É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo. (...)

É primeira-ministra e não tem filhos. E isso ainda é notícia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 7 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não é a idade nem o sexo que fazem de Jacinda Ardern uma primeira-ministra diferente. É a solução política que encontrou para formar governo e a resposta que deu para repudiar o sexismo.
TEXTO: Numa primeira leitura, tudo aos nossos olhos parece estranho na Nova Zelândia, olhos que estão — literalmente — no outro lado do mundo: os motoristas do Estado são multados por excesso de velocidade com a líder do Governo no carro, o namorado da primeira-ministra é apresentador de um programa de televisão sobre pesca chamado Fish of the Day e a residência oficial do chefe do executivo foi uma clínica dentária durante anos. O pretexto para esta breve imersão é Jacinda Ardern, que acaba de tomar posse como primeira-ministra da Nova Zelândia. Tem 37 anos, é uma progressista de esquerda e junta um estilo, carisma, idade e ideias que fazem lembrar o canadiano Justin Trudeau. Não é por ser mulher que a nova primeira-ministra foi notícia. A Nova Zelândia é um dos poucos países do mundo com três mulheres a chefiar o executivo e, mais raro ainda, duas delas consecutivas. A primeira foi a conservadora Jenny Shipley (1997-99), e a segunda a trabalhista Helen Clark (1999-2008), um dos 13 candidatos a secretário-geral da ONU que o português António Guterres derrotou no ano passado. Também não é pela idade que Ardern faz história — apesar de impressionar e de ser ainda mais nova do que o Presidente francês, Emmanuel Macron. Em 1856, Edward Stafford tornou-se primeiro-ministro da Nova Zelândia aos 37 anos e 40 dias. Quando tomou posse na semana passada, Ardern tinha 37 anos e 92 dias. A BBC foi exacta no título: “Líder mais nova em 150 anos. ” Em rigor, Ardern é a mulher mais jovem de sempre à frente da Nova Zelândia. E, já agora, do mundo. Dentro de toda a peculiaridade neozelandesa, o que é interessante nesta história é outra coisa. Na verdade, são duas. A primeira é a solução política que Ardern encontrou para resolver o impasse saído das legislativas de Setembro. A segunda foi o modo como respondeu ao sexismo que a sua ascensão despertou. Primeiro a política. Os dois partidos que fazem a rotação do poder desde 1935, o Labour (trabalhista) e o National (conservador), ficaram quase empatados. O Partido Nacional ficou com 56 lugares no Parlamento e o bloco Trabalhistas+Verdes ficou com 54. Durante os 26 dias das negociações, especulou-se muito sobre que papel assumiria desta vez Winston Peters, o líder do partido Nova Zelândia Primeiro, que no passado desbloqueou o impasse a favor dos conservadores. Não é só a palavra “Primeiro” (First, no original) que faz pensar em Donald Trump e no lema “America First”. As ideias do partido também. Populista numa versão neozelandesa — é filho de um maori da tribo Ngati Wai e de uma descendente de imigrantes escoceses do clã McInnes, e foi operário na metalurgia e na construção de túneis antes de estudar política e direito —, Winston Peters, 72 anos, defende de corpo e alma três ideias: reduzir a imigração (diz que é “importar actividade criminal”), aumentar as penas criminais e acabar com a “indústria da indignação” em torno do Tratado de Waitangi, de 1840, entre a coroa britânica e os chefes maori, que, essencialmente, deu a soberania do país a Londres. Não é por acaso que dizem que Winston Peters é o “Trump neozelandês”. As coligações são a regra na Nova Zelândia desde 1990. Além disso, os eleitores já viram os mesmos partidos aliarem-se tanto à esquerda como à direita. É o caso do United Future (conservadores), dos Verdes e do Nova Zelândia Primeiro. O próprio Winston Peters foi vice-primeiro-ministro (1996-1998) num governo do Partido Nacional; a seguir, Jim Anderton (do Partido Progressista, de esquerda) teve o mesmo cargo numa coligação com o Labour (1999-2008), e a direita, que agora ganhou mas foi para a oposição na sequência do acordo Ardern/Peters, governou entre 2008 e 2017 em coligação com a Association of Consumers and Taxpayers, o United Future, o Partido Maori e os Verdes (que saíram em 2011). Com 7, 2% dos votos e nove lugares, voltou agora a caber a Winston Peters o papel de escolher o primeiro-ministro. Para surpresa de muitos, fez acordo com a esquerda. Escolheu o Labour ou escolheu Jacinda Ardern? Na Nova Zelândia, fala-se em “Jacindamania”, e o acordo revela, no mínimo, o carisma da nova primeira-ministra, uma mulher de esquerda sem qualquer ambiguidade. Quando anunciou a sua decisão, Peters disse que tinha de escolher entre “o statu quo modificado” e a mudança e que escolheu a segunda. O seu partido ficou com quatro pastas. Peters é de novo vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros. Jacinda Ardern acumula três pastas: Segurança Nacional e Serviços Secretos; Arte, Cultura e Património, e Crianças Vulneráveis, as mesmas que tinha como líder da oposição. Mal tomou posse, Ardern começou a pôr em prática o lema de campanha: “Let’s do this. ”. Ao lado do seu vice-populista de direita, prometeu mudanças profundas nos primeiros cem dias e um “miniorçamento” até ao Natal. O Governo vai começar pela Educação, aumentando de forma substancial o investimento do Estado: o primeiro ano universitário será gratuito para todos e as bolsas vão aumentar 50 dólares por semana. Como medida de compromisso, e respondendo a uma vontade do seu parceiro de coligação, anunciou também a intenção de suspender a venda de casas a estrangeiros. O segundo tema é o sexismo — ou a pergunta da maternidade. Vai Jacinda Ardern ter filhos? A pergunta foi feita duas vezes de seguida, a primeira sete horas depois de ter sido eleita líder do Partido Trabalhista. Qualquer coisa como “muitas mulheres chegam ao fim dos 30 anos e têm de escolher entre terem filhos ou continuarem a sua carreira. Essa é uma escolha que sente que tem de fazer ou que já fez?”. A resposta:— Não tenho problema em que me faça essa pergunta, porque tenho sido muito aberta em relação a esse dilema e sinto que muitas mulheres o enfrentam. A minha posição não é diferente da das mulheres que têm de ter três empregos ou que têm muitas responsabilidades. Mas no dia seguinte, o tema regressou, noutra entrevista, e foi colocado de uma forma que a irritou. “Acho que é uma pergunta legítima, porque pode ser primeira-ministra, e um empregador numa empresa precisa de saber este tipo de coisas sobre as mulheres que vai contratar, porque as mulheres tiram licença de maternidade. E portanto a pergunta é: é aceitável que um primeiro-ministro tire licença de maternidade quando está em funções?” Outro jornalista que estava no painel interrompeu com um “oh oh oh. . . ”, como quem diz, “calma”, e perguntou a Ardern: “Acha esta questão de ter ou não bebés uma pergunta legítima?”— Para mim — respondeu Ardern — sim, porque me abri em relação a isso. Mas para as outras mulheres, é totalmente inaceitável, em 2017, dizer que as mulheres têm de responder a essa pergunta no local de trabalho. É uma decisão das mulheres quando querem ter filhos. Não deve predeterminar se são ou não contratadas. Na política, como no resto, os clichés sexistas parecem inexoráveis. No livro Head and Shoulders: Successful New Zealand Women Talk to Virginia Myers, de 1986, Helen Clark conta que a campanha para as legislativas de 1981 foi muito difícil: “Por ser solteira, fui massacrada. Fui acusada de ser lésbica, de viver numa comunidade, de ter amigos trotskistas e homossexuais. . . ” Pressionada pelo seu próprio partido, acabou por se casar com o sociólogo Peter Davis, com quem vivia há cinco anos, pouco antes de ser eleita para o Parlamento. Não têm filhos. Agnóstica (tal como Jacinda Ardern), Clark tinha reservas profundas sobre a ideia de se casar e, segundo escreveu Brian Edwards na biografia Helen — Portrait of a Prime Minister, de 2002, chorou durante toda a cerimónia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Austrália, mesmo ao lado, o tema é familiar. Quando Julia Gillard se tornou primeira-ministra (em 2010), o editorial do Sydney Morning Herald dizia: “A sua imagem mediática não encaixa nas expectativas de alguns eleitores: uma mulher solteira, sem filhos, cuja vida é dedicada à sua carreira. ” Claro que, depois do insulto de Bill Heffernan uns anos antes, nada a terá surpreendido. Heffernan, um senador conservador amigo do então primeiro-ministro, John Howard, ainda hoje defende com orgulho a ideia de que Julia Gillard “nunca compreenderá os eleitores porque não tem filhos nem família”. “Se se é um líder, tem de se compreender a comunidade”, disse em 2007. “Uma das coisas importantes a compreender numa comunidade é a família e a relação que existe entre a mãe, o pai e uma caixa de fraldas. ” O mais extraordinário veio a seguir: por ser “deliberadamente estéril”, Gillard não tinha capacidade para liderar. Jacinda Ardern cresceu em Morrinsville (sete mil habitantes) e em Murupara (1700 pessoas), rodeada pela floresta de Kaingaroa. Murupara significa “limpar a lama”. O pai era polícia e a mãe empregada na cantina de uma escola. Em 2017, e depois de duas mulheres a chefiar o Governo, não ter filhos ainda é notícia. Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU
Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto. (...)

Harry Potter e The Band’s Visit vencem na noite em que DeNiro disse “Fuck Trump”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-06-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: Anjos na América foi outro dos grandes vencedores dos prémios que distinguem o melhor teatro musical em cena nos EUA. DeNiro, convidado para apresentar Bruce Springsteen, fez o resto.
TEXTO: O grande vencedor da noite dos prémios Tony, que distinguem o melhor do teatro musical em cena nos EUA, foi The Band’s Visit, sobre uma orquestra egípcia retida em Israel, e os nomes conhecidos premiados foram Andrew Garfield, Harry Potter e a Criança Amaldiçoada e Anjos na América. Mas um dos destaques da noite foi mesmo o palavrão endereçado por Robert DeNiro ao Presidente Donald Trump – “Fuck Trump”, bisou. Os alunos da escola de Parkland, atacada num tiroteio que marcou o debate sobre o controlo do acesso às armas nos EUA este ano, actuaram. The Band’s Visit recebeu dez Tony, entre os quais o de melhor musical na Broadway e também os prémios de interpretação para os actores Tony Shaloub, Katrina Lenk e Ari'el Stachel. Só perdeu um dos 11 galardões para os quais estava nomeado. Angels in America, ou Anjos na América em português (a peça esteve parcialmente em Portugal em 1994 e foi adaptada para televisão pela HBO e exibida em Portugal no início dos anos 2000), voltou aos palcos depois da sua estreia em 1993 e o texto de Tony Kushner venceu na altura um prémio Pulitzer e agora o de melhor reposição, tendo também dado galardões de actuação a Andrew Garfield e a Nathan Lane. Os actores dedicaram os seus Tony à comunidade LGBT e a Kushner, cujo texto sobre a epidemia da sida nos anos 1980 e seus efeitos sociais deu origem à peça com mais nomeações da história da Broadway, como assinala o Guardian. Mas foi o blockbuster Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, uma peça que continua a explorar o universo criado por J. K. Rowling em torno de um jovem feiticeiro em Inglaterra, que recebeu o Tony de melhor peça e outros seis galardões. A peça, elogiada pela crítica, bateu recordes de bilheteira nas suas primeiras semanas de exibição nos EUA depois de ter arrecadado milhões de libras no Reino Unido desde Julho de 2016 e de ter recebido nove prémios Laurence Olivier. Glenda Jackson e Laurie Metcalf foram premiadas pelos seus papéis em Three Tall Women e a revisitação de My Fair Lady foi uma das grandes perdedoras da noite, marcada por um Tony especial a Bruce Springsteen pelo seu espectáculo Springsteen on Broadway, que estará em exibição até Dezembro deste ano. Foi precisamente ao apresentar o “boss” que Robert DeNiro deixou a sua marca na cerimónia que a imprensa descreve como tendo sido entre “muito política” e marcada pela “esperança e contenção”. Afinal, os discursos sobre a comunidade LGBT, sobre o feminismo (a comediante Amy Schumer enquadrou My Fair Lady como uma peça feminista, por exemplo) ou imigração e a actuação dos alunos da escola Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, que interpretaram uma música da peça Rent, tinham pontuado a noite. E Tony Kushner tinha apelado, ao aceitar o seu prémio, ao voto nas iminentes eleições intercalares dos EUA para “salvar a nossa democracia e sarar o nosso país”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas o “touro enraivecido” obrigou os censores do canal CBS a exercer os seus poderes e a deixar em silêncio na transmissão televisiva o momento em que DeNiro gerava uma ovação no Radio City Music Hall. De punhos erguidos, disse “Fuck Trump”. Foi recebido com risos e aplausos. “Já não é ‘abaixo Trump’, é ‘que se foda Trump’”. E com Springsteen prestes a interpretar My hometown apelou: “Bruce, tu abalas a sala como ninguém. E mais importante ainda nestes tempos perigosos, abalas o voto. Sempre a lutar, usando as tuas próprias palavras, pela verdade, transparência, integridade na governação. E bem precisamos disso agora”. Robert DeNiro é uma conhecida voz anti-Trump e já tinha justificado no passado recente que considera que “a América está a ser gerida por um louco que não reconheceria a verdade nem que ela viesse dentro de um balde do seu amado frango frito”. Em casa, os espectadores não puderam ouvir os palavrões de DeNiro – mas a audiência encarregou-se de espalhar a palavra via Twitter e a imprensa presente também relataria o sucedido.
REFERÊNCIAS:
Um ano depois do pior dia de sempre
Foram cerca de 500 focos de incêndio em pouco mais de 24 horas, foi uma imensidão de área atingida, foram quase 40 municípios abrangidos, sobretudo no centro de Portugal. Um ano depois desse 15 de Outubro, não são só as marcas da passagem do fogo que continuam visíveis na paisagem. Há milhares de histórias de superação, de resiliência, de frustração e de oportunidade. (...)

Um ano depois do pior dia de sempre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento -1.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foram cerca de 500 focos de incêndio em pouco mais de 24 horas, foi uma imensidão de área atingida, foram quase 40 municípios abrangidos, sobretudo no centro de Portugal. Um ano depois desse 15 de Outubro, não são só as marcas da passagem do fogo que continuam visíveis na paisagem. Há milhares de histórias de superação, de resiliência, de frustração e de oportunidade.
TEXTO: Foi o pior dia do ano, que aconteceu apenas dois meses depois da maior mortandade de sempre por causa de um único incêndio florestal, em Pedrógão Grande. Depois daquele 17 de Junho de 2017, ninguém queria acreditar que uma tragédia semelhante voltasse a acontecer. Mas ela repetiu-se logo na madrugada de 15 e 16 de Outubro, quando deflagraram cerca de 500 focos de incêndio e que lavraram quase sem controlo em sete concelhos da região Norte e em 32 na região centro. Talvez tivessem sido as imagens de Pedrógão, e do elevado número de vítimas calcinadas numa estrada a fugir do fogo, que evitou que o número de vítimas mortais fosse maior. Em Outubro morreram 50 pessoas e arderam vários milhares de casas. Foram afectadas 430 empresas e ficaram quase cinco mil postos de trabalho em risco. Os incêndios de Outubro foram a razão do primeiro puxão de orelhas institucional (e em público), dado pelo Presidente da República ao Governo liderado por António Costa. Era preciso não voltar a falhar, era preciso começar rapidamente a reconstruir. A avalanche de donativos que a tragédia de Pedrógão Grande granjeou de imediato não se repetiu em Outubro, e foi o sector público quem assegurou a reconstrução, por via dos fundos comunitários e do Orçamento de Estado. O Estado veio a terreno depois de o sector segurador ter feito o seu trabalho, processo que foi concluído em Julho deste ano. De acordo com os dados da Associação Portuguesa de Seguros, foram recebidas 4636 participações de sinistros (só de casas foram 3396) e foram pagas indemnizações no valor de 226 milhões de euros, naquele que foi considerado o maior sinistro de sempre. No Orçamento de Estado para 2018, e para a reconstrução das casas estavam cabimentados 60 milhões de euros. Para o apoio à reposição da capacidade produtiva das empresas, foi disponibilizada uma linha de financiamento com 100 milhões de euros. Nesta avalanche de números e relatórios, e nesta guerra de candidaturas e projectos, sobram as histórias individuais de quem ainda enfrenta, 365 dias depois, as consequências daquele nefasto dia. Há histórias de superação e resiliência, de frustração e de oportunidade. Aqui contamos apenas cinco. Podiam ser multiplicadas por mil. José Freire, 85 anos e Prazeres Freire, 80. Moradores na aldeia de Coucedeira, Vide, Seia. Foi no dia em que fez 85 anos, a 31 de Março. Nesse dia o pesadelo terminou e José Freire voltou a ter mesa posta e casa cheia, com o filho, nora e netos a cantarem-lhe os parabéns. Eles abalam-se de São Domingos de Rana sempre que podem, e desta vez, e para além do aniversário do avô, e passar a Páscoa, queriam também assinalar o fim das obras que, durante quatro meses, recuperaram a casa de que os avós foram obrigados a sair, escoltados pela GNR, no dia 15 de Outubro. Vieram, de alguma maneira, inaugurar a única casa que foi reconstruída em Coucedeira, uma espécie de aldeia-presépio encravada no vale que desenha a orografia entre a Serra da Estrela e a serra do Açor. Na estrada que liga a freguesia de Vide, no concelho de Seia, a Piódão, no concelho de Arganil, existem vários destes aglomerados. A localidade de Coucedeira foi a mais afectada do concelho de Seia, e das 15 casas que a compõem 13 ficaram destruídas. José Freire e Prazeres Freire, de 80 anos, são os únicos habitantes da aldeia. Dizem que estão no único sitio onde podem ser felizes. Mas assumem que lhes faz falta alguém na vizinhança. Continuam a ter como “vizinho” mais próximo o primo de José Freire que o acolheu durante os quatro meses que duraram as obras. Nas restantes casas, que eram frequentadas sobretudo no Verão, e nas festas da freguesia (em honra de Nossa Senhora da Ajuda, cuja capela se avista da casa dos Freires), ficaram este ano vazias. E ficarão por muito tempo — são segundas habitações, os proprietários e herdeiros, sem ajudas públicas, dizem que não têm dinheiro para as recuperar. As obras na casa de José Freire começaram em Novembro. “O seguro pagou tudo, senão a minha casa estava como o resto à volta, com tudo por fazer”, diz o octogenário, enquanto abre a porta para mostrar o forno a lenha onde a família se preparava para assar umas postas de bacalhau — no fim-de-semana prolongado pelo feriado de 5 de Outubro, a nora e o neto vieram visitar os avós, outra vez. “O seguro foi a nossa sorte”, insiste o homem que trabalhou 16 anos numa quinta e 25 na Docapesca, e que abandonou Lisboa para nunca mais querer voltar. “Tirá-lo [a José Freire] daqui é matá-lo”, concede a nora, Fátima, educadora de infância, nada e criada em Lisboa, mas que se apaixonou por Coucedeira há 32 anos, no primeiro dia que pós os pés na aldeia. A companhia de seguros passou aos empreiteiros um cheque de quase 70 mil euros. É uma pequeníssima parcela dos cerca de 41, 4 milhões de euros que as empresas da Associação Portuguesa de Seguros (APS) gastaram na recuperação de 3396 casas. “Ficou melhor do que o que estava, temos de admitir”, concede a mulher, Prazeres. A lareira aberta passou a recuperador de calor, que agora aquece a casa toda. A casa-de-banho está mais funcional, o soalho a imitar madeira é mais fácil de limpar, as galinhas e os coelhos ganharam uma casa nova com direito a terraço. A cozinha e a sala continuam no sítio de sempre, com as janelas a devolver uma paisagem de sonho, com socalcos verdes e um curso de água, a Ribeira Pequena, ao fundo. José Freire já pode levantar-se todos os dias, como fazia sempre, às sete da manhã, para ir à horta regar o que que for preciso. Mostra orgulhoso as cebolas deste ano e aponta para as vides que lhe deram cem litros de vinho. Brinde-se: “Aqui somos felizes”, diz Prazeres, que logo acrescenta ter pena de “não ter um vizinho por perto”. O incêndio sinalizou-os no Centro de Dia de Vide. Desde então que recebem visitas diárias para entrega de refeições. “E nós em Lisboa sempre estamos um bocadinho mais descansados”, admite a nora. Paulo Rogério, 46 anos. Empresário agrícola, Oliveira do Hospital. Quando o encontramos em Dezembro do ano passado, dois meses depois do incêndio, Paulo Rogério disse que chegou a ter as malas feitas para emigrar. Viu 16 anos de trabalho ser consumidos “por um incêndio que não foi normal”, e teve vontade de deitar a toalha ao chão. Mas ofereceram-lhe ovelhas bordaleiras, convenceu-se a ficar, e a lutar pela empresa que fez crescer (e que assegura, para além do dele, mais quatro postos de trabalho), e satisfeito por ver que a teimosia que o levou a ser o primeiro produtor a fazer queijo Serra da Estrela durante todo o ano começava a ter seguidores. Um ano depois, admite, está pior do que o que estava. “Quando falamos em Dezembro eu ainda acreditava que o Governo se podia convencer que não pode tratar os portugueses de forma discriminatória, nem considerar que quem está à frente de empresas na área industrial são cidadãos de primeira e que quem está à frente de empresas da área da agricultura são cidadãos de segunda”, reclama. Paulo Rogério já temia que tal viesse a acontecer, mas ainda não tinha os comprovativos nas mãos. “Fiz o levantamento dos prejuízos todos. Apresentei o projecto como o Governo mandou e quis. Ovelha a ovelha, vedação a vedação, armazéns e palheiros, máquinas que arderam. Só meti no projecto o que me ardeu e preciso de repor. Apresentei um projecto de 108 mil euros de investimento. Foi aprovado. Mas do Estado só vou buscar pouco mais de 40 mil euros. E o resto? Ponho do meu bolso? Como é que o ministro da Agricultura tem coragem de dizer que paga 85% dos prejuízos, como pagou na indústria? É mentira!”, reclama, revoltado. Olhando para o futuro, diz que não percebe como vai continuar a fazer sacrifícios para conseguir produzir alguma coisa. “Já aqui enterrei 16 anos. [vários] 365 dias, sem férias, Natal, Páscoa, feriados. A vida de um agricultor não é fácil, em lado nenhum. Acho que vou aceitar uma proposta que tive e vou experimentar ser agricultor em Angola. Lá, ao menos, prometem-me condições para trabalhar”, suspira. O desalento de Paulo Rogério contrasta com o brilho nos olhos, que faíscam quando chega um cliente para comprar um requeijão e ouve estes queixumes. O cliente pede-lhe para não desistir. Rogério repete ao cliente que sim, que em Oliveira do Hospital já não há nada a fazer. Explica que está a vender 20% do que vendia por esta altura no ano passado, e que os custos de produção não diminuíram. “Nem depois de ter provado, com a atribuição de prémios internacionais, que um queijo feito a 15 de Agosto é tão bom quanto um feito de Inverno. O que interessa é a qualidade do pasto. O daqui foi-se. O pouco que tenho fui eu que comprei, remediei, construí. Não há ajudas para nada. Desisto”. Rogério tem 46 anos e “ainda muita força para trabalhar. “Não me sinto velho. Podia voltar a passar 16 anos a reconstruir tudo, outra vez. Mas acho esta política do Estado desincentivadora. Se eu tivesse só uma queijaria, poderia recuperar 85% dos prejuízos. Como também tenho actividade agrícola e pastorícia, os apoios caem para metade. Não consigo aceitar isto. Estou revoltado”, confessa. Paulo Guerra, 50 anos e Cláudio Guerra, 45 anos. J. Guerra - Fábrica de Sirgaria e Passamanarias, Oliveira do Hospital. Joaquim Guerra fundou a empresa de sirgaria e passamanaria com o seu nome há 60 anos. Agora tem 82, já passou a empresa aos filhos, Cláudio e Paulo, há uma dezena de anos, mas a verdade é que ainda é por lá que gosta de andar. Não se consegue afastar. Acabou, também por ser ele a ter de “salvar” a empresa do encerramento definitivo, já que foi do seu bolso que apareceu o dinheiro que foi preciso para garantir que a empresa não fechava. Com 50 postos de trabalho, a J. Guerra conseguiu segurar quase todos — “só saíram dois ou três funcionários, que já estavam aptos para a reforma”, diz Paulo Guerra. Paulo e o irmão, Cláudio, já apresentaram à linha criada pelo Governo para a reposição da actividade produtiva um projecto de investimento de quase 10 milhões de euros, para assegurar que a empresa poderá regressar ao terreno com quase 12 mil metros quadrados que ardeu por completo na zona industrial de Oliveira do Hospital. Entretanto, já têm mais de 1, 5 milhões de euros gastos. No trabalho de remoção e limpeza dos escombros — no qual os funcionários foram chamados a colaborar passados 15 dias após os incêndios — e também na compra e adaptação de um pavilhão com três mil metros quadrados e na aquisição de máquinas para continuar a trabalhar. “É importante que o mercado saiba que a J. Guerra ainda não acabou. Ainda estamos aqui. Vamos continuar a lutar, para voltar a abrir a fábrica no sítio onde estava”, diz Paulo Guerra, que responde à pergunta sobre se conseguirão repor toda a capacidade produtiva com uma palavra só: “É impossível”. “O nosso pai andou 60 anos a comprar máquinas, tínhamos um parque de 450. Não vamos conseguir isso nem nos próximos anos”, admite, frisando que o problema não é apenas recuperar máquinas que não se fazem em mais lado nenhum. Actualmente, já compraram cerca de 90. Dizem que para trabalhar em velocidade cruzeiro precisam de 150 máquinas. “Tivemos de reajustar a produção. Já desistimos de uma linha de produtos. E também tivemos de ajustar horários, e pedir mais esse sacrifício aos trabalhadores. Temos o mesmo pessoal, e menos máquinas. Criamos dois turnos para podermos continuar a trabalhar, a responder a clientes e voltar a fazer stock”, explica. O projecto de investimento foi apresentado há duas semanas, quase no limite do prazo das candidaturas à linha de apoio público, que foi alargado até 28 de Outubro. “Estas coisas demoram sempre o seu tempo, apresentar projectos, assegurar licenças, manter uma fábrica a trabalhar, segurar clientes, é uma grande empreitada”, justifica-se Paulo Guerra. Se o projecto for aprovado, e conseguirem o financiamento máximo, receberão 8, 5 milhões de euros. Cláudio Guerra, de novo a passear entre os escombros que o incêndio deixou na zona industrial, aponta para a escadaria da porta principal que ficou de pé, depois dos esforços de limpeza e demolição. “Achamos que valia a pena aproveitar esta portaria, para ficar como símbolo do que aqui estava e que, queremos nós, poderemos dizer que não se perdeu. O meu desejo é que o meu pai ainda possa subir aquelas escadas, e entrar na fábrica que ele aqui abriu há 28 anos. E esperemos que ela aqui fique por muitos outros 28”, terminou. Albina Araújo, 58 anos. Gaído, Castelo de Paiva. As paredes estão pintadas de fresco, e os olhares mais atentos notarão que há por ali um telhado novo — até porque, há menos de um mês, o que cobria a antiga escola primária de Gaído, em Castelo de Paiva, caiu e por pouco não apanhava quem lá mora há quase um ano. “A sorte é que o meu marido estava a tomar banho e eu andava no quintal”, conta Albina Araújo, de 58 anos. O filho também não estava em casa quando o telhado caiu sobre a sua cama. "O meu filho teria ficado estendido ali", conta, emocionada. “Depois vieram cá uns técnicos da câmara e disseram que era para pôr aqui umas telhazitas. Mas o empreiteiro disse que nem pensar, isto precisava mesmo era de um telhado novo”, conta Albina. O telhado foi reposto, mas numa solução provisória. Como provisória é a situação de Albina, do marido António e do filho, José Vítor. Há um ano que olham para o outro lado da rua, e se confrontam com as ruínas da casa onde Albina foi criada, juntamente com sete irmãos. Mas ainda não tem nenhuma indicação sobre quando começarão as obras, nem se o projecto está aprovado sequer. “Na terça-feira vou ver com o presidente da Câmara de Castelo de Paiva. Ele mandou-me ter paciência e eu tenho tido muita, mas já passou um ano!”A Comissão de Coordenação da Região Norte, que está a liderar o processo de reconstrução das casas recebeu 71 candidaturas naquele município. Rejeitou nove, ainda está a apreciar três e aprovou 59. Mas até agora as obras ainda não avançaram em nenhuma habitação. “Esta era a casa da minha mãe e a única coisa que me preocupa é voltar a trazê-la aqui. Não lhe quis dar o desgosto de dizer que ardeu tudo, nem agora quando a ouço dizer às vizinhas de Fiães (ela agora está a viver com um dos meus irmãos) que a casa de Gaído está um brinquinho”. Certo é que desde o incêndio nem um prego lá mandaram pôr, garante Albina. E tudo o que foi limpo e melhorado foi à conta das suas mãos. "Não confundo pobreza com limpeza”, avisa. Não precisava de o dizer. Vê-se pelo terreiro limpo da escola, pelos cactos que andou a plantar em troncos ardidos que transformou em vasos. “Tenho andado a vender alguns. Ando sempre a inventar biscates, porque o dinheiro não abunda”, admite esta antiga cabeleireira, já reformada por questões de saúde — teve um derrame cerebral e uma depressão que quase a esgotou. À conta dos donativos, Albina tem a casa, ou melhor, a escola, completamente equipada. Só um frigorifico é que se auto-transformou em arca congeladora, e já não refrigera, só congela. Entretanto, já sabe que vai ter direito a 2500 euros para poder equipar e mobilar a casa. “Não me parece muito, mas a gente cá se arranja. O que eu quero é ver as obras a começar”, admite, inquieta. E Albina volta a falar da mãe e da preocupação que a consome que ela venha a morrer sem ver de pé a casa onde criou os oito filhos, e enfrentou a violência doméstica que lhes infligia o pai de todos eles. “Fomos muito maltratados naquela casa. E fomos muito amados pela minha mãe. Ela é uma princesa. Está sempre a pedir-me para vir a minha casa para eu lhe fazer um arroz de frango. Morro de desgosto se não conseguir fazer isso. A minha mãe já não é nova. Se ela falece antes de começarem as obras na casa, quem morre a seguir sou eu. ”Pedro Dias, 42 anos. Oliveirinha, Bobadela, Oliveira do HospitalEstava em casa dos pais, num jantar de família, quando percebeu que 15 de Outubro não seria uma data normal. O vento arrastou as chamas que rapidamente rodearam a pequena quinta nos arredores da Bobadela, em Oliveira do Hospital, relata Pedro Dias, de 42 anos. Um ano depois, restam apenas as paredes de granito, ao lado das quais a empresa responsável pela empreitada de reconstrução já instalou grua, gerador e alguns materiais. Contudo, os trabalhos ainda não arrancaram. “Ainda andei por aqui a deitar água enquanto houve”, descreve, percorrendo o terreno da quinta onde cresceu. Enquanto o jantar decorria, nunca imaginava que a vivenda que partilhava com mulher, filho de 13 anos e sogra, em Oliveirinha, a cinco minutos dali, mas já no concelho de Tábua, estivesse a arder. As ruínas da vivenda foram demolidas em Agosto. Tudo o que resta no seu lugar é uma cratera onde cresce feijão-verde. “Neste momento é apenas um terreno”, constata Pedro Dias, motorista de passageiros. Desde o incêndio que tem vivido com a família em casa da irmã, também na Bobadela. O ano que passou foi particularmente difícil. À destruição do incêndio somou-se a morte do pai, em Dezembro. “Ele já tinha alguns problemas cardíacos e tudo isto mexeu com ele. ”De volta à quinta dos pais, Pedro Dias vai identificando algumas peças num amontoado de metal oxidado e deformado, o que resta de uma colecção de velharias restauradas: “Isto era um bidé antigo; isto uma armadilha para raposas. ” Agora é tudo lixo. Entre as duas casas, para além do recheio e objectos pessoais, na lista do que ficou destruído contam-se ferramentas agrícolas, um Fiat 600 ou uma motorizada BSA500. “O pior é que foi uma vida de trabalho que chegou a nada. Tinha casa velha, trator velho e carro velho, mas tinha tudo. Perdeu-se tudo. Não tem sido fácil. ”Atrás da casa que foi de dois pisos, escavada na rocha, está uma homenagem ao seu avô, pastor e moleiro que ali passou uma vida. Pedro Dias e Zeferino Monteiro, um escultor local, demoraram um ano a esculpir na pedra uma figura masculina entre um cão e um bode, com a inscrição “um sonho realizado que fica para a eternidade”. O trabalho ficou terminado um mês antes do incêndio, que deixou a pedra intacta. “Queria manter a memória, um simbolismo”, conta. A recuperação faz-se lentamente. Através de um donativo recebeu seis ovelhas e cabras, que ocupam o lugar das muitas mais que morreram no incêndio. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sobre o ritmo da reconstrução, que no seu caso está a cargo do consórcio Edivisa, por conta da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, a informação que tem é o que lhe dizem da construtora. Garantem-lhe que “está para breve”. Mas o que lhe parece é que “há pouca mão-de-obra para tanta obra ao mesmo tempo”. Prepara-se para a espera e o final do ano como meta para a conclusão dos trabalhos parece-lhe altamente improvável. Enquanto espera pelas reconstruções, resta-lhe uma outra habitação que escapou ao incêndio, comprada há 18 anos, e que tem vindo a restaurar nos tempos livres. Espera conseguir acabá-la a tempo do Natal.
REFERÊNCIAS:
Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade. (...)

Extrema-direita tem hipóteses em Espanha?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.080
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Continuará a Espanha, como Portugal, imune à ameaça da extrema-direita? O Vox é um partido marginal mas que pode contaminar a direita espanhola e, através dela, a própria sociedade.
TEXTO: Muito se escreveu sobre a “imunidade” da Espanha aos populismos de direita e eurocépticos que se multiplicam na Europa. A analista Carmen González Enríquez, do Real Instituto Elcano, publicou em Junho de 2017 um longo estudo que começava assim: “A Espanha é uma excepção no actual panorama político europeu, em que os grupos populistas de direita, xenófobos, antieuropeus e antiglobalização obtêm relevantes triunfos eleitorais: apesar da crise económica e da rápida erosão da confiança política, em Espanha não houve nenhum partido populista de direita que tenha obtido mais de 1% dos votos nas eleições legislativas dos últimos anos. Como se poderá explicar a extraordinária ausência de um parido populista de direita com êxito eleitoral em Espanha?”Deixo, de momento, o debate das causas para lembrar que este Outono trouxe uma mudança de perspectiva. Ela coincide com um mediático comício de um partido de extrema-direita — Vox — na Praça de Touros de Vista Alegre (7 de Outubro), arredores de Madrid, que fez soar os alarmes. Antes do comício, um inquérito do CIS admitia a entrada do Vox no Parlamento Europeu, nas próximas eleições de Maio, com uma média nacional de 1, 9%, mas podendo superar os 4% em algumas circunscrições. O analista Jaime Miquel previu a sua saída da irrelevância: dos 0, 2 % (46. 781 votos) nas eleições de 2016, poderia passar par um patamar entre 500 e 800 mil votos. Em fins de Outubro, uma sondagem da Metroscopia atribuía-lhe 5% das intenções de voto nas legislativas. O que é o Vox? Fundado em 2013 com o objectivo imediato de captar o voto à direita do Partido Popular (PP) e dos seus sectores mais nacionalistas, mas sem regressar à nostalgia franquista, adoptou um programa de extrema-direita “à moda europeia”. Os seus fundadores, Alejo Vidal-Quadras e Santiago Abascal (na foto), vinham do PP: o primeiro foi seu dirigente na Catalunha, o segundo no País Basco. Um rotundo fracasso nas eleições europeias de 2014 levou ao afastamento de Vidal-Quadras e impôs a liderança de Abascal. O processo independentista catalão foi a grande mola da afirmação do Vox. Em Vista Alegre, Abascal apresentou um programa radical, em “100 medidas”. Usou uma linguagem o mais “incorrecta” possível e designou três inimigos: o independentismo catalão, a imigração e o feminismo. O alvo preferencial é a imigração, propondo deportações e um “muro intransponível” em Ceuta e Melilla. Assume a xenofobia e, em nome da Espanha “católica”, denuncia a “invasão islâmica”. O outro tema é o “hacer España grande otra vez”, copiado de Trump. Pede a revogação da lei contra a violência de género. Perante o independentismo catalão, quer a recentralização do Estado. Propõe um Estado-providência que dê prioridade aos espanhóis. Enfim, ao contrário da maioria dos seus congéneres europeus, é ultraliberal em matéria económica. Abascal copia a direita eurocéptica europeia, inspira-se em Marine Le Pen e admira Viktor Orbán. Os eurocépticos estão a organizar uma frente para disputar as europeias eleições de Maio. Até agora, desprezaram a Espanha e Portugal, considerados terrenos ingratos em que a crítica a Bruxelas teria sido “monopolizada pela extrema-esquerda”. Depois da Vista Alegre, Abascal passou a interessá-los: foi recebido pelo holandês Geert Wilders e espera uma visita do americano Steve Bannon. Durante a Transição, surgiu uma ultradireita franquista, a Fuerza Nueva, de Blas Pinar, que fracassou logo nas eleições de 1979, com 2, 1% dos votos. A nostalgia franquista não era uma boa receita e o seu eleitorado foi rapidamente absorvido pela Aliança Popular, de Fraga Iribarne, que mais tarde dará lugar ao PP. Outras tentativas falharam. O papel do PP como dique perante a extrema-direita manteve-se intocado até hoje. “Não sabemos se se trata de um estado de ânimo pontual ou do início de uma trajectória”, admite Francisco Camas Garcia, analista da Metroscopia. “Mas é uma mensagem para Pablo Casado e Albert Rivera. Não dançam sozinhos na pista. E as eleições europeias são dentro de meses. ” O seu objectivo imediato é sair da margem e entrar na cena político-mediática, que deseja e pode condicionar. Como?O Vox tem possibilidade de obter boas votações em Madrid, Valência, Alicante ou Múrcia, o que pode ser fatal para o PP na sua competição com o Cidadãos pelo mesmo eleitorado. “Dois partidos no mesmo espaço é suicidário para ambos”, observa o politólogo Fernando Vallespín. A primeira reacção de Casado foi endurecer o seu discurso, designadamente no terreno da imigração, para segurar os eleitores mais à direita. “O Vox tem uma alta capacidade de contaminação, sobretudo em matéria de anti-imigração e de recentralização. Pode atirar um fósforo sobre a gasolina”, adverte Andrés Ortega, colunista do El Confidencial. Nas eleições da Andaluzia, não é Susana Díaz quem preocupa o PP. É a brecha que o Vox possa abrir à sua direita. Cenário extremo: a pressão de Abascal pode radicalizar o PP e as posições deste poderão, por sua vez, contaminar a sociedade. Referindo-se ao precedente da Holanda, o politólogo Pablo Simon sublinha o efeito da entrada em cena de rivais extremistas: “Um líder que não tenha à partida ideia anti-imigração pode acabar por a assumir por pressões internas do seu partido e por acumulação de derrotas eleitorais. ”Quando estes partidos crescem, prossegue Simón, surge um “dilema impossível”: “O cordão sanitário faz [os extremistas] capitalizar a oposição, mas incorporá-los no governo promove as suas agendas. ” Por outro lado, “o Vox será tanto maior quanto mais nos escandalizar”, acrescenta Vallespín. Muitos analistas mantêm-se cépticos quanto ao êxito do Vox. “A piscina é pequena”, sublinham. Os simpatizantes do partido encontram-se nas categorias ideológicas mais extremistas, que representam apenas 2, 2% do eleitorado, indicador que se mantém estável há décadas. A sociedade espanhola é dominantemente liberal em matéria de costumes. A questão da imigração está a subir entre as preocupações dos espanhóis, mas apenas 5-8% são “anti-imigrantes”, diz o CIS. Os eleitores do Vox são homens, com uma idade média de 45 anos, na grande maioria de uma classe média próspera com rendimento mensal acima dos 2000 euros. Também não se verifica nenhum indício de deslocação para a direita do voto operário, como aconteceu em França. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O principal teste tem a ver com a tese tradicional, assim resumida por Carmen González Enríquez: “A hipótese de que um passado recente autoritário, direitista e nacionalista actua como uma vacina contra os partidos de extrema-direita que, no presente, se confirma pelas similitudes entre a Espanha e Portugal. ” É o teste à célebre “imunidade ibérica”. De momento, é prudente aguardar o longo ciclo eleitoral que se avizinha, com atenção mas sem alarmes que projectem a imagem do Vox. O seu crescimento parece vertiginoso porque parte de uma base baixíssima. Mas não podemos ignorar o fenómeno.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens lei violência imigração género estudo xenofobia feminismo
A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público. (...)

A obra fotográfica de Helena Corrêa de Barros acordou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As fotografias que Helena Corrêa de Barros captou entre os anos 1940 e 70 mostram o quotidiano de uma família abastada em pleno regime salazarista. Na exposição Fotografia, a minha viagem preferida há imagens com um pendor moderno de um mundo raramente tornado público.
TEXTO: KodachromeThey give us those nice bright colorsThey give us the greens of summersMakes you think all the world’s a sunny dayI got a Nikon cameraI love to take a photographSo mama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome awayMama don’t take my Kodachrome away(. . . )Everything looks worse in black and whiteFoi assim que, em 1973, Paul Simon escreveu sobre a famosa película colorida da Kodak e pôs milhares de pessoas a entoar a palavra que era também uma marca comercial. “Kodachro-o-ome” (aquele “o” repetido três vezes para nunca mais nos sair da cabeça) foi um enorme sucesso. Tanto a música cantada por Simon, como a tecnologia que possibilitou a várias gerações de pessoas em todo o mundo criarem os inventários das suas vidas a cores, convocando familiares e amigos para sessões de slides projectadas nas paredes de casa. Mas as palavras de Paul Simon — “Mamma don’t take my Kodachrome away” — soam agora quase proféticas. A própria Kodak decidiu, em 2009, acabar com a produção da película que inventara em 1935 e com os materiais que permitiam a sua revelação. Em 2010, a única casa fotográfica que ainda revelava kodachrome, numa pequena cidade do Kansas, nos EUA, tornou-se um destino para pessoas de todo o mundo que queriam revelar os poucos ou muitos rolos que ainda tinham em casa. Num tempo em que o suporte digital torna a fotografia imediatamente visível, o que estava em causa era transformar os filmes em fotografias ou, pelo contrário, nunca mais os poder revelar e assim torná-los invisíveis para sempre. A modernidade do kodachrome tornara-se obsoleta. A história de dois desses peregrinos fotográficos foi contada, em 2010, por A. G. Sulzberger no The New York Times: um funcionário dos caminhos-de-ferro vinha buscar os 1580 rolos de filme que guardara em casa e que só agora, perante a iminência do fim, mandara revelar; e uma artista londrina ia, pela primeira vez, aos Estados Unidos para revelar os três filmes que nunca vira e comprar mais uns quantos. Uma fotografia, tirou-a logo ali, ao funcionário dos caminhos-de-ferro que tivera de pedir dinheiro emprestado para poder finalmente ver o slideshow do seu passado. A história do fim de uma tecnologia que tão determinante fora para a criação de imagens, memórias e narrativas visuais da segunda metade do século XX, usada tanto por profissionais como por amadores, acabou por dar origem a um filme produzido pela Netflix em 2018 e dirigido por Mark Raso. Chama-se Kodachrome e conta a história de uma road-trip em direção ao laboratório fotográfico do Kansas, protagonizada por um pai, velho e doente, que fora fotógrafo, e o filho de quem vivera afastado. A morte iminente do pai, como da Kodachrome, acaba por ser a catarse para a reconciliação entre pai e filho. A fotografia analógica, ou o seu desaparecimento, como o ponto de encontro de duas gerações. Helena Corrêa de Barros (1910-2000) começou a fotografar com Kodachrome em 1947, precisamente na altura em que, acabada a II Guerra Mundial, o processo se banalizou enquanto prática amadora e privada. Se começara a fotografar em 1924, com apenas 14 anos, a cor só chegou à sua prática mais de 20 anos depois. O seu pai, o empresário Fortunato Abecassis, que esteve à frente de várias empresas como a Abecassis, a Lusalite ou a Companhia de Seguros Mundial, já fotografava e a materialidade da imagem fotográfica fazia parte do espaço doméstico da família. Num dos quartos da casa, o pai guardava as suas estereoscopias (duas fotografias iguais num mesmo cartão que, quando olhadas através de uma lente, dão a ilusão da tridimensionalidade) e mostrava-as em sessões familiares que, como afirma Paula Cunca no catálogo da exposição sobre uma parte da obra de Helena, terão influenciado o interesse da filha pela película a cores em diapositivo, que se tornou conhecida como slide. A então jovem Helena não tinha a Nikon de Paul Simon, mas a mais sofisticada Leica, de 35 mm. que, aliada ao seu sentido de observação fotográfica, possibilitou a obtenção de tantos “momentos únicos”, como ela própria descreveu no único texto publicado em que reflectiu sobre a sua prática, “A minha fotografia preferida”, Fotografia. Revista Mensal ao Serviço da Arte Fotográfica, Lisboa, 1955. A sua “fotografia preferida” era a preto e branco, tal como continuou a ser a preto e branco aquela que considerava ser a sua prática “artística” e as imagens com as quais se apresentava a concursos amadores e a exposições salonistas. A cor, pelo contrário, marcou a sua fotografia mais privada — muitos milhares de diapositivos —, próxima do seu mundo e da sua experiência individual. A exposição, no Arquivo Municipal-Fotográfico, revela esta dupla vertente do seu trabalho — na sala principal, à entrada, estão as belas cópias digitais a cores feitas a partir dos diapositivos Kodachrome, quase todas agregadas pelo tema da “viagem” e realizadas entre 1947 e os inícios da década de 1970. Lá em cima, no primeiro andar, o preto e branco caracteriza o olhar mais distante da fotógrafa. Não as suas experiências pessoais, mas os temas, tão repetidos ao longo do século XX, de um Portugal visual (e pobre e rural), onde treinava a sua lente “artística”. Helena Corrêa de Barros, que dedicou parte da sua vida a organizar acções de beneficência, fotografou até ao fim. A câmara estava sempre ao pescoço, à espera do “momento único”, que juntasse a lente ao olho. Helena Corrêa de Barros fotografa em kodachrome os espaços onde se move. Não vai lá de propósito para os fotografar. Está lá e fotografa-os. Como anuncia o título desta exposição, Fotografia, a minha viagem preferida, fotografia e viagem ou viagem e fotografia foram movimentos indissociáveis, quer no caso de Corrêa de Barros, quer em geral, quando pensamos na história da fotografia desde a sua invenção em 1839. Com a excepção de uma viagem a Angola, onde se combina o trabalho do marido com a visita a amigos colonos, estas são viagens de lazer, partilhadas com família e amigos, em excursão, em grupo, confortáveis e seguras. São quase todas fotografias felizes. Nos temas como nas cores. “They give us those nice bright colors”São imagens de paisagens, vistas e monumentos. Mas também de pessoas. Pessoas conhecidas (algumas, mulheres e homens, com as suas respectivas câmaras fotográficas penduradas ao pescoço) ou pessoas desconhecidas que, como ela, Helena, também foram à montanha, ao hotel, ao lago, à exposição universal, como a de Bruxelas, em 1958, ou a de Osaka, em 1970. Por vezes, esses outros turistas surgem de costas para nós, porque estão a olhar para o lugar para onde se dirige também a lente da fotógrafa. Ou estão a observar atentos para o guia turístico que lhes dá explicações. Os pontos de vista das fotografias de Helena Corrêa de Barros podem ser muito singulares. Escolhe com frequência ângulos radicais e modernos. Há picados, contrapicados e vistas de pássaro, onde aparecem barcos de pescador (captados da varanda de um hotel), uma mulher de touca a entrar na piscina (trata-se de uma das filhas, mas as próprias brincam entre elas, por não terem a certeza qual das três é que foi fotografada na piscina da casa da Rua de S. Bernardo, em 1950). A fotógrafa não está apenas interessada na imagem que mimetiza o postal turístico. Está também atenta à atmosfera, ao ambiente, às pessoas que estão, como ela, a usufruir da viagem ou do passeio. Ou mesmo às pessoas que não sabem que estão a ser fotografadas. A fotografia faz parte do seu ócio. O seu olhar de viajante é inseparável do seu olhar de fotógrafa. Mais perto: Óbidos, Setúbal, Sagres, Monsanto, Nazaré. Mais longe: Lugano, Cortina, Monte Carlo, Roma, Veneza, Cannes, Florença, e Londres, Granada, Biarritz. Ou ainda mais longe: Angola, Camboja, Japão, Manila, Brasil, Banguecoque, Macau, Singapura. “I love to take a photograph”As viagens implicam movimento, sair de casa, transgredir a distância geográfica. E os meios de transporte tal como os edifícios de partidas e chegadas, tornam-se eles próprios, presença habitual nas suas imagens. À porta do aeroporto, à espera com as malas, ao pé dos autocarros de excursão de onde saíam ou iam entrar. Fotografias de automóveis, sobretudo os automóveis avariados como acontece no seu álbum de Angola, mas também os skis ou as bicicletas de criança no jardim de casa. “They give us the greens of summers”E sobretudo os barcos (ela própria tinha um, era também pescadora), aqueles onde a fotógrafa está com os amigos, em passeios de lazer. Além dos espaços associados às práticas de desportos aquáticos, estão as caçadas, os campos de golfe ou as montanhas suíças onde se faz esqui (uma prática pouco comum no Portugal da época), lugares vividos numa sociabilidade partilhada entre gente “conhecida” ou “semelhante”. As crianças (os seus quatro filhos), a família e os amigos são as pessoas com nome e identidade individual que habitam este mundo a cores. Uma das filhas, Teresa Cardoso de Menezes, conta ao P2 como a mãe lhes pedia muitas vezes para posar, e gostava especialmente que projetassem sombras, quer fosse nas paredes da casa ou durante brincadeiras na praia. A frase, publicitária, do poeta Alexandre O’Neill pode ser aqui usada para pensar no lugar do “mar” na fotografia. O mar é um tema dominante em Helena Corrêa de Barros tal como é um tema dominante da história da fotografia portuguesa do século XX, quer em imagens celebrativas e nacionalistas, quer numa fotografia documental, mais ou menos denunciadora das frágeis condições de vida das gentes que trabalhavam no mar. Por um lado, o mar como lugar de partidas e chegadas: os navios a largarem amarras cheios de emigrantes para o Brasil no início do século; a partida para as colónias dos soldados durante a guerra na década de 1960; a trazerem os contentores com os despojos materiais e pessoais do império colonial em meados de 1970. Por outro lado, o mar como lugar de trabalho, na pesca dos homens ou na venda do peixe e tratamento das redes, das mulheres, ao longo de todo o século. A preto e branco, Helena fotografa inúmeras “fainas”, “redes”, “embarcações de pesca”, “barcos na Nazaré”, “paisagens marítimas” ou “fluviais”, “pesca do atum”, “docas”, “pescadores”, “praias” e “portos”. Mas a este mar em escala de cinzentos, tão presente noutros fotógrafos do século XX, a fotógrafa acrescenta um mar ou um rio coloridos, nos vários tons de azul, que a película kodachrome permitia revelar. É a água dos passeios e das férias. Do Mediterrâneo ao Arno. Do Reno aos lagos suíços. Dos veleiros dos amigos e dos cruzeiros. Das regatas em Cascais ou da praia Grande. Azul, mas de um azul mais claro, é a água da piscina, pequenos mares construídos e controláveis, sinal de distinção e privilégio numa época em que a democratização da piscina, como da praia, era ainda longínqua. “Makes you think all the world’s a sunny day”O seu mar é também o dos cenários das grandes celebrações na capital da nação, como Helena testemunha numa das suas raras imagens de acontecimentos públicos nacionais, com os navios no Tejo a receber o Presidente da República Américo Tomás, no seu regresso de Angola e de S. Tomé (na capa deste P2), em 1963, ou a inauguração da ponte “Salazar” em 1966, hoje a “25 de Abril”. A profissão do marido, Eduardo Costa Lobo Corrêa de Barros, ligado a vários negócios que iam dos seguros aos materiais para obras públicas, explica esta como outras imagens de grandes construções, fotografadas por Helena, em Lisboa ou em Luanda. No labor imagético de Corrêa de Barros poderíamos afirmar que a cor ou a ausência dela servem para distinguir diferentes tipos de fotografia: a cores, um “Portugal próximo”, a sua sociabilidade e experiência de vida, tal como as viagens ao estrangeiro partilhadas com família e amigos; e a preto e branco, um “Portugal distante”, das pessoas e paisagens que nada tinham a ver com a sua esfera social ou o seu quotidiano, mas que por outro lado se inseriam nas tipologias fotográficas de uma “identidade visual portuguesa” com pretensões artísticas, banalizadas desde os anos 1940 em livros fotográficos, exposições, ou guias de viagem. É a preto e branco que surge o “povo”, as pessoas que se fotografam sem se conhecerem. Helena era uma meticulosa arquivista do seu próprio espólio — cada imagem com o seu título e a sua data, o seu espaço e o seu tempo — e o arquivo público preservou as suas palavras, quer nas legendas da exposição, quer na classificação do site onde podemos ver as fotografias digitalizadas. A “lavra da terra”, os “seareiros”, o “campino”, a “pastora”, as “lavadeiras de Águeda”, os “pescadores da Nazaré”, as pessoas na “procissão das festas do Tabuleiro de Tomar” — o Portugal a preto e branco de Helena Corrêa de Barros é, muitas vezes, o Portugal rural, pobre e analfabeto, o do trabalho físico, protagonista de tantos projectos fotográficos do século XX. “Everything looks worse in black and white”Os trabalhos dos pobres em Portugal, como o dos negros, na Angola colonial que Helena Corrêa de Barros visita em 1950, aparecem sobretudo a preto e branco, enquanto a sua lente colorida, focada na sua esfera mais próxima, centra-se mais no lazer do que o trabalho. Talvez seja apenas no álbum de Angola, a preto e branco e mais narrativo, que se veja, em simultâneo, os dois tipos de trabalho, onde a distinção colonial corresponde à desigualdade racial: o trabalho dos homens brancos, administradores e engenheiros que concebem e supervisionam o trabalho braçal das pessoas colonizadas e negras, a construírem edifícios ou obras públicas, sob regimes vários de coerção. Os pobres portugueses (ou os colonizados) parecem ter sido mais fotografados do que os ricos. Não por eles próprios, mas por outros. As máquinas fotográficas nacionais e estrangeiras concentraram-se mais no “povo”, sem nome e sem quase nada. O Portugal a cores da segunda metade do século XX captado por Helena Corrêa de Barros é o país de uma elite portuguesa, que combinava um à-vontade económico com a serenidade de não se opor ao regime político salazarista, um país que “vemos” menos porque está ainda guardado, e invisibilizado, nos álbuns de família, ou nas caixas de plástico com slides, no interior das casas das pessoas que as protagonizaram. Fotografaram-se entre si e para si. Não foram feitas para serem vistas para lá do seu entorno. É também aqui que está o lado mais interessante e original do trabalho desta fotógrafa que, conta Teresa Cardoso de Menezes, era “muito reservada” e pouco dada a tentar influenciar com os seus interesses os que a rodeavam. “A minha mãe não falava muito das suas actividades connosco. Entre tudo o que fez, não tentou passar-nos nada”, conta Teresa, enquanto remexe numa caixa com fotografias de família, onde muito raramente a mãe aparece com a sua câmara. Com o trabalho que foi feito para dar corpo à exposição, que pode ser vista até 23 de Fevereiro de 2019, a filha reconhece agora que a mãe “era uma pessoa à frente do tempo”. “Uma coisa com que ficava fascinada era a maneira ágil com que ela trocava de lentes da câmara, consoante a luz e o que pretendia fotografar. ”Embora a exposição, e bem, tenha optado por destacar as fotografias a cores em kodachrome, Helena Corrêa de Barros também fotografou muito a preto e branco (grande parte do espólio está disponível online no site do Arquivo). E fê-lo sobretudo no seu trabalho mais público, aquele que tinha ambições artísticas. Na década de 1950, tal como analisa Luís Pavão no catálogo da exposição, Helena Corrêa de Barros pertenceu a um clube de fotógrafos amadores — o Foto-Clube 6x6 — e participou em várias exposições, nacionais e internacionais. O 6x6 foi fundado por António Rosa Casaco — antigo inspector da PIDE envolvido no assassinato de Humberto Delgado, que tinha a fotografia como um dos seus principais passatempos — e por outros fotógrafos salonistas, como Harrington Sena, Silva Araújo, Fernando Vicente e Nunes de Almeida. Como contou ao P2 a sua filha Teresa, Helena começou por revelar as suas fotografias a preto e branco em casa e só mais tarde passou a fazê-lo no laboratório colectivo do Foto-Clube 6x6, também porque a comunidade de fotógrafos amadores que ali se juntava a ajudava no processo de selecção do que devia ou não revelar ou enviar a concursos. Em 1954, por exemplo, o seu nome aparece num salon em França — a única mulher na representação portuguesa de 15 participantes, enquanto em 1955, no 18. º Salão Internacional de Arte Fotográfica, voltou a ser a única mulher da secção portuguesa, com a sua “Debandada”, fotografia que apresentou em vários concursos, e que está exposta no primeiro andar do Arquivo Municipal Fotográfico, na Rua da Palma. Ainda em 1955, na Revista Fotografia, Eduardo Harrington Sena assinou um texto onde registou os participantes portugueses em “Salões, exposições e concursos de arte fotográfica”. Referiu a 1. ª Exibição Internacional de fotografias de Foto-Clubes que tivera lugar em Viena e onde Portugal estivera representado pelos “amadores” do lisboeta Foto-Clube 6x6. Ao lado do nome de Corrêa de Barros surge o de uma outra mulher, a Marquesa de Fronteira, Maria Margarida Canavarro de Menezes Fernandes Costa (1915-2004), que chegou a montar um laboratório fotográfico em sua casa, o Palácio Fronteira, em Benfica. Eram amigas e também fotografaram juntas. No Boletim do Foto-Clube 6x6, de Setembro/Outubro de 1956, Helena Corrêa de Barros aparece como sendo a única mulher que participou em exposições de fotografia nesse ano. Um ano depois, em 1957, o mesmo boletim apresenta os nomes de todos os membros que tinham sido seleccionados para participar em exposições: de Montpellier, em França, a Santo André, no Brasil; em S. Bernardino, na Califórnia como em São Paulo; na Malaia como em Moçambique. Entre todos os nomes, apenas uma mulher, o de Helena Corrêa de Barros, com três fotografias seleccionadas. São muito poucos os outros nomes femininos que encontramos durante esta década. Em 1951, a exposição do Grupo Câmara apresenta duas fotografias de D. Adelina Maria Areosa de Almeida Carvalho, de Coimbra, e de D. Anita Alves da Silva, do Fundão. Enquanto em 1953, num Salão Nacional de Fotografia em Castelo Branco surgem dois nomes: Violette Quenolle, de Lisboa, e Maria Manuela Domingos Ribeiro, de Castelo Branco. Helena é também a única mulher na secção de fotografia a preto e branco (uma em seis fotógrafos) da exposição internacional de fotografia organizada pela CUF em 1957, com uma imagem “sem título”. Algo que distinguia esta exposição da CUF, da maior parte das outras, era o facto de ter uma grande secção de diapositivos a cores. Mas o nome de Helena Corrêa de Barros, que tanto fotografava a cores, não vem referido e a única mulher presente é Letícia Maria José, com uma “Maré Vazia”. Porque é que Corrêa de Barros apenas concorre aos salões com fotografias a preto e branco? A sua decisão corresponde à distinção dominante de associar o preto e branco às possibilidades estéticas e não utilitárias da fotografia, e de recorrer à cor e ao diapositivo para a fotografia mais doméstica e biográfica, onde existe uma clara intenção de criar memórias visuais das experiências e momentos vividos e das pessoas que consigo partilhavam tanto o quotidiano da vida familiar, como os momentos mais excepcionais de passeios ou viagens. Fotografia, a minha viagem preferida, sobre Helena Corrêa de Barros não é a primeira exposição histórica que o Arquivo Municipal de Lisboa dedica à obra fotográfica de uma mulher. Entre 2013 e 2014 teve lugar uma mostra, também acompanhada de catálogo, das fotografias de Ana Maria Holstein Beck (1902-1966), tal como esta, comissariada por Paula Figueiredo Cunca e Luís Pavão [Ana Maria de Sousa e Holstein Beck — fotografia privada 1912-1958 (Lisboa: Arquivo Municipal de Lisboa; Scribe, 2014)]. Como no caso de Helena Corrêa de Barros, também se tratou de uma doação familiar de um espólio que se pode inserir na categoria de “fotografia privada”. Corrêa de Barros e Holstein Beck não foram mulheres-fotógrafas, no sentido profissional e remunerado do termo, mas sim mulheres que fotografaram. A fronteira entre “privada” ou “amadora”, por um lado, e “profissional”, por outro, deve, no entanto, ser questionada e pouco revela em relação à “qualidade” da obra. A “qualidade”, aliás, é um conceito subjectivo que historicamente serviu para afastar as mulheres dos cânones do reconhecimento, onde o mérito tendeu a ser sinónimo de masculinidade. Mesmo assim, é relevante pensar que, noutros lugares do mundo durante este período, já havia muitas mulheres a dedicarem-se à fotografia enquanto profissão remunerada, em estúdio privado ou em comissões governamentais. É o caso da fotógrafa profissional Dorothea Lange (1895-1966), cujo trabalho pode ser visto actualmente na exposição Politics of Seeing, agora em Paris no Jeu de Paume (até 27 de Janeiro 2019). Quase contemporâneas, Corrêa de Barros e Holstein Beck (tal como a Marquesa de Fronteira) foram mulheres de um meio social privilegiado, com acesso económico à melhor tecnologia fotográfica e com possibilidade de dedicarem parte do seu tempo às diversas formas de lazer disponíveis às mulheres de uma reduzida elite portuguesa, cosmopolita, viajada e culta. Como temas comuns a ambas, o seu entorno afectivo, familiar e de amigos, os eventos sociais, os desportos e as viagens. Em comum também o facto de as origens nacionais familiares serem tanto prósperas como híbridas: no caso de Ana Maria, a aristocracia transnacional, no caso de Helena, as suas origens, maternas como paternas, em famílias judias originárias de Marrocos, quer do lado dos Abecassis e Bensaúde, paternos, quer dos Benoliel Amzalak e Buzaglo, maternos. Mãe e pai, ambos de nacionalidade inglesa, eram activos participantes em comunidades e organizações israelitas, quer nacionais quer internacionais. A ligação de Helena Corrêa de Barros à Alemanha, deve-se ao facto de ter estudado numa escola Waldorf, em Estugarda, pedagogia ainda hoje progressista, que promove uma educação holística e respeitadora das características individuais. A este cosmopolitismo Corrêa de Barros aliou uma forte participação numa vida social e cívica lisboeta, a esfera onde mulheres dos meios sociais privilegiados podiam trabalhar sem perturbar as convenções sociais que tolhiam os caminhos profissionais femininos. Para angariar fundos para o Centro de Assistência à Maternidade e Infância, fundada pela sua mãe, Sophia Abecassis, Helena demonstrou o seu empreendedorismo e criatividade. O mesmo que demonstrou na construção das suas casas e jardins como no restaurante de “pronto-a-comer” e salão de chá que geriu no fim da vida, o Chef, ponto de encontro dos habitantes do bairro da Lapa. Duas mulheres que também fotografavam e se interessavam por fotografia, e que poderão ser pensadas ao lado de outras mulheres oriundas das elites, são as Rainhas Maria Pia de Sabóia (1847-1911), mulher de D. Luis, e D. Amélia de Órleans (1865-1951), mulher de D. Carlos I. A primeira foi tratada por Teresa Mendes Flores, num número especial sobre “Fotografia e Género” na revista Comunicação e Sociedade (eds. Maria da Luz Correia e Carla Cerqueira); e a segunda foi objecto de uma exposição comissariada por Luís Pavão (2015-2016), que teve lugar no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa: Tirée par. . . a Rainha D. Amélia e a Fotografia. Entre as suas muitas diferenças, também decorrentes das cronologias distintas das suas vidas (Holstein Beck nasceu antes e viveu menos tempo do que Corrêa de Barros), referiremos duas: em primeiro lugar, Corrêa de Barros, ao contrário de Holstein Beck, demonstrou alguma ambição em sair da esfera meramente privada, ao concorrer a inúmeros concursos e exposições de fotografia, nacionais e internacionais. Em segundo lugar, são distintas as tecnologias fotográficas a que recorreram. Ana Maria Holstein Beck organizou as suas mais de 5900 fotografias a preto e branco em álbuns de família, enquanto Helena Corrêa de Barros privilegiou o muito mais moderno dispositivo da película colorida. Este último, revelado em diapositivo, não era passível de ser visualizado em álbuns (quanto muito via-se à contraluz) continuando a precisar de uma “máquina” e da acção humana para se tornar visível através das então populares “sessões de slides”. Conta Teresa Cardoso de Menezes que pelo menos uma vez por ano, Helena juntava a família para mostrar slides, com luzes apagadas e a sua narrativa oral — a voz como legenda — a contextualizar aquilo que dava a ver ou a identificar familiares, mas nunca a falar do seu mérito enquanto fotógrafa ou explicar como tinha captado esta ou aquela imagem. Será possível encontrar uma genealogia de observação de imagens a cores e em movimento desde o século XIX até aos dias de hoje? Da lanterna mágica, aos aparelhos para visualizar estereoscopias, passando pelos diapositivos, e chegando aos modos contemporâneos de olharmos para fotografias, passando-as, com o dedo ou com o rato, no ecrã do telemóvel ou do computador?Tão relevante como a produção fotográfica em si, são as histórias dos espólios fotográficos, na sua passagem do espaço privado para o espaço público. Nos casos de Holstein Beck e Corrêa de Barros, os seus descendentes tiveram consciência da sua relevância e tomaram a iniciativa de doar os seus espólios a uma instituição, como o Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico, já com uma tradição consolidada de conservação e restauro, classificação, divulgação e exposição de fotografia, capaz de assegurar a sua unidade e continuidade. Haverá, ainda, milhares destas fotografias em casas particulares de pessoas que pensam nestas imagens como “memórias familiares” e não “memórias históricas” ou “estéticas”. Mas mais raros serão os conjuntos criados por uma só pessoa, sobretudo por uma só mulher, com a persistência e a solidez de um projeto fotográfico-autobiográfico, como foi o de Helena Corrêa de Barros, mesmo que a própria, não tivesse a consciência do seu valor, e mesmo a sua família, como a própria reconhece, só agora se aperceba da sua real dimensão. O papel das famílias — na preservação e valorização de espólios escritos, fotográficos ou de objectos — é assim, determinante, e a riqueza dos arquivos públicos depende, em grande parte, das iniciativas de privados. A consciência e cultura das famílias que, hoje, possuem arquivos privados em suas casas, é especialmente relevante para o caso da obra de mulheres. Por razões históricas e já muito estudadas desde a década de 1970, a produção intelectual e criativa das mulheres teve menos oportunidades de ocupar o espaço público — da exposição ou publicação — e, por isso, está ainda em grande parte, preservado (ou esquecido) em casas particulares. As abordagens feministas que vieram analisar os processos que levaram à invisibilização da escrita, pintura, escultura ou fotografia feita por mulheres, têm tido um grande impacto na investigação histórica dos últimos 50 anos, e isto é visível no ensino académico, em publicações e em exposições e museus. Estes novos olhares do presente, sobre a cultura intelectual e material do passado, também tem tido um impacto entre aqueles que têm em casa a “obra” de mães, avós, tias ou bisavós. A prática fotográfica e o percurso biográfico de Helena Corrêa de Barros sugerem diferentes reflexões. Por um lado, a de uma história das tecnologias fotográficas no século XX, do preto e branco à cor, luminosa, possibilitada pela nova película, onde não há um “antes” e um “depois”, mas uma simultaneidade em que se multiplicam as formas de fotografar. Por outro lado, a história da fotografia nas suas tensões entre o amadorismo e a profissionalização, sendo as questões de género centrais às negociações de uma fronteira, onde a fotografia pública e profissional tendia a ser sinónimo de masculino, e a privada e familiar, de feminino. As muitas transgressões as estas expectativas têm vindo à luz nos últimos anos, em investigações e exposições de mulheres fotógrafas. Como afirmou uma das suas filhas ao P2, Teresa Cardoso de Menezes, a mãe nunca se considerou “uma profissional” e a própria família não tinha consciência do valor do corpus, consistente em quantidade e qualidade, da sua obra. Só após a sua morte é que os próprios filhos se confrontaram com a riqueza da herança criativa deixada pela mãe. Este processo é muito comum, particularmente com a produção intelectual e artística feminina do passado: a própria autora interioriza a sua subalternização, desvalorizando-se. O estigma do amadorismo feminino — podiam “fazer” mas de modo doméstico e não profissional — era inseparável do contexto social, mas afectava também o modo como as próprias mulheres se imaginavam a si próprias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Parte da produção fotográfica de Helena Corrêa de Barros permite-nos agora fazer uma etnografia de uma elite portuguesa que raramente vemos nos cânones visuais do Portugal do século XX. Não são já as carte-de-visite oitocentistas com que os meios privilegiados se puderam dar a ver, nem os retratos dos políticos (homens) ou das actrizes e cantoras (mulheres) a preto e branco, reproduzidos nos jornais de novecentos. São sim os espaços e as experiências de uma Lisboa que não estava vestida de preto, que não trabalhava com as mãos (porque podia pagar a quem o fizesse), que não era analfabeta (mesmo que nem sempre fosse culta ou intelectual), que vivia em casas grandes e dignas e que tinha segundas casas, na praia ou no campo, que ia ao teatro, à ópera e jantar fora, que praticava golf, ténis e esqui, dentro e fora do país. Era um Portugal que não emigrava, mas viajava no estrangeiro. Que podia aquecer as casas apesar da austeridade dominante. Que usava o mar para nadar ou velejar e não para trabalhar. Que educava as raparigas para casar, não as encorajava a estudar mais do que o essencial ou a ter uma profissão remunerada (o “parece mal” afectava especialmente os percursos das mulheres). Que convivia pacificamente com o regime político não democrático, como com as colónias, que na altura se chamavam “províncias ultramarinas”. Que no 25 de Abril, e por razões políticas, económicas ou pessoais, ou numa mistura de vários motivos, deixou Portugal, para ir viver para Madrid, para a Suíça ou o Brasil. Mas mesmo no interior deste Portugal privilegiado da década de 1940 ou 1960, existem muitas diferenças, e o percurso e família de Helena Corrêa de Barros também o demonstra. Possuía uma distinção social e económica, mas, ao mesmo tempo, era “estrangeira” e cosmopolita, e isso terá contribuído para uma liberdade acrescida. Entre outras escolhas, também pôde usar uma câmara fotográfica. E é nessa capacidade de estar por dentro, sem perder a capacidade de observar e reflectir sobre a sua própria experiência, que ela se distingue. Através da sua lente, próxima e distante, podemos diversificar e enriquecer as “imagens do país” a preto e branco, que têm dominado a visualidade do Portugal do século XX. com Sérgio B. Gomes
REFERÊNCIAS:
Dinamarca proíbe uso de véu islâmico que tape a cara em público
As mulheres que usem burqa ou niqab terão de abandonar o espaço público e serão multadas (com coimas entre os 130 e os 1340 euros). Na Áustria, França e Bélgica existem limitações similares. (...)

Dinamarca proíbe uso de véu islâmico que tape a cara em público
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As mulheres que usem burqa ou niqab terão de abandonar o espaço público e serão multadas (com coimas entre os 130 e os 1340 euros). Na Áustria, França e Bélgica existem limitações similares.
TEXTO: O Parlamento dinamarquês proibiu nesta quinta-feira o uso de véu integral islâmico em espaços públicos, uma decisão que está a ser criticada pela oposição e por associações como a Amnistia Internacional por limitar a liberdade das mulheres de “expressarem a sua identidade e crenças”. Os dois tipos de véu integral islâmico proibidos são a burqa – uma peça de vestuário que cobre todo o corpo, dos pés à cabeça, podendo ter uma parte rendilhada na zona dos olhos – e o niqab, que tapa também o rosto e revela apenas os olhos. A lei entrará em vigor no primeiro dia de Agosto. Ao abrigo desta proibição, proposta pelo Governo de centro-direita dinamarquês, a polícia pode pedir às mulheres que removam os véus ou ordenar-lhes que abandonem o espaço público. Como resume o ministro da Justiça dinamarquês, Soren Pape Poulsen, os agentes podem multar as mulheres e dizer-lhes “para irem para casa”. O governante conservador referiu ainda que manter a cara escondida em público “é incompatível com os valores da sociedade dinamarquesa e o respeito pela comunidade”. O hijab, véu que tapa o cabelo mas deixa a cara a descoberto, não está proibido. O projecto de lei foi aprovado pelas duas maiores forças políticas do Parlamento: os sociais-democratas e a união anti-imigração Partido Popular Dinamarquês (DPP), com uma maioria de 75 votos contra 30 (com 74 abstenções). No texto é determinado que “qualquer pessoa que use um traje que lhe cubra o rosto em lugares públicos pode ser multada”. As multas variam entre as mil coroas dinamarquesas (cerca de 135 euros) e as dez mil coroas dinamarquesas (mais de 1300 euros), esta última no caso de ser a quarta vez que a mulher é multada. “Parece que querem que os muçulmanos saiam da Dinamarca”, disse Zainab Ibn Hssain, uma rapariga de 20 anos ouvida pela Reuters que mora em Copenhaga e usa o niqab. “Não é agradável. Significa que não poderei ir à escola, ir trabalhar ou sair com a minha família”, acrescentou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No país nórdico já era proibido usar símbolos religiosos ou políticos dentro dos tribunais, razão que impedia qualquer juiz, fosse homem ou mulher, de cobrir a cabeça com lenços, véus, turbantes ou kipah (um pequeno barrete para cobrir o alto da cabeça). Esta proibição relativa ao véu islâmico já existe em outros países europeus, como a França, a Áustria, a Bélgica, a Holanda e a Bulgária. A França foi em 2011 o primeiro país europeu a excluir, por lei, o uso do véu integral em público e foi também palco de polémica em torno das vestes islâmicas, na altura em que proibiu o uso do burkini (junção de biquíni com burqa, um fato que cobre totalmente o corpo). Já na Áustria, a polícia diz que a lei anti-burqa, em vigor desde Outubro, não está a ter o efeito pretendido: afectou mais pessoas com máscaras de animais do que mulheres com véu islâmico. “Se a lei teve como objectivo a luta contra o islão conservador, só posso dizer que não resultou”, resumia em Março Hermann Greylinger, do sindicato da polícia.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave lei escola imigração mulher homem comunidade mulheres corpo rapariga
A Hungria, as migrações e os direitos humanos
O posicionamento do governo húngaro face aos refugiados e os migrantes é chocante. (...)

A Hungria, as migrações e os direitos humanos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O posicionamento do governo húngaro face aos refugiados e os migrantes é chocante.
TEXTO: As autoridades húngaras mostram com sobranceria a sua satisfação por serem o país liderante na rejeição dos migrantes e refugiados. Sentem-se hoje mais à vontade, porque já não estão sozinhas. São seguidas na rejeição dos migrantes pelos países de Visegrado e por outros como a Itália, neste caso de forma igualmente radical e como um ato de propaganda permanente, pela ação de Matteo Salvini. O governo húngaro sente-se assim cada vez mais confiante, como o demonstra a forma como afronta a União Europeia e os seus valores e como tem produzido legislação cada vez mais insensível aos direitos humanos. Esta atitude revela uma chocante falta de humanidade e um cinismo desconcertante no que respeita à forma como as autoridades húngaras lidam com os refugiados e os migrantes. A Hungria assume sem nenhum pejo que trocou os direitos humanos pela segurança interna, não obstante não sofrer agora qualquer pressão das correntes migratórias. Sob a autoridade do primeiro-ministro nacionalista Viktor Orbán, começaram por reprimir duramente os migrantes em 2015, quando os fluxos migratórios se intensificaram, e continuaram depois a utilizar essas imagens como forma de propaganda. Desde então, o número de refugiados autorizados a entrar nas zonas de trânsito, em média diária, reduziu-se de 20 para dez em 2016, para cinco em 2017 e apenas um desde janeiro de 2018, não por generosidade, mas mais como exemplo para que outros não tenham a ideia de querer entrar na Hungria, uma vez que, desde julho deste ano, todos os pedidos de asilo passaram a ser recusados. No entanto, apesar de não haver qualquer hipótese de migrantes/refugiados entrarem hoje na Hungria devido às vedações com arame farpado e zonas de segurança junto à fronteira com outros países, como a Sérvia e a Croácia, nem mesmo assim deixaram de voltar a prolongar até março de 2019 aquilo a que chamam "o estado de emergência devido à emigração em massa”, ironia que permite às autoridades húngaras repelir para fora das suas fronteiras os migrantes que tentam chegar ao país, sem qualquer respeito pelos princípios humanitários ou regras do direito internacional, e aprovar todo o tipo de legislação repressiva. Oficialmente, a Hungria garante que ninguém fica em detenção na zona de trânsito de Röszke, na fronteira húngara junto à Sérvia, e que os refugiados até são livres de deixar o campo se quiserem, tal como acontece com o outro campo existente, em Tompa. Porém, não foi nada disso que observou a delegação que integrei da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que visitou Röszke no âmbito de uma campanha para acabar com a detenção de menores migrantes não acompanhados. As autoridades húngaras afirmam que na zona estão 78 refugiados, mas esse número não é fiável, como não o são outras informações fornecidas. A verdade é que aquela zona de trânsito é uma verdadeira prisão, com um ambiente opressivo, deprimente e fortemente policiado. Está totalmente fortificada e protegida com linhas duplas de arame farpado em redor de todo o campo e até em cima dos contentores onde estão algumas famílias de refugiados, confinadas a espaços entre 25 e 40 m2. Para irem de umas instalações para outras dentro do campo, só o podem fazer acompanhados pela polícia. Os menores afegãos que a delegação encontrou, dois com 14 anos e um com 16, disseram que eram tratados como animais. Um deles tinha sinais de automutilação nos braços e uma revolta incontida quando falava. Outro começou a chorar compulsivamente, dizendo que só queria um pouco de liberdade e que precisava do abraço da família. Este jovem foi separado na fronteira do irmão mais velho com quem fez a travessia e agora não sabe onde se encontra. Embora as autoridades húngaras afirmem que a média de permanência na zona de trânsito é de 46 dias, este jovem afegão já está em Röszke há seis meses. As autoridades húngaras consideram que, ao contrário do que dizem as Nações Unidas, as migrações são uma coisa má por serem uma fonte de problemas, sobretudo se os migrantes forem muçulmanos, o que facilmente evoca o eterno conflito étnico e religioso que sempre assolou a região próxima dos Balcãs. Então optam por tentar resolver cinicamente o problema à sua maneira, designadamente através de acordos com a Turquia para que fique com os migrantes porque, dizem, fica mais barato, ou apoiando a reconstrução de escolas, hospitais, orfanatos e igrejas nos países de origem da emigração, como por exemplo, na Síria. E assumem despudoradamente que estas ações fazem parte da sua postura solidária com a União Europeia, juntamente com os milhões que gastam no reforço das fronteiras externas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já no que diz respeito às ONG que trabalhavam no domínio das migrações, pedidos de asilo e integração, o governo cortou, entretanto, todo o financiamento e foi criado um novo estatuto que passa a considerar crime qualquer tipo de apoio à imigração ilegal, por menor que seja. O posicionamento do governo húngaro é chocante, porque denota uma total indiferença perante a sorte de milhares de pessoas que fogem da guerra, da violência, da perseguição e da miséria. Muitos milhares delas são pessoas vulneráveis, como crianças e jovens não acompanhados, mulheres e idosos. Esta postura entra claramente em choque com as preocupações humanitárias que as migrações exigem e com os princípios humanistas da União Europeia à qual a Hungria aderiu em 2004. Não admira, por isso, que recentemente o Parlamento Europeu tenha aprovado de forma inédita a instauração à Hungria de um procedimento disciplinar por violação grave dos valores europeus, particularmente em domínios como as migrações e o Estado de Direito. Deputado do PSO autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime direitos guerra humanos violência imigração campo prisão violação mulheres perseguição ilegal
Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações. (...)

Criados para aquilo que não podem ou não querem ser
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-08-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Qualquer classificação geracional uniformiza o diverso, mas ajuda a perceber o que é comum. Os que nasceram entre 1965 e 1981 viveram “uma promessa de estabilidade” e agora lidam com a incerteza, sob forte pressão para terem filhos e serem perfeitos nesse papel. Este é o segundo de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.
TEXTO: Silvana Mota Ribeiro conta 40 anos e namora há dez. Se usar um vestido largo, uma suspeita propaga-se no seu local de trabalho — a Universidade do Minho. Da última vez, perguntou-lhe uma sorridente funcionária: “A senhora professora está de esperanças?” Ela arregalou muito os olhos, como lhe acontece sempre que fica horrorizada com qualquer coisa: “Tenho esperança de não estar!”Portugal atingiu a mais baixa taxa de natalidade da União Europeia. É forte a pressão para ter filhos, mas aquela a que os americanos chamaram Geração X — a dos que nasceram de 1965 a 1981, ou mesmo a 82, 83, 84, conforme os estudiosos — nunca se rendeu por completo à parentalidade. Desde que os primeiros atingiram a maioridade, Portugal deixou de fazer renovação geracional. O país da infância de Silvana era outro. As crianças ficavam entregues a si próprias sem que aí se visse negligência paterna. Brincavam na rua com cordas, bolas, bicicletas e carrinhos de rolamentos. No fim do dia e no fim da semana, assistiam aos mesmos desenhos animados — a Heidi, o Marco, o Conan, o Tom Sawyer, o Calimero, o D’Artacão e os Três Moscãoteiros. Só havia RTP. Experimentaram o videoclipe. Imitaram estrelas Pop. Não era fácil chegar às alternativas. Quem podia encomendava discos e gravava cassetes aos amigos. A espera era muita. A dificuldade de acesso só ajudava a intensificar a relação com a música. Havia tempo para a idolatração. À boleia do alargamento da escolarização e das classes médias, desenvolviam-se diversas culturas juvenis. Portugal não é de inventar rótulos geracionais, prefere reproduzir os internacionais, mas tem as suas originalidades. E, há 20 anos, sem querer, o jornalista Vicente Jorge Silva cunhou esta geração. Depois de ver fotografias de estudantes do secundário a mostrar o rabo e o pénis num protesto, era Manuela Ferreira Leite ministra da Educação, assinou no PÚBLICO o editorial “geração rasca”. Naquelas imagens via um sintoma de “vazio de valores”, de “apetência alarve pela vulgaridade”. A cena que indignou Vicente Jorge Silva era um remake. Um ano antes, no Centro Cultural de Belém, quatro rapazes tinham mostrado o rabo, com a frase “não pago” pintada, ao inventor das propinas, o ministro Couto dos Santos. Havia um ambiente geral de insatisfação, recorda um desses rapazes, Luís Branco, agora com 40 anos, a editar o Esquerda. Net, site do Bloco de Esquerda. “Era o desgaste do Cavaquismo. ”Os estudantes tinham tomado a rua. Primeiro, contra a Prova Geral de Acesso ao ensino superior, um exame de língua portuguesa e de cultura geral, encarada como uma forma de favorecer as classes altas. A seguir contra as propinas, em defesa do ensino “tendencialmente gratuito”. Depois, contra as provas globais. E não faltava eco. Entre 1989 e 1993, apareceram a TSF, o PÚBLICO, a SIC e a TVI. Apregoava-se que não seria pela indústria, pela agricultura ou pela pesca que Portugal se tornaria competitivo. Havia uma crença inabalável na educação como factor de ascensão social. Entre 1984 e 1994 o número de inscritos nas universidades e politécnicos passara de 95 mil para quase 270 mil. A menos que se tivesse dinheiro, a entrada no ensino superior exigia esforço. As vagas não davam para todos. Luís Branco perdera o pai aos sete anos. Filho de uma funcionária dos correios, estudava Comunicação Social na Nova de Lisboa. As suas lutas pouco interessavam a Abel Humberto, filho de um técnico de farmácia e de uma doméstica, que aos 17 anos começara a despejar cinzeiros, a apanhar toalhas e a lavar cabeças e na altura dos protestos estudantis já ganhava “bom dinheiro” a cortar e a pentear cabelos. Eram colossais os fundos comunitários destinados a modernizar a economia. Entre 1986 e 2001, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 3, 9% e essa abundância relativa enchia restaurantes e cabeleireiros. “Havia o hábito de ir arranjar o cabelo para o fim-de-semana”, recorda Abel, agora com 43 anos. Emigrava-se menos. E a vaga de imigração ajudava a insuflar a auto-estima nacional. “Somos a geração da esperança na bandeira azul com estrelinhas amarelas”, resume Silvana Mota Ribeiro. A televisão passava muitos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. “E se URSS e EUA se passam? Estamos aqui no meio!” Havia muros reais e muralhas imaginárias a separar países desavindos. A CEE não era só um símbolo de consumo, também de paz, de solidariedade, de igualdade. Muitos lembrar-se-ão da queda do muro de Berlim em 1989 e da abertura de fronteiras em 1995. Quem podia, metia-se num comboio e ia ver. O InterRail, embora caro, era a opção “baixo custo”. E voltava bem a tempo de arranjar emprego. “Geração interrompida”O sociólogo João Teixeira Lopes, a celebrar 45 anos dentro de dias, usa a expressão “geração interrompida”: “Viveu uma promessa de estabilidade. Conseguiu ter pequenas margens de conforto. Foi apanhada pela crise numa idade em que, num instante, se pode tornar obsoleta, descartável. ”O tempo é de sobrecarga fiscal, cortes salariais, elevada taxa de desemprego, recuo na protecção social. “As dificuldades económicas trouxeram ao de cima dificuldades relacionais”, prossegue Teixeira Lopes. E, mesmo assim, pela primeira vez desde o 25 de Abril de 1974, o número de divórcios baixou. Muitos têm filhos e “ficam em pânico quando chega o envelope do gás ou da electricidade”. Não cresceram mentalizados para o sacrifício como os pais, amiúde focados na sobrevivência. Nem estão preparados para enfrentar a precariedade, como a geração seguinte, que nada mais conhece. “É uma luta do caraças”, suspira a técnica psicossocial Inácia Cruz, de 37 anos. “Primeiro, já temos alguma idade. Depois, mistura-se o que imaginamos com o que conseguimos. ”Trabalhou com crianças e jovens de bairros periféricos, mães adolescentes, doentes mentais, sem-abrigo e, um dia, percebeu-se desempregada, extenuada, descomprometida com a sua vida pessoal. Recompôs-se. Faz oficinas criativas, dinamiza jogos teatrais, é contadora de histórias, mas ainda não consegue viver só do seu trabalho, acha que ainda não encontrou forma de o promover, como fazem os amigos mais novos. E dá por si a viver num quarto arrendado e a socorrer-se da mãe. Inácia acredita que “é possível viver dos sonhos”, mas todos os dias sente o quanto isso custa. Gostava de perceber para onde tudo isto a leva. Por vezes, pergunta-se: “Onde estarei daqui a cinco anos? Gostava de ter um espaço para trabalhar na educação pela arte, um companheiro tranquilo no compromisso, filhos. É muito difícil…” Sem estabilidade, tudo se adia, tudo, até o amor. Tem “não relações” ou “relações não convencionais”. A forma de encarar o amor diversificou-se. Discursos tradicionais e progressistas misturam-se, sobrepõem-se, até dentro da mesma pessoa. Enquanto socióloga dos estilos de vida, Silvana Mota Ribeiro procura tendências e uma parece-lhe evidente: “Esta geração tem muito mais escolha do que a anterior”. “Quantas pessoas agora têm uma relação estável com alguém que mora noutro país?”, exemplifica. “As pessoas encontram-se voando. A relação à distância já não é um absurdo, uma coisa da emigração, do tempo em que os homens iam e as mulheres ficavam. ”Os pais de Silvana ainda a imaginaram a chegar virgem ao casamento — era isso que se esperava das raparigas —, mas ela, como muitas mulheres da idade dela, não pensa em casamento e nunca se sentiu “uma atrevida” por meter conversa com um rapaz que lhe despertasse interesse numa festa. “A minha geração desenvolveu o que era ainda um discurso em potência em meados dos anos 80. Tomou em mão o dar o primeiro passo, o primeiro beijo. ”“Não és uma mulher completa!”Vulgarizou-se o divórcio, a união de facto, a família recomposta, legalizou-se o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, apesar disso tudo, o “modelo ideal” resiste: um homem e uma mulher entendidos como diferentes e complementares. E, mal se casam, começa a pergunta: “Então, quando têm um filho?”A pressão não é igual para homens e para mulheres e isso, defende Silvana Mota Ribeiro, não tem só a ver com relógio biológico. Se o homem disser que um bebé é uma maçada, que prejudica a carreira, tolera-se. Se for a mulher, nem pensar. A mulher continua a ser vista como cuidadora. “Não és uma mulher completa!”, dir-lhe-ão. “E depois? Quem vai cuidar de ti quando fores velha?”Uma mulher tem de apresentar uma razão externa — é infértil, não tem companheiro, o emprego fica em risco. Não chega dizer: “Não quero. ” Silvana diz. E ao fim de tantos anos a mãe dela ainda lhe pergunta: “Mas isso é para sempre? Não pensas em ter um dia?” E ela responde-lhe: “Se calhar não. Estou bem assim. Por que hei-de mudar, se estou bem assim?” E a mãe começa a falar nas alegrias da maternidade. “Ai, o que estás a perder! Sabes lá que é ser mãe. É uma coisa superior a tudo. Vais arrepender-te. Olha que o tempo passa. Já tens 40 anos!”Fala na sua opção com cuidado, sobretudo com amigas que sabe pressionadas para serem “mães perfeitas”. Sabe que o seu discurso tende a ser mal percebido. E não quer que a vejam como carreirista, egoísta, sem amor para dar. “Quando tens um filho, nunca mais és independente”, diz. “Isto é uma coisa muito grande para perder. Tens uma criança e és responsável por ela para sempre. Nunca mais tens a tua vida só para ti. Não podes partir. Não te podes fazer ao mundo. ”A Geração X não desistiu de ter filhos. Tem cada vez menos e cada vez mais tarde. Segundo o último Inquérito à Fecundidade, a maior parte gostaria de ter duas crianças, mas acaba por ter uma. Foi-se alargando a escolarização, atrasando a entrada no mercado laboral, precarizando a relação com o trabalho e às costas da mulher continuou o grosso do trabalho doméstico. Já não é como na geração anterior, mas na maior parte das vezes ainda são elas que cozinham, limpam, tratam da roupa. Poucos homens gozam a licença de parentalidade para lá do obrigatório. O lugar dos fraldários é nas casas de banho das mulheres. Isso nunca foi um problema com que Abel se deparasse. Deixava isso aos cuidados da mãe do filho, agora com cinco anos, que só vê de 15 em 15 dias. Luís Branco, de certo modo um dos ícones da “geração rasca”, tem uma filha de nove meses e uma enteada de nove anos e não tem conta às fraldas que mudou. Compete-lhe dar banho à menina e adormecê-la todas as noites. Ele trata do jantar e da louça e a companheira trata da roupa. A mulher-a-dias trata do resto. Nem só por vontade masculina a paridade assume contornos de história de excepção. Como mostram os estudos da socióloga Margarida Mesquita, com maior frequência os homens trabalham por turnos, trabalham mais horas, têm dois trabalhos. O “novo pai” também sente culpa por ter pouco tempo para os filhos e, por vezes, só não participa mais porque a mulher não deixa. “Se um [filho] ficar doente, só confio em mim”, ri-se a dramaturga, encenadora e actriz Marta Freitas. Tem duas crianças de 11 e 9 anos. “Acho que os pais estão num desequilíbrio muito grande em relação a forma como são pais. Têm de trabalhar muito e querem muito estar presentes e acabam por interferir demais. ” Faz parte da associação de pais. Vê como alguns afrontam professores porque querem mais trabalhos de casa, menos trabalhos de casa, zero trabalhos de casa. “Acho que minha geração levou uma chicotada”, resume aquela profissional do teatro, que antes estudou psicologia clínica. “Vive uma mudança muito grande. As perturbações de ansiedade — os ansiolíticos, os antidepressivos — têm muito a ver com isso. Estávamos habituados a perceber a vida de uma forma muito linear. Não havia esta azáfama. Parece que está tudo em causa. As pessoas têm medo. Parece que virou tudo ao contrário. O que aprendeste como filha já não podes transmitir aos teus filhos porque esse mundo já não existe. ”Sem a retaguarda familiar que existia noutros tempos, pressionada para trabalhar cada vez mais horas por cada vez menos dinheiro, muitos arrastam os filhos de actividade em actividade. Nesta ânsia de querer preparar os filhos para tudo, e já com os pais a precisar de apoio, parte da Geração X vai-se esquecendo de si própria. Notícia corrigida às 15h12: quatro rapazes mostraram o rabo ao ministro Couto dos Santos, não na Universidade Nova, como inicialmente estava escrito, mas no Centro Cultural de Belém. 1. º texto desta sérieGERAÇÃO 45-64: Vinte anos para gozar a vida de reformado
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"Rosita" e o império como objecto de desejo
Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente... (etc.)

"Rosita" e o império como objecto de desejo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-08-27 | Jornal Público
TEXTO: Na fronteira ténue entre o espectáculo e a antropologia, a cultura popular e a cultura científica, os zoos humanos serviram diferentes discursos coloniais. Expuseram também práticas de um racismo e de um sexismo que hoje subsistem sob outros formatosOs "jardins zoológicos humanos" foram um fenómeno muito popular, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Consistiam em grupos de "selvagens" ou "nativos", como eram designados, expostos em jardins zoológicos, jardins de aclimatação, exposições universais e coloniais ou circos itinerantes. O contexto colonial europeu deste período foi especialmente propício a estes eventos e foram poucas as vozes contemporâneas que os condenaram. "Vieram à exposição mais de um milhão de portugueses. Muitos - possivelmente a maioria - vieram em ar de festa, com o mesmo espírito alegre e descuidado com que vão ao arraial e ao teatro, aos touros e ao futebol. Diziam alguns: vamos ver os pretos!" Um ano depois da primeira (e última) Exposição Colonial Portuguesa, que teve lugar no Porto em 1934, fazia-se o balanço, positivo, do evento. Um álbum comemorativo publicado em 1935 descrevia a exposição e o sucesso alcançado entre os públicos de "todas as classes". Tinham sido atraídos pelas novidades - sobretudo a encenação de uma aldeia de "indígenas guineenses" -, mas tinham acabado "comovidos" e "orgulhosos" dos feitos coloniais portugueses que ali se tornaram visíveis através das mais variadas tecnologias expositivas e visuais. O jardim do Palácio de Cristal, da mais industrial das cidades portuguesas, fora temporariamente ocupado por reproduções de monumentos de Goa e de Macau, exemplares da fauna africana, cinema com exibição de filmes sobre as colónias, desfiles militares com soldados moçambicanos, a banda militar de soldados angolanos, uma livraria destinada à venda e propaganda de livros coloniais, a mostra industrial com 600 expositores - incluindo produtos portugueses de interesse para o mercado colonial, produtos coloniais passíveis de interesse metropolitano, e muitas outras exposições, a mostrar artesanato africano ou os resultados mais recentes da colonização portuguesa, na área da educação, transportes ou medicina. Entre esta multiplicidade de exibições - em que ainda acrescia o divertimento de uma feira popular e um comboio para que o público não se cansasse da viagem entre Angola e Moçambique -, as "representações etnográficas" acabaram por ser as mais populares. Em 1933, o ministro das colónias, Armindo Monteiro, escrevera uma carta a todos os governadores das colónias portuguesas a pedir-lhes que enviassem para o Porto os "seus nativos" para serem alojados "em aldeia ou habitações típicas". Trezentos e vinte e quatro mulheres, homens e também crianças, provenientes de Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique, Índia, Macau e Timor, estiveram expostos no Porto. Entre eles, o grupo de balantas da Guiné-Bissau foi o mais fotografado pela câmara oficial de Domingos Alvão. Os seus retratos foram dos mais reproduzidos nos populares postais fotográficos que se compravam como souvenirs, bem como os que mais atenção mereceram da parte da imprensa, que multiplicou os públicos da exposição com a sua cobertura exaustiva do evento. A Exposição Colonial Portuguesa de 1934 foi emblemática de uma nova fase do colonialismo português - mais centrado em África, interessado na emigração de portugueses para territórios africanos, e empenhado em afirma-se numa Europa também ela colonizadora. O modelo adoptado pela iniciativa portuense, tanto pela inspiração estética como ideológica, fora em parte o da Exposition Coloniale de Paris em 1931. Numa ilha no meio de um lago, onde uma fonte luminosa vinha dar um toque de modernidade, qual metáfora do empreendimento português em África, instalaram-se umas dezenas de guineenses, que viviam o seu quotidiano numa aldeia de palhotas, sob o olhar dos visitantes portugueses. O público da exposição podia assim ocupar, mesmo que temporariamente, o olhar e o lugar do colonizador. Um colonizador que, na segurança oferecida por um parque no centro do Porto, podia já beneficiar dos resultados das "campanhas de pacificação" em África. Mesmo a da Guiné-Bissau, uma das mais tardias. Assim designadas pelos portugueses porque visavam eliminar a resistência africana à ocupação portuguesa, estas campanhas militares não faziam, naturalmente, parte do discurso expositivo. O que se anunciava em 1934 era uma outra fase da colonização portuguesa - a ocupação dos territórios africanos por colonos portugueses. O evento, de carácter didáctico e propagandístico, procurava relembrar ao povo português que "Portugal não era um país pequeno". A dimensão, excessiva, do espaço imperial, precisava de quem o ocupasse e trabalhasse. Para que Portugal pudesse voltar a ser aquilo que já tinha sido. O tal passado que a exposição evocava de muitas formas, para aqueles que sabiam ler e para a maioria que só sabia ver. É que a ideologia das exposições deve ser analisada lado a lado com outros espaços de uma cultura visual bem circunscrita: da fotografia aos postais, dos jornais ilustrados ao cinema, dos museus de antropologia aos livros de propaganda colonial. O desejo de um impérioE como voltar a transformar o império num objecto de desejo? Como incentivar os "fortes portugueses que navegam", cantados por Camões, a voltar a partir? A exposição era ela própria uma ode às possibilidades coloniais do futuro, um balanço daquilo que se fizera recentemente, e um anúncio de um Portugal do além-mar que seria central à ideologia política e colonial do Estado Novo. As exposições de "nativos", e sobretudo de "nativas", tornaram-se o símbolo mais concreto dessa erotização de um império onde a virilidade lusa devia voltar a semear riqueza. As metáforas de género já desde há muito faziam parte da linguagem colonialista portuguesa, tal como da francesa ou britânica. Os espaços coloniais surgiam feminizados, selvagens e feitos da natureza desordenada que a masculinidade imperial europeia iria controlar. A conquista territorial era descrita com o vocabulário da conquista sexual, onde o colonizador branco masculino exercia duplamente o seu domínio sobre a mulher colonizada - domínio étnico e domínio de género iam, por isso, a par. Esta linguagem, banalizada na prolixidade da escrita produzida nos contextos imperiais europeus do século XIX, manifestara-se graças às possibilidades reprodutivas da fotografia. Inventada quase em meados de oitocentos, a tecnologia fotográfica desenvolveu-se em paralelo com a consolidação dos impérios coloniais e tornou-se um dos seus mais importantes instrumentos de propaganda colonial, juntamente com as exposições. O "objecto" mais descrito, fotografado e reproduzido na Exposição Colonial de 1934 foi uma mulher, negra e nua. A Rosa, Rosinha, ou Rosita, nome com certeza mais fácil do que o seu verdadeiro nome islâmico, era uma mulher balanta, da Guiné recentemente "portuguesa" (ver artigo de Isabel Morais no livro Gendering the Fair). Fotografada por Alvão em várias poses encenadas já pelos códigos visuais de um erotismo feminino, por vezes com os braços levantados para melhor revelar o peito, a Rosinha personificou aquilo que o império deveria ser - o lugar das mulheres disponíveis sexualmente para os homens portugueses que a exposição queria incentivar a partir. Como eram negras podiam estar nuas e podiam ser observadas num espaço familiar e domingueiro de lazer aceitável. Não transgrediam a moral vigente porque não eram brancas como as mães, mulheres e irmãs dos homens que as observavam - dos visitantes do evento aos que organizaram a exposição ou promoveram os discursos de miscigenação além-mar. Sempre implícita na ideia de miscigenação - tão implícita que nem tinha de ser afirmada - estava uma relação entre os homens colonizadores brancos e as mulheres colonizadas africanas. Nunca, naturalmente, a possibilidade - o tabu - de uma relação sexual entre uma mulher branca e um homem negro. Mais tarde, a miscigenação conheceu no "luso-tropicalismo" do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre a mais legítima das suas teorizações. Mas já era apresentada como uma característica do colonialismo português desde que Afonso de Albuquerque promovera, na Goa do século XVI, os casamentos com mulheres hindus convertidas ao cristianismo. A ideia de miscigenaçãoComo poderão ser consideradas excepcionais todas estas políticas coloniais? Todos os impérios coloniais europeus de oitocentos legitimaram as suas empresas com a afirmação do seu "excepcionalismo" e da sua menor violência em relação às práticas coloniais dos outros. Se os portugueses alegavam a sua capacidade de mistura com os nativos (leia-se "as nativas") face a uns britânicos que faziam da separação racial uma das suas bandeiras, os últimos denunciavam a violência religiosa dos portugueses, em contraste com sua própria tolerância em relação ao hinduísmo. Ou, mais tarde, já no principio do século XX, os britânicos denunciavam as práticas de trabalho forçado nas roças de São Tomé, numa altura em que a "escravatura" supostamente já não existia. Os "outros" colonizadores eram sempre piores e por isso não mereciam as colónias que tinham. Tentar ler as políticas de mistura - e, relembramos, de mistura de homens brancos com mulheres dos territórios colonizados -, que pontuaram a colonização portuguesa, em diferentes contextos e por razões distintas, como um sinal do "não-racismo dos portugueses" é reproduzir acriticamente os próprios discursos colonizadores. E é, sobretudo, também não ter em conta a profunda desigualdade entre os géneros que, à partida, estava implícita nestas relações. Na base destas políticas de colonização e interacção com os locais estava a distinção entre, em primeiro lugar, a sexualidade masculina, livre de escolher o seu objecto de desejo, cá ou lá (embora mais lá do que cá), e onde estava implícita uma superioridade; em segundo lugar, a sexualidade feminina da mulher branca, regulada pelas prescrições legais, culturais e sociais de uma sociedade patriarcal. Em terceiro lugar, estava a sexualidade da mulher negra, uma mulher que surgia como passiva e sem poder, apresentada como disponível para o homem branco que, ao ocupar o lugar do homem negro, estava também, metafórica e literalmente, a dominá-lo. Mas o sexo não chega. E o colono português também teria de andar bem alimentado e bem vestido. Num outro pavilhão da exposição colonial, um enorme diorama com figuras de tamanho natural mostrava as mulheres negras a aprender a cozinhar e a coser sob o olhar paciente das freiras missionárias portuguesas. Expunham os progressos da evangelização portuguesa em África através do encontro de dois tipos de mulheres. Um encontro também de valores religiosos e domésticos, aqueles que as mulheres, brancas ou negras, podiam viver no império. Apesar de também ter opositores, até entre antropólogos prestigiados, a miscigenação tornou-se uma ideologia central do regime, e a Rosinha estava ali para a ilustrar: o nome português, provavelmente da conversão ao cristianismo, para a tornar mais próxima e até casadoira; o diminutivo de "inha" ou "ita" para a familiarizar; e a sua sexualização, usada e abusada no contexto expositivo, para que o império também pudesse ser imaginado como uma conquista sexual. Os homens guineenses que vieram com a Rosinha foram entrevistados. Mas as mulheres, não. Não se julgou necessário ouvir a sua voz. Vê-las era mais importante do que as ouvir. Aqui, como em muitos outros casos, "raça" e "género" não são conceitos dissociáveis. Inseparável da cor da pele era o seu género feminino, e era nessa combinação que se reificava uma dupla hierarquia - a do branco sobre o negro, a do colonizador, neste caso, português, sobre a colonizada, neste caso proveniente da Guiné-Bissau e, finalmente, a de um homem sobre uma mulher, onde o domínio patriarcal e sexual era assumido. O espaço da exposição encenava, de um modo lúdico e legítimo, o projecto colonial. Entre partir e tornar-se colono havia um oceano pelo meio. No jardim portuense, apenas um lago os separava de África. E de uma África que nada tinha de ameaçador. A colonização do corpoAs notícias de jornal e as fotografias, popularizadas em postais fotográficos, multiplicaram os discursos escritos e visuais da exposição, fazendo-a chegar também àqueles portugueses que não tinham ido ao Porto. Um livro publicado em Luanda em 1934, celebrava a província de Angola e a sua presença na 1. ª Exposição Colonial. Na página dedicada ao Banco de Angola, duas fotografias do "magnífico e luxuoso stand próprio, lindamente decorado", partilhavam a página com duas fotografias de mulheres seminuas: Uma "beleza negra da Huíla", de boca semiaberta e braços levantados como os da Rosinha, a erguer o peito desnudo, não disfarçava a sua óbvia conotação erótica; a "preta Mucancala" inscrevia-se num outro tipo de imagem, também muito popular desde a segunda metade do século XIX - a da fotografia "etnográfica", realizada ao ar livre no lugar de origem (ou, muitas vezes, nas encenações recriadas nas exposições europeias, coloniais ou universais). O texto a legendar a imagem descrevia o oposto do Portugal moderno e inovador que se queria transplantar para os trópicos: aquela "curiosa tribu" angolana era "uma das mais baixas espécies da escala da humanidade". A mulher negra desnuda - quer na sua versão "sexualizada" quer na sua versão "primitiva" - contrastava com a prosperidade e modernidade do Banco de Angola e ao mesmo tempo reificava as distinções de género tão explícitas na documentação colonial, a masculinização do colonizador, neste caso daquele que geria a riqueza da exploração colonial, e a feminização da colónia, neste caso, numa "preta" e numa "negra", sem nome e sem roupa. No contexto das discriminações raciais da Europa da década de 1930, como já no século XIX, o corpo da mulher negra podia ser exposto, legitimamente, de muitas formas, num claro contraste com o corpo nu da mulher branca, remetido para as fotografias transgressivas de uma pornografia para consumo privado masculino. O corpo nu da mulher negra estava disponível visualmente, porque imperava uma ideologia legitimada por um racismo científico que o inferiorizava, e que lhe retirava voz e poder. Os lugares desta exposição legítima do corpo eram inúmeros: nas exposições universais e coloniais, nos postais fotográficos que jogavam com a ambiguidade entre a legitimidade científica da antropologia e o erotismo; ou em imagens de jornal a ilustrar os costumes de povos "estranhos e distantes". Uma consciência crítica desenvolvida sobretudo desde os anos 1960 veio questionar a violência com que os corpos das mulheres negras foram transformados em objectos e desumanizados, ao longo da história. De Saartjie Baartman - a chamada Vénus de Hotentote que em princípios do século XIX circulava tanto nos meios científicos como nos de entretenimento, entre Londres e Paris - até às muitas mulheres e homens que, ao longo da segunda metade do século XIX, foram apresentados como "selvagens" ou "nativos" e expostos no jardim de aclimatação de Paris, nas exposições europeias ou no circo itinerante do norte-americano Barnum. Este mesmo fenómeno, central para se compreender a ideologia colonial deste período, foi desprezado pela academia durante muitos anos. Porém, desde há cerca de vinte anos que os "zoos humanos" têm sido estudados na perspectiva da história do colonialismo, racismo e cultura visual. Que continuidades e cisões subsistem, hoje, na cultura visual contemporânea que caracteriza o nosso contexto nacional? Uma muito maior consciência anti-racista - incentivada tanto pelos debates do pós-colonialismo como por políticas de direitos humanos mais democráticas - tornaria impensáveis muitos dos textos e imagens do colonialismo português dos séculos XIX e XX. No entanto, ainda subsistem entre nós muitas formas contemporâneas de racismo associado ao género. O que é que a sexualização das mulheres africanas ou brasileiras, no contexto português - no humor machista, em conversas masculinas não escritas, na formulação de estereótipos primários -, diz sobre os preconceitos enraizados de tantos portugueses? Outras perguntas são inevitáveis e também têm sido objecto de estudo nas últimas décadas. Como é que o corpo da mulher, independentemente da cor da pele - sexualizado sob um ponto de vista masculino, anónimo, e passivo -, continua a ser tão utilizado acriticamente na visualidade contemporânea? Se é certo que tais corpos já não servem para propagandear projectos coloniais, nem promessas de uma vida melhor nos grandes territórios de um país pequeno, continuam a ser usados para vender automóveis, cerveja e tudo o resto. Sobretudo, vendem a ilusão de que o desejo do olhar de um público - que se assume como sendo masculino - pode desresponsabilizar eticamente aqueles que detêm o poder sobre os discursos do visível. Investigadora do ICS-UL
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Hinduísmo
Até que o Porno nos Separe ou o amor os junte
De um lado, a matriarca conservadora e religiosa. Do outro, o filho que é uma estrela no universo porno gay. Entre eles, um computador e uma estrada tortuosa. Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano, é um documentário pronto a derrubar preconceitos a partir da viagem emocional de uma mãe em mudança. Para ver esta sexta-feira no Caminhos do Cinema Português. (...)

Até que o Porno nos Separe ou o amor os junte
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 14 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: De um lado, a matriarca conservadora e religiosa. Do outro, o filho que é uma estrela no universo porno gay. Entre eles, um computador e uma estrada tortuosa. Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano, é um documentário pronto a derrubar preconceitos a partir da viagem emocional de uma mãe em mudança. Para ver esta sexta-feira no Caminhos do Cinema Português.
TEXTO: O cordão arco-íris atado à volta do pescoço já a denuncia. É Eulália Almeida, de 67 anos, quem nos abre a porta de sua casa para uma conversa que, ainda não sabemos, se há-de prolongar por duas horas e meia. Pelo meio, há-de chorar, sorrir, esbracejar, sobretudo comover quem a escuta. Mãe-galinha, mãe-coragem, mãe-que-faz-tudo, para não perder o filho e o mundo. Como a do fado que a dada altura trauteia no documentário que nos traz aqui. Deus ouviu a minha preceDeu-me um filho encantadorNunca o hei-de trocar pelos tesouros mais vastosAinda que tenha de andar a vida inteira em pedaços“O fado é a minha história”, confessa. E quando o realizador Jorge Pelicano a ouviu cantarolá-lo enquanto descascava batatas e brincava com o gato Kiko, pensou: “Isto é o filme”. É o documentário Até que o Porno nos Separe, que se estreia esta sexta-feira, 30 de Novembro, em Portugal, no festival Caminhos do Cinema Português (21h45, Teatro Gil Vicente, Coimbra), depois de passagens por BAFICI, na Argentina, e Jihlava, na República Checa. Em 2019 deverá chegar às salas de cinema de todo o país. Uma história de amor entre uma mãe e um filho, mas também um filme que quer aniquilar preconceitos, inspirar famílias LGBTI+, falar da Internet e das redes sociais, mostrar que as pessoas não são herméticas, alheias à mudança. Um retrato íntimo cuja conclusão, sem spoilers porque isto é a vida real, é resumida em poucas palavras pelo tal filho, o actor porno Fostter Riviera, Sydney Fernandes no passaporte: “O amor pode mudar tudo. ”Já há muito tempo que o documentarista Jorge Pelicano, autor de Ainda Há Pastores? (2006), Páre, Escute, Olhe (2009) e Pára-me de Repente o Pensamento (2014), queria fazer um trabalho sobre pais e filhos e a, por vezes, “conturbada” relação que os liga. E sempre quis perceber como é que os pais dos actores e actrizes de filmes pornográficos lidavam com uma escolha dos filhos que, provavelmente, não “iria ao encontro das expectativas” por eles criadas. Foi esse o ponto de partida. “Não queria fazer um documentário sobre bastidores da pornografia, queria chegar aos actores para depois chegar aos pais”, conta o realizador de 41 anos, ao telefone com o PÚBLICO. Assim conheceu Fostter Riviera, uma estrela internacional no universo porno gay, actor várias vezes premiado e com mais de 300 filmes no currículo. Dois dias depois de lhe dizer ao que vinha, estava frente a frente com a progenitora, Eulália Almeida, e no final dessa conversa tinha uma certeza: “Este era um filme muito difícil de fazer porque a maior parte das pessoas quer esconder, mas eles queriam contar esta história. ” Sydney, aliás, deu-lhe carta-branca. “Ele”, sublinha Jorge, “nunca esteve preocupado com o que a mãe ia dizer no filme, nunca a quis influenciar”. O documentário, de quase uma hora e meia, arranca com as janelas semicerradas do Bairro de São Tomé, no Porto, onde Eulália vive e Sydney cresceu. Um paralelismo, quem sabe, com o que vem a seguir: o arranque do Windows, um ecrã com uma fotografia no background, uma mulher que se senta, arranja o rato e o teclado e abre a janela do Facebook para percorrer mensagens no Messenger. A partir daqui, o que se vê é um filme a dois tempos: um que assenta nas comunicações digitais entre mãe e filho entre 2013 e 2017, autênticas “cartas de amor nos tempos modernos” que fizeram as vezes de guião, e outro, o tempo real, que corresponde às filmagens feitas entre 2016 e 2017 por uma pequena equipa de três pessoas a tentar ser “invisível”. É através desta linha temporal que o espectador assiste a uma mãe em, por vezes dolorosa, transformação. Há muitas Eulálias a separar a Eulália que hoje nos recebe e que, orgulhosa, sai à rua com o seu “amuleto” com as cores da bandeira LGBT ao peito (se alguém a questiona diz que o mundo não deve ser visto “a preto e branco”, antes em tons “arco-íris”) daquela que há cinco anos descobriu que o filho era homossexual e fazia filmes para adultos através de um vídeo de uma entrevista que uma amiga lhe mostrou. Um momento em que o mundo, o seu mundo, parou. “Vejo o meu Sydney a dizer que chegou a fazer um filme na VCI e as lágrimas começaram a cair pela cara abaixo”, recorda a mãe. Fostter Riviera era então um nome em ascensão na indústria. Sydney emigrara aos 23 anos para a Alemanha, atraído pelas melhores condições de trabalho que um webdesigner como ele poderia ter, mas também para seguir o seu caminho na pornografia. E a mãe era a única da família que não lhe conhecia o hobby. “Como é que se diz a uma mãe que se é actor porno?”, questiona hoje, retórico. Em Até que o Porno nos Separe vemo-los, ainda, a digerir essa realidade, com emoções à flor da pele, até ao coming out final — o dela. Uma “luta muito solitária”, nas palavras de Pelicano, em “clausura”, num “bairro com muitas janelas” onde todos se entreolham. E sobretudo travada, madrugadas adentro, ao computador, que aqui, “sinal dos tempos”, é também uma “personagem”: “É um filme sobre a relação entre a mãe e o filho e pelo meio está a Internet, que tanto os separa, como os junta. ” Entre a câmara e a protagonista está muitas vezes um ecrã e a página de Facebook do filho, cujas palavras em inglês Eulália tenta perceber com a ajuda de um dicionário — também foi com os livros que aprendeu, sozinha, a dominar o computador e a Internet; também foi com os livros que requisitava na biblioteca que começou a “aprender o que era a homossexualidade”. De um lado, uma mulher, conservadora e religiosa, devota a Santa Rita, que a vela no seu quarto. Do outro, o filho que lhe caiu nos braços aos cinco meses, fruto biológico de um irmão entretanto falecido. Pelo meio, por todo o filme, lento e denso, angústia, sufoco e um grande “amor obsessivo” (não serão todos?). Contra tudo e contra todos. Entre uma mãe que procura e um filho que não liga, mesmo no dia do aniversário. Entre uma mãe que não percebe e um filho que não explica. Entre uma mãe que, por vezes, parte ao ataque e um filho que não sabe como lhe falar. “O filho também evita a aproximação para não magoar, mas esse distanciamento acabava sempre por magoar”, comenta o realizador, que estava também interessado em apontar o foco para a “obsessão da comunicação” tão comum do mundo das redes sociais. O que é particularmente notório em Sydney, sempre online, mas sempre ausente. “Essa dualidade também me interessava”, reconhece Jorge. “Ele é muito presente na rede social, mas na sua vida pessoal procura um isolamento grande. ”Assumidamente, o filme mostra o ponto de vista da mãe, mas também vai ao encontro do filho em Berlim, onde é filmado em situações de alguma reclusão. Numa das cenas, depois de uma entrevista de emprego, o jovem surge solitário, de carapuço enfiado na cabeça, a atravessar uma rua chuvosa. Quando viu o documentário pela primeira vez, Eulália não chorou, mas aquele momento tocou-a. Percebeu, ao vê-lo, que algo não estava bem e ela nunca soubera de nada. “Entristeceu-me”, confirma. “O filme é a pura realidade da minha vida, do sofrimento que passei para que este filho não se perdesse, para que eu não perdesse esse filho, porque os filhos nunca se perdem. ”“Não é fácil abrires as portas do teu mundo”, confessa Sydney, “um mundo que escondes de tanta gente”. Porquê fazê-lo então? Vários motivos. Mostrar que a pornografia é mais do que “uma coisa obscena ou ligada à prostituição”. Contrariar a ideia que “todos os actores são pessoas sem formação”, completa Jorge, dando o exemplo do protagonista, aluno de mérito no secundário, actualmente director de produto numa empresa em Amesterdão. Remata o primeiro: “Eu tenho uma família, um emprego, uma vida normal. A pornografia é uma loucura que me deu e gosto, mas não me faz ser menos ou mais do que os outros. ” Como ele, também outros: “Gostava de mostrar às pessoas que temos uma mãe por trás, um grupo de amigos. ” Este é, nas palavras do realizador, “um filme cheio de preconceitos”, que, espera Sydney, também poderá inspirar outros filhos e outros pais de homossexuais, bissexuais, transexuais. Fora com os tabus, os silêncios, a discriminação — “é tudo”, conclui, “uma questão de vergonha e catolicismo, há que dar amor antes que seja tarde demais”. E, em última análise, também é uma carta de amor: “Será a última forma de dizer à minha mãe que a amo. ”Jorge não sabia como é que tudo ia acabar. “É o prazer de fazer documentário”, realça. Estavam sempre “na expectativa”, a realidade trocou-lhes as voltas um par de vezes, mas ofereceu-lhes um final de bandeja que o realizador filmou de lágrimas nos olhos. É um filme “que demora a ser concretizado” também porque as personagens “estão em constante transformação”. Sente que para os protagonistas a experiência foi uma “espécie de libertação”. Estão “mais aliviados” por atirarem cá para fora o que andava lá dentro a burilar, por “escancarem as janelas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sydney, por exemplo, viu-o 18 vezes. Mudou-o. “O filme”, admite, “fez-me abrir os olhos para a família que eu poderia ter abandonado, mas tive muita sorte por ter uma mãe de garra que não me deixou fugir”. Agora com 29 anos, está apaixonado, mais estável, mais próximo. Não tem feito tantos filmes, não se vai despedir da indústria, mas quer também apostar no seu “trabalho normal” para um dia, quem sabe, abrir a sua própria empresa de produção de aplicações móveis. Por seu turno, Eulália recusa-se a olhar para trás. “Costumo dizer que devia ter menos 30 anos, ” graceja. Deixou de ser aquela mulher “que vivia para a casa”. Fez, diz, o seu “coming out” e tornou-se uma activista de mão cheia. Corre as Marchas do Orgulho para discursar (“E eu nunca fui a nenhuma!”, surpreende-se Sydney), é uma das caras da Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual. Tal como no pós-25 de Abril lutou pelo direito à habitação, abraçou a 100% esta causa. Por muito que o marido por vezes torça o nariz — ele não quis participar no filme (“Na pesquisa percebi que para os homens é muito mais difícil aceitar”, diz Jorge), tal como a filha do casal que, afiança a mãe, está agora arrependida. A secretária, o seu antigo “canto da dor”, onde tantas vezes chorou vigiada por Kiko, é hoje o seu “canto do do amor e da alegria”. Continua a fazer estudos de mercado, inscreveu-se num curso de inglês e num outro de Sociologia na Universidade Aberta. Agradece todos os dias a Santa Rita, gosta muito de ouvir David Guetta e já está a sonhar com o Natal e com a aletria que irá fazer para o filho, se ele vier. Uma pessoa muda ou abre uma nova janela em si mesma? Escreve Eulália, já perto do final do filme, numa mensagem que publicou no seu mural do Facebook a 13 de Março de 2017: “Andei durante vários meses a ponderar se estaria preparada para fazer uma grande loucura: escancarar o meu armário. Não há nada mais forte do que o elo entre uma mãe e um filho porque ser mãe é uma missão maravilhosa mas com muitos desafios. Pelo meu filho, redescobri-me. ”
REFERÊNCIAS: