isso, porque se me concentrar apenas nisso tenho medo que os livros se tornem maus.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Naia, o fóssil de uma ninfa da água, veio dizer como foi a colonização das Américas
Crânio de uma rapariga com mais de 12.000 anos sugere que a colonização original das Américas veio de uma única população asiática. Descoberto na Península do Iucatão, no México, a análise deste fóssil é divulgada agora. (...)

Naia, o fóssil de uma ninfa da água, veio dizer como foi a colonização das Américas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 Asiáticos Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Crânio de uma rapariga com mais de 12.000 anos sugere que a colonização original das Américas veio de uma única população asiática. Descoberto na Península do Iucatão, no México, a análise deste fóssil é divulgada agora.
TEXTO: Os vestígios fósseis que permitem aos investigadores tirar conclusões sobre os momentos-chave da pré-história podem surgir nos locais mais inusitados. Naia, que em grego significa “ninfa da água, é o fóssil com mais de 12. 000 anos de uma rapariga que foi encontrado em 2007 no fundo de uma gruta submersa na Península do Iucatão, no Sudeste do México. Passados sete anos, a análise dos seus ossos sugere que a colonização original das Américas veio de uma única população, e não de populações diferentes como alguns cientistas defendiam. A partir desta população original, os humanos foram evoluindo nos nativos que habitam as Américas desde o Norte até ao Sul, refere um artigo publicado esta sexta-feira na revista Science. Permanecem muitos mistérios sobre como ocorreu a colonização das Américas, devido aos escassos vestígios arqueológicos. O conjunto de informação reunida até agora pela arqueologia, pela genética humana e pela paleontologia apontava para uma determinada hipótese sobre a entrada dos humanos naquele continente, mas com contradições: uma população vinda da Ásia estabeleceu-se há cerca de 26. 000 anos na região agora submersa do estreito de Bering, entre a ponta Nordeste da Ásia e o Alasca, na América do Norte. Naquela altura, a Terra vivia a última era glaciar. Devido ao frio, grandes glaciares estendiam-se pelos continentes e, por isso, o nível médio do mar era mais baixo. O estreito de Bering não existia, havia antes a Beríngia, uma massa de terra seca com uma área equivalente a cerca de duas vezes a Península Ibérica. Pensa-se que esta população ficou a viver aí até há cerca de 17. 000 anos. Entretanto, a Terra foi aquecendo, os gelos derreteram-se, o nível médio do mar foi subindo e aquela região acabou por ficar submersa. Na América, os vestígios arqueológicos de actividade humana mais antiga encontram-se no Alasca e têm 14. 400 anos. A partir daí, há registos a sul, mais recentes, tanto de vestígios de actividade humana como de ossadas humanas. Hoje, os estudos genéticos em várias populações humanas mostram um parentesco entre os nativos das Américas e os asiáticos, e que passa por esta população da Beríngia. Mas encontraram-se certos marcadores do ADN das mitocôndrias (fora do núcleo das células e transmitido só pela mãe) que só existem nos nativos americanos. Não existem nos asiáticos. Estas diferenças genéticas só puderam surgir se esta população da Beríngia tivesse chegado a esta região há pelo menos 25. 000 anos, mantendo-se isolada desde aí. Esta hipótese do compasso de espera de cerca de dez mil anos na Beríngia é apoiada por registos fósseis de animais e de plantas, que indicam que aquela região era habitável, mesmo durante um período tão frio da história recente do nosso planeta. O grande mistério vem dos poucos fósseis humanos com mais de 10. 000 anos na América do Norte. Normalmente incompletos, os crânios destes fósseis mostram pessoas cuja fisionomia de cara era alongada, estreita e projectada. Tinham uma fisionomia mais parecida com a de africanos, australianos nativos e polinésios actuais do que com os nativos americanos e os povos asiáticos, cuja cara é mais redonda. Esta contradição conduziu à hipótese de incursões na América provenientes de, pelo menos, duas populações diferentes: uma vinda da Beríngia há menos de 17. 000 anos, que originou os nativos actuais; e outra mais antiga, de proveniência desconhecida, originando os paleoamericanos, que não teriam deixado sobreviventes. Outra hipótese, que Naia parece agora confirmar, diz que os paleoamericanos são os antepassados dos nativos americanos actuais. Naia foi descoberta em 2007 pelo mergulhador Alberto Nava, da organização Exploradores Submarinos da Área da Baía de São Francisco, em Berkeley, na Califórnia, e por mais dois colegas que exploravam o sistema de grutas de Sac Actun. O fóssil estava no fundo de uma gruta submersa de 30 metros de altura, com o formato de um sino, e a que os mergulhadores chamaram Buraco Negro. Além do crânio, foram encontrados costelas, vertebras e ossos pélvicos. Mais abaixo na gruta, também estavam dispostos ossos de 26 grandes mamíferos, como a preguiça-gigante e espécies aparentadas do elefante. A gruta foi inundada há menos de 8000 anos. E os ossos agora analisados terão caído antes, numa altura em que o sistema de grutas não estava inundado e tinha apenas poças temporárias. As fracturas nos ossos pélvicos de Naia, que tinha 15 ou 16 anos quando morreu, levaram os cientistas a especular que ela estaria à procura de água e teria caído naquele enorme buraco. Para datar o fóssil, avaliar a sua fisionomia e fazer uma análise genética ao ADN mitocondrial, reuniu-se uma equipa de 16 cientistas de várias instituições, liderada por James Chatters, paleoantropólogo e fundador da empresa de análises forenses Applied Paleoscience.
REFERÊNCIAS:
O último dos roceiros
É um dos países com a população mais jovem do mundo, mas um dos problemas sociais mais preocupantes é a maneira como os mais velhos são tratados. Em São Tomé e Príncipe, as mulheres de cabelos brancos, chamadas “feiticeiras”, fogem do estigma e de maus tratos alimentados pelas dificuldades económicas e pela religiosidade. A pressão demográfica fomenta vários problemas sociais de difícil resolução. (...)

O último dos roceiros
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um dos países com a população mais jovem do mundo, mas um dos problemas sociais mais preocupantes é a maneira como os mais velhos são tratados. Em São Tomé e Príncipe, as mulheres de cabelos brancos, chamadas “feiticeiras”, fogem do estigma e de maus tratos alimentados pelas dificuldades económicas e pela religiosidade. A pressão demográfica fomenta vários problemas sociais de difícil resolução.
TEXTO: Até parece que se vestiu de propósito para contar de livro aberto o que sabe da terra com sabor a café e cacau. Camisola às riscas com as cores de São Tomé. Verde, vermelho, amarelo e preto. Vê-se à distância, a aproximar-se de passo ligeiro, assente nuns chinelos direitos com os dedos de fora. Chega preparado para contar a história dos seus 82 anos, vividos por inteiro naquela roça. Ali nasceu, ali trabalhou e ali vive, sem ter visto muito mundo além daqueles cerca de mil hectares da roça Monte Café, propriedade de portugueses até à independência de São Tomé, agora quase abandonada no trabalho mas habitada por centenas de são-tomenses, muitos deles desempregados. É isso que faz doer o coração ao Doutor Paulino, como lhe chamam os que ali vivem. É o mais velho dos ex-trabalhadores ainda do tempo dos colonos da roça de Monte Café, na província de Mé-Zóchi, entre o centro e o Norte da pequena ilha de são Tomé. “É pena, estava bonito isto. Agora está tudo estragado, pá”, lança. Com os olhos fixos no chão, não por estar triste — e até o está —, sim porque, apesar de conhecer os caminhos de terra batida desde que nasceu, vai atento aos buracos e pedras que lhe aparecem de surpresa, que, sem manutenção de uma rede viária que conta com apenas três estradas alcatroadas em toda a ilha, são cada vez mais. O caminho para chegar àquela que foi uma das maiores roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe é, como quase todos na ilha principal, esburacado, por entre vegetação que cresce da noite para o dia, num clima que pode chover numa hora e fazer sol na seguinte. Ao contrário de outras roças, a casa senhorial é mais discreta. A imagem de marca, fixada nas fotografias, mostra a entrada da roça e o local que Paulino melhor conhece: à primeira vista parece um armazém com duas partes distintas e uma guarita para o segurança, mas lá dentro espraiam-se os grandes secadores. “É para mexer o cacau, para a frente e para trás”, exemplifica com os poucos grãos podres que sobram para a demonstração numa estrutura de madeira que se estende como um longo tabuleiro, antes rodeada durante a jorna por dezenas de pessoas que repetiam o mesmo gesto. Para a frente e para trás. O carregamento do cacau e do café — sobretudo o arábica, porque este é terreno em altitude, propício a esta espécie — era feito por uns vagões que rolavam entre a plantação e ali entravam, naqueles longos armazéns, num complexo mundo de roldanas e carris. Depois voltavam a sair, com destino ao entreposto da cidade de Trindade. “O comboio chegava até lá acima para ir buscar o café. ” Agora, o traçado férreo dá para lado nenhum. Os carris que ainda sobrevivem entram na terra. A erva já tomou conta e escondeu-os. Resistem poucos centímetros fora das portas dos armazéns. Os restantes desapareceram ao longo dos anos, à semelhança do que aconteceu em toda a ilha, sobretudo na altura da independência. Foram sendo arrancados como símbolo do fim da colonização, vendidos para o exterior ou aproveitados para estruturas de casas. No tempo em que a exploração agrícola feita pelos colonos portugueses em São Tomé e Príncipe estava no auge, no século XIX, a rede ferroviária contava com mais de 200km de carris, numa ilha com cerca de 900km2 (mais pequena que a área da Grande Lisboa). Agora, é inexistente. Pontuam aqui e ali sinais de que passaram em tempos comboios, mas poucos são os que ainda têm memória de os usar. Como prova de tempos que já lá vão, existe a antiga garagem de comboios no centro da capital São Tomé. Foi desactivada e só voltou a abrir como Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias (CACAU) da ilha. Dos comboios restam apenas fotografias. O fim dos carris é apenas um dos sinais da decadência económica das roças são-tomenses. Votadas ao abandono agrícola, são, no entanto, habitadas por milhares de pessoas que ou trabalham na cidade mais próxima ou estão desempregadas. Os números do Governo dizem que São Tomé tem 12, 3% de taxa de desemprego, mas as estatísticas têm alguns problemas na identificação do trabalho formal e informal. Problemas nos dados sobre o país que começam logo no apuramento ao certo da população total. A nacionalização das roças foi, para Paulino, o símbolo da destruição daquela onde nasceu. Antes, tinha “ordem”, “agora não há ordem, cada qual faz o que quer”, diz. E a ordem de antigamente implicava também o trabalho de sol a sol, a distribuição de carne de 15 em 15 dias, o pagamento de salário que pouco mais dava do que para comprar vinho e a distribuição de açoites, dados com frequência pelos capatazes aos “malandros”. O homem que trabalhou para colonos, que prolongaram a escravatura, oficial e oficiosa, quase até à independência de 1975, e agora conta a história da roça a quem a visita, não tem esperança de que esta paisagem de abandono mude no futuro próximo. A cada 30 de Setembro, o país celebra o Dia da Reforma Agrária, antes denominado Dia da Nacionalização das Roças, sem orgulho naqueles espaços praticamente abandonados nos campos, em que os cacauzeiros e os pés de café que não são trabalhados se perdem na vegetação que vai crescendo e tomando conta do espaço. “Agora é gente que está a viver aqui”, conta Paulino. “Eu trabalhei muito… a carregar cacau, trabalhei na oficina e na administração”, vai dizendo, enquanto mostra os espaços que agora não têm a utilização para que foram construídos. “Aqui era a casa dos trabalhadores. O colono deixou isto. É pena, a criança que está a nascer agora não vai saber de nada”, diz, à medida que se encaminha para a antiga zona da administração e que é agora uma sala com algumas sacas de café. Há poucos dias chegou uma máquina nova para o secar. Uma associação está a tentar produzir e exportar café de alta qualidade, reactivando aos poucos uma roça que estava abandonada. A Cooperativa de Exportação de Café Biológico Cecafeb junta pequenos produtores de café daquela roça para melhorar a vida da comunidade e já consegue produzir diferentes tipos (arábica, robusta ou bourbon). Adiante desponta a antiga senzala, agora dividida em pequenas casas, se se pode chamar assim, onde é visível a roupa estendida e os panos a fazer de janelas e portas e muita, muita gente a deambular. Mais uns passos. “Aqui era o hospital”, onde nasceu Paulino e que na maior parte das roças de São Tomé era o edifício maior e com a localização mais imponente. Agora, tornou-se creche, por onde passam as muitas crianças que ali nascem todos os anos. Outro hospital, noutras roças como a de Agostinho Neto, a maior do país, está a ser pilhado — até os pilares, que são a única coisa que resta com as paredes, estão a ser retirados para serem vendidos —, foi tomado e divide-se em casas que desenrascam as inúmeras famílias que nascem ao sabor da acelerada natalidade do país. O Doutor Paulino, aos 82 anos, é um exemplo da explosão demográfica. Tem dez filhos e “sessenta e tal netos”. “Está a ver? Foi um bom trabalho”, diz, soltando no fim uma gargalhada. Para Paulino, ter muitos filhos é motivo de orgulho e gabarolice, ele que tem a sorte de ser bem tratado por todos e de servir de exemplo. Para São Tomé, mostra dois dramas cada vez maiores e entrelaçados entre si: a explosão da juventude e os maus tratos na velhice. Na televisão, aparece o primeiro-ministro, Patrice Trovoada, que voltou a vencer as eleições do último domingo, a inaugurar uma irrigação pública para agricultura no Norte do país. Com esta medida, muitas famílias, diz, podem ter água para as suas culturas. Mas o problema, à beira daquela obra, é o mesmo que se multiplica pelas ilhas do arquipélago: a falta de terras para grande parte da população e a falta de trabalho. Patrice Trovoada, que lidera o ADI (Acção Democrática Independente), partido que venceu sem maioria absoluta as eleições de 7 de Outubro, promete rever um dos principais problemas de São Tomé, que tem que ver com redistribuição de terras. O assunto é recorrente nos últimos anos e já deu origem a vários conflitos no país, como quando anteriores governos quiseram retirar o direito de exploração de terras a quem não as explora na verdade. O mapa da propriedade de São Tomé deixou de ser uma divisão por grandes parcelas (roças), propriedades dos colonos (estima-se que existiam 150 roças em São Tomé, a grande parte do território privado do país), para ser agora caracterizado pela existência de milhares de pequenos terrenos, sem escala, muitos deles propriedade do Estado explorados por particulares, e as poucas roças, abandonadas ou dadas à exploração por empresários. Esta nova divisão territorial resulta da nacionalização das roças e de um longo e demorado processo de distribuição de terrenos pelos são-tomenses, que se iniciou no final do século passado. A nova realidade do território, virada uma nova geração, cria problemas estruturais, como é com frequência referido por técnicos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Já foi dividido. Quem tem tem e eu não tenho”, lamenta Etson Van Dunem. O sobrenome que partilha com a ministra portuguesa da Justiça, diz que por causa de uma tetravó comum, de nada lhe vale. À beira da larga estrada de pedra, imagem de marca da famosa roça Agostinho Neto, antes Rio D’Ouro, vende artesanato e é com o dinheiro dos poucos turistas que ali vão e lhe compram uma ou outra peça que consegue sustentar o casal de filhos. Aos 35 anos, Etson tem poucos filhos, quando se compara o seu agregado familiar com o dos seus mais de mil vizinhos naquela roça. Etson está por aqui porque a Agostinho Neto foi a única roça que não viu os seus terrenos serem distribuídos pelos cidadãos. A terra é de todos e de ninguém. “Na altura da independência, podia ter ganho uma parcela e crescia uma banana e dava para sustentar. O pessoal mais velho diz que antes era melhor, mas agora também é bom porque temos liberdade. Eu sinto que está melhor, a única dificuldade tem que ver com a alimentação e com o emprego. Tudo isso vai levar tempo”, lamenta. Sem a fruta-pão, a matabala, a jaca e a banana saídas da terra e sem dinheiro para as comprar, aumenta a pobreza, sobretudo nas novas gerações. “Não morrem de fome [porque há fruta]? Vou semear onde? Tenho de ter terreno. Os lotes agora são privados, temos de os comprar” e não há dinheiro para isso. Os mais jovens queixam-se da dificuldade que têm em conseguir ter comida, porque, se não herdaram ou se já não vivem com os pais, não têm terras e grande parte deles também não tem emprego. Esta colisão entre interesses das várias gerações provoca alguns problemas sociais que se prolongam há décadas e que se acentuam com a pressão que o aumento demográfico faz aos recursos destas pequenas ilhas. Dados do Banco Mundial mostram que da década de 1960 para o ano de 2017 a população são-tomense mais do que triplicou, passando de 64. 200 pessoas em 1960 para 204 mil no ano passado. Neste crescimento, é preciso ter em conta os fluxos migratórios, mas grande parte da explosão demográfica explica-se pela redução da mortalidade infantil, pelo aumento da esperança média de vida e pela quantidade de filhos por família. A sociedade são-tomense mostra cada vez mais, dizem vários envolvidos em instituições sociais, graves sinais de deslaçamento entre as gerações, com frequência dentro da própria família, um problema para a coesão social e para o desenvolvimento. Parte desse deslaçamento é explicado por ser uma sociedade onde há uma grande poligamia (dos homens), cada um tem filhos de várias mulheres e estas, quando têm novo companheiro, são culturalmente impelidas a ter um filho nesse casamento para que possam ser consideradas mulheres do novo marido. Esta acaba por ser a explicação para uma grande quantidade de famílias desestruturadas, em que a mulher toma conta dos filhos e em que há uma falha na relação entre os homens e os descendentes. Mostra também um deslaçamento que tem raiz na história. Sem população nativa, as origens dos são-tomenses são variadas, por ter sido um importante entreposto do comércio de escravos durante séculos, mas também porque, para trabalhar nas roças no século XIX e XX, chegaram àquele país muitos trabalhadores vindo das então colónias portuguesas, o que separou muitas famílias. E provocou um problema que parece difícil de resolver: a maneira como se tratam as mulheres, sobretudo as mais velhas. Hermínia tem cinco filhos que sobreviveram aos dez partos que teve. “Os meus filhos são maus”, desabafa com desespero na voz. A conversa não é coerente, fica irritada a tentar contar a história de como foi abandonada pelos filhos, mas a desconexão do pensamento de Hermínia, de 65 anos, deixa apenas transparecer a tristeza que carrega por não ser visitada por nenhum dos descendentes, de quem cuidou sempre e que, quando o tabuleiro da vida deu a volta para ser ela a precisar de ser cuidada, a maltrataram e abandonaram. Chamaram-lhe “feiticeira”. Foi recolhida pelo lar Simoa Godinho, no bairro do Hospital na cidade de São Tomé, que há anos acolhe idosos abandonados, uma obra apoiada pela Cooperação Portuguesa da área do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Começou por ter 50 vagas e agora já vai em 90 utentes e uma lista de espera de outros tantos. Os números impressionam se se pensar que a população com mais de 65 anos não ultrapassa as 5900 pessoas em todo o arquipélago. De acordo com os dados do Banco Mundial, a população acima de 65 anos, que representa 2, 9% da população total do país, está a cair desde 2005, o que pode significar que houve uma mudança na qualidade de vida dos mais velhos e deixa também transparecer a necessidade de resolver os cuidados para esta franja da população. É para isto que alerta há anos Elsa Viana, directora do lar Simoa Godinho, onde está Hermínia. “Temos experiências de idosos que chegaram aqui porque vieram com uma perna partida, com um braço partido, porque a comunidade ou a família achou que era uma feiticeira”, conta a responsável pelo lar. As mulheres mais velhas são muitas vezes chamadas “feiticeiras”, basta alguém sonhar que estava a fazer mal aos filhos ou aos netos ou “assim que as mulheres têm cabelos brancos…”. No caso das mulheres, ficarem grisalhas pode ser um problema em algumas comunidades, sobretudo as urbanas e mais pobres. Este fenómeno não é recente, mas tem-se agravado junto daqueles que não têm recursos. Há uma franja muito pequena da população que tem direito a reforma, e esse valor, residual para os gastos do quotidiano, empurra muitos idosos para a mendicidade. “Na conjuntura actual, as pessoas têm tido dificuldades em poder manter o idoso e a única forma [que encontram] é expulsar, porque acham que é um fardo e é mais um que têm de sustentar”, acrescenta Elsa, que conta que é frequente encontrar idosos a pedir junto aos mercados na capital. São estes os mais vulneráveis aos maus tratos e às acusações de feitiçaria. Um cenário que condiz com uma das conclusões de um estudo sobre o tema, que deu origem ao livro Os Filhos não Ligam. Os Filhos não Visitam. O Abandono dos Idosos em São Tomé e Príncipe, de Cristina Rodrigues (ISCTE). “Aqueles que são conotados com práticas de feitiçaria são quase sempre idosos que pedem esmola em vários locais”, pode ler-se no estudo. Quando o P2 esteve em São Tomé e Príncipe, corria de boca em boca a história de uma mulher em Santo Amaro, vítima de maus tratos severos, que lhe provocaram a morte às mãos da violência de um sobrinho. O abandono, os maus tratos e a violência que por vezes termina da pior maneira — há descrições de rituais em que os idosos são envenenados — tem sido uma preocupação de várias organizações não-governamentais que estão no país há anos. “Não creio que seja por maldade, mas por falta de condições; aqui, uma pessoa quando é mais velha, como não rende, chamam-lhe feiticeira e já não é aceite no meio familiar como deveria ser. Alguns até são, mas depois há muitos que são atirados à sua sorte”, conta a irmã Lúcia, que lidera o Projecto de Desenvolvimento Integrado para o Distrito de Lembá, da Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, um projecto apoiado a 100% por Portugal, através da Cooperação Portuguesa. Apelidar alguém de feiticeiro é acreditar numa força superior, em poderes mágicos malévolos que se apoderam de alguns mais velhos e em que os próprios, muitas vezes, acabam por acreditar, sucumbindo ao fado que é ter sido escolhido para, sem saber como, praticar ou provocar o mal. O bispo Manuel dos Santos, que está em São Tomé há mais de dez anos, faz uma ligação directa a estas crenças com o facto de haver uma realidade social onde proliferam várias igrejas, vários credos e muito paganismo, apesar de os números oficiais continuarem a dar a Igreja Católica como dominante. Sendo um assunto amplamente debatido há largos anos, o bispo de São Tomé acredita que neste momento se verifica uma “involução”. “Eu diria que hoje no mundo voltaram a aparecer determinadas ideias algo esotéricas, mágicas, primitivistas. Essa cultura, algo primitivista, não ajuda a evoluir neste campo, bem pelo contrário. Quando se entra numa cultura dualista, de forças boas/forças más, de uma certa ideia pagã da vida, onde existem forças positivas e negativas, onde existem bons espíritos e maus espíritos, não ajuda a uma evolução”, refere em conversa com o P2. Esta relação com os idosos pode parecer, à primeira vista, uma especificidade de São Tomé e Príncipe, mas para o bispo tem uma raiz na cultura africana. “Estamos numa cultura típica de África em que a doença ou a morte têm de ter uma explicação. Alguém tem de ser culpado. Muitas vezes são os idosos que sofrem essas consequências. Às vezes, os próprios pensam que podem ser, porque ser feiticeiro não se escolhe, acontece. E então é o próprio idoso que acabava por aceitar a sua sorte e viver essa dificuldade na sua vida. ”Esta ligação aos costumes e à cultura, em que a religião tem papel central, é também uma das conclusões a que chega a investigadora Cristina Rodrigues, que revela que há uma “estreita ligação” entre “o abandono de idosos e os valores e crenças tradicionais, em oposição aos valores introduzidos pelos modelos ocidentais e pela educação formal”, concluindo que as acusações de feitiçaria são mais frequentes quando estão na base “elemento relativos à condição económica, encontrando-se estreitamente conotada com a miséria e a pobreza que a aparência dos idosos e os seus actos revelam”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Do ponto de vista político, assume-se que este é um problema, que só pode ser combatido com mais educação nas escolas. Mas mudar costumes é como remar contra uma maré de correntes de águas vivas. Com a “globalização cultural, muitas vezes os nossos jovens já não seguem esta tradição que seguíamos no passado” de cuidar da família e por isso, diz o ministro do Emprego e dos Assuntos Sociais de São Tomé, Emílio Lima, é “necessário, provavelmente mudarmos os aspectos que têm que ver com a educação e a preparação da nossa sociedade, para podermos integrar aqueles que cuidaram de nós no passado e que hoje precisam que sejamos nós a cuidar deles”, refere em conversa com o P2. Raras são as respostas que são dadas a estes problemas que assolam a sociedade de São Tomé — todos eles enraizados na pobreza do país —, que tem dificuldades em encontrar um caminho para um desenvolvimento económico que amenize o drama social que se acentua a cada ano que passa. O P2 viajou a convite do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social
REFERÊNCIAS:
Religiões Paganismo
São portugueses, são muçulmanos
É o segundo maior grupo religioso do mundo, com cerca de 1,6 mil milhões de seguidores estimados. Em Portugal, calcula-se que estejam uns 50 mil. Apesar de ainda ser uma religião minoritária, ser muçulmano não é sinónimo de imigrante. (...)

São portugueses, são muçulmanos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É o segundo maior grupo religioso do mundo, com cerca de 1,6 mil milhões de seguidores estimados. Em Portugal, calcula-se que estejam uns 50 mil. Apesar de ainda ser uma religião minoritária, ser muçulmano não é sinónimo de imigrante.
TEXTO: Está sentada no banco à porta do espaço de oração reservado às mulheres na Mesquita de Lisboa, onde não é suposto os homens circularem. No interior, ouve-se o adhan, chamada para a oração. Hanifa, o seu nome de convertida, ficará de fora. Em 2008, numa conversa entre amigos muçulmanos, falou-se do profeta Maomé e Hanifa ficou fascinada sobre um tema que desconhecia. Não sabia nada sobre o islão, foi investigar. Mais tarde, numa viagem a Marrocos, em Tânger, ouviu o adhan e sentiu “qualquer coisa”. “Arrepiei-me e a primeira coisa que me veio à cabeça foi: ‘Tenho de ir à mesquita’. ”Mas não sabia rezar. Chegada a Lisboa, foi aprender árabe. O interesse pelo islão cresceu, até que em finais de 2009 se converteu. Hoje, aos 48 anos, diz que não teve de fazer grandes mudanças na sua vida. “Sempre fui cristã, mas havia algumas crenças que não faziam sentido para mim”, explica. Por exemplo, “Jesus ser filho de Deus: como é que o criador de tudo necessitava de um filho, humano?”O islão tornou-se, assim, o seu código de vida, a fé que “lhe serve”. Nasceu cristã, tornou-se muçulmana, “submissa à vontade de Deus em todas as situações”, com “capacidade de ver para além das evidências, aceitar o que nos surge na vida, o bom e o mau”. Usa o hijab (o lenço que cobre a cabeça) na mesquita, onde lecciona aulas de Português, mas também na rua — só que nem sempre. O hijab não pode ser uma peça de vestuário, um acessório, diz, é uma conduta que a mulher aceita e exterioriza. Quando anda na rua de hijab ouve, por vezes, piadas — miúdos que fingem falar árabe. Às vezes ignora, outras incomoda-se. “As pessoas ainda não se habituaram à ideia de que existem muçulmanos portugueses. Pensam que são todos estrangeiros. Muitos comentários que vejo na Internet sobre notícias como os atentados no Charlie Hebdo são: ‘Deviam ir para a terra deles. ’ Chocam-me pela ignorância. Até comentei: ‘Sou portuguesa, sou muçulmana, então para que terra é que eu vou?’ Os portugueses não se habituaram que o islão não é uma nacionalidade, é uma crença. Acham estranho como podemos ser muçulmanos num país maioritariamente católico. E desconhecem o islão: falam do Corão como um livro que incita à violência sem nunca terem lido. ”Calcula-se que existam 50 mil muçulmanos em Portugal. Há quem pense que o número tenha baixado por causa da crise, mas como não há dados oficiais não é possível saber com rigor. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa — Odivelas, Laranjeiro, Palmela, Barreiro… — mas há locais de culto no Porto e no Sul. O grosso é sunita (como no resto do mundo). 50 mil muçulmanos em Portugal. Há quem pense que o número tenha baixado por causa da crise, mas não há dados oficiais. A maioria é sunitaNo século XX, vieram primeiro nos anos 1950 e 1960, e eram moçambicanos de origem indiana. A seguir ao 25 de Abril, juntou-se outra vaga migratória vinda sobretudo da Guiné-Bissau, seguida, nas décadas seguintes, de muçulmanos originários do Bangladesh, Senegal ou Marrocos, mas em número muito menor. Abdool Magid Vakil diz que foi o segundo muçulmano a chegar a Portugal no século XX. É um dos fundadores da Comunidade Islâmica de Lisboa e um dos rostos muçulmanos portugueses mais conhecidos. Economista e gestor que exerceu cargos de chefia em vários bancos, entre eles o Banco de Portugal e mais tarde o Efisa, fez parte do pequeno grupo de estudantes universitários muçulmanos vindo de Moçambique para estudar para Portugal nos anos 1950 e 1960. Sentado no hall de um hotel lisboeta, lembra, porém, que “o fenómeno do islão é muito antigo em Portugal, já vem da Andaluzia — e depois a Inquisição fez com que parasse tudo”. Na fundação da comunidade entraram também ismailitas (uma das correntes do xiismo), pois Vakil “não fazia distinção”. Aliás, na universidade partilhava o quarto com um ismailita, “ele fazia a oração à maneira dele e eu fazia à minha”. Era uma época em que em Portugal não havia ideia do que significava ser muçulmano. “Ouviam falar dos árabes, dos sarracenos e mouros e outros nomes. Havia muita ignorância mas não havia maldade. Eu era um bicho raro. Não bebia, não comia carne…”Por outro lado, na sua família tinham medo que ele, ao vir para Portugal e ao casar-se com uma portuguesa, perdesse a prática da fé. A mulher acabaria, porém, por se converter. “Fui a primeira família muçulmana de origem indiana a estabelecer-se cá”, conta, lembrando a época em que não havia mesquita e se rezava em sua casa. Mais tarde, quando já havia uma comunidade, seria a cave da residência do embaixador do Egipto a servir de local de oração, depois fez-se uma mesquita provisória num edifício no Príncipe Real, até ser lançada a primeira pedra da Mesquita Central de Lisboa em 1979 (inaugurada em 1985). “Sou membro do European Muslim Network, um think tank baseado em Bruxelas, presidido pelo professor Tariq Ramadan. Uma vez numa reunião pública disse que em Portugal nunca houve problemas com os muçulmanos. Houve uma senhora que levantou o dedo e disse: ‘Parece que vive no paraíso. ’ E é. Somos muito permeáveis. Há curiosidade — as pessoas querem saber porque fazemos assim ou assado. Mas não são xenófobas. ”O recente episódio de vandalização da mesquita, em que alguém escreveu 1143 a graffiti a seguir aos atentados ao Charlie Hebdo, leu-o como “algo inofensivo”. Os jihadistas portugueses são “filhos de imigrantes” convertidos e “são uma excepção”: “A verdadeira jihad é dominar a minha alma tirando a maldade”, explica. Vakil não acha que os muçulmanos sejam invisíveis em Portugal, acha apenas que são discretos. Em 1991, a socióloga alemã Nina Clara Tiesler veio estudar minorias religiosas em Portugal — nessa altura, diziam-lhe que os muçulmanos eram um “não fenómeno”. Investigadora do Instituto de Ciências Sociais e docente na Universidade Leibniz de Hanôver (Alemanha), contextualiza: a elite muçulmana que veio das ex-colónias, sobretudo de Moçambique, nos anos 1950, à qual Vakil pertence, constituiu o tecido principal da primeira vaga de imigração muçulmana e continua a ter um papel-chave no destino da comunidade islâmica. São aquilo a que chama a intelligentsia da migração. “Estas figuras conseguiram um caminho muito suave do processo de integração dos muçulmanos”, diz ao telefone. Numa das suas teses, Muçulmanos na Margem: A Nova Presença Islâmica em Portugal (2000), defendeu que havia uma invisibilidade dos muçulmanos em Portugal, comparativamente ao resto da Europa. Depois disso, continuou a sua investigação em Portugal e continua a afirmar que, apesar de algumas coisas terem mudado, outras ficaram na mesma, mantendo-se alguma invisibilidade. “Na esfera pública portuguesa, não há muita discussão sobre pontos nevrálgicos que acontecem entre maiorias não-muçulmanas e minorias muçulmanas noutros países, como a educação islâmica ou a construção de minaretes, por exemplo. ”A socióloga explica-o com o facto de em Portugal a nova presença islâmica ser reduzida e com o facto de no quotidiano não ser muito fácil de identificar: não há o hábito de usar o hijab e as mulheres muçulmanas africanas, maioritariamente vindas da Guiné-Bissau, confundem-se com outras mulheres africanas. Para Nina, não há grandes diferenças, fenotipicamente, entre os muçulmanos de origem indiana e o povo português, “muito misturado”. Além disso, a questão da pobreza não está associada a minorias religiosas como em França e na Alemanha — em Portugal, apesar de afectar alguns muçulmanos, abrange outras fatias da população. Porém, “para quem tem os olhos abertos”, os muçulmanos já ganharam visibilidade, pois são “dedicados aos programas de ajuda humanitária”, como a recolha de sangue ou o banco alimentar, ou a sopa para todos na mesquita. “Quando o Governo oficialmente não podia receber o Dalai Lama, eles receberam — Dalai Lama foi à mesquita que se tornou um lugar de reunião dos presidentes de comunidades religiosas. Tanto os sunitas, como os ismailitas da Fundação Aga Khan (com o seu importante programa de ajuda social Capacidade) estão nestes terrenos que não são políticos, porque para a emancipação religiosa temos os protestantes — o que noutros países acontece com os muçulmanos. Então os muçulmanos ganham visibilidade com coisas positivas. Eles já eram portugueses antes de virem de Moçambique para Portugal, por exemplo, e quando voltaram eram retornados, não imigrantes. ”A geração seguinte integrou-se pacificamente — ou, se quisermos, invisivelmente. Nina Tiesler lembra um estudo que fez com dados até 2006 que concluiu não existirem diferenças notáveis relativamente aos hábitos e cultura do quotidiano entre jovens muçulmanos portugueses e jovens portugueses não muçulmanos com o mesmo background socioeconómico: “São até mais portugueses do que alguns portugueses. ”Vem da oração de sexta-feira na Mesquita Central de Lisboa, usa um chapéu e túnica brancos. Muhamad Traore, 26 anos, designa-se como “afro-português” — nasceu em Portugal, os pais são da Guiné. É futebolista em Oeiras, está a treinar para ser profissional. O sonho é “jogar no grande Sporting”. Sendo um dos cinco filhos de Fuad, assistente do xeque Munir, imã da mesquita, cresceu num ambiente religioso. A maior parte do seu tempo passa-o entre não muçulmanos: amigos de infância, amigos dos treinos. Se está com eles às horas de reza, num café, tem de se levantar e “correr para ir à mesquita”. Quando treina em horários incompatíveis com a oração, torna-se mais difícil cumprir. “Nem todos os jovens seguem a 100% . O meu irmão é professor no colégio de Palmela, o meu pai lá em casa aperta comigo, dá conselhos: ‘Não te esqueças de que és muçulmano, podes estar com os teus amigos, mas quando é para rezar não te esqueças, tenta dar bom exemplo aos teus amigos. ”Como muitos muçulmanos, Muhamad estudou no único colégio islâmico em Portugal, em Palmela (estava em época de exames e não tinha ninguém disponível para nos receber). Sente que a imagem do islão foi afectada com acontecimentos como o 11 de Setembro ou os ataques ao Charlie Hebdo. “As pessoas que me conhecem nunca me disseram nada, sempre me trataram bem, mas quem não é meu amigo, quando vê muçulmanos, tem aquela imagem negativa que vê na televisão. Digo sempre: ‘Não somos todos iguais, eles têm uma cultura diferente da nossa’. ”Odivelas é uma das áreas de Lisboa onde há mais muçulmanos, e mesmo ali é raro usar “esta roupa”. Repara que quando as mulheres que usam o hijab passam as pessoas olham duas vezes. Tenta não ligar. Quando aparece assim vestido, os amigos dizem a brincar: “Ah taliban. ” Mas é “tudo na base da brincadeira”, conta, a sorrir. Ele gosta de se vestir assim para se identificar como muçulmano. Mas gosta também de entrar nas igrejas e aprender sobre outras religiões. “Vivi cinco anos em Londres, lidei muito bem com judeus. A religião muçulmana é muito simples. Diz que o direito do homem é o mesmo que o direito da mulher. Até estava a comentar com um amigo que me perguntava porque é que na minha religião o homem era mais do que a mulher. Disse: ‘Não, o que um homem faz a mulher também’. ” A separação física entre homens e mulheres na mesquita não é discriminação, acontece e “ainda bem” porque o olhar humano “não tem educação”: “A hora da oração é sagrada e temos de estar concentrados. ”Em Londres, uma cidade “livre”, entra-se num banco e vê-se uma pessoa “vestida como eu” e “é o gerente de um banco” — como pode ter tatuagens e ter essa posição, lembra. “É um país onde respeitam muito as pessoas. Aqui nunca vi, não sei porquê, não sei se algum muçulmano chegou sequer a ir vestido assim a uma entrevista de emprego…” De vez em quando sai à noite, mas “ocasionalmente” — não beber álcool não lhe custa. A namorada não é muçulmana, mas ele gostaria que ela se convertesse — “vamos ver”, comenta, a sorrir. Mas já cozinha para ele de acordo com os preceitos muçulmanos: nada de carne de porco nem de carne que não é halal. O Talho Halal da Margem Sul, no Laranjeiro, fecha ao domingo e à segunda-feira, dia em que combinámos a entrevista. O dono, Adil Karim, abre-nos a porta. Passamos a montra frigorífica, em direcção à zona de pagamentos/escritório. Com chapéu branco e túnica acastanhada, Adil Karim convida-nos a sentar. Atrás de si está pendurado um quadro com um versículo do Corão, em árabe: “Ele é aquele que aceita o perdão por parte do seu servo e perdoa todos os pecados. ”Fornece outros talhos pequenos e tem clientes muçulmanos e não muçulmanos. Para os muçulmanos, a alimentação é muito importante, explica, e todos os aspectos que têm que ver com a carne, desde a pessoa que está à frente do negócio àquele que faz o abate, têm de ser respeitados. “Halal significa permitido. Como é que uma carne é considerada halal? A pessoa que vai fazer o abate tem de ser muçulmana, existe uma reza na altura da degola — não é permitido comer um animal sem levar o nome de Deus — e tem de saber como degolar para evitar a dor e o sofrimento. O objectivo da degola é que todo o sangue seja extraído do animal. Temos a crença de que se todo o sangue for retirado o animal fica apto a ser consumido e dificilmente haverá vestígios de doença. A própria carne é mais saudável. ”Adil Karim, 35 anos, veio de Moçambique com os pais para a zona do Laranjeiro, ainda criança. Já tinham alguma família e chegaram com a perspectiva de melhorar as condições de vida. Na escola achavam o seu nome diferente, mas não se sentiu discriminado apesar de ter ouvido algumas palavras mais incorrectas às quais nunca quis ligar — no geral, os portugueses são acolhedores, diz. Logo após o 11 de Setembro aconteceu andar na rua e ser chamado “taliban” ou “Bin Laden”, mas ele encarou-o “na desportiva”. “Se acontecesse numa instituição, por parte de alguém que ocupa um cargo importante, poderia considerá-lo discriminação. Na rua, acho que é mais ignorância. ”Fez o seu curso no colégio islâmico de Palmela e terminou-o em Inglaterra. “Na religião muçulmana, não há nenhum ser digno de ser adorado a não ser Deus e o profeta Maomé é servo e mensageiro de Deus — olhando para o exemplo de vida dele, tentamos seguir os seus passos a nível de vestuário, de conduta. ” Por isso acha importante vestir-se com a roupa tradicional. Se trabalhasse num banco, seria mais difícil. “Temos de respeitar a entidade empregadora, devemos seguir e cumprir com o que está estipulado. Viemos para cá, somos imigrantes, temos de nos adaptar às leis e regras do país. ”Comparando com comunidades muçulmanas noutros países, como em França, onde são “mais fogosas”, a portuguesa é discreta: “A maior parte vem com a raiz portuguesa e adaptou-se bem. ”O xeque David Munir não pára. Na manhã de uma quarta-feira recebe um grupo de pessoas nos seus 60-70 anos. Ainda não acabou o tour ao local de culto e já tem um grupo de crianças a querer entrar. Munir desdobra-se, desliga o telemóvel que toca e toca, responde às perguntas do grupo mais velho tentando separar o que são práticas que têm mais que ver com a cultura local do que com a religião. “Muita coisa que é feita no mundo islâmico não tem nada que ver com a religião. Por favor”, diz. “Se um muçulmano quiser deixar de ser muçulmano, ele deixa. Islão significa submissão voluntária a Deus. Há outro versículo que diz que não se pode obrigar ninguém a ser muçulmano. ” E continua: “Em alguns países árabes, se um muçulmano deixar de ser muçulmano, é complicado? É. Mas eu vivo em Portugal. Estamos a falar do islão. Por exemplo: mutilação genital feminina. Há quem associe ao islão. Não tem nada a ver. Suicidar, matar pessoas inocentes: é proibido”, enumera, com vigor. Os pilares do islão são cinco: declaração da crença num Deus único, as cinco orações diárias, o jejum no Ramadão, a caridade e a peregrinação a Meca pelo menos uma vez. A vida de xeque Munir passa-se neste espaço perto de Praça de Espanha, local de convergência das várias comunidades muçulmanas. A oração de sexta-feira é o resultado visual disso mesmo: mulheres com vestes coloridas e lenços sumptuosos contrastam com as mais discretas que usam o hijab em cores mais escuras. Vive no quarto andar da mesquita, onde é o imã há 30 anos. Vinha por seis meses, ficou até hoje. No escritório está uma bicicleta, na qual tenta andar sempre que possível, há livros e uma estante com aviões de miniatura pelos quais tem um fascínio. É fim do dia, e a sua mulher, com hijab, dá sinal discreto à porta, a filha entra para falar ao pai mas vai logo embora. “Beijinho”, pede Munir, perguntando se a escola correu bem. O xeque tem três filhas e um filho. Mas a vida privada é a vida privada. Começa a cair o sol, hora da penúltima oração do dia. “O islão é uma das religiões da Europa, não é só o judaísmo e o cristianismo. É muito importante os muçulmanos e não muçulmanos sentirem isto”, diz. “Para algumas pessoas em Portugal, o islão é a religião do imigrante — e não é. Nem o cristianismo, nem o judaísmo nasceram na Europa, vieram do Oriente, e o islão também. Claro que há muito mais cristãos do que muçulmanos na Europa. Mas ser muçulmano não significa que se é uma ameaça. Não podemos esquecer que os muçulmanos que vivem na Europa são europeus. ”No islão não há uma hierarquia mundial, como com os católicos. Cada país tem um líder e o xeque Munir é-o em Portugal. Acompanha de perto a comunidade há três décadas e caracteriza-a pela sua integração. “Os muçulmanos das ex-colónias podiam ter ido para um país islâmico mas vieram para Portugal porque já havia uma integração com os portugueses em Moçambique e na Guiné. As nossas equipas de futebol eram as do continente — Sporting, Benfica. ” Outra das características é existir uma interligação entre as cerca de 40 mesquitas e locais de culto espalhados pelo país, o que faz com que se conheçam bem. “Qualquer pessoa que solicite fazer um sermão eu certifico que não é um radical”, conta. Depois, se existe um problema que exige a comunidade falar, “tentamos ter uma só voz, em vez de cada um dar a sua opinião”. Compara-o ao conselho de ministros onde existe um porta-voz. “Somos poucos, conhecemo-nos uns aos outros, temos essa vantagem. No resto da Europa, há cidades em que cada mesquita começa o Ramadão em dias diferentes, aqui não. ”O impacto dos acontecimentos como o 11 de Setembro e os ataques ao Charlie Hebdo sente-se, é óbvio. “É muito complicado explicar que não tem nada que ver com o islão porque as pessoas ouvem que Alá foi vingado, etc. De um lado, tentamos esclarecer as pessoas sobre o islão, do outro condenar os atentados, uma das primeiras coisas que fizemos. Mas também tentamos reflectir na necessidade de a liberdade de expressão ter de ser respeitada. ”David Munir viu os lugares de culto espalharem-se em Portugal ao longo dos anos. Praticar o islão hoje é mais fácil para os seus seguidores. Nota também maior interesse. “Mesmo da parte dos muçulmanos há necessidade de aprofundar um pouco mais, há mais diálogo, mais debates. O que era longínquo tornou-se curto. ”Sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Arif Hossain, 28 anos, está atrás do balcão de uma das dezenas de mercearias que abriram recentemente perto do Martim Moniz e vendem de pão a especiarias. Vive em Portugal há um ano e seis meses. Natural do Bangladesh, esteve primeiro em Londres, em 2010, e depois Espanha. “O nosso país está cheio e tem alguns problemas políticos. O Governo não é bom. Não há liberdade. Não posso dizer o que é bom e o que é mau, como aqui. Eu gosto da lei e da liberdade europeias”, explica, num inglês não muito avançado. Sabe o básico de português, mas não o suficiente para manter uma conversa fluente. Mistura espanhol, português, inglês para elogiar Portugal. “Espanha e Portugal têm a mesma cultura. É bom. ”Há seis meses que trabalha nesta mercearia, cujo dono também é do Bangladesh. A família toda ficou lá. Entra um cliente e pede para pagar duas alfaces, ele responde em português. Muçulmano ou não, o que interessa é o coração das pessoas, diz-nos. Há bons e maus em todas as religiões. Hoje em dia é difícil rezar na mesquita porque trabalha o dia todo. As orações durante o dia podem ser compensadas depois, o islão permite-o. Mas seria fácil encontrar uma na zona, por exemplo, a uns 500 metros da sua loja, na Rua do Benformoso. É um espaço que, de fora, ninguém diria ser local de culto: a porta é como qualquer outra da rua. Na divisão da entrada, os homens lavam os pés, as mãos, a cara. Está, de resto, projectada a construção de uma nova mesquita nesta zona, ao abrigo de um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Centro Islâmico do Bangladesh, dirigido por Rana Taslim Uddin (que estava ausente do país). O antropólogo José Mapril tem estudado os muçulmanos do Bangladesh e nota que esta comunidade sofreu uma grande transformação desde 2011. “Falamos de uma migração que chegou no final dos anos 1980, sedimentou-se ao longo dos 1990, constituíram família, investiram em negócios, na educação da família, e começaram a passar dificuldades. ”Vários têm imigrado para outros países europeus e neste momento estão “a assistir a uma reconfiguração total da população do Bangladesh”. “Muitos dos interlocutores que entrevistei e tenho acompanhado investiram numa visibilidade da sua muçulmanidade: construíram uma mesquita no Martim Moniz, organizaram orações na praça do Martim Moniz nas duas celebrações do calendário islâmico anual onde rezavam 3 mil a 4 mil pessoas. Nos últimos anos, este cenário de visibilidade deixou de ser prioridade — a questão de ser muçulmano continua a ser muito importante na transmissão para as gerações mais novas, mas não tem a expressão pública que teve no passado. ”De qualquer forma, analisa: “Os muçulmanos em Portugal sempre tiveram uma grande diversidade religiosa, de rituais, de classes — são de empresários a operários da construção civil. A migração do Bangladesh complexificou este quadro porque trouxe outras pessoas com outras origens e outras lógicas, que partilham uma espécie comum de muçulmanidade, mas têm os seus espaços autónomos. ”Namoraram seis meses até se casarem — e não foi bem namorar, explica Sara. “Conhecemo-nos primeiro. Tentamos perceber como é o rapaz, a família, depois é que começa uma aproximação maior. ” Shoeb já tinha reparado em Sara na mesquita e “chegou a ela” através do Facebook. “Falávamos pelo Facebook, uma relação mais distante”, completa ela. “Entretanto, falou com o meu primo para tentar conhecer e mostrar que era uma coisa séria. O meu primo falou com os meus pais e eu pensei melhor, vi que era uma pessoa séria. Aceitei conhecê-lo. ”A 7 de Outubro de 2011 casaram-se. Shoeb é comerciante, trabalha com artigos bordados que vende para outras lojas numa empresa da sua família, Sara cursou gestão no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, por enquanto está em casa até a filha ir para a escola. Gostaria de um dia exercer a profissão, até porque desde nova se habitou a ajudar na gestão dos lares de terceira idade do pai, moçambicano. Sara nasceu em Londres, Shoeb em Moçambique. “Rezo mais em casa, as mulheres não têm obrigação de ir à mesquita, os homens é que sim”, explica Sara, que chegou a estudar dois anos no colégio islâmico de Palmela, onde se aprende “tudo”, do Corão a História. Têm amigos que não são muçulmanos, a mistura é pacífica. Há mais curiosidade, fazem-lhes perguntas para perceber o que é o islão e ficarem a saber que aquilo que aparece na televisão — os ataques terroristas — são feitos por um grupo, não por todos os muçulmanos. “Quando é um americano, por exemplo, que mata não sei quantas pessoas, diz-se que tinha problemas psicológicos. Como somos minoria, as pessoas acabam por culpar o grupo todo, e o verdadeiro islão não é isso, é paz”, comenta Shoeb. Em Portugal, os muçulmanos não sofrem tanto essa colagem, dizem, nem são vítimas da hostilidade que acontece em países como a Alemanha, onde há marchas contra muçulmanos. Os portugueses “são muito empáticos”, considera Sara, que lembra os tempos da escola em que tinha a chave de uma sala para poder fazer as orações. “Ser muçulmano é um modo de vida, é a minha identidade”, explica. Shoeb completa: “O islão ensina tudo, desde comer a ir à casa de banho, a vestir, a forma de beber água, a resolver problemas — se não for pelo Corão, é pelos ensinamentos do profeta. ”Mais tarde, Shoeb envia-nos uma mensagem onde acrescenta: “Existe um dito do profeta que diz que não é um bom muçulmano aquele que dorme de barriga cheia enquanto o seu vizinho passa fome. Este dito não especifica se o vizinho é muçulmano ou cristão ou judeu, apenas demonstra a importância da empatia e solidariedade. A nível financeiro, posso referir os juros: para um muçulmano, são proibidos. Infelizmente um muçulmano que vive fora de um país islâmico tem de se sujeitar a esses termos. Portugal vai pagar à troika mais 50% do valor devido em juros. Sendo a troika uma instituição de ajuda, a meu ver o valor que é cobrado a Portugal não é uma ajuda mas sim um negócio. ”Sara tem um lenço na cabeça, mas “ainda” não usa o hijab. Ainda, porque quer vir a usá-lo. É esse o objectivo. “No islão, a mulher é considerada preciosa. O cabelo é a beleza da mulher, por isso Deus diz para nos cobrirmos e proteger-nos a nós próprias. Sei que devia usar, mas ainda não uso. Usei durante um ano, quando estava no 11. º ano, mas ia começar a faculdade e fiquei com um bocadinho de medo. Não sei porque ainda não chegou o dia em que acordo e digo que vou passar a usar, mas quero chegar lá. ”Shoeb gostava que a mulher tivesse hijab porque faz parte da religião e é “uma forma de ela se cobrir mais”. A mãe de Sara, a sogra, a cunhada, a sobrinha “que é mais nova”, usam hijab e ela vê hoje mais gente na rua a ter essa prática. Dilsaz Ashraf Satar Kara, professora de Inglês há quase 20 anos num externato católico na zona de Olivais Norte, Lisboa, é uma das muçulmanas que passaram a usar hijab em Portugal. Veio de Inglaterra quando tinha 19 anos. Nasceu no Malawi, colónia britânica em África. A vida não era fácil no Malawi mas o seu pai sempre fez tudo para dar educação aos filhos, “seja rapariga, seja rapaz”. Casou com um muçulmano de Moçambique, de quem teve três filhas. Os familiares estão em Londres, incluindo mãe e irmãos, e o inglês é a língua na qual prefere expressar-se. Encontramo-la numa gelataria na zona da Expo. Dilsaz comenta, sobre Londres, que é um lugar “muito fácil porque a comunidade é grande, maior”. Vem com o hijab, mas nem sempre o usou. Só o faz desde o 11 de Setembro, depois do choque com a morte de um familiar em Londres. Pensava muitas vezes na forma como poderia mostrar que era muçulmana. No funeral, ao ver outras mulheres com um “vestuário mais sério”, pensou que se calhar isso mesmo lhe poderia servir como forma de expressar a sua identidade. Encontrou, de facto, a solução. Ainda estava em Londres quando, ao telefone, comunicou ao marido a decisão. “Ele disse que era uma responsabilidade mas se era o que queria estava à vontade. ” Quando chegou a Portugal, já trazia a cabeça tapada. As colegas tiveram um choque, mas depois de uma conversa com a directora do colégio, que aceitou pacificamente a sua opção, Dilsaz ficou descansada. “Tive muita sorte. Ter abertura no meu trabalho era muito importante. ”Diz-se curiosa, tendo estudado outras religiões. Acredita que o islão pode dar paz. “Há muitas pessoas que misturam a cultura com religião. Vêem uma senhora com o hijab e podem pensar que é fanática, do grupo da maldade. ” O hijab é algo que faz parte do islão e usá-lo é “um tipo de protecção de todas as maldades”, define. Sente-se mais segura ao andar na rua com ele. “Nunca ninguém me impôs o hijab. É um acto em que podemos dizer a nós próprios que queremos aproximar-nos de Deus. Dá muita tranquilidade. ” Dilsaz confessa que ficaria mais incomodada se a obrigassem a tirar o hijab do que se a obrigassem a tirar os sapatos. As três filhas usam hijab mas nunca as tentou convencer: foi decisão própria. Mariama é uma das filhas de Manso Baldé, presidente da Associação dos Muçulmanos guineenses há 16 anos. É na associação, uma cave perto da Almirante Reis que funciona também como lugar de culto, que os encontramos. Na sala de espera há revistas, como nos consultórios médicos. Há-de aparecer um irmão mais novo de seis anos que anda a aprender o Corão e árabe no colégio de Palmela, para onde vai de carrinha às 7h30. “Todo o muçulmano tem de saber de cor uma parte do Corão. ” Manso Baldé, 57 anos, é psicólogo e muçulmano há 22. Ajuda as famílias que têm problemas. “Refugiamo-nos mais no conselho do sábio do que mandar os problemas para o tribunal. ” Objectivo: que a família não se espalhe, que os filhos respeitem os pais. “A religião muçulmana é para aumentar, não é para baixar. Temos uns 4 mil e tal associados”, contextualiza Manso Baldé. “Toda a religião muçulmana é pacífica. É uma religião de paz, não quer confusões. As pessoas é que confundem a religião com a vida mundana do dia-a-dia. Não há nenhuma religião que incentive a fazer maldade. ”As relações entre as diversas comunidades muçulmanas é boa, descreve. “Ainda hoje na oração das 16h estávamos a comentar que graças a Deus estamos num país não muçulmano e fazemos a religião que queremos. ”Toda a religião muçulmana é pacífica. É uma religião de paz, não quer confusões. As pessoas é que confundem a religião com a vida mundana do dia-a-dia. Não há nenhuma religião que incentive a fazer maldade. ”Garante que a filha Aissatu usa o hijab por opção, não a obrigou. Mas nota, sim, que há mais mulheres a usá-lo em Portugal. Interpreta-o com a influência dos contactos nas redes sociais. “Não é por causa dos pais. ”Manso Baldé telefona a Aissatu, 17 anos, que aparece pouco depois. O lenço tem pequenos bordados e uma túnica igualmente bordada. Está muito bem maquilhada. Estuda no Liceu Camões e quer seguir Direito Islâmico. A sua mãe usa o hijab, ela sabia a partir de que altura deveria usar. “No Corão está explicado que nós, quando saímos de casa, devemos tapar os cabelos, o corpo, não colocar roupas transparentes ou apertadas. Usar hijab não é sinal de opressão ou prisão, quer dizer que a mulher pode ter um papel na sociedade e que usando o hijab eleva o seu estado moral: estando assim tapadas não somos alvo de símbolo sexual. ” Uma mulher andar na rua vestida de forma provocante é incorrecto? “Acho que se desvalorizam a elas próprias. Porque o corpo é nosso e não é preciso que todo o mundo o veja. O homem cobiça muito a mulher quando está menos vestida. Esses olhares estranhos são maldosos, e elas são olhadas com cobiça e desejo. Mas não julgo. ”E ela, por ser pouco comum usar hijab em Portugal, é olhada com estranheza? Ao princípio houve quem questionasse a opção, mas nunca se sentiu discriminada. Gostaria de ver mais mulheres com hijab em Portugal: basta ver o que se passa em Londres, que conhece bem, onde há uma comunidade enorme que mostra “com bastante força o islão”, e onde há também imensas lojas onde comprar roupa. “Usar o hijab é um sinal de crença e obediência a Deus. As pessoas quando olham para mim sabem logo que eu sou muçulmana e isso é importante porque como muçulmana devo mostrar o que sou e transmitir a verdadeira imagem da religião. Se andar com sapatos altos, minissaia, dou má imagem da religião. ”Apesar de dizer que é obrigatório, o Corão não impõe o uso do hijab. Cabe à mulher decidir fazê-lo. O mesmo se passa com a barba dos homens. Matéria de vastas discussões e controvérsia, é um símbolo que muda de acordo com o contexto — o uso do hijab numa faculdade em Paris por uma aluna que participa numa luta de afirmação (porque é proibido nos espaços institucionais) não tem o mesmo significado que o seu uso na Arábia Saudita, onde é imposto, nem o mesmo que em Portugal, onde é menos vulgar, ou em Londres, onde é comum. Se para alguns pode ser visto como opressão masculina, também há quem defenda que não o é menos do que usar roupas provocantes. A antropóloga ismailita Faranaz Keshavjee lembra um episódio recente nos transportes públicos de Londres, quando estava a observar umas jovens com o hijab: a forma como o usavam e como se maquilhavam estava longe de apresentar a discrição e recolhimentos usados como justificação para o seu uso. Para a antropóloga, não se trata de concordar ou de discordar do uso, mas nota dois problemas: “O primeiro é que o véu serve, entre muitas outras coisas, para a mulher se posicionar perante Deus e a sociedade de forma modesta, humilde e discreta. Não entendo como em muitos casos, salvo algumas excepções, estas mulheres usam lenços sofisticados e de grife (tipo Channel, Louis Vuitton, etc. ) e usam maquilhagem carregada onde a sua suposta invisibilidade se torna ainda mais visível comparativamente a outras mulheres que não usam o véu. Segundo, parece que existe uma sobreposição de valores reinventados de um islão imaginado e retirado, provavelmente à letra, do Corão, que se mistura com o de ser mulher no mundo moderno. ”Aos seus olhos, o uso do hijab aparece como uma espécie de revivalismo islâmico — e fenómenos idênticos acontecem no universo masculino (barbas, túnicas, boné). Isto é algo que tem notado nos últimos anos por causa de acontecimentos como o 11 de Setembro e que passa por “um vincar mais acentuado do que é ser-se muçulmano”. E ser muçulmano é, também, em Portugal muitas coisas. Ser ismailita é diferente de ser sunita. Como no resto do mundo, também em Portugal os ismailitas são uma minoria (cá serão cerca de oito mil). Os sunitas representam mais de 80% dos muçulmanos (designam Abu Bakr como o herdeiro de Maomé e primeiro califa). Porém, por ser uma minoria e ter um líder espiritual vivo, o príncipe Aga Khan IV, a comunidade ismailita “às vezes é vista por outras comunidades muçulmanas como não sendo muçulmana sequer”, diz Faranaz Keshavjee. Em Portugal, a convivência “é muito salutar, já vem assim de Moçambique”. “Portugal e os portugueses aceitaram muito bem a coexistência e isso facilita a convivência entre todas as comunidades, acabamos por estar mais perto da identidade nacional e depois temos uma fé que praticamos. ”8 mil ismailitas a viver em Portugal, uma minoria. Os sunitas representam mais de 80% dos muçulmanosNa mesquita, juntam-se, para a oração, sunitas e ismailitas, mas os sunitas ou não muçulmanos não podem estar no espaço de oração dos ismailitas, pois para isso é preciso “aceitar que Ali e o seu representante, o príncipe Aga Khan, são o imã do tempo e eles é que têm a autoridade máxima da adaptação do texto sagrado à sua realidade contemporânea”. Não o aceitando, “não é possível fazer oração em congregação”. Os ismailitas estão, no entanto, à vontade numa mesquita porque “o princípio de aceitar que Deus é um só, Maomé é o último dos profetas e que o Corão é o livro sagrado é a linha que nos une a todos”. A comunidade ismailita portuguesa é próspera, do ponto de vista demográfico é miscigenada, é organizada, “trabalha muito bem dentro das instituições internas e faz um trabalho notável de contributo para a sociedade portuguesa”, descreve. “Toda a cultura de diáspora é muito interiorizada, se for preciso, os ismailitas emigram em busca de melhores condições de vida. ”A geração que nasceu cá tem licenciaturas, muitos tiraram mestrados ou estão a fazer doutoramentos no estrangeiro, continua. “É uma população que investe muito na área da educação — estou a incluir as mulheres, porque o mesmo que se espera de um filho espera-se de uma filha. Aliás, coloca-se a ênfase na educação secular da mulher, fora do âmbito da cultura de casa, porque desde o tempo do avô do actual líder espiritual que existem missivas no sentido de que, se os pais tiverem poucas oportunidades de dar educação aos filhos e precisarem de escolher, optem por dar educação às raparigas porque são elas que vão ser os canais de transmissão dos valores e de tudo o que está associado à literacia. ”Faranaz Keshavjee tem, porém, críticas sobre o papel da mulher na comunidade, nomeadamente quanto à ausência nos papéis de liderança, mas também as tem sobre o contexto português em geral — “não vejo mulheres na política, em cargos de liderança e de topo”. “Ao mesmo tempo, este posicionamento acaba por ser legitimado pela sociedade em que vivemos: ‘É o que se passa lá fora, portanto não é preciso fazer ajustes’. ”E a invisibilidade continua a ser um traço da comunidade muçulmana portuguesa? Faranaz Keshavjee lembra que, por um lado, nos grandes momentos nacionais os representantes das comunidades muçulmanas estão presentes, portanto existe visibilidade; por outro, “quando falamos do grosso da população, não creio que saibam o que é o islão”. É verdade que há muitas visitas de escolas à mesquita central ou ao Centro Ismaili e à Sinagoga, mas ninguém ensina a filosofia dos muçulmanos e dos judeus, o seu contributo para a História: “Esta lacuna é grave; há 20 anos que falo desta necessidade. ”De qualquer forma, dentro do contexto europeu, Portugal “é um case study”. “É importante mostrar como somos um exemplo para o resto da Europa por causa dessa convivência harmoniosa das comunidades, aceitação da diferença, vontade de conhecer. Tudo o que acontece na Europa e no mundo acaba por nos afectar, e nesse sentido tenho visto islamofobia. Preocupa-me que se ponham todos no mesmo saco quando se fala de grupos totalitaristas e extremistas. Se não se criarem medidas na nossa sociedade para que possamos fazer valer esta convivência saudável e pacífica e cultivar a boa informação vamos começar a olhar para o vizinho do lado e pensar, como já vi escrito: ‘não sei se o meu vizinho do lado não traz uma bomba com ele’. ”Hasina Saiyad, 60 anos, é vice-presidente da Comunidade Islâmica há uns três ou quatro anos - não se lembra bem. A direcção pensou nela porque não havia mulheres naquele cargo e por conhecer o seu trabalho na comissão social da mesquita como sub-coordenadora do zakat, a esmola obrigatória para os muçulmanos (2, 5% do seu rendimento anual para ajudar os carenciados), conta. O trabalho na comissão social da mesquita é das coisas que mais gosta de fazer, “é muito gratificante sentir que se está a ajudar as pessoas”, diz-nos, entre um golo no chá na sala da sua casa em Oeiras, num prédio junto à marginal. Hasina saiu de Moçambique antes da independência, em Janeiro de 1975. Primeiro foi para a Índia, onde ficou três anos, com quatro dos 12 irmãos. Em 1978 vieram para Portugal, porque se sentiam portugueses: “Andei na Mocidade Portuguesa, os meus irmãos fizeram a tropa, era natural”, conta. Instalaram-se em Oeiras, no Alto da Barra. Hasina, então a estudar Matemática, acabaria por fazer um curso de análise e programação, algo raro na altura, ainda para mais sendo mulher, e fez depois o bacharelato de informática. É consultora numa multinacional da área de automóveis há 20 anos. “As pessoas ficavam a olhar para mim: ‘não comes carne de porco porquê?”Com familiares em Inglaterra, Hasina acha que os muçulmanos em Portugal estão mais bem integrados. “Lá vivem nos mesmos bairros, não se dão com ingleses. Aqui não: os amigos dos meus filhos são cristãos, a minha melhor amiga de infância é católica. O que caracteriza os muçulmanos portugueses é a sua integração e o viver em harmonia”. Nunca usou o hijab. “Não é tão importante assim. O comportamento, a caridade, a compaixão são muito mais importantes do que usar o hijab”. O comportamento, a caridade, a compaixão são muito mais importantes do que usar o hijab”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não acha, porém, que seja sinal de opressão sobre a mulher, nem que exista machismo, até porque a religião muçulmana trata os homens e mulheres de forma igual, defende. “A mulher teve sempre o direito ao voto e toda a liberdade. No Corão a mulher é igual ao homem. A primeira esposa do profeta Maomé era comerciante. Acho que as pessoas tendem a confundir cultura com religião. Os casos de machismo existem em qualquer cultura, porque se há-de falar da religião muçulmana?”Toda a gente que a conhece sabe que é muçulmana. Ela sente orgulho em sê-lo. Acha que essa, é, aliás, uma característica comum aos muçulmanos. “A religião muçulmana é uma coisa tão simples e natural… Se por acaso deixar de fazer as cinco orações do dia não deixo de ser muçulmana, não há ninguém que me excomungue, só se eu disser: já não sou muçulmana. ”De volta à Almirante Reis, Manso Baldé diz-nos algo parecido quando lhe perguntamos se deixar de acreditar em Deus, de ser muçulmano, seria possível para algum dos seus filhos. “Não, isso não. Um muçulmano sabe que Deus existe, um muçulmano não duvida. Há muçulmanos que podem beber álcool, ou isso — é um problema entre eles. Podem falhar, porque Deus criou o ser humano para falhar, podem pecar e pedir perdão. Mas é muito difícil um muçulmano deixar de ser muçulmano. Não conheço nenhum. ”
REFERÊNCIAS:
Portugal e cinco outros países acolhem os 141 imigrantes resgatados pelo Aquarius
Lisboa aceitou receber 30 pessoas, numa solução apoiada pela Comissão Europeia. Itália e Malta, os portos mais próximos, recusaram durante dias acolher a embarcação. Acordo inclui outros imigrantes que chegaram a Malta na segunda-feira. (...)

Portugal e cinco outros países acolhem os 141 imigrantes resgatados pelo Aquarius
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 Refugiados Pontuação: 5 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Lisboa aceitou receber 30 pessoas, numa solução apoiada pela Comissão Europeia. Itália e Malta, os portos mais próximos, recusaram durante dias acolher a embarcação. Acordo inclui outros imigrantes que chegaram a Malta na segunda-feira.
TEXTO: Parado desde sexta-feira a cerca de 30 milhas das costas italiana e maltesa, no Mediterrâneo, na sequência da recusa de Itália e Malta em acolhê-lo nos seus portos, o navio Aquarius recebeu finalmente luz verde para transportar as 141 pessoas resgatadas ao largo da Líbia para um lugar seguro. Seis países da União Europeia, incluindo Portugal, alcançaram esta terça-feira um acordo para repartir os imigrantes entre cinco deles. O barco operado pelos Médicos Sem Fronteiras e pela SOS Méditerranée vai aportar em Malta, anunciou o Governo de La Valletta em comunicado. Mas nenhum imigrante ficará lá: serão depois distribuídos por Portugal, Espanha, França, Alemanha e Luxemburgo. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, revelou à Lusa que ao território português chegarão 30 pessoas, enquanto o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, anunciou no Twitter que acolherá 60 pessoas. Outros 60 imigrantes de um grupo de 114 que foi resgatado por Malta na segunda-feira serão distribuídos entre os Estados-membros da UE. Segundo o executivo liderado por Joseph Muscat, a solução encontrada conta com o apoio da Comissão Europeia. Eduardo Cabrita defendeu o acordo, mas insistiu na necessidade de uma solução alargada no quadro da UE: “Entendemos que deve haver uma posição estável de nível europeu envolvendo todos. Não podemos andar aqui de solução ad hoc em solução ad hoc sempre que um navio está à deriva no Mediterrâneo. ”Na mesma linha, o director de operações da SOS Méditerranée disse em conferência de imprensa que espera que esta solução ajude a convencer de uma vez por todas os chefes de governo europeus de que a “fronteira comum no Sul da Europa” é “um problema dos 28 Estados-membros”. “Não podemos fugir às nossas responsabilidades, temos de trabalhar em conjunto”, reforçou Frédéric Penard, citado pela Reuters. Durante os últimos dias, espanhóis e franceses hesitaram em receber o Aquarius, argumentando que, à luz do direito internacional, os imigrantes deveriam ser acolhidos pelos portos dos países mais próximos do local onde foram resgatados – Itália e Malta, no caso. A posição irredutível de Roma e de La Valletta – que na hora de aceitar o Aquarius insistiu “não ter qualquer obrigação legal” para o fazer – aliada à indeterminação de Madrid e Paris, fizeram crer que se poderia repetir o impasse registado em meados de Junho, envolvendo a mesma embarcação. Mais de 600 imigrantes tiveram de esperar nove dias até serem finalmente recebidos no porto espanhol de Valência. A bordo do Aquarius a situação era delicada. Mais de metade dos imigrantes resgatados, oriundos de África, são menores, e 67 viajam sem acompanhantes. E de acordo com os Médicos Sem Fronteiras a grande maioria sofre de subnutrição. “São pessoas muito vulneráveis. Muitos são demasiado jovens, rapazes e raparigas da Eritreia e da Somália”, descreveu Aloys Vimard, daquela organização não governamental, ao El País. Para além daqueles dois países africanos, os mais representados, contam-se ainda pessoas oriundas do Bangladesh, dos Camarões, da Costa do Marfim, do Egipto, do Gana, de Marrocos, da Nigéria e do Senegal. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O anúncio do acordo surgiu poucas horas depois de os representantes políticos da Catalunha (Espanha) e da Córsega (França) se terem disponibilizado para receber os imigrantes e um dia depois de o Governo de Gibraltar ter anunciado que vai retirar sua bandeira do Aquarius. Em comunicado, o enclave britânico em território espanhol revelou que pediu ao navio que “suspendesse suas operações como embarcação dedicada ao resgate e voltasse ao seu estado original de ‘navio oceanográfico’, tal como está registado”. O não-acatamento deste pedido levou à retirada da bandeira de Gibraltar da embarcação. Numa nota enviada à AFP, a SOS Méditerranée defendeu que o pedido das autoridades britânicas não tem “qualquer fundamento técnico” e argumentou que o Aquarius “sempre foi considerado apto para efectuar operações de resgate pelas autoridades competentes”.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
A música da Lisboa invisível tem milhões de cliques no YouTube
Fazem música à margem da indústria, mas não são underground. Têm milhares – ou milhões – de visualizações no YouTube, andam em concertos por vários países, mas nem uma biografia disponível na Internet. Percurso pelos subúrbios de Lisboa à procura dos (outros) grandes hits do momento. (...)

A música da Lisboa invisível tem milhões de cliques no YouTube
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Ciganos Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fazem música à margem da indústria, mas não são underground. Têm milhares – ou milhões – de visualizações no YouTube, andam em concertos por vários países, mas nem uma biografia disponível na Internet. Percurso pelos subúrbios de Lisboa à procura dos (outros) grandes hits do momento.
TEXTO: São jovens, vivem na periferia de Lisboa, fazem música praticamente sozinhos. Muitos começaram no computador, em casa. O circuito comercial oficial não os conhece. Não estão nos tops de vendas das grandes lojas de discos. Funcionam como uma espécie de mercado paralelo da música, mas poucos conseguem viver do que criam. Os seus hits têm milhares de visualizações – alguns chegam aos milhões. Actuam no bairro onde vivem, só que a dimensão da popularidade extrapola esse território: há quem faça concertos em França, Luxemburgo, Suíça, Espanha, Cabo Verde, Angola…Isto mesmo foi o que notou o investigador em Estudos Urbanos António Brito Guterres na sua Tedx Talk do ano passado, A cidade invisível de Lisboa – a TED é uma organização dedicada ao lema “ideias que merecem ser compartilhadas”, e a Tedx é um programa organizado localmente de forma independente com o mesmo espírito. Nesta intervenção que pode ser vista no YouTube, Brito Guterres passa em revista as mudanças da cidade-centro e a formação das periferias, marcadas pelas migrações internas e pelas imigrações. Conta a história de uma professora de um dos subúrbios que queria conhecer melhor os seus estudantes através da música, mas não conseguia encontrar o que ouviam em lado nenhum (justamente porque o que ouviam estava nos circuitos que ela desconhecia). Mostrando o top 10 da loja Fnac, o investigador escolheu seis dos singles dos artistas aí representados, como David Fonseca ou Ornatos Violeta (no YouTube há vários anos) para concluir que têm pouco mais de 100 mil visualizações. Comparou com os dados de alguns singles de rappers feitos nos subúrbios, gravados em armários de quarto, cantados em crioulo e com letras duras sobre a realidade, e chegou a números muitíssimo superiores: nenhum abaixo dos 500 mil, três a bater ou a superar o milhão. “Não conhecer a cidade toda é normal, agora não conhecer algo a esta escala…”, comentava. “Um artista que tem um milhão de visualizações é artista aqui, em Londres, em Nova Iorque…” – e em todo o lado. Afinal, quem são estes artistas que estão à margem da “cidade vigente”, têm milhares de fãs, mas nem uma biografia sobre eles está disponível na Internet? O que cantam que os torna tão populares? Como gerem essa popularidade desconhecida pela indústria formal? Visita guiada por vários territórios onde a música da “cidade invisível” se faz ouvir alto e bom som. Do bloco onde vivem os pais de Loreta miram-se o castelo e os prédios de Sintra – daí o nome dado a esta localidade, Mira-Sintra. Loreta, que canta sobretudo em crioulo, tem videoclips como Mata um genio, onde aparece de armas em punho, ao lado de uma mulher loira que carrega uma espingarda, ou outros, como Vida sta mariado, a partir de uma música de Orlando Pantera, num cenário mais descontraído e de lazer. Estava em casa a fazer beat, deu-me uma "nóia" e gravei. Fui-me deitar. Depois a música ficou quatro, cinco meses em casa a apanhar pó. E quando saiu foi o boom, explodiu!Com contas no Spotify e no iTunes, duas plataformas que colocam à disposição do utilizador um cardápio vastíssimo de música, tem uma legião de seguidores – no Facebook são mais de 17 mil fãs, no Instagram cerca de 12 mil, a página do seu colectivo KBA tem 26 mil likes e há vídeos com mais de meio milhão de visualizações no YouTube – um dos vídeos, Nha identidade, chegou a ter um milhão. O fundador dos KBA, 28 anos, dois filhos, mudou-se recentemente do apartamento dos pais, no Bairro Fundação D. Pedro IV, mas é lá que nos recebe, com a mãe a abrir a porta. A população é maioritariamente composta por pessoas realojadas no início de 2000, misturando raças e etnias – brancos, ciganos, negros, afro-descendentes. Loreta começou a tentar fazer música aos 11 anos, no bairro de lata onde vivia. Experimentava com cassetes, tentava repetir partes de músicas que ouvia. O pai toca acordeão e funaná. “Cresci a ouvir música. Lembro-me de ser pequeno e os meus irmãos porem música de Cabo Verde. "A partir dos 13, com um amigo cantavam em festas da comunidade. Começaram a ganhar gosto e a ser convidados para outras festas. Gravaram pela primeira vez com o estúdio móvel do produtor e músico Primero G, num mini-disc – tinham uns 15 ou 16 anos. Mais tarde organizou-se com outros amigos para “juntar as pontas”: um comprou o microfone, outro comprou uma torre, outro comprou um ecrã e montaram o home studio, que ia girando por casa uns dos outros. A primeira mixtape que criou, “para aí em 2007 ou 2008”, nem foi ele que a colocou na Internet. Eram cerca de 11 músicas e Loreta lembra-se de ter ficado surpreendido com os convites para tocar em outros bairros. “Começámos a acreditar: o people está a gostar disto, também gostamos, vamos continuar. ”As coisas mudaram quando conheceu o “Katana” das Katana Produções, que tinha um estúdio em Odivelas onde gravaram o primeiro álbum em 2013: Desde Sempre para Sempre. Depois veio Buling, e a seguir Loreta iniciou-se a solo com os álbuns DMT, Last Hope, e, agora, Santos e Pecadores. Loreta foi mobilizador comunitário, colaborou com a organização não-governamental Olho Vivo e com o programa Escolhas, do Alto Comissariado para as Migrações, trabalhou nas obras, mas neste momento está no desemprego. A música não chega para pagar as contas. “Tenho uma casa arrendada, só com a música é impossível viver. ”Numa loja tradicional não é possível comprar a música de Loreta. Antigamente, ia a uma fábrica, fazia uns 500 CD e em cada espectáculo vendia 20. “Não sinto que tenha uma obra digna de estar à venda num circuito mainstream, porque é preciso money, horas de estúdio, é mais a qualidade do produto final, ter qualidade suficiente para passar numa rádio. ”Foi só em 2014 que actuou pela primeira vez em Cabo Verde. Quando chegou à Cidade da Praia, tinha pessoas no aeroporto à espera, a tirarem fotos em cada passo; na rua era reconhecido, os miúdos abordavam-no em massa. Abriram o concerto de Anselmo Ralph, e foram actuar em mais um par de sítios na ilha de Santiago. “Sempre a abarrotar. No show do Tarrafal estivemos duas horas para sair do palco. ”Loreta tem mais de 200 músicas que nunca pôs na Internet, trabalha a “toda a hora”. Acha que é popular por ter conseguido dar uma versão “século XXI à cabo-verdianidade”, “fácil de perceber para quem é de Cabo Verde e para quem nasceu na Europa”. Filho de cabo-verdianos que nasceu em Portugal mas não tem nacionalidade portuguesa, sente que pertence a uma geração de “afro-tugas”, um “bocado sem terra”. Da música que faz diz que é um diário ou uma chamada de atenção, “o trabalho do jornalista”, coisas que observa e acha que estão erradas. “Não sigo uma linha. Faço intervenção, mas também vou falar sobre um dia espectacular que tive. ” Fala sobre realojamentos, injustiças, violência policial. “A violência e brutalidade policial são das coisas que mais me indignam. Isso significa pôr tudo no meu saco. Todos os dias brancos roubam, todos os dias pretos roubam. Não se vê o puto de mochila branco a ser encostado à parede e revistado, mas vês acontecer isso aos jovens africanos ou descendentes de africanos. " Disso trata A bófia apontou-me uma arma. Mas, diz, só “30% a 40%” das músicas falam de temas mais duros. “Quando somos músicos 100% de intervenção, não nos tornamos populares, e isso faz com que nem toda a gente consiga ouvir a nossa voz. Se conseguir tornar-me popular para que quando abrir a boca um milhão de pessoas me ouça, então consigo intervir. ”Vai cantar no Algarve, no Porto, em Lisboa, tem um público diverso, mas acha que “a grande força” são jovens como ele, “descendentes de cabo-verdianos”. A maioria dos likes na sua página do Facebook é de Lisboa; em segundo lugar vem Luanda, depois Paris, Cidade da Praia… Já foi cantar várias vezes ao Luxemburgo e a França, à Espanha, à Suíça, a Cabo Verde, com “casa sempre acima da média”. Há um lado nele que não tem a certeza de querer fazer parte da indústria. “O CD para vender a um público maior tem de fugir um bocado ao que tenho feito. Tinha de fazer mais músicas em português, que dessem para passar num clube, e com outros conteúdos, não tão crus. ” Mas não se importava de ter os seus discos em lojas como a Fnac, “claro!”. O que ganha com visualizações no YouTube “é mínimo”: "Menos de meio cêntimo por visualização…”Não sinto que tenha uma obra digna de estar à venda num circuito mainstreamO que era preciso para viver da música? Ter alguém que lhe agendasse dois concertos por mês, pelo menos. “Os organizadores de eventos ainda têm o pé atrás por o rap ser uma música de rua, de bandidagem, e ainda não perceberam que é um mercado novo por explorar e tem muitos seguidores. ”O segredo da sua popularidade é “bastante básico”: “A música quando é boa tem pernas próprias. Quando se ouve uma boa música, mostra-se ao amigo, que mostra ao amigo, e aquilo alastra-se. ”De Mira-Sintra ao Vale da Amoreira, na Moita, são quase 2h30 de caminho em transportes públicos, comboios. Atravessamos a ponte sobre o Tejo de carro, numa manhã de sol. Do centro de Lisboa não demora mais de 30 minutos. Passamos de uma localidade com uma população de pouco mais de cinco mil pessoas para outra com cerca de dez mil, segundo os dados oficiais. Aqui vivem maioritariamente portugueses. Há também população cigana e de origem cabo-verdiana, angolana, guineense. Deejay Telio, 19 anos, e o seu colectivo Somos a Família (SAF) são mesmo uma família – a entrevista será feita em grupo, num dos pátios dos prédios do bairro, com Deedz, Dino e Ericsson. O lema dos SAF é: “Pomos a lealdade acima de tudo. ”– É aquela história do pão, né?, diz Ericsson– Eh! Já esqueci!, comenta Telio. O pão é o essencial. Estava no Minipreço a comprar pão. Este estava a comprar o fiambre – aponta para Ericsson –, este o queijo, o outro manteiga, vai apontando para os outros membros do grupo– No meio disso a gente se encontrou na caixa e viu que dava para formar uma coisa, completa Ericsson, a rir. O single oficial de Deejay Telio e Deedz, Não atendo, tem quase cinco milhões de visualizações. Que safoda, só áudio, tem quase três milhões – a mesma música, noutro clip, chega quase aos 3, 5 milhões, ou seja, mais de seis milhões no total. “Muita gente pensa que gravei o Que safoda bêbado”, ri-se Telio, cinco mil amigos e 13 mil seguidores no Facebook, 44 mil no Instagram. “Estava em casa a fazer beat, deu-me uma ‘nóia’ e gravei. Fui-me deitar. Depois a música ficou quatro, cinco meses em casa a apanhar pó. E quando saiu foi o boom, explodiu!” O segredo do sucesso? “É mais pela palavra, que 'safoda', ‘não quero saber de nada’. "Começou a fazer música no dia em que o primo lhe disse que tinha descoberto o programa com que o rapper americano 50 Cent fazia os seus beats, conta a rir. Já dançava kuduro, tinha uns 11 ou 12 anos. “Fiquei duas semanas no PC, era escola-casa, escola-casa, faltava ao treino e tudo. " O computador era da escola, tinha “uns phones normais”. E sozinho pôs-se a fazer beats para kuduro. “Lembro-me da minha primeira batida. A primeira música completa foi em 2009. ”Telio saiu de Angola com uns quatro anos, cresceu na mesma casa do Vale da Amoreira em que vive, cresceu com o “povo PALOP”. A mistura no bairro, até mesmo dos calões angolano e cabo-verdiano, reflecte-se na música. No ano passado, lançou Karanganhada – um EP que não chegou a ir para as lojas de música, foi vendido online, e em cabeleireiros e outros estabelecimentos, num circuito informal; este ano sairá Karanganhada 2, uma palavra de origem cabo-verdiana que quer dizer “festa, curtição, ambiente de convívio”. Telio quer que o seu estilo seja identificado como “karanganhada”, embora as influências nos seus beats sejam várias: pode ter trap, bongos, trompete, funaná… Fala sobretudo de animação e festa. Não aborda problemas. “Para quê falar de problemas? Quando estou ao microfone, esqueço o que está lá fora. ”Os SAF estão mais próximos do circuito comercial oficial do que nunca. Os lucros já dão para pagar as contas dos quatro elementos. Vendem música mas também t-shirts, óculos, bonés… No dia em que os encontrámos, tinham acabado de chegar de um concerto em Paris, no Vila Moura Club. O seu público é muito variado. “Estava cheio, umas 1500 pessoas. E foi a segunda vez que fomos para essa discoteca. Já estamos na fase em que damos voltas a discotecas em que estivemos. " O mercado é sobretudo em Portugal, e tocam maioritariamente em discotecas. Mas já actuaram em Angola, França, Luxemburgo, Suíça, Inglaterra – e têm marcação para Cabo Verde no Verão. Neste momento, querem negociar com as grandes cadeias como a Fnac. O estúdio, porém, ainda é caseiro. Na Arrentela, Seixal, há quase 30 mil pessoas, segundo os dados oficiais. Subimos as escadas do prédio de Primero G que tem os corredores com ventilação natural. É aqui que tem o seu estúdio Ligação Directa, uma divisão do apartamento onde vive com a mulher e o filho há nove anos. É preciso subir mais escadas dentro de casa para ir até ao sótão onde estão o computador, o material de produção, e uma colecção de vinis que são usados para samplar, com Quim Barreiros, Roberto Carlos, o hino da Internacional Socialista e muitos outros. Há cadeiras e almofadas, mas o espaço é exíguo. Primero G é o produtor de muita malta nova, alguns estão a começar, outros não. Foi fundador dos TWA, participou em filmes como Outros Bairros, de Inês Gonçalves, Vasco Pimentel e Kiluanje Liberdade. O vídeo está natural e fez com que as pessoas comentassem: "já foste ver aquele cigano de pulseira a cantar?’’Com o estúdio consegue ir conhecendo (e influenciando) novos talentos. Serve-lhe também para ir ganhando algum dinheiro nos intervalos de outros trabalhos. Faz de “tudo” naquela divisão: álbuns, EP, batidas, misturas, design para os artistas, tudo como autodidacta. O do-it-yourself é regra neste percurso que fazemos por alguns dos territórios do rap. Primero G é do tempo em que não havia Internet. Lançou o seu primeiro CD sem essa alavanca. Neste momento trabalha com cerca de dez artistas, organizando-os e orientando-os. Muitos querem falar do que ele falava há 20 anos: vida de rua, fumar ganzas, revolta com a polícia, falta de oportunidades…Há uma faceta de líder em Primero G que está bem presente e que ele não esconde. Assume o papel de monitor social, ou melhor, de mentor, até no estúdio – uma pele que vestiu quando vivia na Pedreira dos Húngaros, o grande bairro de lata na zona de Algés/Miraflores, desmantelado no final dos anos 1990. Também ele trabalhou para vários projectos de intervenção territorial e de acção social. “Tive a sorte de ter várias direcções ao longo da minha vida, se não… Cedo aprendi a sair do bairro e a conhecer outras pessoas que não têm nada que ver comigo. " E fê-lo através da música, cantando em vários espaços, e depois convidando pessoas de Lisboa para irem cantar ao bairro. “O que a gente passa toda a gente sabe. O que fazia sentido era levar isso para fora do bairro. ” No bairro onde vive agora, a polícia não incomoda, é só “pais e avós”, não se passa nada; mas nos bairros sociais as coisas são um pouco diferentes, porque a polícia entra quando quer, desabafa. Muitos rappers apareceram no estúdio de Primero G com a cena do trap, um estilo americano que ele caracteriza como mais “básico” na construção – no rap é preciso saber samplar, no trap não. "Trap" quer dizer ratoeira. Mais músicos querem fazer trap, mas é uma música “muito dark”. “Os miúdos falam de coisas muito agressivas, porque passam por coisas muito agressivas. A gente tem de interpretar: aquilo é uma forma de promoção, de ganharem moral, ou de ‘venham ver’? Toda a gente quer uma vida bacana. ” Ele próprio quando era jovem fez músicas mais negras, mas hoje fica contente por não as ter gravado, não sentiria orgulho, se o filho as ouvisse. Primero G não consegue fazer contas exactas a quanto ganha com o estúdio – é sazonal e variável. Vive também de pequenos biscates. Sente que precisava de mais tempo e espaço para desenvolver de forma sustentável aquilo que faz. Ainda não vive da música. Mas espera um dia viver. Tem um disco no circuito comercial, um álbum que chegou à Fnac: Miraflor, de 2002, com Lord G e DJ Kronic. Foi criado numa altura que era importante mostrar que se podia fazer música em casa – o single é um clássico do rap crioulo, e fala da experiência de realojamento da Pedreira dos Húngaros. Tem mais material na gaveta, mas está à espera do momento certo para lançar. Na Internet e no YouTube tem “bué de coisas”. “Por exemplo, este ano estou em dez trabalhos, porque produzi, participei. ” Deu passos em momentos importantes, agora é preciso diversificar, defende. Quer escrever um livro. Qual o impacto da música que ele produz e cria? “Não se vê, mas é grande. Temos miúdos que estiveram connosco há não sei quantos anos e que hoje estão a rebentar – por exemplo, Vado do Bairro 6 de Maio, o Loreta… Quando eles brilham, a gente também está ali, fizemos parte desse processo. "Brilham não no circuito comercial, mas noutros lugares. “O que acontece é que eles não retiram da indústria o que ela consegue dar. A gente cresceu revoltados com a indústria. Hoje em dia olho para os rapazes do Rapública e não os vejo muito diferentes de nós. No entanto, expuseram-se. Olho para a indústria como autodestrutiva: dá bué dinheiro, mas também suga muito, põe-te lá em cima, mas também te tira. ”No Monte da Caparica há blocos de prédios que foram construídos em várias fases e que pertencem a cooperativas, são realojamentos, edifícios dos anos 1990, habitados por quem se mudou do interior do país e por imigrantes. Juana na Rap, nome artístico, 24 anos, cresceu a ouvir crioulo, algo que integrou de forma natural. “Aconteceu. Nasci e cresci nesse meio, é claro que me identifico com a cultura em si”, responde, admirada, quando lhe perguntamos sobre a sua relação com a cultura negra. Portuguesa, branca, sem ligação familiar a Cabo Verde, fala e canta na língua cabo-verdiana. “A ouvir aprende-se”, diz. “Desde a infância no bairro, de tanto ouvir percebe-se. " Mas claro que existiu um esforço, embora houvesse o convívio diário. “Sinto-me muito mais à vontade a divulgar o que tenho para dizer em crioulo do que em português. Em crioulo consigo explicar e especificar o assunto. ” Também tem temas (poucos) em português. Olho para a indústria como auto-destrutiva: dá bué dinheiro mas também suga muito, põe-te lá em cima, mas também te tiraDe vez em quando Juan na Rap vai trançar o seu cabelo louro e liso, mas hoje tem-no apenas apanhado em rabo-de-cavalo. Está vestida com roupa desportiva. Nos vídeos produzidos pela Ligação Directa de Primero G é assim que aparece. Muitos foram filmados na rua onde estamos agora para a conhecer. Rodeada de homens nesses vídeos, Juana na Rap canta a vida da “street”. Acabou de lançar o seu segundo álbum. Leva-nos para debaixo de umas arcadas onde foi filmado outro vídeo, e é lá que conta, sentada no muro, que viveu no Bairro do Beato, em Lisboa, na Charneca e agora no Monte da Caparica, onde está desde os 13 anos. Começou a fazer rimas na escola, “freestyle”, improvisava com amigos. Tinha uns 15 anos e alguma “vergonha”. Disseram-lhe que podia escrever letras e assim foi. Ela e outra rapariga eram as duas únicas no meio de rapazes. “Começávamos a improvisar na escola, vinham todos a correr a pensar que era porrada”, lembra, a rir. Juana na Rap escrevia músicas em que falava da escola ou de amizades, sem um “tema directo a alguma coisa”, como agora. Agora fala de injustiças, do Estado, do Governo, da polícia, do que vê no bairro e não acha correcto. Exemplo: “Estamos aqui, se passar um carro da polícia se calhar vai parar, quer revistar, e só porque não temos documentos quer-nos levar para a esquadra. "Também ela, actualmente desempregada, não consegue viver da música. Os seus CD, um lançado em 2013, Juana na Rap (“A falar mais de mim”), e outro no início de 2016, Tcheu Barreras, onde trata temas mais gerais, dão-lhe de lucro "zero" cêntimos. “Quem não gostava de viver da música?” Entrar na kizomba ou noutro estilo mais comercial não está nos seus planos: “Tenho o meu estilo, quero manter aquela inocência. "Passou uns anos sem conhecer ninguém que a produzisse, até que um amigo, Klicklau, a levou a Primero G. “Foi uma evolução rápida, porque não tinha tido oportunidade. Antes de ir ao Primero G gravei duas ou três vezes, mas não era o trabalho que tinha em mente fazer. ”Hoje, Juana na Rap inspira-se no que vê à sua volta, na vida de rua. Ser mulher num mundo essencialmente masculino não faz dela uma rapper diferente, diz. “O que se passa no dia-a-dia é mais ou menos o mesmo. O que interessa é o que se está a dizer, mas não sinto diferença. Eu estou na luta!”Talvez seja difícil uma mulher sobressair no mundo dominado por homens, reconhece sem querer desenvolver. “Sou uma rapariga que cresceu no meio dos rapazes, sempre joguei à bola, sempre fui maria-rapaz. Nunca senti aquela diferença e no rap também não sinto. ”É Primero G quem diz: “[Juana] é tropa, pensa como nós. ” O nós são os homens. “Não se nota essa sensibilidade, mas ela existe”, comenta. É preciso deixar passar o tempo. Mynda Guevara é o grito de guerra dela. Aliás, na sua página de Facebook tem como tagline “female power”. O apelido, inspirado em Che Guevara, apareceu porque ela quer fazer uma revolução no rap: não quer ser mais uma. “Quero levar o rap feminino o mais longe possível, quero revolucionar o rap feminino”, diz, com convicção. Sentada no Espaço Jovem da Associação Cultural Moinho da Juventude, o premiado projecto social da Cova da Moura, Mynda, 19 anos, estudante de Marketing e Comunicação e estagiária na Fnac, fala com assertividade de um percurso que começou aos 14 anos. É fim de tarde de Maio e há muitos jovens a entrar e sair do estúdio onde ela se iniciou na música: um dia estavam a precisar de uma voz feminina, e ela apareceu. Desde então começou a cantar com Ridell, Dani G e outros – há vídeos no YouTube onde Mynda aparece neste bairro da Amadora habitado maioritariamente por afro-descendentes, sobretudo de Cabo Verde, com uma população estimada em cinco mil pessoas. O facto de ali haver um estúdio de gravação ajudou muito, foram lá as suas primeiras experiências. Quero levar o rap feminino o mais longe possível, quero revolucionar o rap femininoMynda e Ridell fizeram uma dupla e há “dois/três anos” arriscou lançar-se sozinha com Mudjer na rap krioulo, primeiro som a solo. A música fala justamente do facto de ser mulher e cantar rap, da forma como teve de “marcar o terreno” e de se “impor”. “Queria que quando se falasse em rap não se lembrassem que existem só rapazes a cantar, ou que o rap tem género. O rap não tem género, é para quem quiser libertar o que sente através de rimas e melodias. ”O objectivo é conseguir que cada vez mais mulheres cantem rap, “provar que têm tanta ou mais ambição do que os homens”. Para Mynda Guevara o rap é a vida. “Não consigo passar um dia sem ouvir rap. Acordo, estou a ir para o estágio e a ouvir rap. ”Recebe mensagens de vários sítios, já teve convites para ir tocar a Cabo Verde, Luxemburgo e Londres. Tem cantado à noite em eventos de rap crioulo, onde habitualmente o cartaz é feito de homens. Por enquanto não sabe contabilizar visualizações – uma pesquisa rápida mostra que as suas músicas têm milhares. O seu grande hit a solo é Li sta mudjer, com mais de 19. 500 visualizações; Objectivos, parceria com Ridel, tem cerca de 220. 500. Defende que o rap tem como objectivo ensinar e tem uma vertente activista. “Eu escrevo para ensinar, não escrevo para desviar. "Quando acabar o curso, quer fazer algo “mais elaborado”, que vá além das sete faixas soltas que já tem. “Não quero que vão ao YouTube, escrevam o meu nome e apareçam só as participações. Quero um trabalho elaborado, uma mixtape ou um álbum. Isso ajuda. ” O seu sonho: cantar em Cabo Verde, de onde são os pais. Foi na sala de sua casa que Nininho Vaz Maia, 28 anos, gravou um vídeo que se tornou viral, Música linda cigana. Aparece sentado no sofá em tronco nu, com uma guitarra e um pormenor no tornozelo: uma pulseira electrónica. Atravessamos o pátio onde miúdos jogam à bola e subimos ao apartamento de Nininho, agora orgulho da família. Tinha ido ao ginásio de manhã. Vê-se que gosta de cuidar do corpo e há até um vídeo recente de um amigo na sua página do Facebook a brincar com isso. Não são raros os comentários femininos ao seu aspecto físico. A filha brinca com um iPad onde mostra vídeos do pai. Incrustado na parede está um ecrã plasma onde passam programas da tarde. Estamos no bairro que hoje ocupa a extinta Curraleira, em Lisboa, onde vive com dois filhos e a mulher. Foi a circunstância de estar em prisão domiciliária que fez Nininho começar a cantar. O primo gravou o vídeo, a prima colocou-o no YouTube em Outubro de 2013. E, de repente, tinha-se tornado num hit. Música linda cigana é uma canção de amor com dois minutos, 800 mil visualizações e quase 500 comentários. Hoje Nininho tem duas páginas no Facebook com milhares de seguidores: na sua página pessoal são cinco mil amigos e mais de oito mil seguidores, na página de artista tem quase 10 mil likes. A história do tal hit não tem nada de extraordinário: um dia ouviu o primo, que vive na casa ao lado, cantarolar uma música. Estava a escovar os dentes às 6h, desceu as escadas, e pôs-se a tocar aquilo que assim “saiu” naturalmente, conta. “Sei que não são modos para estar no vídeo, em calções. Mas tenho a noção que ajudou, o vídeo está natural e fez com que as pessoas comentassem: ‘Já foste ver aquele cigano de pulseira a cantar?'”Segundo conta, esteve preso porque foi sair à noite, um amigo começou “à porrada” e ele acabou apanhado pela polícia. Em casa passou “muitas horas sozinho”, durante um ano e 15 dias. Descobriu que sabia compor e que “o ser humano acaba por se adaptar a tudo”. Em tempos um monitor que orientava jovens nos trabalhos de casa, num projecto social do bairro, Nininho sente que continua a ser um bom exemplo, apesar de ter estado preso. “Agora ainda sou mais. "O que se passa no dia-a-dia é mais ou menos o mesmo [que no mundo masculino]. O que interessa é o que se está a dizer. Eu estou na luta!Na Curraleira, um bairro maioritariamente de habitação social, vive a “família toda”. Da parte do pai, de etnia cigana, são uns 50 primos. A família da mãe, não cigana, também é enorme. Desde muito pequeno que canta em festas. Depois do tal vídeo, fez outro, e a seguir outro – até ser convidado para cantar ao vivo no ano passado. Hoje “está cada vez mais sério”. Já vive da música, mas também de um negócio de venda de carros que tem com o primo. “O que me alegra é estar a alegrar outras pessoas. Tirar milhares de fotografias, ser conhecido em todo o lado: isso já cansa!”Quando o vídeo foi para o YouTube, achava que ia ter um par de visualizações no bairro. Logo no primeiro dia teve mil, ficou “cheio de vergonha”. “Nunca imaginei que ia ter centenas de pessoas a pagar para me ir ver, pessoas em filas, a chover, à espera. ”Músicas suas tem umas “dez ou 11”. Mas não canta muito do repertório pessoal – canta mais covers de kizomba e outros géneros de música, algumas que adapta “para cigano”, muitas nem sabe de que autores são. “Tanto canto cigano como canto à senhor, como dizemos. Misturo. E isso vende. ” Também é criticado por não cantar só “à cigano”, ou só “à senhor”. Seja como for, já notou que há uma mudança: as pessoas estão a procurar mais música cigana. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Alentejo é a região que o mais convida para cantar em discotecas e em festas. “Digo muito que o Alentejo ficou a minha segunda casa. ” Dá concertos todas as semanas para um público vasto, diz que é “ouvido por toda a gente: brancos, ciganos, africanos”. E por todas as classes sociais: por exemplo, foi à Feira da Golegã actuar para uma plateia muito diversa com umas 800 pessoas. Não é assim tão diferente a escala de muitos destes músicos e a de alguns artistas agenciados, com empresas discográficas e marketing a trabalhar para eles. O que é diferente é a legitimação que alguns conseguem ou não atingir do circuito mainstream – um carimbo que nem todos procuram necessariamente, mas que acaba por funcionar como bitola. É através da Internet, do Facebook ou do YouTube que chegam aos fãs e aos outros músicos. O mercado paralelo da música acontece aqui – mas será que é mesmo paralelo?
REFERÊNCIAS:
Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar os outros
Em Portugal chamaram-lhes “retornados”, o que significava que tinham supostamente voltado ao ponto de onde tinham partido. A viver em Angola, há quem sinta que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi. (...)

Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar os outros
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Portugal chamaram-lhes “retornados”, o que significava que tinham supostamente voltado ao ponto de onde tinham partido. A viver em Angola, há quem sinta que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi.
TEXTO: Vivem em lusomódulos estes operários portugueses. É o nome da marca desses pequenos cubículos pré-fabricados com ar condicionado acoplado. Estaleiros como este incluem uma miniclínica, com enfermeiro e médico portugueses, uma cantina com cozinheiro português para que não se ressintam com a diferença de alimentação. De dia trabalham, nas horas vagas podem jogar dentro daquele recinto entaipado, matraquilhos, snooker, pingue-pongue, têm acesso à Internet. Chamam-se “base de vida” a estaleiros de construção civil como este do Grupo Lena Angola, que está instalado no meio do mato, na aldeia do Luvuei, província do Moxico (Leste de Angola). É assim chamado porque é suposto conter tudo o que necessitam para ali viver, sem precisarem do mundo exterior. Assim, a ganhar dinheiro sem terem grande sítio onde o gastar, até terem férias e poderem regressar a Portugal. João Duarte, engenheiro civil de 32 anos que trabalha há dois anos em Angola, é por isso que anseia, pelas férias. Angola é recurso, Angola é ponto de passagem. Tem a família, a mulher e a filha de três anos na Golegã. Veio para Angola adivinhando um fim que não foi surpresa para nenhum dos que trabalhavam na sua empresa. Ele antecipou-se e quando a Asibel Construções, na Batalha, anunciou insolvência já se tinha vindo embora. Em Angola, veio trabalhar para uma empresa portuguesa de construção, mas agora já passou para uma israelita. Mudou porque a remuneração não é só o ordenado e nesta empresa, além de ganhar melhor, passou de 22 para 54 dias de férias, tinha direito a ir três vezes por ano a Portugal, agora são quatro. E é isso que ele quer, juntar o máximo de dinheiro e ir o máximo de vezes ter com a família. Se a Asibel continuasse de portas abertas, ele estaria em Portugal. Júlio Almeida está hoje sentado numa esplanada próximo da marginal de Luanda, na cervejaria Rialto. Está sozinho, numa pose de observador. É o que tem feitos nos últimos anos, estudá-los, a estes portugueses “que chegam às malgas” empurrados pela crise, que chegam e vão, às temporadas. “Nos últimos sete anos, todos os dias chegam. ” Ao falar desses portugueses é como se houvesse entre ele e eles um fosso que os separa, um “eu” e “os outros”. É verdade que ele só voltou definitivamente “a África” na década de 1990, mas, no seu caso, é como se nunca de cá tivesse saído. Em Portugal, chamavam-lhes em tempos “retornados” — “não brinques com eles que são retornados”, ouviu Júlio na escola — porque supostamente tinham voltado ao ponto de onde todos tinham partido. A viver em Luanda, ele sente que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi. Não está sequer a falar de Angola. A sua infância nos tempos em que Portugal “ia do Minho a Timor” foi em Moçambique, mas lá ou em Angola, é como se tudo fosse uma continuação. Fala de “África” como se fosse um país. Nasceu em 1968 em Moçambique, a sua foi a última família portuguesa a sair de Vila Pery, agora chamada Chimoio. Com o 25 de Abril e a chegada da independência do país, em sua casa foram ficando estacionados vários carros, cerca de 15. Pertenciam às famílias que não puderam fugir a conduzir para Portugal, pessoas desesperadas que tentaram transformar tudo o que possuíam em dinheiro. O avô de Júlio foi-lhes comprando estes carros que não podiam levar com eles, por ser “bom samaritano” e porque estava convencido de que ele próprio nunca ia fugir, como esses portugueses que lhe pediam ajuda. A família de Júlio Almeida, portugueses radicados em Moçambique há três gerações, foi, de facto, ficando. Com os carros dos outros a apanhar pó, sem nunca lhes ligarem o motor. Ficaram mesmo quando viam passar “camionetas com pessoas estropiadas” a serem levadas para o hospital, mesmo quando na escola ficava triste porque havia colegas que deixaram de o chamar Júlio para se passarem a dirigir a ele como “o branco”, mesmo quando havia tiros na rua e as janelas de casa passaram a estar forradas a colchões, mesmo quando já não havia petróleo para comprar, nem sabão, nem massa, nem arroz. O avô e o pai teimavam em ficar, “isto ainda há-de ser terra para todos”. Até que a matriarca, avó Maria Ernestina, a independência tinha sido declarada há cinco anos, corria já 1980, disse: “Se vocês quiserem ficar ficam, eu pego nos miúdos e levo-os. ” Júlio tinha sete anos. E os homens da família acabaram por aceitar o inevitável. Passaram os últimos dias em Moçambique a comer lagosta e camarão, a gastar o dinheiro que em Portugal não ia valer nada. Os carros lá permaneceram, estacionados. Espinho. 1980. “O frio. . . . Senhoras de lenços na cabeça. ” Quando Júlio Almeida chegou a Portugal: “Pensei que aquilo era o inferno. ” Ao avô e ao pai pareceu-lhes o mesmo. O avô morreu três anos depois de terem voltado para Portugal, e o pai, cinco anos. Acha que foi da amargura: “Definharam e morreram. Vi-os morrer de tristeza. ” A avó ainda insistia com o avô, para ver se ele saía de casa e se animava — “vai lá fora, vai ao café”, e ele respondia-lhe “e vou conversar o quê com esta gente?”. “Com esta gente. ” Era a completa falta de identificação. Júlio não deixou que isso lhe acontecesse. Tirou o curso na Escola de Hotelaria do Porto e voltou. Primeiro para Moçambique, depois para Angola. Para África. Voltou uma vez a Vila Pery, com 22 anos. Não é de nostalgias mas teve necessidade de ir visitar a povoação onde foi feliz na infância, para ver se ainda existia a casa onde viveu. Foi só essa vez, garante. Está transformada em edifício do Governo e nada mais quer dizer sobre o assunto. “Foi o que foi. Do passado vivem os museus. ”Ele não voltou para o passado que deixou, com saudosismo do império português. Nada de material ficou desse tempo e o desapossamento na sua infância, o virem de mãos a abanar, talvez tenha ficado naquilo em quem ele se transformou. “Não tenho nada meu. A casa onde vivo é arrendada, nem o candeeiro da mesinha de cabeceira é meu. ” Voltou para uma forma de vida, a que associa a liberdade com que viveu a sua infância, de quando era pequenino e roubava mangas das árvores e brincava nas linhas de caminho-de-ferro de Vila Pery. “Recuso a limitação. Tu podes, assim tu queiras”, dizia-lhe o avô que morreu de tristeza. Quando mandou um currículo para vir trabalhar para Angola “calhou na guerra”. Foi trabalhar para uma empresa do grupo Espírito Santo, a OPCA, Obras Públicas de Cimento Armado. Ele era o responsável de “bases de vida”, tratava do alojamento e do transporte de comida de locais onde tinham de ser criadas condições de vida para “os poucos brancos que tinham ficado”, normalmente engenheiros. E parece que a guerra condizia com ele. “Adoro o caos. ” As oportunidades, os improvisos, a desorganização. O seu trabalho vivia disso. “Numa cidade inteira sem água, imagine que conhece um gajo com um camião-cisterna?” Numa cidade sem fornecedores de alimentação, “comprava-se aos putos que roubavam dos contentores do porto. Isto é Fellini”. Conta tudo isto de camisa de alças e chinelos, a comer frango de churrasco com jindungo [malagueta]. A guerra civil angolana acabou em 2002, ele hoje é director de alimentação e bebidas da multinacional sul-africana Shoprite, um grande grupo de retalho africano. “É miraculoso o que se passou aqui em dez anos. Não havia restaurantes, estar aqui a comer frango no churrasco…” Agora, faz-se uma viagem Luanda-Lobito em cinco horas, mas durante a guerra levava cinco dias, até porque não se podia guiar à noite — parava-se o carro ao lusco-fusco, cobria-se com uma rede verde do exército e camuflava-se com ramos cortados até nascer o sol, lembra. Fala como se tivesse saudade do tempo da guerra e do caos, e é como se os outros, os que chegaram há pouco só para ganhar dinheiro, não compreendessem Angola, porque não sabem o que é querer mesmo viver no país, sem as facilidades que há hoje, por mais que se fale das oscilações do preço do petróleo, de alguma insegurança, do preço alto do custo de vida, das dificuldades em mandar dinheiro. Júlio Almeida faz parte de um pequeno grupo de portugueses que sempre quiseram ficar. E quando retornaram tiveram mesmo de querer ficar. “Esta é a minha terra. ”Ele sabe que nunca mais voltará a viver em Portugal mas que “na vida não há cesto cheio”. Tem três filhas no Porto, a mais velha tem 25 anos, a mais nova 18. “Ficarei sempre em África. Sou um híbrido, o branco mais preto de Angola. ” Ouve com bonomia quando nas notícias angolanas às vezes se diz, por tudo e por nada, que o que corre mal na Angola de agora é “culpa do colono”. Está convencido de que é por falta de alternância política que se escolhe esse bode expiatório: não podendo dizer que o culpado é o outro partido, diz-se que é culpa do colonizador. Desvaloriza. Sorri. Sei que não é o maior país do mundo, mas fico chateado quando alguém vem para cá criticar. O trânsito é o grande problema da nossa cidade, isso e a falta de sinais, de passeios”Em 1975, quando Angola se tornou independente, Mário Pires tinha três anos. Não é por se lembrar mas por ouvir contar que sabe das dificuldades por que passaram os poucos portugueses que insistiram em ficar. De acordo com a História de Angola (de Douglas Wheeler e René Pélissier, Tinta da China Edições), dos 330 mil portugueses residentes em Angola em Abril de 1974, apenas 30 a 40 mil permaneciam no território em Março de 1976. A família de Mário faz parte deste número. No apartamento da família, em Luanda, contam-lhe que chegou a haver destroços de morteiros e que houve um vizinho que um dia os protegeu, que mentiu por eles. Estavam em casa, e ele disse a um grupo de homens que um dia chegaram, muito provavelmente para a saquear, “a casa está vazia”. Eram os tempos da ponte aérea, em que milhares de portugueses radicados em Angola fugiam em pânico para Portugal. Os pais não a apanharam, ficaram e, nessa altura, era mesmo preciso querer ficar. “Na fuga, prevaleceu o medo de morrer. Os meus pais também tinham medo de morrer”, mas ficaram. “Estavam bem misturados. ” Mário lembra-se de ter conhecido Agostinho Neto, o primeiro Presidente angolano. Tinha oito anos quando tiveram de dar o braço a torcer. Em 1981, o pai decidiu “que queria outra estabilidade”. Mas só aguentaram quatro anos em Portugal. Em 1985, estavam de volta, tinha Mário 12 anos. “Não aguentaram Portugal. Nunca se conseguiram adaptar ao modo de vida português. ”Naquele tempo, para voltar a Angola, também era mesmo preciso querer regressar, diz Mário Pires, engenheiro electrotécnico de 41 anos e proprietário de uma empresa de projectos e fiscalização (de electricidade). A mãe também vive em Luanda, o pai morreu no ano passado, “se fosse vivo, faria 60 anos de Angola” — não conta com a interrupção de quatro anos em Portugal. Os seus avós chegaram a Angola na década de 1940. Da guerra civil angolana, que começou logo em 1975, ficaram aquelas histórias que, com o tempo, perderam o dramatismo e entraram no anedotário de família: como quando ele, quando era pequeno, e não percebia que havia uma guerra a correr, aprendeu a adorar pão sem fermento, como se aquele fosse o verdadeiro pão. Não percebia que o pão diferente não era uma iguaria mas uma consequência das dificuldades de acesso a alguns bens alimentares, não se conseguia comprar pão nem fermento para o fazer em casa. Eram tempos em que a mãe tinha de ir para a fila do pão ou da farinha. Não diz que passaram fome, fala de tempos em que tinha de haver “gestão da alimentação”. Era o tempo em que valia a troca directa, grades de cervejas, por exemplo, eram uma valiosa moeda, conta, até podiam dar para comprar um bilhete de avião. Os pais mandaram-no estudar para Portugal em 1992, foi em Lisboa que tirou o curso de Engenharia e onde conheceu a mulher, que agora vive com ele em Luanda. Para casar com Mário, tinha de querer vir para Angola porque ele não se imagina a viver noutro sítio do mundo. Não é qualquer pessoa, e é como se essa adaptabilidade, “quando voltámos estava tudo revirado, em obras”, fizesse parte do encanto da mulher com quem se casou e com quem teve duas filhas. Quando voltou definitivamente, homem casado, em 2005, Luanda não vivia os mesmos problemas de quando ele era pequeno e havia a guerra, mas ainda encontraram muitas limitações. Por exemplo, não podiam habituar as filhas, hoje com 6 e 11 anos, a uma determinada marca de papa ou de iogurtes porque de uma semana para a outra podia já não haver à venda. Dois pacotes de papas podiam chegar a custar 100 dólares. Havia muita imprevisibilidade. Os que, como ele e a família, têm uma ligação afectiva com Angola são uma minoria de portugueses que se distinguem bem porque voltaram muito antes da crise. Mário assistiu, nos últimos anos, à chegada de centenas de portugueses. O sociólogo Rui Pena Pires, coordenador científico do Observatório da Emigração, estima que “actualmente, se quisermos falar só de emigrantes portugueses (o que significa que os nascidos em Angola que aí viviam antes da independência e que ficaram não contam, mesmo tendo conservado a nacionalidade portuguesa), teremos sempre menos de cem mil pessoas (nascidos em Portugal e residentes em Angola). Mais provavelmente cerca de 60 mil”. “Existem pessoas da geração do meu pai que guardam rancor. Houve muita gente no pós-independência que tentou recuperar património em Angola, os que conseguiram alguma coisa foram muito poucos”, diz Mário Pires. O primo, licenciado em Gestão de Empresas, está há sete anos na mesma Luanda que Mário, mas por razões pragmáticas. Porque nasceu cá ainda conseguiu aproveitar uma janela de oportunidade, conseguiu em 2005 adquirir a nacionalidade angolana. Mas é franco, veio porque em Portugal não conseguia arranjar emprego. Prevalecem os portugueses que, como Bruno, vêm por quatro ou cinco anos para ganhar dinheiro. Se lhe saísse o Euromilhões, Bruno não ficava por cá, voltava para Portugal; se calhasse a Mário, este aproveitava para melhorar o seu negócio. “Eu sou angolano, dou muito valor a ser angolano. Daqui não saio. ”Mário Pires não tem nada contra os recém-chegados. Há entre os que chegam nos últimos anos “pessoas que se entusiasmam com o país e outras que têm medo e não atravessam a rua”. O que não aprecia é a atitude dos que só dizem mal do país, da cidade. Só lhe apontam a insegurança, a sujidade. “Sei que não é o maior país do mundo, mas fico chateado quando alguém vem para cá criticar. O trânsito é o grande problema da nossa cidade, isso e a falta de sinais, de passeios. ”O primo Bruno foi assaltado, à mão armada, dentro de casa, roubaram-lhe computador, PlayStation, documentação, telemóveis relógios, perfumes, conta. Mário Pires tenta arranjar atenuantes para aquele assalto, e ao fazê-lo está a defender Angola, “a minha terra”. Ninguém lhe tira da cabeça que foi alguém que conhecia o primo e que teve com ele um desentendimento ou que houve imprudência por parte do primo, todos os dias com o portátil às costas. Estudaram-lhe as rotinas, há que ter cautelas. Mário Pires faz jogging na marginal de Luanda e nunca teve problemas. Quanto ao clima político, diz que começa a haver abertura, há manifestações, há a TV Zimbo, que já é mais crítica. Só que, na altura de voltar, a mulher não quis vir com ele. “Não volto para Angola, aquilo cheira mal”, disse-lhe. Referia-se talvez aos esgotos do prédio onde viviam, mas na verdade estava a falar do país. Ora para Sérgio “Angola cheira bem, cheira bem demais”. Mas um casal para quem o país cheira bem a um e a outro cheira mal não pode ficar junto, sobretudo se a pessoa a quem cheira bem não consegue viver noutro sítio. Foi essa a razão de as vidas se terem separado. Sérgio escolheu Angola. “Fugi de Portugal. “Em Angola, no regresso, senti-me amado. ” Quando voltou, diz, “éramos poucos”. Foi em 1981, “não gostava de guerra, mas vivia na guerra”. No restaurante português onde hoje encontramos Sérgio Figueiredo, a marisqueira Brito, nos arredores de Luanda, está a comer cozido à portuguesa. Em som de fundo ouve-se o fado As canoas do Tejo — “Quando há norte pela proa/ Quantas docas tem Lisboa/ E as muralhas que ela tem” — cantado com sotaque angolano pelo cantor de karaoke de serviço. Vítor Brito, o filho do proprietário, diz que fideliza os seus clientes com pratos certos, leitão à Bairrada, cozido à portuguesa. A televisão está ligada num canal português que mostra notícias de um afogamento na Ericeira. Sérgio Figueiredo vem cá regularmente. Este engenheiro civil, que trabalha desde que se lembra na construtora Mota Engil, diz que tem as coisas bem definidas. Quando há braços-de-ferro políticos entre Angola e Portugal, torce por Angola, diz que chegou a ser militante do MPLA, “vivi intensamente a libertação do fascismo, era contra o Salazar”; quando é futebol, “sou por Portugal”, quando toca a comida, “só portuguesa”. Nada de funge (papa de farinha de mandioca muito comum na cozinha angolana). Esta é a Angola que eu amo, é a Angola em que eu vivo”Sérgio diz que não tem saudades do passado, da Angola portuguesa. “Esta é a Angola que eu amo, é a Angola em que eu vivo. ” Teve um AVC há um ano. Não volta a Portugal há quatro. Decidiu que nunca mais volta. Tem medo de morrer lá, ou no avião, “mesmo que me enterrem cá não é a mesma coisa”. Ele não arrisca. Está convencido de que o risco de os aviões caírem aumentou com a crise económica, que ajudou à deterioração das condições dos pilotos, a menos cuidados com a manutenção dos aviões. Vive entre dois mundos. Fala todas as semanas com a mulher portuguesa que nunca quis vir com ele no regresso à sua Angola, mas que ele continua a sustentar à distância, porque, diz, “não acredito no divórcio”. À mesa da marisqueira Brito está sentado com ele uma criança, o Paulinho. O menino mulato grita “quero massa, quero massa”, embora Sérgio insista em tentar dar-lhe cozido à portuguesa, “come a carninha”. É seu filho, tem sete anos. Fê-lo com uma mulher angolana. “Eu gosto da minha mulher, é uma pessoa séria. Damo-nos bem ao telefone. O facto de ter outras mulheres não quer dizer que desgostei. Um homem pode ter filhos até morrer e continuar a gostar da mulher. É saudável, é normal. ”Quis muito ter este filho, mesmo admitindo que é pai-avô. Chama-lhe “um clone do Paulo”. Paulo era o nome de um outro filho com o mesmo nome que lhe morreu com 28 meses, em 1972, em plena guerra colonial, era Angola portuguesa. Morreu de paludismo, “houve ignorância do médico militar português”. “Sempre quis ter um filho como aquele. ”Dá a este o que nunca pôde dar ao outro, deixa-o fazer de tudo. Diz que é “um menino livre, um guerrilheiro” – “pôs o telemóvel no microondas, o cão na máquina de lavar louça. Dei-lhe quatro iPad, partiu-os todos. Comprei-lhe mais dois. ”Sérgio nunca quis ter nada seu quando regressou a Angola, mas mudou de ideias por causa daquele seu filho novo, que tem a nacionalidade angolana e portuguesa. Anda há uns meses a construir uma vivenda próximo de Luanda para lhe deixar. Faltam uns meses para estar terminada. Sobre Portugal, fala das “péssimas condições criadas pelo excelente Governo que temos, que faz com que as pessoas queiram sair, como os nossos antepassados emigrantes”, como o seu pai, que chegou a Angola na década de 1950, como trolha. Diz que Angola guarda oportunidades para quem tem de sair. Foi isso que disse à sua filha mais velha que vivia em Portugal e não arranjava emprego, tinha o curso de Topografia e ele conseguiu trazê-la para Angola, e cá “estava lançada”. Colocaram-na na cidade do Soio, tinha 34 anos. Morreu com paludismo, que não foi logo diagnosticado. Sérgio continua a aconselhar os portugueses a virem para Angola. “Só lhes peço para terem cuidado com o paludismo. ”Sérgio pensa que a sua mulher portuguesa culpa-o até hoje pela morte desta filha, culpa até hoje Angola pela morte dos seus dois filhos portugueses. Até isso o separou de Portugal, o facto de agora já não ter lá nenhum filho. “Cá em Angola, tenho dois filhos vivos e dois filhos mortos. ” Além de Paulinho tem a Rosete, uma outra filha, de 28 anos, que teve com outra mulher angolana, é licenciada em Economia numa faculdade angolana, diz com orgulho. Este ano, Sérgio vai mandar o filho pela primeira vez a Portugal mas não o vai acompanhar, manda a filha mais velha. Quer que ele conheça os seus irmãos, quer que o filho conheça o sítio onde o pai nasceu, mas aonde não torna porque tem medo de morrer em Portugal. Na Luanda do presente, as ruas têm nomes como Avenida Ho chi Minh ou Avenida 4 de Fevereiro. Mas ainda se vêem, perdidas, placas a que ninguém liga mas que ninguém se deu ao trabalho de retirar, como a Rua Oliveira Martins. Houve um tempo em que todos aqueles objectos ocupavam o espaço público angolano, depois foram substituídos para serem colocados ali, para serem vistos como relíquias do passado. Maria Ribeiro, casada com um português que quase não saiu de Angola a não ser para estudar e para a conhecer, veio mostrar a uma amiga espanhola o antigo forte de Luanda, que hoje se chama Museu Nacional de História Militar. “Neste museu nos é revelada a história de todas as guerras do heróico povo angolano”, lê-se numa placa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As figuras de pedra estão dispostas ao lado da Renault 6 “utilizado pelo camarada presidente António Agostinho Neto”. porque são apenas um capítulo da história de Angola. A entrada para o forte tem uma primeira entrada que antecede a oficial, entra-se através de uma enorme estrela do MPLA com homens negros agrilhoados que se soltam e empunham arcos e setas e catanas. À entrada, a estátua mais gigantesca de todas — Afonso Henriques, a maior das figuras portuguesas, fica-lhe abaixo da anca — é Ginga, a rainha africana que ousou enfrentar os portugueses, tem um machado na mão. “Isto é história, agora é uma Angola nova”, diz Maria Ribeiro, de 50 anos, apontando para as estátuas de Portugal. É preciso perceber que esse capítulo encerrou para se viver bem em Angola. Olhando do forte de Luanda, contam-se hoje 18 gruas a girar no horizonte, estão a acrescentar arranha-céus à paisagem, uma é da construtora portuguesa Soares da Costa, os sons de rebarbadora e martelos pneumáticos abafam os sons dos apitos dos carros que circulam na marginal.
REFERÊNCIAS: