O Algarve não é aqui
Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo". (...)

O Algarve não é aqui
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo".
TEXTO: De noite, Alcoutim é só silêncio. As ruelas brancas, de casario baixo, afluem para o rio e não se ouve uma porta, uma televisão, raramente um carro. Até que, chegados à margem do Guadiana, lá vêm os sons de um jantar em família, as vozes bem altas e animadas. E de onde vêm elas? De uma casa qualquer em Espanha. Se podemos ouvi-las com toda a distinção é porque do lado de cá não se passa nada. Ou quase nada. Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda. Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana. São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros. Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas. Cada etapa termina numa vila, aldeia ou monte onde se encontra alojamento, come-se, arranja-se lanche e forças para o dia seguinte. Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite. Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená, rara aqui, mas mais comum na última parte da rota). Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim. Mas ainda é de manhã quando entramos em Corte Pereiras, uma pequena aldeia onde todos têm um pequeno quintal. Cabrinhas cercadas por arame, piteiras, sobreiros. Um café à beira da estrada e pouco mais. A casa de Isabel Ferreira tem galinhas à porta para nos receber e um alpendre com um banco corrido de pedra, outro de madeira, hera a subir pelas paredes. A ceramista, de 55 anos, veio de Lisboa para aqui há 18. Não foi um feliz acaso, esta era a casa dos avós do seu marido. Apesar da tranquilidade da aldeia, “aqui também há stress, um stress interior”. Anula-o todo com os bichos e flores que cria, e que vende sobretudo a estrangeiros. “Nos últimos quatro anos desapareceu toda a gente. Agora estão a voltar aos poucos”, diz. A pequena porta que dá para o seu atelier tem mais de 100 anos. Lá dentro, o forno está ligado. Imaginamos o calor que fará no Verão: “Cinquenta e tal graus, às vezes. Não se consegue aqui estar. ”Isabel Ferreira faz brincos, ganchos e taças inspiradas nas flores das estevas. Difícil era não fazer, porque a serra está cheia delas, e nesta altura do ano estão bem floridas. Salpicam os campos de branco, como se fossem flocos de neve. De perto são pequenos ovos estrelados. Mas o melhor nem é isso, que já não é nada pouco. O melhor é o cheiro que libertam e que se cola ao nariz, enquanto atravessamos barrancos e linhas de água. Este ano choveu pouco. As ribeiras estão pouco fartas. Saltam-se de um salto. Mas a serra ainda está verde. Mais uns meses e toda esta paisagem mudará de cor. Mais uns meses e o calor tornará esta peregrinação um acto de sacrifício e dor. Os caminhantes que agora se vêem muito de vez em quando terão desaparecido quase por completo. Em tudo me parece que há emigração! Já reparaste? Os homens válidos, a rapaziada, estão na França, na Austrália, na Venezuela, no Canadá. Emigraram. Abandonaram as alfarrobeiras, as amendoeiras, as oliveiras, a sua terra (…) O sargaço, o tojo, o alecrim, o carrasco, o carapeto, o aro, todo o nosso mato se desenvolve e cresce, parecendo querer mandar dizer aos lobos que voltem…"(in Conversando a vida toda, José Cavaco Vieira: Dezembro de 1967)Em Afonso Vicente há agora seis habitantes. Já chegou a haver 400. Em frente à associação recreativa estão António Silvestre e José André. Dois dedos de conversa à espera que se abra a porta, o sol a bater quentinho na cara. Balurcos, aldeia com mais movimento, fica a 12km. Mas há 30 anos que António Silvestre não vai lá. Passa a maior parte do seu tempo aqui, onde a pessoa mais nova tem 62 anos e onde há 40 não nasce ninguém (informações recolhidas nesta varanda, à espera de um café que não vem nem virá). Não repetimos as mesmas perguntas em Corte Tabelião, uma aldeia que parece um pátio, toda virada para um larguinho, com um forno comunitário onde talvez ainda se coza o pão em ocasiões especiais. Mas o cenário é o mesmo: casas totalmente fechadas, ninguém na rua, excepto um ou dois velhotes a apanhar sol. Será sempre um pouco assim, às vezes, muito assim. Aldeias abandonadas, brancas e silenciosas, com um ou outro cão a ladrar do lado de dentro dos quintais, pouco habituados à passagem de estranhos. Aldeias a cheirar intensamente a flor de laranjeira. Atravessamos pomares de que já ninguém cuida e até tiramos um ou dois frutos das árvores para matar a fome e a sede de uma só vez. Atravessamos hortas ladeadas por valados, que aqui há muita pedra. Diz-se bom dia ou boa tarde a quem quer que se cruze no caminho. Ribeira da Foupana: deixamo-nos estar nas pedras a ouvir a água a correr. Come-se fruta e sanduíches preparadas por António Faustino, do turismo rural de Balurcos, onde ficámos na noite anterior. Os pássaros que cantem e façam a agitação que quiserem, que na próxima meia hora ninguém nos tira daqui. Quem quer molha os pés, quem quer dorme em cima das pedras, quem quer fica a observar o que nos espera do outro lado da ribeira: uma subida íngreme, com o verde-escuro a acalmar o verde mais claro das colinas, umas atrás das outras. A subida é compensada pelos campos de rosmaninho em flor, extensões sem fim de roxo vivo. Entra-se nas Furnazinhas por cima, com a aldeia aos pés. Aldeia não, monte. O senhor Manel aparece na Casa do Lavrador, de João Henriques, trazendo na mão um ramo de marioilas, que fazem também um bom chá. “Seca-se e dá para o ano inteiro. ” Depois vai buscar ramos generosos de hortelã-limão e poejo. Aqui tudo se dá. João Henriques diz que em finais dos anos 1960 toda a gente emigrou para a Alemanha, França, Suíça. O seu alojamento depende praticamente só dos caminhantes da Via Algarviana: holandeses, alemães e austríacos, sobretudo, também alguns portugueses. No ano passado terá recebido umas 200 pessoas. Fez tropa em Lourenço Marques, e lá conheceu a sua mulher. Depois foi para Angola, mas decidiu partir mesmo nas vésperas da independência, “já aquilo estava a fogo em Luanda”. Trabalhou em Faro, como técnico agrícola. “Agora voltei às raízes. ” A sala onde jantamos frango guisado era onde o avô tinha os animais; na zona onde é agora a cozinha guardavam-se as rações. O alojamento tem quatro quartos e tornou-se num negócio de família. Olívia não é da família mas quase, porque faz na Casa do Lavrador tudo o que é preciso: limpezas, jantares, pequenos-almoços… Não sai de Furnazinhas há anos, nem sabe dizer quantos. Os dois filhos é que a vêm visitar. Um deles é chef no hotel de Altura onde estudou, mas dizem que ela cozinha ainda melhor que ele. Comida da serra, claro. Quando precisa de alguma coisa que não encontre cá, o marido vai a Castro Marim, na carrinha que todas as terças-feiras vem buscar quem lá queira ir. Não há posto de saúde, mas qualquer problema aparece o INEM, e mensalmente vem uma médica que mede a tensão, receita medicamentos, faz um acompanhamento geral. E há também a carrinha que traz pão, peixe, carne e alguns artigos de mercearia. Na aldeia ainda há casas em grauvaque, a que chamam pedras vivas, ou xisto, também chamado de piçarra. Mas Joaquim, marido de Olívia, pedreiro, diz que há uns 40 anos que não se fazem assim. “Dá muito trabalho. Agora é só cal. ”A casa onde António Gomes Peres trabalha é em pedra. É cesteiro desde os 11 anos, leva 60 de profissão. Tem umas canas a um canto, um pedaço quadrado de cabedal em cima da perna para não se cortar com o vime, uma cadeira baixinha onde se senta. “Não há pontas à vista”, mostra com orgulho o cesto que está a fazer. Cada cesto leva quatro canas, cada cana leva uma hora a preparar. Um cesto com tampa, destes que está a fazer agora, é um dia e meio de trabalho. Recebe até encomendas do Japão, através do projecto TASA, que recupera o artesanato tradicional com ajuda de novos designers. Mostra um papel onde estão os exemplos de cestos que a clientela nipónica pretende. “Aquele era para ir para lá mas ficou muito barrigudinho e não passou no teste. ”António Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com eleAntónio Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com ele. Deu um ano de aulas em Castro Marim, mas não fez discípulos. “Aprenderam, faziam bem feito, mas ninguém continuou”. Mais sorte teve Manuel Henriques, 58 anos, que tem uma melaria umas casas adiante, onde trabalha com os seus dois filhos, David e Tiago, que depois de tirarem cursos de apicultura se dedicaram ao negócio. “Agora está na altura de tirar o pólen”, diz. A “bonança, a força das flores, já chegou, vem de leste para oeste”, explicam os homens da aldeia. E as colmeias da zona, dispersas entre os campos de rosmaninho, entram em grande actividade. Manuel Henriques tem 250 colmeias. No ano passado produziu mais de três mil quilos de mel. “Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-lo. ” Mostra os favos recheados, que podem ser mastigados directamente. Mas o seu tesouro é outro. Numa das salas da melaria está uma mesa comprida com um enorme tabuleiro cheio de pólen, retirado das estevas, e tão amarelo como o centro das flores. Outros 13 estão numa máquina feita especialmente para a secagem. “Este ano o tempo não tem ajudado: se tirar 120 quilos de pólen já é muito. ” Vende cada quilo a 12 euros. “Isto é o meu ouro”, diz orgulhoso. Entre Furnazinhas e Vaqueiros os pinheiros mansos (“projectos”, como lhes chamam por aqui, por terem sido plantados com financiamento comunitário) rivalizam com os sobreiros. O guia da Almargem indica que esta zona é sobrevoada por dezenas de espécies de aves: a toutinegra do mato, a águia d’asa redonda, o papa figos, o abelharuco. . . Mas não venham dizer a Cristina Lourenço, de 49 anos, como é tão bom ouvir o seu chilrear. “Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir gente. ”Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-loTrabalha no centro paroquial de Vaqueiros, que ocupa os idosos durante o dia, dá-lhes refeições, ajuda-os na higiene. “Para esta geração, o pão para a semana dá; para a minha, já não serve. Sinto necessidade de ter pessoas da minha idade com quem falar, de ir ao cinema. ” De vez em quando vai a Faro e a Tavira para mudar de ares e ver a movimentação. Vaqueiros é uma animação perto de tantas outras aldeias à volta (é a mais povoada da freguesia). Mas não chega a ter 60 habitantes. O número está constantemente desactualizado, porque os funerais são uma rotina. Cristina Lourenço não tem esperanças de que a situação se altere muito. “Acho muito difícil haver fixação aqui. Como não há postos de trabalho, também não há um supermercado, uma sapataria… Está mesmo tudo desertificado. Toda a gente tem família fora. ”Ela também chegou a ir. Faro, Lisboa. Depois voltou porque era aqui que o marido queria viver e havia financiamento para a agricultura. “Viemos um bocado iludidos. ”Na Casa de Pasto Teixeira, a dona Rita garante um ponto de encontro à aldeia. Fala com os estrangeiros por gestos e todos se entendem. “Não deixo ninguém ir embora sem comer nem dormir. ” Toma conta do alojamento da filha, que só vem aos fins-de-semana, como muitos dos que saíram. E faz as refeições para quem pernoita. Conta que a maior parte dos habitantes emigraram para França ou Alemanha (como foi o caso dela, que viveu dez anos perto de Dusseldorf). Quando voltam, vêm com a reforma e constroem uma casita. “Se for ver, a aldeia tem muita casinha nova e prédios bonitos. ” Mas “velhotes para contar histórias já há poucos”. “Têm morrido todos. ”Manuel José, 83 anos, também foi dos que regressou à terra. Foi em 1965 para a Alemanha com contrato e ordenado. Esteve lá quase 30 anos. Não veio rico. “Só tenho os caminhos e o corpo. ” Ou seja, não tem terra. Todas as manhãs anda duas horas por esses montes fora e é numa dessas caminhadas que o encontramos, com sobreiros a perder de vista. E diz quem sabe: “Este mês é o mais bonito, com as estevas e as tremocilhas amarelinhas todas em flor. ” O mês em que encontramos “a indizível verdura das folhas novas e tenras”, como no poema de Sophia de Mello Breyner. Quando entramos num café no Cachopo encontramos Manuel Vicente sentado ao balcão. Perguntamos-lhe se é ele o albardeiro. Diz que sim, mas que “burros agora não há muitos”. “Só os de duas patas. ” Mais tarde passaremos pela sua oficina: uma única divisão com uma janela para a rua, albardas e molins a um canto, uma pequena motorizada a outro. Nunca quis passar a sua arte a ninguém e agora que tem 89 anos também não vai ser diferente. “A malta nova já sabe ler. Quer é ter empregos. Eu não sei ler e o culpado fui eu. ” Em vez de ir para a escola, foi tomar conta dos porcos. Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir genteEle queria ser pedreiro, “mas o pedreiro ensinou” o primo mas não a ele. Aprendeu o ofício de albardeiro em Tavira. Bastou-lhe um mês para dominar com alguma mestria a técnica, e não era difícil arranjar clientes. “Ia pelos montes trabalhando. ” Mostra um molho de palha de centeio, com que se forram os molins: “É a mais resistente. Mas agora já ninguém semeia nada. ” Também já poucos burros há para dar uso às albardas. “Bestas havia por aí todos os dias. Agora há por aí alguma?” Haver até há, mas são as tais de duas patas. Por isso, a maior parte das albardas que Manuel Vicente faz (só durante a manhã, que é preciso descansar) são para decoração. Ainda há “quem venha de longe” fazer-lhe encomendas: São Brás de Alportel, Loulé, Portimão. “Aqui não gastam. ” As carneiras vêm de São Brás, em cima é pele de porco ou de javali, que antigamente lhe vendiam nos talhos. Fazia muitos molins para os cavalos da GNR, todos decorados, com espelhinhos e flores bordadas, como alguns que ainda aqui tem. Os tosquiadores ainda lhe vendem a rabada dos cavalos para terminar em beleza, com os pêlos apontados para o ar. Se tivéssemos sido rigorosos, teríamos deixado o Cachopo em direcção a Barranco do Velho, quase 30 quilómetros e oito horas de subidas e descidas em plena serra do Mú, ou do Caldeirão, como se preferir, com vales e linhas de água, com sobreiros e medronheiros, com vistas esplêndidas. Mas vamos de um salto para o Hotel Tia Bia, também ao encontro da serra, mas nos pratos que Nuno nos serve: croquetes de cabeça de javali, sopa de legumes com coentros e cogumelos, javali guisado com hortelã e funcho, com legumes assados, tarte de amêndoa. Um medronho a fechar. É ele e a mulher, Cátia, ambos de 36 anos, quem tomam conta do hotel e restaurante, mesmo à beira da estrada. A filha, Serena, está a tentar concentrar-se nos trabalhos de casa, feitos ao balcão. Não encontra a borracha, quer uma pastilha, perdeu o afia. . . Uns seis anos irrequietos, como os seis anos normalmente são. Damo-nos conta das poucas crianças que encontrámos até aqui. É Cátia quem conta que o hotel começou por ser um abrigo de montanha, com dois quartos e o único telefone das redondezas. Barranco do Velho é um local de passagem da EN2, que liga Faro a Chaves ao longo de 738 quilómetros, e durante a sua construção não havia muito mais onde ficar por estas bandas. “Este era o único ponto de paragem no meio do nada. Até ao Alentejo não voltava a haver nada assim. ” Dizem que a tia Bia, que mais tarde se ocupou do hotel e lhe deu nome, tinha muitos “amigos” entre os camionistas que aqui pernoitavam ou paravam para comer, conta Cátia a rir. “As pessoas de 80 anos ainda choram quando falam dela. ” Era uma mulher simpática, com personalidade forte. Nuno é de Barranco e quando, aos 17 anos, veio ajudar a servir à mesa ficou com a certeza que o seu futuro passava pelo lugar onde estava o seu passado. “Fui ganhar conhecimentos para o litoral, sempre com o encanto da serra”, conta. “No ano passado os donos cansaram-se disto e foi a minha oportunidade. ” Cátia, de Loulé, já estava encantada também, não teve sequer que a convencer. Ela era chefe de sala na Quinta do Lago, ele chef de cozinha. A dupla funciona na perfeição. De resto, os negócios da região são frequentemente familiares. “Decidimos subir, com armas, bagagens e uma filha. ”Aqui ainda se respeita o professor, a tradição, valoriza-se a boa educação, conta Cátia, enquanto o marido vai para a cozinha preparar o jantar. “Roupas novas? Não se sente necessidade de as comprar. Mas não prescindo da minha manicure em Salir!” Ganha-se menos dinheiro, sim, mas também se gasta menos e aproveita-se melhor o tempo. Mas nem sempre é fácil a vida na serra, comenta. “Há pouca dinâmica porque há pouca juventude. Os políticos falam na desertificação mas nada foi feito para que os jovens, que são quem tem novos projectos, voltassem à terra. Os de idade querem é estar sossegados. Há as casas do medronho, do pão, dos frutos secos, da cortiça, o moinho – estão construídos, têm tudo para se trabalhar, mas não há lá ninguém. ” Ela tem ideias sobre formas de dar a volta à questão: dinamizar as produções biológicas, aproximar as crianças “do que temos de melhor, porque a maior parte do Algarve é serrano”. “Havia um preconceito das pessoas do litoral em relação às da serra, mas não há nada de mais genuíno. ”O casal quer “pôr Barranco do Velho no mapa”. “Em qualquer sítio da serra é complicado para os turistas saberem o que se passa à volta porque ninguém fala inglês. Aqui já podem conversar um pouco mais. ” E a prova disso é a forma como serve animadamente o grupo de caminhantes estrangeiros que agora se senta para jantar. Robert Keukens é um ex-advogado holandês de 76 anos. Todas as primaveras e outonos põe-se a andar para algum lugar. Já foi de Sevilha a Santiago, de Oviedo a Santiago, e outros percursos em Espanha, França, Itália. “Caminhar é uma forma de vida”, diz. “Comecei a andar por viver numa zona linda, e ao fim de umas horas de passeio pensava 'que pena ter de voltar. Era bom continuar, um dia após o outro'. ” Ganha-se sossego e cabeça limpa. “Temos tempo de pensar quando se caminha assim. Não precisamos de nos preocupar com nada a não ser em ir de um sítio ao outro, comer, dormir. Não há mais problemas. ”Os 300 km da Via Algarviana não o assustam, nem à sua mulher Elizabeth. Está em condições de dizer: “A natureza é linda, as pessoas muito simpáticas, mas estou chocado com a pobreza. As aldeias são ruínas. Porque não há agricultura? As laranjas são muito melhores do que as da Holanda. Porque não exportam para lá? Eu sei que há aqui um problema de escala, mas parece que quem fica não tem iniciativa. ”Já passou tempo suficiente em Portugal para conseguir trocar algumas palavras em português e ler o jornal (dias depois iremos encontrá-lo em Messines à mesa de um café com o Diário de Notícias na mão). E também para comentar: “Gosto da forma portuguesa de ser educado. É incrível. No caminho não nos vêem até que chamemos por eles. E aí desfazem-se em atenções – mudam, como uma flor a desabrochar. ”Quase metade do caminho de Salir para Alte faz-se com a Rocha da Pena à direita. Não nos deixemos enganar pela palavra “Rocha” – é na verdade uma montanha com 479 metros de altura e centenas de espécies de plantas, incluindo orquídeas que não há em mais lado nenhum. Andamos e andamos e a Rocha da Pena sempre ali, imponente. “É um dos segredos de caminhar: uma aproximação lenta às paisagens que progressivamente se tornam familiares. É como o convívio regular que faz crescer a amizade. . . Quando andamos, nada se move, só imperceptivelmente as colinas se aproximam, a paisagem se transforma. Se formos de carro ou comboio, vemos a montanha a vir ter connosco. O olhar é rápido, vivo, crê ter compreendido tudo. Quando andamos, nada se desloca verdadeiramente: a presença instala-se lentamente no corpo. ” Fédéric Gros, no seu livro Marcher, une philosophie (Caminhar, uma filosofia) escreve que “a lentidão do caminhante não é exactamente o oposto da velocidade. É antes a extrema regularidade dos passos, a sua uniformidade. ”E para caminhar basta um corpo, espaço e tempo. “Caminhar não é um desporto”, é a primeira frase do livro. Não se fala em resultados, nem em números, nem em pontuações: “O caminhante dirá que caminho tomou, em que direcção se encontra a paisagem mais bela, a vista que se tem de certo promontório. ” Não precisamos de estar totalmente sozinhos, mas precisamos de silêncio. Num grupo de três ou quatro pessoas “ainda é possível andar sem falar (. . . ) Mais do que quatro, é uma colónia, um exército em marcha (…) Mais do que cinco, é impossível partilhar a solidão”. “Caminhar não é um desporto, mas uma vez que se começa, já não se consegue ficar parado. ”O Algarve não é aqui. Isto é, para os habitantes serranos, o Algarve é o que é para quase toda a gente: o litoral e as suas praias. A serra é outra coisa. Aqui diz-se “lá no Algarve”. Mesmo quando é uma questão de apenas vinte quilómetros. Há vários pontos do caminho de onde se avista ao longe o mar, de onde se avista “o Algarve”. Como por exemplo entre Barranco do Velho e Salir, uma zona de transição para o barrocal – a chamada beira-serra. A terra já é avermelhada e barrenta. Graciete Valério também não consegue ficar parada. Aos 81 anos continua a tomar conta da Casa da Mãe, um alojamento em Salir, – nasceu aqui, nesta mesma casa, que era da sua avó. É ela quem faz as compotas servidas ao pequeno-almoço, as rendas à volta dos guardanapos, as toalhas com bordados, de mesa e de mãos, os licores, os quadros com flores que tem na parede. . . Ainda tem tempo para responder a emails e navegar pelo Facebook, no iPad ou no iPhone. Não viveu sempre em Salir. Aos vinte anos, quando chamaram o marido para ajudar a construir o metropolitano de Lisboa, lá foram os dois. Ficaram 11 anos, até que a mãe lhe falou dos vizinhos que estavam todos a emigrar para França. “Aquilo entrou-me bem na ideia”, conta no espaço onde tem o seu escritório, sentada numa cadeira preta de rodas, girando de um lado para o outro. “O meu marido foi primeiro, com uma carta de chamada. Quando veio cá nas férias, eu insisti que queria ir com ele. ” E ninguém a deteve. Dividiram um quarto com outro casal, separados por uma cortina. “Em Lisboa já era diferente [de Salir], mas aquilo em Paris dava-me uma admiração: os moços aos beijinhos na rua. O meu marido dizia 'não olhes'!”A amiga trabalhava para a mulher de um ministro, que pôs um anúncio no jornal para lhe arranjar trabalho. “Nem queira saber os telegramas que recebi. Fiquei a trabalhar com a neta da Nina Ricci [a da casa de moda], a cuidar dos meninos dela. ” Tem a fotografia do mais novo, Adrien, ao lado das da sua família. “O miúdo dava ares a mim, ia na rua e pensavam que era meu filho. ” Acompanhava a família Ricci para onde quer que fosse – “Se eles iam para a Suíça eu ia, se iam para Itália, eu ia, se iam para Inglaterra, eu ia. ” A casa ficava no Quai Voltaire, em frente ao Louvre. O ex-Presidente Jacques Chirac foi lá algumas vezes jantar – “a polícia fechava a rua”. E no terceiro andar morava Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. “Às vezes, quando ele vinha da Opera, à meia-noite, dava ceias e eu ia ajudar a servir. ”Voltou de Paris para Salir quando uma das suas filhas engravidou. A vila continuava sem gente nem trabalho. Um francês sugeriu-lhe abrir o turismo. “Entrou-me aquilo bem na ideia, 'olha não está mal'. ” Dá dormida a 25 pessoas – muitas delas, caminhantes da Via Algarviana. “Não havia nada em Salir mas agora toda a gente aluga. Viram e invejaram-se. ”A saída de Salir é feita por hortas e pomares, uns abandonados, outros arranjados. Caminhamos sobre o maior aquífero do Algarve: Querença-Silves, 320 quilómetros quadrados de água debaixo do solo. Por isso tantas noras, poços, fontes, fontanários. Está tudo parado, esqueletos de uma época que já não voltará, mas podemos imaginar a actividade que já passou por estas bandas. Fazemos um pequeno desvio para Portela da Nave e visitamos o Idálio Ramos, da Queijaria Martins. Tem 34 anos e foi ele quem fez nascer o negócio. “Aos 13 anos comprei duas cabrinhas com o dinheiro que me davam… Vou trabalhando e vou construindo uma coisa que é minha, pouco a pouco. Todos os dias a gente faz coisas novas. ”Queijarias ilegais “há muitas, cada vez mais”, mas com tudo certinho só a sua, garante. Tem 150 cabras, mas isso não chega para a produção e ainda compra leite aos pastores – “mil litros por dia, quando é altura de haver muito”, como agora na Primavera. Na fábrica, os dois depósitos de refrigeração (dois cilindros enormes em inox) estão cheios de leite. Depois vai a cozer durante três horas e meia, até aos 90ºC, em banho-maria. Passa para panelas, para arrefecer. “Quando chega aos 50º juntamos o cardo, para coalhar. Depois, partimos a coalhada e tiramos o soro. Utilizamos uma parte para alimentar as porcas – tem muita proteína. ” De seguida enchem-se os moldes, um a um. “O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maiores. ” Mas não foi imediatamente que conseguiu que os seus queijos de cabra ficassem perfeitos. “A minha avó fazia o de ovelha mas as temperaturas são diferentes. Fomos falando com as outras pessoas mais velhotas para aprender. ”Quem entrar na queijaria não reconheceria um dos grandes problemas da zona: há entre 60 e 70 óbitos por ano para entre 10 e 15 nascimentos. Ontem houve dois funerais, anteontem outros dois… Salir é uma das maiores freguesias do país em termos de área – tem 185 km quadrados, mas apenas 2765 habitantes. Aqui “somos quatro trabalhadores, só malta jovem”. Abre as portas do estábulo e lá estão as cabritas, castanhas e brancas, a comer. São floridas sevillanas porque produzem quatro vezes mais que as algarvias e são mais dóceis, explica. “As algarvias são mais stressadas. ” Quando saímos, elas parecem querer despedir-se, começam a balir alto e bom som. Idálio abre-lhes a porta e elas correm para o exterior. “É mais difícil aturar pessoas do que aturar animais. ”Retoma-se o caminho que mais adiante se torna num largo rio de brita, porque o presidente da junta quis alargar a estrada. Anabela Santos está inconformada. Nas obras, retiraram as indicações da rota, e o percurso está descaracterizado. A Via Algarviana envolve 11 concelhos e 21 freguesias. Não foi fácil pôr todos de acordo sobre o investimento que teria de ser feito, nem é fácil garantir que todos cumprem aquilo com que se comprometeram – apesar do movimento que a Via trouxe a esta parte do Algarve –, explica a coordenadora da Almargem. O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maioresOs medronheiros pelo caminho são uma das razões por que aqui se rivaliza o medronho com Monchique. Urze, giesta, tudo é mais rasteiro deste ponto alto, onde a vista se perde na serra e faz mais frio. Por isso as plantas não crescem tanto. Atentemos à flora: orquídea testículo de cão, bufa de sogra (um fungo enorme), tremocilha (bom para dar azoto ao terreno), flor dos macaquinhos dependurados. . . Depois da descida, uma zona de floresta. Atravessa-se um barranco, depois outro. A terra já é vermelha. Passa-se a Estrada 124 e estamos dentro no barrocal. Pomares de sequeiro, com as suas oliveiras, figueiras, amendoeiras. As alfarrobeiras são centenárias, vê-se pela grossura dos troncos, com formas contorcidas. Em Cerro de Cima, Maria Guerreira está a tirar ervas das pedras junto a uma alfarrobeira que diz ter mil anos. “É do princípio do mundo. ” Tem 83 anos, toda curvada para o chão. Nos quintais há cabaças penduradas a secar. À beira da estrada, pequeninas flores azuis: “A borragem dá coragem”, diz-se. Podemos comê-las. Os valados em calcário estão bem conservados, ainda que nunca se veja ninguém a fazer a despedrega (tirar a pedra da terra para fazer os muros). Dividem os terrenos pelos montes acima, umas linhas cinzentas, como veias. Na esplanada de um café em Benafim come-se uma bifana e metemo-nos na conversa dos agricultores na mesa ao lado, que explicam: “Com a lua nova não se pode semear. Certas coisas aguilhotam [espigam]. Cebolas: chegam a um certo ponto, aquilo espiga tudo. [A melhor lua] é o minguante. Isto são os ditados antigos. ” Outro acrescenta: “A batata pode ser semeada com a lua nova, a batata pode. Mas não pode ser colhida com a lua nova porque apodrece. ‘Tá a ver?”Para entrar em Alte é preciso passar pelas Fontes Grande e Pequena, por onde agora passeiam turistas estrangeiros já com idade avançada. Escuta-se o correr da água e imagina-se a agitação que não deve ser no Verão, com as crianças e os piqueniques. Alte é quase uma metrópole no meio da serra, com lojas, igrejas, cafés (vale a pena uma paragem na bela varanda do Água Mel, onde o dono, José Canelas tenta recuperar receitas antigas – “se as pessoas não as comerem aqui, onde é que as comem?”, diz). De onde vem este nome, Alte? Quem conta é Albertina Madeira. “Havia uma senhora morgada, dona Antónia, que vivia na Quinta do Freixo. E todos os domingos ela ia ouvir missa a Santa Margarida, uma aldeia aqui da freguesia. Havia ali uma igreja, que agora está em ruínas. Ela ajudava o padre, e ele não dizia missa sem a senhora chegar. Mas num domingo, a senhora atrasou-se imenso e o padre disse a missa. E quando ela chegou aqui a altura de Alte viu muitas pessoas virem de Santa Margarida e perguntou-lhes: 'Então, de onde vêm?', 'Ah, fomos ouvir missa. Como a senhora demorasse, o padre disse a missa'. Então ela volta-se para os criados e diz: 'Alte aqui. Aqui vai ficar uma igreja e ela será sempre de uma freguesia. ' Era 'alto aqui', mas com o passar dos tempos foi deturpado e agora só se diz Alte. ”Albertina Madeira é directora do jornal Ecos da Serra, “mas sem cultura nenhuma para isso”, ressalva. Assina os seus artigos como Serranita. O jornal, com uma tiragem de mais de mil exemplares, segue para assinantes espalhados na Europa, África, América, Austrália. Há uns cinco anos, Albertina partiu o braço, não podia fazer nada, e começou a recordar as coisas de quando era pequenina. Ou seja, as coisas de há 93 anos. “Vou escrever as minhas recordações. O que existia nesta rua, as pessoas, o que faziam, essas coisas. E agora estou nas tradições de Alte: o que se fazia no Carnaval, nas Janeiras, no 1. º de Maio. ”E o que se fazia no Carnaval? “Os moços andavam à espreita das raparigas namoradeiras para as enfarinhar. Punham farinha na boca, nos cabelos, elas viam-se aflitas. Gritavam mas no fim gostavam. Eu nunca fui enfarinhada. Às vezes queimavam pimentos e punham à porta das pessoas. Entrava uma fumarada, começava-se a tossir. 'Mas quem foi, quem não foi?' As pessoas ficavam todas marafadas, e os que estavam à esquina da rua fartavam-se de rir. ”E no 1. º de Maio? “Juntavam-se as pessoas amigas e a família e iam à Fonte Grande, passavam lá o dia. Punham as toalhas no chão e os seus bolos, a galinha cerejada, o arroz tostado – que já está cozidinho, põe-se a gema por cima, pedacinhos de linguiça e vai ao forno para ficar tostadinho por cima, é tão bom. Havia as carrasquinhas, as cavacas, o pão-de-ló, e os bolos folhados que ninguém mais sabe fazer. Em São Bartolomeu de Messines fazem mas não se compara. São trabalhosos porque faz-se a massa, em dobradinhas, depois estende-se, põe-se manteiga e banha e com um pauzinho vai-se enrolando, enrolando, enrolando e tira-se [o pau] e fica um rolo compridinho. Depois com um fio – não pode ser com a faca – vai-se cortando aos pedacinhos. Põe-se no tabuleiro, vai ao forno e são passados por açúcar com um bocadinho de água. Ai, são tão bons. Quase todas as pessoas aqui de Alte faziam. Agora, só duas sabem fazer. Só em dias de festa. ”Lê o artigo que está a preparar para o Ecos sobre o 1. º de Maio: “Namorava-se, dançava-se, cantava-se e se fosse necessário dar de corpo (sabe o que é dar de corpo? É ir verter águas, ao quarto de banho), bastava subir-se ao serro da Galvana e por detrás de alguma moita ou arbusto fazia-se de retrete. Quem não fosse prevenido com um pedaço de papel ou jornal, uma pedrinha ou folha também podia fazer das vezes de papel higiénico'. Mesmo quando era proibido comemorar o 1. ºde Maio, aqui fez-se sempre e nunca ninguém nos disse nada. Passámos ilesos. ”Sai-se de Alte com o cheiro da flor de laranjeira. O céu está negro mas dizem que hoje não chove. Pássaros a cantar, galos a cantar, uma moto a passar ao longe. Algumas casas têm sapos de loiça à porta e já sabemos o que isso quer dizer – nem sempre os forasteiros são bem-vindos, sobretudo se forem de etnia cigana. Caminha-se um pouco com a auto-estrada à direita, mais adiante pela estrada fora, com carros a passar depressa. Compensa a entrada na floresta com a ribeira Meirinho ao lado. Parece Sintra, com musgo e tudo. Com a proximidade de Messines começa a aparecer o grés, que contrasta com as paredes brancas ou por caiar. A Igreja Matriz tem a sua imponência, com a sua fachada barroca e as colunas em toros torcidos. A caminhada continua. Havendo calor, será que se resiste a um mergulho na barragem do Funcho? Um espelho de água que nos traz o céu para a terra. Colinas de pinheiros mansos, rosmaninho roxo e verde nas bermas, a esteva por florir, o medronho já a enfeitar as árvores, mas à espera do Outono para ficar maduro. Na Quinta da Vinha, no concelho de Silves, não é medronho que se produz, mas vinho. José Manuel Cabrita seguiu as pisadas do pai, talvez a filha, Andreia, siga as suas, se o acordeão não lhe tocar mais alto. É ela quem nos acompanha na visita. Conta que o pai quis recuperar uma casta algarvia que estava em desuso, a Negra Mole, mas usam também a Castelão, igualmente algarvia, entre outras. A vinha da quinta tem 6, 6 hectares mas como isso não é suficiente para a produção – para além da marca Cabrita também sai daqui vinho de outros produtores – arrendam uma área igual de vinhas próximas. Quando entramos no “laboratório”, Joana Maçanita está a fazer testes. Conta que o lote de brancos de 2015, 100% Arinto, está em estágio em barrica – “é uma coisa única”. “Decidimos não misturar [com outra casta] porque tem muita componente atlântica. É um vinho muito giro. ” Ou seja, “não é entediante”. “De vez em quando aparecem estes vinhos assim. ”Aqui o clima é mais fresco do que em várias outras quintas do Algarve, e por isso fazem a colheita em Outubro, explica a enóloga. E as uvas resultam em vinhos com uma “concentração com elegância”. Os Negra Mole “são vinhos sem cor – há uvas brancas, tintas e rosadas no mesmo cacho”. Tem altos níveis de acidez e altos níveis de álcool, com textura, mas não demasiada, explica Joana Maçanita e o também enólogo Dinis Gonçalves. Depois de as vinhas serem abandonadas, na década de 1990, muitas cooperativas fecharam. E quando a vinha voltou a ser plantada apostou-se nas castas internacionais, “nobres”, “que se deram bem por aqui”, contam. Agora, está a voltar-se às origens. “Fomos pioneiros nisso de pegar na Negra Mole. ” Foi uma aposta com retorno pouco seguro: “Nos primeiros anos, vindimámos e eu nem sabia onde pôr o vinho. Em 2012 decidiu-se meter em barrica e ficou lá esquecido, ia sendo empurrado para o lado. Dois anos depois, fomos provar: parecia Pinot Noir!” Ainda antes de chegar ao mercado, parte do vinho já estava vendido. “O senhor Cabrita alugou uma vinha só de Negra Mole. Agora é deixá-lo fazer-se sozinho, intervir o mínimo e o vinho vai-se revelando. ”A maior parte das vendas dos Cabrita são para a região, entre 10% e 15% para exportar e 3% ou 4% para Lisboa. No ano passado, saíram daqui 20 mil garrafas de branco, 15 mil de rosé e 23 mil de tinto. Um dos restaurantes onde os podemos encontrar é A Charrete, em Monchique. O dono, José Pedro, fez de uma antiga mercearia um dos pontos obrigatórios num possível roteiro gastronómico da serra. Foi com 11 anos trabalhar para a loja – “nem dormi nessa noite com a excitação de ir trabalhar para a vila!”. Em 1974, conseguiu comprá-la com o dinheiro que tinha juntado para levar para a tropa. Quatro anos depois, a mercearia passou a bar, pastelaria, restaurante, “era tudo”. “Mas fui puxando para o lado da restauração”. Sempre com a preocupação de oferecer comida local: cozido de couve, feijão com arroz e castanhas, milhos com feijão, tudo a acompanhar carnes de porco e enchidos; bolo do tacho (acompanha com medronho e melosa). Só o pão, assado por uma vizinha em forno de lenha, servido com cenouras em azeite e alho, ou lombo de porco curado em banha vermelha, já justifica uma visita. A cozinheira, Graciete, está cá desde o primeiro dia. “Antigamente as papas de milho serviam para acompanhar tudo: figos, sardinhas, água mel, torresmos, toucinho, peixe frito”, conta José Pedro. “E à noite, o cozido de couves. Ou calatroia, com feijão e toucinho, e tudo o que se tivesse à mão. ” O porco era rei, mas nem sempre havia. Ainda hoje, contam-se as luas para fazer a matança: “Não pode apanhar a transição, senão estraga a carne. ‘Com lua cheia é boa matação’”. Era a verdadeira festa de família: “Umas trinta e tal pessoas para comer. No Natal ninguém fazia nada, ninguém ligava nenhuma. ”O anfitrião fala de outras tradições da mesa, como as “batatas de cu para o ar: cozidas, com azeite, alho, orégãos e sal, tudo a servir-se directamente do tacho [e daí o nome]. As papas de milho aqui são duras e antigamente todos comiam da plengana [malga que vai à mesa]. Quando se punha pratos comentava-se que era para controlar o que as pessoas comiam. ” Não caía bem, portanto. A saída de Monchique é quase impiedosa. Faz-se a subir, primeiro pela vila, depois por meio de sobreiros, quatro quilómetros sempre em esforço. A família que habita o Convento do Desterro convida sempre a entrar para pedir moeda no final. Está tudo em ruínas, uma desolação. Monchique é mais fresco que o resto do Algarve e aqui a Primavera chega mais tarde. Há ciprestes e sobreiros mas também muitos eucaliptos – às vezes vêem-se as feridas nas colinas provocadas pelo seu abate. É devagar que se chega à Fóia para termos todo o Algarve debaixo de olho: o da serra e o da costa. Com bom tempo vê-se até Sagres. Mas mais bonito ainda é o que vem depois. O som da água a correr (há minas por toda a parte), rosas albardeiras com fartura, de um rosa exuberante, e, de repente, parece até que estamos no Douro. São os socalcos da Moita, um espaço fora do tempo. Já houve famílias aqui, agora só ruínas: de casas, da escola, de estábulos. Imaginamos crianças a correr onde agora há vacas e cabras a pastar. Imaginamos homens e mulheres montados em burros, com frutas e legumes. Imaginamos os habitantes a imaginar o que se passaria para lá das montanhas. As longas descidas também não facilitam a vida do caminhante – mas antes para baixo do que para cima. É preciso cuidado com as pedras que fazem escorregar. Na história desta Via Algarviana já houve de tudo: pés partidos, desmaios, pés em bolha, divórcios, amigos para a vida. Chegamos a Marmelete e estão dois homens a carregar uma carrinha de caixa aberta. A mercadoria cheira-se à distância. São sacas de limões luminosos. Dos quintais saem limoeiros, todos enfeitados de amarelo vivo. Há quem faça este caminho em BTT, como José Galego, 37 anos, carteiro, sentado agora à mesa do restaurante da Paula, onde nos foi servida canja de galinha e galo de cebolada, e melosa para ajudar a digestão. José Galego veio com mais cinco amigos, um de Aveiro, outro da Amadora, os outros de Moura como ele. A primeira tentativa de o percorrer foi no ano passado, mas aconteceu um imprevisto: “Sou dador de medula óssea, e na primeira manhã do primeiro dia ligaram-me do IPO a dizer que tinha compatibilidade total com um bebé. Só atendi o telefone porque um colega ficou com a bicicleta avariada e teve de parar. No dia seguinte, a bicicleta avariou outra vez e eu decidi mesmo que ia embora. ” Meses depois, a sua mulher, que estava grávida, perdeu o filho. Agora, está grávida novamente. “Foi fazer um exame e ligou hoje a dizer que está tudo bem. ”A etapa entre Silves e Marmelete foi a mais dura. “Nunca pensei demorar tanto a fazer 45 quilómetros – mais de sete horas e meia. Já fiz 120 em menos tempo. Mas isto é uma questão de superação pessoal. Se não for duro não tem piada. Tem que ter sofrimento. ”A saída de Marmelete é marcada por um vasto eucaliptal. Muitas árvores foram arrancadas e há restos de troncos, ramos e folhas no chão. É lixo sem ser lixo. Abrem-se bem os pulmões para deixar entrar o ar purificado pelo eucalipto. Ao menos isso. Aqui a esteva tem o tamanho de homens altos. Ao longo da ribeira da Vagarosa o caminho continua fresco, apesar de a manhã estar a virar tarde. O sol não está tão generoso como na véspera. E os quilómetros vão passando quase sem darmos por eles. O vale está radioso, com os seus sobreiros de porte imperial, e a passarada parece concordar porque a sinfonia é constante. É a verdadeira música ambiente. Devem estar a chamar as fêmeas para acasalar e esforçam-se ao máximo para as convencer com o seu canto. A barragem da Bravura serve para um piquenique, com as fel da terra, umas flores cor-de-rosa, a pontilhar o caminho. À volta de Bensafrim a vegetação torna-se mais baixa, com aroeiras e carrascos. Mais ainda à medida que nos aproximamos de Vila do Bispo. Os sobreiros parecem não ter tido vontade de crescer. O solo começa a ficar arenoso, o mar vai aparecendo ao fundo. É bom chegar a tempo de jantar. No restaurante Mexelhão tudo sai das mãos treinadas da dona Teresa, mas a filha já está a aprender também. Somos servidos de percebes, xerém de lingueirão, cataplana de tamboril e torta de batata-doce. Falta muito pouco para chegarmos à costa, e a costa já veio ter connosco. Este é o celeiro do Algarve, diz-se. O vento molda tudo em volta: a vegetação rasteira, as árvores todas inclinadas na mesma direcção, as pernas a quererem voar. As searas ondulam, são um imenso mar verde. As colinas ficaram para trás, agora é só planície. E de repente uma longa linha recta em direcção ao mar. O horizonte fica no fim desta estrada. Uma curva no final e lá está o farol. Mas não vamos seguir pelo asfalto. Vamos fazer uma inflexão e entrar pelas dunas. Agora, junto a uma escarpa, o mar está a um salto. Tomilho de Sagres, esteva de Sagres, tudo é “de Sagres” por ser tão rente ao chão. Uma cegonha está no seu ninho num rochedo em frente. Um bando de gaivotas levanta voo. E num instante o farol está aqui. Mais um passo. Mais outro. E até poderia ser mais um quilómetro ou dois. Mas não é preciso. Já está. Ou como se diz na serra que não é Algarve, “tem avondo”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pode muito facilmente ser confundida com uma casa normal de uma rua banal de Bensafrim. E da janela aberta até saem vozes de mulheres à conversa como numa cozinha familiar. Mas junto à campainha há uma pequena placa a dizer “fábrica”. Sara Correia, 46 anos, é a mulher das contas; a irmã, Isabel Matos, de 55, é quem põe as mãos na massa. A grande especialidade são os Dom Rodrigo: “Como nós fazemos já pouca gente faz. ” Queima-os numa frigideira de ferro para ficarem com aquela espécie de caramelizado – a mesma há 30 anos, e que nunca foi lavada. “Não se pode. ” A limpeza é feita com a calda de açúcar que, depois de atingir uma temperatura elevada, faz libertar os resíduos; tudo isso é deitado para um alguidar com água, e a frigideira fica pronta a ser novamente usada. Isabel não precisa de balança porque já tem “a medida na mão”. Espalha os fios de ovos na palma da mão, coloca um bocadinho de ovos moles com amêndoa, fecha numa bolinha, que a seguir é posta na tal calda, que às vezes tem de ser “destemperada com um bocadinho de água”, para não ficar tão forte. O lume da frigideira tem de estar bem alto. “Os famosos Dom Rodrigo do Algarve são assim e quem não fizer assim está a aldrabar. ” Mas já poucos os fazem desta maneira porque “dá muito trabalho”. Já Isabel faz 200 por hora. No Verão são 1200 por dia. “Ela é como um polvo, faz dez coisas ao mesmo tempo”, elogia a irmã. Agora acabou de recuperar uma receita antiga das queijadas de São Gonçalo. Foram três tentativas até acertar. “Nem fazemos análises ao colesterol para não nos assustarmos”, brinca Sara. As receitas são algarvias, mas as amêndoas vêm da Califórnia. “Já não há ninguém para as apanhar, está tudo ao abandono. Mas não é igual, porque a nossa tem um finzinho amargo que é logo diferente e nos doces é uma maravilha. ”Fábrica de Doces Regionais Sara Correia Rua de Sto. António, 16 Tel. : 914305812Aparecemos sem avisar em casa de Maria Nunes, tecedeira, em Monchique. Tem um enorme diospireiro à porta, e dezenas de sobreiros nas traseiras. Queixa-se que lhe falta a saúde, aos 80 anos. Mas arranja tempo para mostrar como se fia o linho e trabalha no tear. “Isto não se aprende em Coimbra, isto aprende-se mais uns com os outros. ” Já nem se lembra de quando começou a fiar e a sentar-se ao tear. “Faço desde há muito tempo. Desde os meus princípios. O meu brincar com bonecas era quase isto. Uma pessoa vai arranjando um grande caldo destes trabalhos. ” Aprendeu com a mãe, que aprendeu com as tias. Tem também duas senhoras agora a aprender com ela. “Estou muito feliz por isso porque era um sonho que eu tinha, alguém ir seguindo estas coisas que estão em dias de extinção. Se fosse muito lucrativa se calhar havia mais gente a querer aprender. Mas é mais uma questão de gosto. ”Prende o cabo da roca às calças. Enrola o fio ao fuso para mostrar como se faz. O linho parece uma madeixa de cabelo loiro, a enrolar-se à volta, como algodão doce. Junta o fio que acabou de fazer a outro já feito. “Onde é que o colei? Eu também não sei. ” Faz-se um novelo. E repete: “Isto é uma coisa que está em dias de extinção e é muito importante as pessoas conhecerem, porque daqui faz-se o pano, a toalha, o lençol. ”Vai buscar o sarilho: “Quando tiver muito fio deste vou metê-lo aqui, que é onde faço a meada. Depois é cozido, como quem coze um comer, lavado com cinza, vai a corar e fica assim com esta cor, creme. ” São os novelos que saem daqui que vão para o tear. Nem sempre trabalha em linho, às vezes usa algodão, mais barato. “Depois as pessoas não me compravam porque um estava dentro do conhecimento, outro não estava, e achava que era muito caro, porque estamos em dias de pouco dinheiro. . . Faço uns paninhos assim de linho, de tabuleiro, tenho vendido a dez euros. Mas não me paga muito, é mais o gosto de fazer aquilo. Faço os possíveis. É como se costuma dizer: ‘Onde se chega não é curto’. ”Gosta de tudo o que a serra tem para dar. “O litoral não tem a ver com a minha natureza. ” Otília Cardeira, 65 anos, é presidente da junta de freguesia do Cachopo e uma apaixonada pelo campo à sua volta. Montou um rancho, um grupo de cantares. Montou um quiosque de produtos artesanais. Montou um pequeno museu da tecelagem. É uma sala de uns 40 metros quadrados, tecto em canas e barrotes de madeira como se fazia antigamente, chão de tijoleira, teares, sacolas, alforges e cachecóis pendurados na parede, uma descrição do tratamento do linho, da planta até à peça terminada (tem um vaso à porta com alguns pés e um campo inteiro dele nas redondezas). Quando entrámos no museu, estava a trabalhar num tear, já com mais de 60 anos – o outro ao lado, com mais de 80, já está parado. “Estou no enfiamento da teia, a montar a teia. Vou fazer vários cachecóis. ” Esta é a sua terapia. “Todos os dias tenho que vir aqui fazer qualquer coisa. ” Dá formação a quem se interessar, mas poucos se interessam. “Tenho tentado passar tudo o que me ensinaram para ver se esta actividade não desaparece. Os mais jovens foram para fora. Os poucos que há eram a minha esperança. Mas fala-se tanto em apoio ao artesanato e no fim fica tudo em baldes de caldeirão. ”Ela também não nasceu ensinada. Trabalha na tecelagem desde 1986, com a Associação In Loco (de desenvolvimento local). “Para se fazer um projecto tem de haver dinheiro de lado, porque o financiamento nunca vem a horas. ” A burocracia pesa. Mesmo assim, insiste com os jovens que poderiam investir em áreas ligadas à terra. “Aqui a natureza ainda está intacta, a flora, a fauna. Temos recursos muito bons. . . Mas é preciso acordar cedo, fazer isto ou aquilo, e eles já não estão para isso. ” Estão mais virados para os computadores. “Eu também estou. Já não vivia sem isso. ” Mas há coisas que a desgostam. “A lã está a ser mal aproveitada na nossa zona. Não há quem agarre o linho, como eu agarrei: do semear até à peça. ”A escola onde Leta está a trabalhar, na Torre, próxima de Alte, é a mesma onde aprendeu a ler, escrever, fazer contas. Mas o que se passa agora na sala de aula é uma coisa bem diferente. Ao centro, há uma enorme mesa cheia de bonecos, quebra-cabeças, brincos, pulseiras, colares, tudo em madeira. Leta, ou mais formalmente, Alierte Graça, juntou-se a Ana Maria e Silvina e as três asseguram produção constante nesta oficina. Por isso lhes chamam “as moças da Torre”. A madeira dos brinquedos vem de Messines, mas para a bijuteria basta sair para o campo: ramos de urze, esteva, sobreiro, oliveira, marmelos que não chegaram a crescer, anis, laranjas, tojo, alfarrobeira… Podemos enfeitar-nos com a serra quase toda. Leta faz hoje 64 anos, mas os seus olhos azuis e pele lisa parecem desmenti-la. Só o cabelo está branco. “Eu alguma vez pintava o cabelo? Depois deixava de ser eu. ” As três mulheres contam-nos animadamente como regressaram à escola passados tantos anos. Em 1989 fizeram um curso profissional, “só para o monitor ganhar dinheiro”. “A primeira coisa foi fazer a bancada e os bancos para a gente se sentar. ” Ana Maria diz que “nunca tinha pregado um prego”. E era preciso três pessoas para fazer uma roda: uma segurava a tábua, a outra apontava a broca, a terceira puxava a manivela para baixo. “A gente fez uns comboios de encaixar e aquilo deu tanta dor de cabeça! Eram uns 15 dias sempre com o mesmo comboio. ” Agora basta um dia. No quadro de ardósia na parede estão mensagens dos visitantes, a maioria turistas estrangeiros. Há um pouco de tudo: Filipinas, Bangladesh, Madagáscar, Tanzânia, Senegal…José Salvador também é conhecido como “o homem das cadeiras de Monchique”. Os romanos é que foram os criadores destas cadeiras de tesoura, que sobreviveram até hoje. “Mas fazer o que se fazia antigamente não me diz muito. Tive que ir mais longe. ” E o que ele fez foi pôr-lhes umas costas, mais ou menos floreadas (“as costas dão um conforto”), construí-las em miniatura, ou numa versão gigante, transformá-las em mesa, ou banco, sem braços. . . “Criei trinta e tal modelos diferentes. ” Os mais especiais, ele assina. Tornou-se carpinteiro aos 13 anos e já leva 60 de ofício. “O meu pai era serrador, eu estive sempre ligado à carpintaria: oficinas, cofragens, portas”, diz. “Nasci com os dedos na madeira. ” Aos 14 ficou sem a ponta de um deles, que cortou numa serra. “A partir da década de 1960 começou-se a falar de artesanato – pensei que me havia de dedicar a este trabalho. Como as cadeiras são dobráveis, os turistas compravam-nas muito. Depois, os portugueses começaram a gostar” e os clientes aparecem agora de todo o país. O negócio já foi mais animador. “Antes eram 12 ou 13 a fazer cadeiras, agora somos dois ou três”, diz na sua oficina, enquanto encaixa a grande velocidade todas as peças que formam esta “tesoura”. “Mas ainda não deitei a toalha ao chão. ”Alcoutim: Casa dos Avós (Tel. : 967 531 064; visitaralcoutim@gmail. com) Balurcos: Casa do Vale das Hortas (Tel. : 281 547 035; 962 931 514) Furnazinhas: Casa do Lavrador (Tel. : 281 495 748 / 933 200 541 /915 929 654) Vaqueiros: Casas d’Aldeia Cachopo: Centro de Descoberta do Mundo Rural, Casas Baixas (Tel. : 289 840 860; 961 478 155) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia, EN2 (Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. : 289 489 179) Alte: Alte Hotel (Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Casa Bartholomeu (Tel. : 965 189 375/ 969 426 599; cafeacademicomessines@gmail. com) Silves: Hotel Colina dos Mouros (Tel. : 282 440 420; geralreservas@colinahotels. com) Monchique: Villa Termal das Caldas de Monchique (Tel. : 282 910 910) Marmelete: Centro de acolhimento de Marmelete (Tel. : 282 955 121 / 968 702 240; info@jf-marmelete. pt) Bensafrim: Quinta Gonçalves (Tel. : 966 672 461; geral@quintagoncalves. pt) Vila do Bispo: Hotel Mira Sagres (Tel. : 282 639 160; naturimar@gmail. com)Alcoutim: Restaurante Camané (Praça da República; Tel. : 964 108 585) Balurcos: Taberna do Ramos (EN 122 Cruzamento das 4 Estradas; Tel. : 962 803 673) Furnazinhas: Casa do Lavrador (serve jantar aos hóspedes) Vaqueiros: Casa de Pasto Teixeira Cachopo: Restaurante Charrua (Rua Padre Júlio de Oliveira, 44; Tel. : 918 465 789) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia (EN2, Barranco do Velho; Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. . 289 489 179; só aos hóspedes e por encomenda) Alte: Restaurante “A Cataplana” (Alte Hotel; Montinho; Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Restaurante Académico (Rua Cândido dos Reis, 44; Tel. : 282 339 253) Silves: Em Silves existe um grande número de restaurantes ao dispor dos visitantes. Monchique: Restaurante A Charrete (Rua Dr. Samora Gil, 30 e 34; Tel. : 282 912 142; Encerra às quartas-feiras) Marmelete: Snack-bar Restaurante Luz (Largo Coronel Artur Moreira; Tel. : 282 955 244; Aberto todos os dias) Bensafrim: Restaurante O Koala (Rua do Poço, 2; Tel. : 282 687 594; Encerrados às segundas-feiras) Vila do Bispo: Restaurante O Mexilhão (Rua 1. º de maio, 32; Tel. : 282 639 108; Aberto todos os dias)
REFERÊNCIAS:
Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra. (...)

Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra.
TEXTO: Domingos Teixeira trabalha e vive nos Estaleiros Navais de São Jacinto desde 4 de Janeiro de 1977. Regressou de Moçambique em Agosto do ano anterior e, quatro meses depois, era um dos mais de 800 operários da grande empresa fundada por Carlos Roeder. Um acidente de trabalho impediu-o de manobrar as máquinas que moldam o aço, e fizeram-no porteiro, profissão que manteve toda a vida. Ainda hoje conserva a casa que lhe foi atribuída e a guarita de porteiro, logo à entrada do gigantesco edifício estrategicamente situado entre o mar e a ria. “Nunca daqui saí. Ia para onde?”, diz Domingos, 71 anos, metendo a chave na porta para guardar uma serra eléctrica. Lá dentro vêem-se alfaias de jardinagem, ferramentas, o atrelado de uma lancha. “Sempre tive o hobby da jardinagem, que agora, que estou reformado, exerço para fora, em várias casas de pessoas conhecidas. Guardo aqui tudo, a minha vida está centralizada aqui. Nunca ninguém me incomodou”. O reconhecimento e devoção para com os Estaleiros constituem quase uma filosofia de vida para Domingos Teixeira. Foi aquela empresa, que ali começou a operar em 1940, que o recebeu no país, lhe deu trabalho, casa, assistência de saúde, instrução e formação aos três filhos. Até a filha ali fez um curso de soldadura e serralharia. Não obstante ainda lhe dever 20 mil euros em salários, a empresa continua a merecer o respeito de Domingos, não nos actos de alguns dos seus agentes, mas na sua incólume reputação de entidade superior às contingências. Domingos nunca se considerou aliás o porteiro de um edifício, de uma administração, de uma entidade patronal. Ele sempre foi o porteiro de uma ideia. De uma época feliz, de uma certa concepção de dignidade, de um sentimento de solidez e de futuro. Os portões que guardava eram dessa realidade, da actividade enérgica que nunca parava, do espírito de sacrifício e de cooperação dos trabalhadores, do fundador, Carlos Roeder, e dos seus herdeiros na propriedade e gestão da empresa, João dos Santos, Jorge Pestana, Henrique Moutela, Vale Guimarães. Abandonar o seu posto seria renegar e trair um mundo que guardou toda a vida. Como se separar-se da actividade frenética dos Estaleiros fosse pior do que morrer. E a verdade é que a actividade, essa, nunca parou. Apenas mudou em tipo, estilo, protagonistas e natureza. Em São Jacinto, as praias têm uma escala diferente de todas as outras na costa portuguesa. São imensas e vazias, prolongadas por extensões de dunas, a perder de vista. Inseridas na Reserva Natural das Dunas de São Jacinto, constituem, com os pinhais e a Ria, um universo selvagem, bravo e enigmático. Há trilhos, marcados por sinais feitos de troncos, pedaços de redes e conchas, que ligam a orla da Ria aos areais junto ao mar. Caminhos na floresta, de vinte minutos a pé, furados nos arbustos, nos troncos retorcidos e nas camadas densas e esfareladas de trufas, húmus costeiro, desfeito e queimado. Não há fronteira definida entre as dunas e a praia. A imensidão branca parece levitar numa névoa quente de reverberações azuis, que mergulha na areia e a levanta. O mar é aterrador. As ondas não correm na mesma direcção, não se alinham nem sucedem de maneira prenunciada. São anárquicas, cruzam-se e atropelam-se, rebentam umas em cima das outras. O rugido do mar não vem da superfície, não brota do que se vê, mas da profundidade. Nasce de dentro da própria areia, fazendo tudo estremecer e estalar como um vulcão de vento e espuma. Chega-se aqui por uma estrada à beira da ria, numa estreita língua de terra, desde o Furadouro. Com Vila do Conde para trás, segui por estradas locais, por Mindelo, Vila Chã, Labruge, Lavra. As praias confluem com campos de cultivo. De súbito, no meio de uma falésia, junto a Labruge, avista-se a capela de S. Paio, num campo verde junto à água. E a praia de S. Paio, um lugar de beleza única. Depois do Porto, blocos de apartamentos, prédio e moradias, entre passadiços sobre a areia. Estrada Nacional 109, semáforos, filas de trânsito, oi mar sempre perto. A partir de Ovar, a estrada nacional 327. Furadouro à direita, a Ria à esquerda, até São Jacinto. Olhando em redor, vêem-se duas autocaravanas e três ou quatro tendas. É verdade que o parque não tem restaurante, nem piscina. Mas fica num amplo pinhal, entre a ria e a praia, com um caminho directo para o mar, por entre a vegetação da Reserva Natural. Seria uma base ideal para turistas da Natureza, observadores de aves, amantes de praias selvagens, de pesca, de windsurf ou kite surf. Mas onde estão eles?Toda a região, desde o Furadouro, a língua de terra que passa pela Torreira e a praia de Monte Branco, ao longo da Ria e do canal de Ovar, até às lagunas da Gafanha da Nazaré e de Ílhavo, é de uma beleza irrepreensível. É singular e variada, amena e aprazível. Mas quase não tem turismo. Estatisticamente, aumentou o número de visitantes estrangeiros em Portugal. Mas os locais escolhidos são Lisboa, Porto, Algarve e pouco mais. O resto do país, incluindo zonas que já atraíram muito turismo, no passado, está agora quase vazio. O movimento reduz-se aos veraneantes portugueses e espanhóis de fim de semana e os emigrantes de férias. “Há muitos turistas, mas são todos low cost, não quem gastar dinheiro”, diz João Gomes, gerente do parque de campismo de São Jacinto, que tem vindo a dispensar pessoal nos últimos anos, e fecha no Inverno, ao contrário do que era habitual. “Mesmo aqui no campismo, que é mais barato, tenho visto as pessoas a perguntarem os preços na recepção e irem embora, por acharem caro”. A praia de São Jacinto, uma das mais deslumbrantes do país, está quase vazia. O bar das dunas, que tinha a concessão da praia, já não abre há dois anos. São obrigados a manter, durante a época balnear, uma certa estrutura, incluindo dois nadadores-salvadores, o que não é possível, com o actual reduzida quantidade de banhistas. “Há dois problemas: A Reserva natural, que é muito limitativa, e o ferry”, diz Raul Valentim, gerente do Ondas Bar, junto à praia de São Jacinto. “Não há estrada directa para vir da zona de Aveiro para aqui, não há uma ponte. E o ferry é caro (15 euros, ida e volta). E o último barco da noite é pouco depois das 10 horas, o que impede que alguém venha aqui jantar, com calma”. João Nabais, gerente do restaurante O Terminal, não tem nenhuma esperança de que se venha a construir uma ponte sobre a Ria. “Viria de onde? Da Gafanha, da zona de Aveiro? As autoridades da Reserva nunca o autorizariam. A ponte é um sonho que nunca se vai realizar”. O Terminal situa-se na nova zona marginal de São Jacinto, inaugurada o mês passado. É um projecto Polis Litoral, co-financiado pela União Europeia, integrado no “reordenamento e requalificação da Ria de Aveiro”, e que inclui nova pavimentação da zona ribeirinha, marina, etc. “Espero que esta estrutura venha trazer mais gente a esta zona”, diz João Nabais sem muita convicção. “Em anos anteriores, havia muitos turistas franceses. Deixou de haver, e agora estão a voltar, mas ainda poucos. O movimento aqui é apenas aos fins-de-semana. No Inverno fica tudo parado. Sobrevivemos enquanto houver a boa vontade e compreensão de alguns fornecedores, que esperam pelo Verão para serem pagos”. Não havendo ponte, que romperia o isolamento da região, o ferry deveria ser mais barato, mais moderno e mais rápido. “Era preferível um barco mais pequeno, mas que fizesse a viagem mais vezes”. São Jacinto é uma zona esquecida, diz o empresário. “Tirando a Torreira, conhecida como o Algarve do Norte, tudo o resto está morto. Esta região está muito mal trabalhada em termos de turismo. Todo o esforço de promoção se concentra na faixa entre a Costa Nova e a Figueira da Foz. Nós somos o parente pobre do turismo”. Luís Figueiredo, empresário de eventos da zona de Coimbra, ficou admirado com a ausência de estruturas hoteleiras nesta região. “Não há um hotel, um complexo de apartamentos. Nada que atraia as pessoas. Como é possível vir para aqui? Ninguém conhece esta zona. Eu próprio, que sou de Coimbra, nunca aqui tinha vindo”. Luis Figueiredo quis organizar um festival de Verão na zona de Aveiro. Contactou a Câmara Municipal, que lhe recomendou São Jacinto. E começou a trabalhar, mas não tem sido fácil. O Tugafest — o festival mais português de Portugal, vai realizar-se de 19 a 23 de Agosto, com dois palcos, Quim Barreiros, José Cid, Ana Moura, Herman José e os Xutos e Pontapés, na praia de São Jacinto. Mas só duas semanas antes a divulgação começou a ser feita. “É um festival dirigido principalmente aos emigrantes, com artistas portugueses”, diz Figueiredo. “Queremos puxar ao português, ao contrário dos outros festivais de Verão. E apostamos em ter cá umas 50 mil pessoas, atendendo a que temos em cartaz os principais nomes portugueses”. Mas admite que se tiver metade desse número de espectadores já será um êxito. As entradas no festival são pagas, e “as pessoas estão habituadas às festas organizadas e pagas pelas Câmaras, que são de graça. Quase nem consegui ter uma exposição de artesanato, porque os artesãos costumam ser subsidiados pelas Câmaras. Quando lhes disse que não vinham ganhar, recusaram o convite”. Perto da data do Tugafest, aliás, há um concerto de Tony Carreira, de entrada gratuita. “É difícil ter alguma iniciativa e organizar alguma coisa, num mundo regional subsidiodependente”. Às 7 da manhã, com a maré baixa, a Ria já está cheia de gente. Na estrada da Torreira a São Jacinto ou a da outra margem, no Cais da Bestida, podem ver-se centenas de vultos mergulhados na água até à cintura, empunhando redes e ancinhos, na apanha da amêijoa. Rui, a mulher e um filho têm a sua própria zona, não longe da ponte que faz a ligação à estrada de Estarreja. É uma área de bancos de areia e covas de lodo, que eles perscrutam com as mãos. “Nunca pensei voltar a isto. É uma vida duríssima. O meu filho ajuda-me só no Verão”, diz Rui, que trabalhava num restaurante que fechou. “Andamos aqui porque não há nenhum outro trabalho na região”. Rui e a família apanham um máximo de 10 quilos de amêijoa num dia, que vendem a 3 euros o quilo a um intermediário. São uma das muitas famílias que vêm para a Ria todos os dias das 7 da manhã até ao meio-dia, quando a maré sobe. “Eu só venho apanhar para mim, para uma caldeirada”, diz João, que está reformado e já andou nos navios do bacalhau. O seu método é o mais rudimentar: quando detecta uma quase imperceptível depressão na areia, enfia o dedo indicador e, se a sua intuição não falhou, desenterra uma amêijoa. Geralmente uma “japónica”, uma espécie com manchas na concha que surgiu nas Ria nos últimos anos. Com mais sorte, apanha uma “preta”, ou mesmo uma “rainha”, que têm mais valor comercial. Conta que os intermediários que compram toda a amêijoa a vendem para Espanha. É um negócio ilegal, tal como a apanha da amêijoa, quando não se possui uma licença específica. Todos os apanhadores de amêijoa que se vêem na Ria são ilegais. Por vezes, a Guarda surge inesperadamente, na estrada da Bestida, e leva muitos deles presos. Mas a actividade compensa, mesmo com as multas, explica João, antes de se dirigir à pressa para a sua motorizada, estacionada na estrada à beira da Ria. “Não quero conversas com eles”, diz, a fugir do grande grupo que se dirige para a margem. São ciganos, que “varrem”, em grupos de 10 ou 15 elementos, grandes extensões de Ria. Usam ancinhos, redes e outras ferramentas ilegais, e, segundo João, controlam as melhores zonas. “Hoje foi um dia normal. Apanhámos uns 30 quilos”, diz Alexandre, um jovem cigano integrado num grupo de seis, descarregando a colheita do dia nuns cabazes encaixados na traseira de uma carrinha. “Toda a nossa família vive da amêijoa. Não se fica rico, mas é o que há para fazer”. Rui, que traz da água o filho de 12 anos às cavalitas, assegura que não há na região outra fonte de rendimento além da apanha de bivalves na Ria. “Hoje em dia, posso dizer que toda a região, da Murteira a São Jacinto, vive da amêijoa”. Foi em 2006 que os Estaleiros Navais de São Jacinto, com os seus 70 mil metros quadrados, situados no braço da ria que forma o canal de São Jacinto até Ovar, com acesso directo à barra de Aveiro, fecharam definitivamente as portas. Carlos Roeder, um empresário formado em engenharia na Alemanha, criou a empresa em plena Segunda Guerra Mundial. Durante o Estado Novo, os Estaleiros tiveram de lutar muitas vezes de forma desigual, pelo favorecimento oficial, devido à tendência oposicionista do seu fundador e proprietário, Carlos Roeder. Mas a empresa impôs-se pela habilidade de manobra dos seus administradores, e pela função social que desempenhou na região, através da Fundação criada por Roeder, que financiava a Saúde, refeitórios, habitação, e os estudos dos operários e seus filhos. A empresa faliu, numa confusão de dívidas, penhoras, falcatruas. Segundo Domingos, as Finanças, para recuperarem algum dinheiro, venderam tudo o que puderam, em leilões, ao desbarato. “O sucateiro Godinho é que fez os melhores negócios. Veio cá e comprou o que pôde. Comprou uma máquina de 120 mil contos por 120 contos. E mais 43 toneladas de aço para construção de navios por 40 contos”. Depois desta fase começou o saque. Como o edifício tivesse ficado abandonado, os homens da terra vieram com carrinhas roubar o que puderam. “De início tinham cá um homem a tomar conta, mas como não lhe pagavam, ele não fazia nada”. Tal como não fazia ele, Domingos, o porteiro, que deixou roubar tudo o que foi deixado no complexo de edifícios, desde mobiliário a máquinas, materiais e documentos. “Eram pessoas conhecidas, de cá da terra, que estavam desempregadas, precisavam de dinheiro para as famílias. Levaram tudo, mas não tocaram na minha casa”. Tal como acontece com os abutres, o saque teve várias fases, consentâneas com as fases da própria crise da região. Depois dos bens mais ligeiros, começaram a chegar os camiões, para carregar aço, madeiras e pedra. “Levaram um cofre de 1500 quilos, que levantaram com uma grua para um camião”, recorda Domingos, que assistiu a tudo, à porta de casa. Quando parecia já não haver nada para levar, vieram com equipamento de demolição derrubar paredes e telhados, para vasculhar todo o interior. E para recolher telhas e pedra. Há rombos nas paredes que parecem causados por bombas. Até que ficaram apenas as vigas de ferro da estrutura do edifício. “Vieram com maçaricos e máscaras, fundiram, partiram, depois prenderam as vigas a camiões e arrastaram-nas pela estrada”. O estado de destruição e ruína em que se encontra hoje o edifício é tal, que, conta Domingos, equipas de cinema têm vindo rodar filmes de terror, e os militares da unidade de São Jacinto vêm fazer treinos com simulação de situações de guerra. Domingos, apesar de tudo, nunca saiu da sua casa. Dos estaleiros, já nada existe, além do porteiro, que é também a sua testemunha e o seu historiador. “Mas quem sabe tudo sobre os Estaleiros, porque estudou o assunto, é o senhor Libério, que já morreu, mas escreveu um livro”, recomenda Domingos. A viúva de Libério Pereira, Maria José da Cunha, de 77 anos, vive numa vivenda ali perto, com os netos, ambos desempregados. “Faz hoje um ano que ele morreu”, diz ela. O marido foi torneiro-mecânico nos Estaleiros, arte que aprendeu lá. Tinha vindo da Figueira da Foz com o pai, que veio trabalhar com os militares da Marinha. Os pais de Maria José vinham de Aradas, e tinham uma tenda de pão, que fornecia também a base militar. O avô materno viera para a região para trabalhar na safra do caranguejo, que existia na ria antes de se descobrir a amêijoa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A família trabalhou, progrediu e estudou graças aos Estaleiros de São Jacinto e à Fundação de Roeder. Em demonstração de gratidão, Libério e a mulher compuseram canções e escreveram peças de teatro, que representavam na escola local. E Libério escreveu um livro, todo em verso, sobre São Jacinto e os Estaleiros. Uma espécie de epopeia, que foi editada pela Junta de Freguesia e esgotou três edições.
REFERÊNCIAS:
Vietname: Os filhos do pó
Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”. (...)

Vietname: Os filhos do pó
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 40 anos saía da antiga Saigão o último contingente militar americano. Para trás ficava um país com as marcas da guerra e muitos filhos, conhecidos como “bui doi”, “filhos do pó”.
TEXTO: Os filhos abandonados pelos soldados americanos no Vietname cresceram com o inimigo no rosto, foram ostracizados, muitos acabaram nas ruas como sem-abrigo. Uma americana-asiática criou a Operação Reunificar e acredita que testes de ADN podem ser a última esperança para juntar pais e filhos. Mas nem todas estas histórias têm um final feliz. PUBVo Huu Nhan estava no seu barco a vender legumes no mercado flutuante no delta do rio Mekong quando o telefone tocou. A pessoa que lhe ligava dos Estados Unidos tinha uma notícia estrondosa para lhe dar: uma base de dados de ADN ligava Vo Huu Nhan a um veterano da guerra no Vietname que poderia ser o seu pai. Nhan, de 46 anos, sabia que o pai tinha sido um soldado americano, que se chamava Bob, mas pouco mais. “Estava a chorar”, lembrou-se recentemente Nhan. “Ao longo de 40 anos, não soube nada do meu pai, e estive finalmente com ele. ”Mas o caminho para a sua reconciliação não tem sido fácil. Os resultados positivos do teste de ADN desencadearam uma cadeia de acontecimentos que envolviam duas famílias separadas por 14 mil quilómetros e a doença do veterano, Robert Thedford Jr. , vice-xerife reformado do Texas, tem dificultado o processo. Quando o último contingente militar americano deixou a antiga Saigão — actual Cidade de Ho Chi Minh — entre 29 e 30 de Abril de 1975, deixou também um país com as cicatrizes da guerra, um povo sem saber do seu futuro e milhares de filhos. Estas crianças — metade negras, metade brancas — foram fruto de ligações amorosas com empregadas de bar, com “hooch” (como eram conhecidas as vietnamitas que limpavam as instalações militares americanas), com engomadeiras e com as mulheres que enchiam os sacos de areia que protegiam as bases americanas. Chegam agora à meia-idade com histórias tão intricadas como as dos dois países que lhes deram vida. Cresceram com o inimigo no rosto, foram cuspidas, ridicularizadas, sovadas. Foram abandonadas, enviadas para longe para viverem com outros membros das famílias ou vendidas como mão-de-obra barata. As famílias que ficavam com estas crianças eram muitas vezes forçadas a mantê-las escondidas e a raparem-lhes os cabelos louros ou os caracóis que as denunciavam. Algumas foram enviadas para programas de reeducação em campos de trabalho forçado ou acabaram como sem-abrigo a viver nas ruas. Eram conhecidos como “bui doi”, o que significa “filhos do pó”. Quarenta anos depois, muitos continuam no Vietname, demasiado pobres ou sem qualquer prova que lhes permita candidatarem-se ao Amerasian Homecoming Act, uma lei de 1987 que deu estatuto de imigrante americano aos filhos de soldados americanos. Agora, um grupo de americano-asiáticos (amerasian, na expressão inglesa que resulta da fusão das palavras “americano” e “asiático”) acaba de se lançar numa última tentativa para reconciliar pais e filhos com o apoio de uma nova base de dados de ADN num site de genealogia. Os que ficaram para trás têm pouquíssima informação sobre os seus pais — a maioria da documentação e das fotografias foram queimadas sob o regime comunista e as memórias foram sendo apagadas. É por isso que a única esperança está nos testes de ADN. É Primavera na Cidade de Ho Chi Minh. As árvores de alperce, símbolo do Festival de Primavera de Tet (que marca o início do calendário lunar), estão em flor. Um sem-fim de motociclos serpenteia entre o tráfego automóvel. Lojas de moda como a Gucci cintilam ao lado de cadeias de restaurantes da KFC. Pouco ou nada resta da presença americana do passado, excepção para um helicóptero enferrujado no pátio do museu dedicado à glória comunista. Mas os segredos de família estão enterrados como minas terrestres. A instrutora de Pilates de New Jersey Trista Goldberg, de 44 anos, orgulha-se de ser americano-asiática e é a fundadora da associação Operation Reunite (Operação Reunificar). Em 1974, foi adoptada por uma família americana e em 2001 descobriu a sua mãe biológica. Há duas primaveras reuniu 80 pessoas para fazerem testes de ADN numa casa na Cidade de Ho Chi Minh. Assim, Trista espera conseguir completar o processo de 400 pessoas que ainda têm pendentes as suas candidaturas a um visto americano. “Bastava uma reviravolta do destino e também eu seria uma dessas pessoas deixadas para trás”, diz. Mais de 3 mil órfãos vietnamitas foram retirados do caos que se viveu nos últimos dias da guerra. A vida mudou com a lei de 1987, que permitiu a 21 mil americano-asiáticos e mais de 55 mil membros das suas famílias ficarem nos Estados Unidos. Os “filhos do pó” tornaram-se de repente “filhos de ouro”. Houve vietnamitas com posses a comprar americano-asiáticos para logo a seguir os abandonar mal chegavam aos Estados Unidos, diz Robert S. McKelvey, antigo marine e psiquiatra infantil, autor de The Dust of Life: America’s Children Abandoned in Vietnam (numa tradução literal “Os Filhos do Pó: As Crianças da América Abandonadas no Vietname”). Foi em parte por causa de fraudes como esta que os Estados Unidos apertaram as regras de acesso à imigração e em resultado a atribuição de vistos teve uma descida drástica. No ano passado, foram atribuídos 13. Nhan viajou de casa, na província de An Giang, até à Cidade de Ho Chi Minh para a sessão de recolha de ADN organizada por Trista Goldberg. É um homem pacato, um pai de cinco filhos, com a 3. ª classe, um sorriso largo e orelhas de abano. Quando ele tinha cerca de dez anos, a mãe disse-lhe que era filho de um soldado americano. “Por que é que os miúdos passam a vida a gozar comigo? Chateiam-me tanto que às vezes fico com vontade de lhes bater”, dizia Nhan à mãe. “Ela fez uma pausa e explicou-me que eu era ‘mestiço’. Parecia triste, mas os meus avós disseram que gostavam de mim na mesma, que isso não interessava. ”Depois de feitos os testes de ADN, Nhan e os outros aguardaram para ver como esta nova tecnologia os poderia levar ao sonho americano. No Outono, Louise, a mulher de Bob Thedford, uma entusiasta de genealogia, acedeu à sua conta pessoal no site da Family Tree DNA (empresa que analisa os genes das pessoas para determinar a sua ancestralidade e que está a colaborar com o projecto de Goldberg) e teve uma grande surpresa. Havia novas informações sobre o seu marido, um link pai-filho. O filho era Nhan. Há muito que Louise suspeitava de que o marido poderia ter tido filhos nos seus tempos de soldado no Vietname, no final dos anos 1960. Pouco tempo depois de estarem casados, Louise tinha encontrado na carteira do marido a fotografia de uma mulher vietnamita. A notícia acabou por chocar mais a filha, Amanda Hazel, com 35 anos, uma assistente jurídica em Fort Worth. “Para ser honesta, devo dizer que a primeira coisa em que pensei foi: têm a certeza de que isto não é um esquema?”, recorda Hazel. Pouco tempo depois, chegaram as fotografias de Nhan. Ele era igualzinho ao avô, Robert Thedford Sr. , um veterano da Marinha que combateu na II Guerra Mundial. “És tal e qual o teu avô PawPaw Bob”, disse Bob ao filho. Thedford, o robusto vice-xerife reformado do condado de Tarrant, no Texas, conhecido como “Vermelho” por causa da cor caju dos seus cabelos, conheceu a mãe de Nhan quando estava na base aérea de Qui Nhon. Tem uma vaga memória dela e a família diz que raramente falava sobre a guerra. “Ele nunca se sentava para lamentar [a guerra]”, recorda agora o enteado, John Gaines. “Quando lhe perguntava se tinha matado alguém, ele respondia: ‘Sim, mas tens de entender que havia razões por detrás disso e que fazia parte da guerra. E não vou ficar para aqui sentado a explicar-te o que é que isso significa’. ”Enquanto Thedford ensinava a filha Hazel a andar de bicicleta e a nadar no Texas suburbano, Nhan crescia na quinta de porcos dos avós, nadava no rio e era apanhado a roubar mangas. A disparidade entre estas duas vidas continua a atormentar Thedford. Diz Gaines: “Ele continua a dizer: ‘Eu não sabia’. ” “Eu não sabia como poderia estar lá, ou teria encontrado maneira de estar. Só vos posso dizer que me surpreendeu e odeio tê-lo descoberto 45 anos depois. ”Seguiram-se várias tentativas de contacto, apesar de Nhan não falar inglês nem ter computador. Houve quem tivesse servido de intermediário para a troca de emails; houve trocas de encomendas. Nhan mandou sandálias feitas por ele e os chapéus típicos em cone de quem trabalha nos arrozais; os Thedford mandaram uma nota de 50 dólares e produtos dos Texas Rangers. Robert Thedford estava sempre a perguntar-lhe: “Precisas de alguma coisa?” Depois, houve a primeira e emotiva chamada por Skype, e os dois choraram quando se viram pela primeira vez. “Ele parecia-se comigo”, diz Nhan. “Senti que fiquei imediatamente ligado a ele. ” Mas em Agosto último, Thedford, com 67 anos e que já tinha recebido tratamento por causa de um cancro de pele, voltou a ficar doente. O cancro tinha alastrado e foi submetido a uma série de intervenções cirúrgicas, a mais recente a 3 de Abril. À medida que a família do Texas ia tratando e cuidando dele, ia também descurando a do Vietname. Recentemente, Nhan e Hazel falaram por Skype, ele num velho e poeirento computador nas traseiras da retrosaria de um amigo, na Cidade de Ho Chi Minh, ela na sua sala com os cães a correr por ali à volta. Nhan perguntou como estava o pai. “Tem passado bem. Já se consegue sentar. Estão a tratar dele. Sinto-me mal por não te ligar, mas a mãe e o pai pensam em ti e falam muitas vezes de ti. ” Enquanto estava no hospital, Thedford mostrou fotografias de Nhan às enfermeiras, dizendo: “Este é o meu filho no Vietname. ”Em Dezembro de 2013, Nhan levou os resultados dos testes de ADN ao consulado americano na Cidade de Ho Chi Minh, para que o seu processo fosse reavaliado. Não obteve qualquer resposta até agora. Um porta-voz da Secretaria de Estado diz que a legislação sobre a privacidade impede comentários sobre o caso. Hazel afirma que toda a família está empenhada em ajudar Nhan a emigrar, apesar de ela saber que a transição seria difícil. “Vai deixá-lo completamente à toa”, diz. A história deles ainda não tem um fim, assim como a guerra é uma ferida que não sarou. É uma história que continua em espiral, como a dupla hélice do ADN que os juntou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
O poder redentor das histórias
Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanço... (etc.)

O poder redentor das histórias
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Saímos de Desh - o primeiro solo de dança contemporânea do coreógrafo britânico de ascendência bengalesa Akram Khan (Londres, 1974) – com a convicção de termos visto, para além dele, uma multidão de personagens em cena. Magistralmente interpretado, a partir de textos da poetisa Karthika Nair, trechos dançados e, sobretudo, com a assombrosa concepção visual de Tim Yip, Khan traz-nos uma deslumbrante meditação poética sobre os conflitos interiores de um emigrante da segunda geração: a ambiguidade da pertença, a mitologia das origens, a nostalgia da infância e das histórias fantásticas dos antepassados, e os balanços da idade adulta. Discretas subidas e descidas de uma tela translúcida (sobre ela se projectarão imagens animadas), criam dimensões de espaço e tempos narrativos tão vívidos, que configuramos com nitidez pessoas, memórias e lugares ausentes de que Khan fala. Sob sonidos de tráfego, buzinadelas e vozearias cacofónicas, discernimos, nos movimentos da personagem, o transeunte no frenesi das sobrepovoadas urbes asiáticas. Inesquecível, a face que desenha a marcador na pele do próprio crânio, a convocar a figura do pai, o pequeno cozinheiro bengalês emigrante. Ao dialogar com vozes masculinas, femininas ou infantis em off, em bengali ou num inglês com sotaque, Khan reconstrói meandros emotivos das relações familiares, geracionais e da ambivalência cultural. Numa cena, agacha-se para ajudar uma menina invisível a calçar-se, e o atacador, agigantado na projecção animada, forma uma corda que o levará a outras geografias: segue num barquinho ao longo de um caudaloso curso de água ladeado de luxuriante floresta tropical; há bandos aves a esvoaçar, e o cair da noite estrelada. Cruza-se com um elefante, enfrenta um crocodilo. Uma criança a correr na selva, acossada por um tanque de guerra, ou os contornos de uma turba em protesto, aludem à guerra de libertação com o Paquistão (1971). Abate-se a chuva torrencial das monções, e pensamos num país que vive na iminência da catástrofe, o primeiro que submergirá ao aquecimento global. Khan recolhe com um simples gesto de mão este universo imaginado e regressamos ao palco. Liga a um call centre e reclama a avaria de seu gadjet; em linha, uma voz infantil com acento asiático. O seu desalento lembra-nos das multinacionais deslocalizadas no 3º mundo, do trabalho infantil, e da população subnutrida em insólita convivência com a alta tecnologia. Num belíssimo contraluz, Khan dança um trecho inspirado no kathak que aprendeu em criança, e entendemos nesta incorporação física o essencial da sua conexão à Ásia. As distorções visuais e da proporção de objectos, a dar-nos a visão infantil ou adulta destas vivências, pedem meças ao mundo surreal de Alice ou às geniais prestidigitações cénicas Robert Wilson. Desh (“pátria”, em bengalês) é a mais bem-sucedida peça de Khan, e do temário autobiográfico da sua obra. No início, emerge da escuridão, alumiado por um candeeiro, qual Diógenes contemporâneo em busca da identidade estilhaçada. O que nos vai contar é, afinal, sobre amor e sobrevivência, a urgência e fragilidade dos afectos, partilhados por milhões de emigrados. E sobre o poder redentor das histórias. Neste périplo íntimo, épico e encantatório, o alusivo prevalece sobre o explícito. Nada é gratuito nesta produção de luxo, algo refém, porventura, da sua própria exuberância. Mas a energia comunicativa faz o pleno, e figurará, decerto, entre o melhor que vimos em 2014.
REFERÊNCIAS:
O ministro da inacção
Para o ministro da cultura de Cabo Verde o mais difícil, em política, é não fazer nada. Ainda assim, Mário Lúcio Sousa continua a fazer muito mais do que apenas política. Veio a Portugal receber o prémio literário Miguel Torga. A vida dele também é um romance. (...)

O ministro da inacção
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para o ministro da cultura de Cabo Verde o mais difícil, em política, é não fazer nada. Ainda assim, Mário Lúcio Sousa continua a fazer muito mais do que apenas política. Veio a Portugal receber o prémio literário Miguel Torga. A vida dele também é um romance.
TEXTO: Está frio em Lisboa. Mais ainda para quem chegou da Praia durante a madrugada. Antes de sairmos à rua para fazer as fotografias que acompanham esta entrevista, Mário Lúcio vai ao quarto buscar um cachecol. Branco, naturalmente. Percorremos o quarteirão em redor do hotel em busca de uma nesga de sol e de um bom ângulo, comandados pelo olhar determinado do Enric Vives-Rubio, que já sabe onde está a fotografia antes de disparar o obturador. Mário Lúcio entrega-se à pose com uma tranquilidade total. De repente, três mulheres atravessam a rua e interrompem a sessão fotográfica para fazerem uma selfie com ele. É pouco provável que saibam de quem se trata e desaparecem tão depressa como apareceram, com um brilhozinho nos olhos. Mário Lúcio mantém-se impávido e sereno. Como um modelo. Tem pinta de modelo, aliás. O “menino-prodígio” que aprendeu a “viver sem” cultiva uma atitude de desapego. Aos 51 anos, a vida insiste, no entanto, em dar-lhe prémios e cargos e alegrias. Porque é que se veste sempre de branco?A resposta que costumo dar é que não tenho outra roupa, só tenho roupa branca. E porque é que só escolhe roupa branca?Na verdade tem a ver com a preguiça. Não sou um homem preguiçoso, a não ser nas coisas supérfluas. Para evitar ter de escolher de manhã que calças combinam com a camisa e com a gravata, decidi-me por uma única cor de roupa, a mais neutra possível. Não há nisso uma razão de ordem mística?Não. Mas em Cuba uma amiga disse-me que eu tenho uma aura: “Tem a cor de Obatalá: toda branca. ”O que é Obatalá?É a deusa dos caminhos na religião iorubá. Cultivo, com muita curiosidade intelectual, esta religião. Mas a escolha da roupa não tem a ver com isso. Até porque os entendidos descobriram depois que sou filho de Iemanjá e não de Obatalá. E as cores de Iemanjá são azul e branco. Que grau de seriedade atribui a essas crenças?A mesma que atribuo à física quântica. A física quântica tem ciência por trás. Pois, e as crenças têm a religião. É preciso ver que o mundo, de forma indelével, é composto por matéria e espírito. A matéria, conseguimos dominá-la, em parte, no Ocidente. O espírito, há outros que o dominam melhor que nós. Numa cultura eurocentrista, colocamos a razão em primeiro lugar e esquecemos o espírito. Que efeito têm essas reflexões na sua vida política?Têm a ver com a transitoriedade. Quando se entra no poder público, vai-se reparando como nos vamos pervertendo se não nos fiscalizarmos. Vamo-nos esquecendo da fluidez das coisas sem a nossa intervenção. Como é que se policia para que isso não aconteça?O que me serve de policiamento é a leitura oriental, complementar, de uma razão do mundo. É dizer: “Não, não, tudo isto não passa de uma febre; ser ministro é uma febre que amanhã se cura. ”Sic transit gloria mundi. Sim. Essa transitoriedade. Ter essa ideia. Também a ideia do outro. A compreensão de que a razão não tem toda a razão. Isso, na política, não corre o risco de se tornar paralisante?O interessante é que isso não acontece. É preciso ver que a inacção é muito mais difícil do que a acção. É muito mais difícil para o ser humano ficar quieto e parado do que estar sempre a fazer qualquer coisa. Ter a paciência e o discernimento de não fazer nada é muito complicado. Mas na política a inacção não é possível. Com certeza que é possível. Oxalá todos os políticos soubessem o momento da inacção. Grandes catástrofes da humanidade têm derivado desses momentos de acção não adequada. De acção obsessiva. Do perpetuar da acção. Já teve oportunidade de promover momentos de inacção no Conselho de Ministros de Cabo Verde?Só um dia. Estávamos a discutir um assunto candente e de repente eu disse: “Está a chover. ” Nem sequer pedi a palavra ao senhor primeiro-ministro. Todo o mundo ficou espantado. Ficou tudo um momento quieto. De repente, a senhora ministra do Desenvolvimento Rural, que reza todos os dias para que chova, deu um pulo, afastou a cortina e disse: “Está a chover. ” E pronto, foi um desanuviamento importante. Talvez fosse o momento exacto da inacção, do silêncio, para depois se retomar com um pouquinho mais de discernimento. Não teme que o vejam, em termos políticos, como uma espécie de ave rara?Nunca temi. Isso não lhe retira a gravitas necessária para ser levado a sério?As pessoas que não se levam demasiado a sério têm muito discernimento. Levar-se demasiado a sério é como querer impor aos outros a nossa própria imagem. Eu levo-me muito a sério. Agora, a minha forma de me levar a sério não é a forma como os outros se levam a sério. Cada vez que exercemos a nossa diferença, estamos a permitir que os diferentes possam também exercer o seu direito na sociedade. Como é que aprendeu a não se levar demasiado a sério?Isso tem a ver com a história da minha infância. Foi criado num quartel militar. Sim, mas antes disso, nasci numa casa onde se comia quando havia. Diz-se que em casa onde não há pão todo mundo ralha e ninguém tem razão. Isso é uma interpretação muito ocidental. Na África, em casa onde não há pão todo o mundo é calmo e todo o mundo tem coração. Há uma partilha, há uma forma de se ensinar a viver sem. Aprendeu a viver sem?Evidentemente. Não só em minha casa, como na minha região e no meu país. É o país onde o quase nada é transformado em quase tudo, todos os dias. Fazíamos a sementeira, semeávamos e depois não chovia, perdia-se tudo. Os pescadores iam ao mar dois, três, quatro dias seguidos e não traziam um peixe. E sorriam. Às vezes iam e nunca mais regressavam. Conviveu com a morte desde muito pequeno?Sim. Com a morte do meu pai, da minha mãe, de três irmãos. Na altura em que o seu pai e a sua mãe morreram, já não estava a viver com eles. O meu pai morreu no dia 10 de Dezembro de 1976, e eu nessa altura já vivia no quartel. Foram os meus pais que me deixaram ir viver num quartel. É uma decisão transcendental, sem explicação. Como é que uns pais deixam um menino de dez anos sair de casa?Nunca sentiu isso como abandono?Não. Foi transcendental porque se não me tivessem deixado ir, eu não era o que sou hoje. Na altura, isso não lhe causou sofrimento?Não, eu queria. Eles conheciam-me. Na minha aldeia, eu era uma espécie rara. Era um menino-prodígio?Diziam isso. Havia muitas protecções de todos os tipos sobre o menino. Vivemos sempre com um olhar diferente sobre nós. E os meus pais não sabiam muito bem o que fazer com isso. A sua família era de gente de poucas letras. Sim. Praticamente analfabeta. Só o meu pai sabia ler e escrever. A minha mãe não sabia. O meu avô não sabia. Como é que, nesse ambiente, aprendeu a ler ainda antes de ir à escola?Aprendi a ler graças à importação das latas de banha e de azeite de Portugal. Eu e um primo que se chamava Adelino. Ele morreu nas abstracções das nossas brincadeiras. Estava distraído e apanhou com um camião na estrada, à frente da nossa casa. Não deviam passar muitos camiões na aldeia. Só havia um camião, imagine a coincidência. Nessa altura, eu já copiava os caracteres, copiava as letras e fazia palavras. Pelo gosto do desenho ou pelo significado das palavras?Pelos dois. Inventava muito o ler quando ainda não sabia ler. E às vezes acertava. É muito engraçado. Também hoje me pergunto como é que copiava Vaqueiro, V, A, Q, U, E, I, R, O, e como é que sabia que era vaqueiro. Essa frase sempre me perseguiu, era muito criança e repetia: “Vaqueiro torna tudo mais apetitoso. ” Ou a lata de banha, “Braço Forte, Lda. ” Ou: “Azeite Galo. ” Copiávamos tudo o que havia. Isso tudo no chão de terra batida. E líamos. Ali nasceu a escrita. O seu primo era mais velho?Não. Tínhamos a mesma idade. Ele também aprendeu a ler assim?Sim, também. Depois comecei a escrever cartas para as mulheres, para os emigrantes, para os rapazes na tropa, e ficava uma espécie de menino de aluguer da família. Pagavam-lhe?Pagavam com farelo, com ovo. Não era pagar, era um reconhecimento, uma oferta. Os meus pais nem pensavam nisso. Era um menino útil da comunidade. Fazia essas coisas para ajudar a comunidade. Lia cartas, escrevia cartas, traduzia. E fazia contagens. Foi por causa de um poema que foi viver para o quartel; onde é que o encontrou?O meu irmão, que era um rapaz muito inteligente — faleceu há dois anos, o nosso irmão maior —, era um homem com uma aura extraordinária, muito leve. Ele foi estudar na capital, na Cidade da Praia. Tinha um futuro brilhante à frente. E vinha de férias de vez em quando. Nós, muito meninos, revistávamos os bolsos das calças dos nossos irmãos maiores para ver se encontrávamos uma moeda, um rebuçado. E nesse dia encontrei um poema. Num papel?Num papel A4, escrito à máquina. Devia ser um panfleto qualquer. Rapidamente li o poema em crioulo. Dobrei novamente o papel e meti-o no bolso das calças do meu irmão. Nessa única leitura memorizei o poema todo. Que poema era?Era um poema chamado Cabral Ka Morri, Cabral Não Morreu, de Emanuel Braga Tavares. À noite juntei um grupo de miúdos com tambores e fomos recitar o poema na rua. Aí começou a outra reputação. A de músico?Sim. E também de ter memória. Não conhecíamos o que era recitar poemas. Contavam-se histórias, tínhamos uma síntese na cabeça e desenvolvíamos o resto. Poemas, não. E o meu irmão ficou espantado porque o poema continuava no bolso das calças. Comecei a ganhar um afecto muito grande por esse poema. Um dia fui à delegação do partido, do PAIGC, no Tarrafal. Já depois da independência?Era um pouquinho antes, estava-se num momento de preparação. E encontrei um livrinho que tinha esse poema. Levei o livro comigo e fui sentar-me à beira-mar a ler o poema. Foi ali. Passou o tempo e aconteceu que, de regresso a casa, encontrei o tal comandante militar, o Mário Elíseo, que achou aquilo estranho. Não era comum, nessa altura, um menino estar sozinho à beira-mar. Perguntou-me o que estava a fazer. “A ler um poema. ” Achou que eu estava a brincar com ele. Não o conhecia?Não, era a primeira vez que o via. Ele achou estranho, desconfiou, e disse: “Mostra onde moras. ” E encontrei os meus pais lá, à espera. Foi assim. Ele disse: “Este menino não é normal, precisa de uma educação especial. ” Os meus pais disseram: “Sim, sim, ele desde miúdo não bate bem da cabeça. ” E foi isso. Foi assim que decidiram que iria para o quartel. Nessa noite. Foi directo. Não durou nem 15 minutos. O quartel era a que distância?Fica a quatro quilómetros. Era no campo de concentração do Tarrafal. Já andava na escola?Sim, já estava na 4. ª classe. Comecei a escola em 1971, se não estou em erro. Estando a viver no quartel, continuava a ter contacto com os seus pais?Vinha todos os dias à vila, ao cinema, fazia tudo. No quartel tinha uma casa lindíssima onde morou o director do campo de concentração do Tarrafal. Tinha o meu quarto, comia junto com os oficiais. Tinha um tratamento muito protegido. Deram-me uma arma. Aos dez anos?Sim. Não foi dar para fazer uso, porque não havia uso. Também lhe deram treino militar?Não, era um menino. Divertia-me com aquilo. Mas queria fazer. Quando havia formatura, vinha todo catita, punha-me na formatura e dizia: “Sou o soldado 131. ” No quartel, havia 130 soldados. Eu gostava daquilo. Foi uma infância incrível, cheia de coisas. Ia aos acampamentos militares, à carreira de tiro. Descobria violões, violino, cavaquinho. Fazia sapatos, pintava. Estava na idade de aprender e aprendi. Tornou-se uma espécie de mascote do quartel?Com certeza. Também era muito atinado. Vinha à vila estudar, brincava com os meus colegas, fazia educação física à tarde, tocava. E à noite eles sabiam que eu estava na vila e o meu comandante mandava-me buscar. Ia dormir cedo para me levantar cedo, era disciplinado, limpava o quarto, lavava a casa de banho, tomava banho, passava a minha roupa a ferro. Sozinho. E ia buscar os meus colegas que vinham de muito mais longe. Depois, por volta das seis e trinta, encontrava-me à frente do quartel e íamos para a escola a pé. Ficava a dois quilómetros de distância. Aconteceu tudo muito naturalmente. Ao ser adoptado pelos militares, sentiu que estava a libertar-se da vida de pobreza da sua família?De certo modo, sim. Por um lado, fui parar a um sítio onde havia café, almoço, jantar e um aposento, um repouso. E ainda por cima havia uma arma para me defender. Tinha tudo. Informaram as patentes mais altas de que havia esse miúdo. Trouxeram e apresentaram logo o menino-prodígio. Então, o chefe do departamento das operações combativas, chamado Timóteo Tavares Borges, que tinha sido combatente na Guiné — era um homem negro de quase dois metros, com muito pouco sorriso, muito rígido —, tornou-se o meu encarregado de educação. Dentro do orçamento do departamento combativo, comprava-me sandálias e cadernos. Era uma alegria receber essas prendas. Era uma coisa incrível. Depois vim estudar para o liceu, na Praia. Nessa altura, já estava numa idade de atrevimentos. O meu encarregado de educação passou a ser o chefe do estado-maior. É um grande senhor e ainda nos tratamos como pai e filho. Ele teve uma coisa que os outros não tiveram: a compreensão do que um menino adolescente precisa. Ofereceu-me a primeira guitarra. Um dia levei-lhe um calhamaço de livros e disse: “Quero esses livros. ” Ele mandou pagar. Quando vi que tinha escolhido sete e só havia seis, fui dizer-lhe: “Falta um. ” Era um livro do Henry Miller. Ele disse: “Esse dou-te mais tarde. ” Era um homem muito atento. Um dia chamou-me porque eu tinha umas namoradas e as namoradas vinham buscar-me à porta do quartel. Achavam aquilo incrível mas não podiam entrar. Ele chamou-me e perguntou: “Não achas que seria melhor teres um quarto ali fora?” Eu disse: “Muito bem. ” Passou a dar-me 125 escudos e arrendei um quarto perto da Cruz Vermelha. Tinha contacto com os seus 31 irmãos?Só fomos conhecendo os irmãos a pouco e pouco. Doze eram filhos da sua mãe e do seu pai, os restantes só do seu pai. Sim. Nessa idade o meu pai nunca nos disse: “Este aqui é teu irmão. ” Era assim, não se dizia. Pelo menos na ilha de Santiago. Só os abastados é que criavam os filhos de fora junto com os filhos de dentro. Tinham um casarão, tinham um quintal e um quintalão, e aí criavam os filhos todos. A minha mãe viveu durante um tempo nessas condições porque o meu avô, António Figueiredo de Sousa, tinha também uma carrada de filhos. Ela era filha de fora?Era. Mas tinha um feitio difícil, muito geniosa, e não deu para viver lá. Regressou para viver com a minha avó. Não se deu bem. E os seus irmãos de fora?Ouvíamos falar na rua. E às vezes alguém dizia: “Aquele é teu irmão. ” “Este também é teu irmão. ” E fomos sabendo que havia cinco filhos com a Maria Tavares, dois com a Hermínia, mais três com outra senhora. Essa situação perturbava-o?Sim. Perturbava-me um pouco. Não gostava de saber na rua que tinha outros irmãos. Acho que isso acontece com todas as crianças. Mas o meu pai nunca falava disso e a minha mãe também não. E fomos sabendo assim. Ainda há pouco tempo conheci mais um irmão. Acha que ainda pode ter outros que não conhece?Acho que sim. Há menos de quatro anos fui à ilha de São Vicente visitar uma irmã minha, a primeira filha do meu pai, ainda antes do casamento com a minha mãe. E essa primeira filha mostrou-me mais dois irmãos, que só conheci nessa altura. O seu pai era remador, andava de ilha em ilha. Era. Remador de escaler. Fazia várias ilhas. Era um homem muito simpático, muito elegante. Sobretudo tinha um bom coração, como diziam. Tem traumas associados a essas relações familiares complicadas?Bem. Era uma espécie de tradição, sabíamos que quase todos os homens tinham um ou dois filhos fora do casamento. Tinha que ver com uma realidade social e económica. Havia muitas mulheres, poucos homens. Não me lembro, na vida, de ter tido um único trauma, de nada. Fui muito feliz. Fui dono, sozinho, de todo um quartel. Era Rei Artur, era todos os reis da Escócia ou da Dinamarca. É daí que vem a minha imaginação. Vivi ali pensando que era o chefe de todos os reis, de todos os mundos. Não conhecia o sofrimento associado àquele lugar, como campo de concentração. Não, naquela idade, não. Foi só felicidade. A primeira vez que vi uma guitarra foi assim um espanto, uma comunicação, uma atracção. Entrei num quarto de um dos oficiais, estava a passar a porta, entrei sem autorização, peguei no violão e comecei a tocar. A tocar, a tocar, a tocar, doidamente. À noite já tocava com os outros. Foi assim rápido, de caras. A música foi anterior à leitura, para si?No sentimento, sim. Lembro-me de tocar em cima da mala da minha avó, fazendo piano com a boca. Percutia o teclado em cima da mala. Também cantava muito sozinho. Passava muito tempo sozinho em casa. Ficava sempre ao pé da minha mãe e passava a vida a cantar. Achavam que eu era um anormal, tinham esses cuidados. Mas era muito bem-comportado, muito tímido, muito disciplinado. Lembro-me de uma cena: a minha avó deixou-me na casa de Sra. Manazinha porque foi fazer a sementeira. Levou-me para lá aí por volta das sete da manhã. Estava muito frio. Sentou-me ao lado de uma parede que era feita de tiras de carriço, de bambus finos. Quando voltou, às cinco da tarde, eu ainda lá estava, sentado na mesma posição. E ouvi a Manazinha dizer: “Nha nhinha, que menino é este?” Comi, dormi, fiquei ali na mesmíssima posição. Até hoje, eu gosto de ficar dois, três dias sentado na mesma posição, num sítio com o mínimo movimento possível, a deixar a imaginação caminhar. São viagens muito engraçadas. Nessa altura já tinha isso. Começou a escrever histórias desde cedo?Sim. Antes de ir na escola, já sabia escrever e então fazia de padre de baptizados de bonecas. Tomava notas, como era o nome da boneca, do padrinho, da madrinha, rabiscava. Depois comecei a inventar coisas. Uma das coisas que tive de enfrentar, desde cedo, foi a palavra “mentiroso”. Enquanto os meus colegas contavam factos, eu inventava factos. Tinha essa necessidade e ainda tenho, de inventar. Inventava, atribuindo coisas a si próprio?Não. Raramente. Nunca menti para me favorecer ou favorecer alguém, mas a imaginação era fora do comum. A primeira vez que me chamaram mentiroso foi quando eu dizia que contava até mil. No liceu, uma das primeiras vezes que me confrontaram com uma mentira, assim a fazer chacota de mim, foi quando disse que havia um chinês que tinha um tumor de 17 quilos na barriga. Tive de ir ao quartel buscar o livro e mostrar. O nosso mundo era muito reduzido. Não havia muita curiosidade em ler, e eu nasci com isso. A que é que atribui essa sua particularidade?Não sei. Talvez por isso eu leia muito sobre religiões. Talvez por isso acredite no transcendental. Talvez por isso acredite que há outro complemento e outra visão. O budismo acredita na reencarnação, o cristianismo acredita na ressurreição, todas as religiões têm uma componente post mortem. Sente que pode estar aí a explicação?Sinto que sou apenas um intermediário das coisas que faço. Quando componho uma música, tenho muito respeito pela forma como ela desce. Não retoco a música. Ela vem, se é feia ou bonita. O imperfeito também existe. Também não revê o que escreve?Eu escrevo de uma catadupa. Quando começo a escrever, não sei o que vou escrever e nunca faço pausa. Escrevo um livro de uma assentada. Pode demorar o que demorar. Escrevo todos os dias de oito a dez horas, e linear. O seu romance anterior não tinha sequer um único ponto final. Não. Não faço pausas, não tomo notas. E um dia digo: “Acabou-se. ” Quando acabar, não quero mais saber do livro. Depois de um tempo, faço uma releitura, até para dizer: “Quem é que escreveu isto?” Aquele espanto. Depois mando para a editora, que me dá umas orientações, porque às vezes também viajo, como se diz, e torna-se ilegível. Teve consciência, ao escrever Biografia do Língua, de estar a usar o processo narrativo das Mil e Uma Noites?Quando me vem uma história à cabeça, às vezes é só uma frase. A partir daí começo a contar a história às pessoas. Quando contei o que ia escrever à [editora e escritora] Maria do Rosário Pedreira, num jantar, ela disse-me: “Mas isso é Xerazade. ”Não tinha lido As Mil e Uma Noites?Não. De modo que fui obrigado a introduzir Xerazade no livro para dizer: “Isto não é Xerazade. ” Há dias estava a conversar com um amigo em São Vicente, gente do teatro, e disse-lhe: “A aprendizagem é uma lembrança, a gente já nasce sabendo tudo. Isto é próprio do cosmos. O universo é holográfico. Tudo o que existe no cosmos existe num fio de cabelo ou na ponta de uma unha. Tudo o que se vai sabendo vai-se acrescentando e está em nós, nós não estamos desligados de nada. ” Então acontece que essas histórias que inventamos podem correr o risco de plágio, porque já estão em nós embora sem o sabermos. Leva-se mais a sério como músico ou como escritor?Nisto de me levar a sério, só sou. É importante exercer a vida em toda a sua plenitude. O exercício de ser é que é bonito. No fundo, sou um homem apaixonado. Isso sim, é uma característica. E confesso com toda a humildade: com uma grande intuição. Isso, eu sei: tenho um saber intuitivo muito grande. Cultiva-o ou é apenas inato?O saber intuitivo não se deve cultivar, senão estraga-se. Sou um grande sonhador, acordado e a dormir, também. E sonho coisas incríveis, de um surrealismo, às vezes de uma plasticidade. . . Uma maravilha. Lembro-me todos os dias de todos os pormenores, de tudo. E não escreve isso?Comecei a escrever. Quando comecei a escrever, comecei a esquecer os sonhos. Então parei. Tenho 20 ou 30 contos que se chamam “personhagens”, sobre os meus sonhos. Deixei de escrever os meus sonhos para continuarem a ser sonhos. Os sonhos revoltaram-se contra essa apropriação que estava a fazer deles?Parece que há essa combinação. Esse tal lado que a mim me interessa muito, um lado que compõe o ser humano, que exploramos muito pouco, mas que depende muito pouco da razão. Isso já se fez em milénios passados, foi-se perdendo. Já se perdeu muito. Quando diz que se perdeu, há um lamento nessa afirmação?Sim, evidentemente. E tem a ver com um lamento da condição humana. Perdeu-se por causa do domínio de uma cultura sobre a outra. Já vivemos melhor do que hoje?Sim. O ser humano já viveu melhor e isso acontece com tudo o que existe. Há um pico e depois há a decadência. Considera que estamos num momento de decadência?Sim. Basta ver o mundo. O século XXI é um século decadente em termos da condição humana. Podemos ter Internet, ir à Lua, temos tudo isso…Temos analgésicos para a dor de dentes, por exemplo. Isso é capaz de ter melhorado um pouco as nossas vidas, não?Pode ser, e isso é bom. E tantas outras coisas. E já não temos uma esperança média de vida de apenas 25 ou 30 anos. Pois é, isso na conta racional faz todo o efeito. Na sua não faz?Não faz, enquanto não houver um complemento e um equilíbrio. Inventar analgésicos para a dor de dentes é uma coisa óptima. Não termos nenhum analgésico contra a intolerância cultural é terrível. Fazermos com que a esperança de vida aumente, mas que haja milhares de pessoas a morrer ao atravessar o mar mediterrânico, fazer com que haja armas super-sofisticadas, mas que essas mesmas armas estejam a matar centenas de milhares de pessoas todos os dias, fazer com que nunca se tenha tido tanta abundância alimentar no planeta, mas que haja tanta gente a passar fome no mundo, não faz nenhum sentido. Esse desequilíbrio tem a ver com um desenraizamento da condição humana. Quando olhamos para a relação que os índios do Peru, da Bolívia, do México tinham com a natureza antes da chegada dos espanhóis, vemos que tudo isso foi interrompido. Onde havia uns templos das deidades, dos incas, dos maias e dos aztecas, foram construídos templos católicos. A história dos incas, dos maias e dos aztecas não é propriamente um modelo daquilo que hoje designamos por direitos humanos. É evidente que todas as civilizações no seu auge também tiveram a sua parte sanguinária. Todas. Mas nunca antes tínhamos visto 40 mil pessoas morrer em dez segundos. Isso aconteceu com o lançamento das bombas atómicas. Ao mesmo tempo que utilizamos todo o nosso conhecimento para o progresso, vemos paralelamente o uso de todo esse conhecimento para a destruição e para a decadência. Sinto em si uma pontinha de nostalgia por uma espécie de paraíso perdido. Talvez. O planeta já foi melhor. O lamento não está no facto de ter havido um paraíso no passado. O paraíso e o inferno são vizinhos. Mas havia no homem uma relação com a natureza muito melhor do que há neste momento. Essa relação fazia com que o próprio progresso na antiguidade tivesse também um efeito sobre o homem na sua relação com o universo. Hoje há uma corrida para a abundância, para a acumulação. Essa corrida exige uma velocidade tal que despreza todos os outros valores. O homem que quer acumular biliões de dólares na venda do petróleo vai fazer tudo para não respeitar os acordos sobre a redução do carbono, por exemplo. Em todo o caso, sempre que é dada a uma sociedade a opção entre ter ou não ter, a escolha é ter. Depende, nem sempre é assim. Hoje em dia, quando falo de outros saberes, de outras razões, eu que me considero um homem de formação ocidental, mas que já leu e cultiva e trabalha muito a cultura oriental, é para dizer: “Atenção, há um outro mundo, há uma outra visão do mundo, é preciso complementar isso. ” Quando disseram a Siddhartha Gautama “escolha o palácio ou a vida desprendida”, ele escolheu a vida desprendida. Isso existe em várias culturas do mundo em que entre acumular, o ter, e a escolha de não ter, escolhemos o não ter. A acumulação faz mal. Existem várias culturas no mundo em que a abundância é substituída pela palavra “plenitude”. Trabalhamos para atingir a plenitude e não a abundância. Onde abunda há sempre, também, escassez. No seu caso, trabalha para escolher o quê?Trabalho para encontrar a felicidade, e encontro, todos os dias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tem uma ideia daquilo a que corresponde essa noção?Tenho. Se há uma coisa que dá felicidade, é o desapego. O desapego de tudo significa libertação. Pode-se ser desapegado e membro de um governo?Com certeza. Ser membro de um governo é trabalhar para os outros. Agora, querer perpetuar-se no poder é apego. Já disse há uns meses que me ia embora, já me despedi. Só vim dar essa contribuição. Vai terminar o seu mandato quando?Em Março do próximo ano. Entrei para ficar menos tempo, mas não deu para sair antes. Não tenho o desapego de tudo, ninguém tem. Quem me dera. Mas pratica-se, e ajuda. Considero-me um homem feliz porque também tenho as minhas angústias. E por saber reconhecê-las.
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo Budismo
Histórias do interior: o “milagre” do Seixo, onde a população duplicou
Para ocupar uma dezena de casas de pedra, no monte do Seixo, há apenas um homem. Nas últimas semanas deu-se quase um milagre – a população cresceu 100 por cento. Ele arranjou uma companheira (...)

Histórias do interior: o “milagre” do Seixo, onde a população duplicou
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para ocupar uma dezena de casas de pedra, no monte do Seixo, há apenas um homem. Nas últimas semanas deu-se quase um milagre – a população cresceu 100 por cento. Ele arranjou uma companheira
TEXTO: Despovoamento rima com desertificação, em todo o Nordeste algarvio. Alcoutim, Castro Marim e Tavira (zona serrana) estão em queda livre na demografia. As pessoas vão tombando uma a uma, à medida que a idade avança, e nem rasto de gente jovem se vê no horizonte. Por aqui “só há notícias das pessoas que morrem”, lamenta a presidente da Junta de Freguesia de Cachopo, Otília Cardeira, atarefada, com a preparação dos festejos natalícios. “Vou cozinhar uma açorda de galinha, pois tenho um grupo de convidados da In Loco. Esta associação de desenvolvimento local, diz, “foi quem primeiro deu a conhecer o interior algarvio”, quando ainda não existia GPS para localizar o povoamento disperso. A autarca, tecedeira de profissão, arranca no carro oficial da autarquia – uma carrinha todo-o-terreno de caixa aberta. O motor da viatura, ao acelerar, acusa o cansaço das muitas voltas e reviravoltas percorridas pela montanha. “Quando vou a reuniões, riem-se deste carro velho”, graceja. Ao descrever o que se passa à sua volta, a mulher de 68 anos faz uma espécie de marcha atrás no conta-quilómetros da vida. “A freguesia [concelho de Tavira] tinha 46 montes, mas hoje já só temos 31 habitados”, assinala. Os sobreiros, os que não se perderam no grande fogo de 2012, morrem aos poucos, de doença incurável. Os raros habitantes que ainda resistem sentem as vertigens de um tempo que não volta para trás. Projectos de centrais fotovoltaicas não faltam, e os chineses estão nesse negócio em Alcoutim, acompanhando uma tendência comum a outras zonas do Sul do país. O ladrar dos cães faz eco pelo vale, mas não há quem ouça o apelo dos animais. O aglomerado, monte do Seixo, tem cerca de uma dezena de casas, onde não falta o equipamento de painéis solares, pregados em habitações de pedra. Porém, a modernidade fica-se por este equipamento. “Não se ouve um passarinho”, lamenta José Gonçalves, enquanto apanha medronhos. O homem, de 70 anos, sozinho, com balde de plástico no braço esquerdo, colhe os frutos silvestres que se hão-de converter, daqui por alguns meses, em aguardente. No sítio dos Currais, onde nasceu, há três destilarias – lugares icónicos da partilha de saberes e de afectos. Por todo o lado, com a chuva que caiu de mansinho, os medronheiros surgem pujantes. O mesmo não sucedeu com outras espécies autóctones: “Este sobreiro é novo, e já tem aqui as marcas da doença”, aponta o agricultor, mostrando a mazela no tronco da árvore, de folhas pálidas. José Gonçalves reside em Faro, mas é na serra que encontra a paz e tranquilidade para se reencontrar consigo próprio. “Perdi uma filha, de 39 anos, com uma doença terrível. Deixou-me três netinhos”, lamenta. A ida para Cachopo, explica, deve-se ainda à necessidade de “dar apoio” ao sogro, de 93 anos, e à sogra, de 88 anos, que vivem no lugar dos Currais. “Este ano, apanhei mais de mil quilos de medronho”, diz, prevendo que a colheita do próximo ano seja melhor. A descida até ao Seixo obriga a uma condução com cuidados redobrados, pelo caminho de terra batida. “Só lá vive o Valério, mas ele anda quase sempre por fora”, avisa, deixando cair lamentos: “É pena é não haver pessoas. . . ” A presidente da junta de freguesia, em tom de graça, exulta: “A população do Seixo aumentou 100%, porque ele [Valério] arranjou uma companheira”. Ela vive no Garrobo, um monte próximo. José Gonçalves comenta: “Estavam os dois sozinhos, fizeram muito bem: ele deve ter aí uns 55 anos, a Celeste é um pouco mais velha”, adianta. Durante a visita do PÚBLICO, confirma-se a indicação do vizinho: o casal estava ausente, algures na apanha do medronho. Os animais, cães e galinhas, sinalizam a presença humana, sem dar tréguas. A luz eléctrica só chegou ao local em 1996, através de um projecto de “desenvolvimento rural” no concelho de Tavira – um investimento de 215 mil euros. Nessa altura, os moradores já estavam a desaparecer por falta de perspectivas de futuro, e pela força da lei da vida. No concelho de Alcoutim, no lugar do Vale da Rosa (freguesia de Vaqueiros), há mais de três décadas uma empresa francesa instalou um projecto experimental de energia fotovoltaica, que permitiu a cada um dos moradores ter um televisor, frigorífico e meia dúzia de lâmpadas acesas, em casa. Por falta de manutenção, o sistema falhou ao fim de três anos. A câmara municipal, entretanto, conseguiu que a electricidade lá chegasse através da rede da EDP. A medida não foi suficiente para manter as pessoas ligadas à terra. “Está tudo em ruínas, já lá não mora ninguém”, esclarece o presidente do município, Osvaldo Gonçalves, enfatizando: “Sentimos aqui, no Nordeste algarvio, as duas faces da interioridade: a desertificação física dos solos e o despovoamento”. O problema, esclarece o autarca, (vice-presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve – Amal), entranhou-se como uma doença crónica: “Nós só sentimos, efectivamente, o efeito da desertificação quando nos começámos a aperceber de que não havia pessoas”. Metade da dezena de habitações do Vale da Rosa está reduzida a ruínas. A capacidade de resiliência da população, enfatiza o autarca socialista, “mitigou, de alguma forma, o êxodo que continua para a zona litoral”. Em contraciclo, na freguesia de Vaqueiros, está projectada a construção de um dos maiores parques fotovoltaicos da Europa. O grupo CITEC – China Triumph International Engineering, em parceria com a empresa We Link, do Reino Unido, anunciou no ano passado a instalação de um equipamento capaz de produzir electricidade para abastecer uma cidade com 130 mil habitantes, duas vezes a população de Faro. Os trabalhos, num terreno com área de 400 hectares, encontram-se ainda na fase de desbaste do mato, mas a perspectiva é de que a produção se inicie no final do próximo ano. O investimento anunciado é de 200 milhões de euros. De regresso a Cachopo, há um número a reter. O autocarro municipal, de 30 lugares, faz o transporte diário de 12 crianças – de várias idades – daqui para a escola da freguesia de Martim Longo, já no concelho de Alcoutim. No edifício sede da junta funcionam, ao mesmo tempo, os serviços administrativos da autarquia, o posto médico e o serviço de Correios. No primeiro andar de um prédio a precisar de manutenção, os utentes falam de “noites mal dormidas”, enquanto trocam impressões sobre os sintomas de doenças – hipertensão, diabetes e colesterol, as mais frequentes. “Esta casa precisava toda de ser remodelada, leva mais de 40 anos sem manutenção”, queixa-se a autarca Otília Cardeira, convidando o PÚBLICO a ver uma exposição fotográfica sobre gente da terra. “Este, o ferreiro, já morreu”, aponta. À medida que sobe as escadas, vai passando as páginas da história local. Segue-se o quadro do albardeiro, em grande plano. Passa ao capítulo seguinte, faz uma pausa: “Estas mãos são de uma tecedeira”, comenta, como que se revisse no retrato. “A associação In Loco foi quem criou aqui uma oficina de tecelagem, trouxe professores da escola António Arroio para dar formação, e fizemos coisas muito interessantes”, destaca. Assim, as mulheres de Cachopo recuperam técnicas antigas e o gosto de preservar as tradições. “Desapareceu quase tudo, só estamos duas na tecelagem”, diz, referindo-se ao progressivo desmoronar do tecido económico e social, alicerçado na promoção e venda do artesanato. “Chegámos a participar numa passagem de modelos em Vilamoura”, recorda. Victor Palmeira, médico, prestou serviço em Cachopo, entre 1986 e 1989. Neste período, recorda, “nasceram apenas quatro crianças em toda a freguesia”. Na altura, a câmara reabilitou uma habitação para fixar clínicos. Não resultou. “Nunca cheguei a ocupar a casa”. Casado e com filhos, não deixou de residir em Tavira, porque os interesses familiares obrigavam a permanecer na cidade. A deslocação ao interior era compensada por um subsídio, atribuído pela administração regional de saúde, mas não foi isso que o motivou. “Mal dava para o combustível e os pneus do carro”, diz. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Osvaldo Gonçalves, cujo avô nasceu no Seixo, critica as medidas que têm sido aplicadas para revitalizar o interior. “Não existe uma interligação entre os vários projectos”. Em meados dos anos 80, exemplifica, foi o criado o Plano do Nordeste Algarvio, o que permitiu a construção de vias e equipamentos públicos. Seguiram-se os apoios à reflorestação. Nesta sub-região foram plantados 37 mil hectares de pinheiro-manso (844 árvores por hectare) para evitar a erosão do solo, mas ficou por avaliar o resultado e o impacto ambiental desse projecto. “Todas essas medidas padecem da falta de continuidade e de harmonia com os instrumentos de ordenamento do território”, sintetiza. Além disso, destaca a necessidade de manter os serviços públicos nesses locais. “Perde-se o contacto com o terreno, retira-se a presença do Estado, e cria-se uma realidade virtual”, diz, lembrando que desapareceram do concelho as extensões de desenvolvimento rural e do Ministério da Agricultura, entre outras. A história do Alcoutim divide-se entre o interior a zona raiana do Guadiana, marcada pelas histórias do contrabando e emigração. A ponte transfronteiriça, flutuante, que une as duas margens do rio (Alcoutim-Sanlúcar) só funciona três dias por ano, em Março, durante o festival do contrabando. Uma vez passados os festejos, os dias desaguam na “falta de compreensão” da administração central, sublinha, para encarar o interior de um país debruçado sobre o litoral.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations. (...)

"Deixei de me surpreender com os mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 7 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Robert Vitalis é professor de relações internacionais e ciência política na University of Pennsylvania. Ao longo da sua carreira, dedicou-se à investigação das dimensões internacionais e globais das questões colonial e racial. Em 2015, publicou o aclamado White World Order, Black Power Politics: The Birth of American International Relations.
TEXTO: No seu livro, de 2015, um dos grandes objectivos é compreender o nascimento das Relações Internacionais e da Ciência Política nos Estados Unidos da América. Contra a ortodoxia historiográfica de ambas as disciplinas, mostra como mundividências imperiais foram cruciais na formação de ambas as disciplinas e ao seu posterior desenvolvimento. Quais as principais causas e consequências desta história pouco conhecida?Eu mostro como a história do império é apagada, mas também como os académicos das relações internacionais começaram, de modo activo e talvez inconscientemente, a construir uma história mais útil da sua disciplina durante a Guerra Fria. O que é verdade em relação a muitas disciplinas, na verdade, não apenas no caso das Relações Internacionais. A história diplomática, a história do “desenvolvimento” e a Sociologia são outros exemplos. Se, como os então líderes emergentes da disciplina insistiram, as Relações Internacionais só se tornaram uma disciplina “científica” nos anos 1940 e 50, através da promoção do “realismo” (uma vez que Realpolitik era então uma palavra má) e da construção dos Estados Unidos como um “poder do statu quo”, então não haveria nada mais a dizer sobre essas décadas pré-científicas anteriores. Como seria de esperar, os professores marcharam, mais ou menos, com o Departamento de Estado, a Casa Branca e outras agências do Governo, procurando refutar os argumentos do rival soviético e dos chamados “países não alinhados” sobre a natureza e a extensão do poder que os Estados Unidos exerciam globalmente. Também demonstra que ocorreu um processo de “invisibilização do racismo”, apesar de as “relações internacionais significarem relações raciais”. Porque acha que isto aconteceu? Quais foram, e são, as consequências deste facto?A realidade persistente da opressão dos afro-americanos na sua demanda por direitos iguais era o outro problema que fazia coxear o Governo americano na sua rivalidade com a União Soviética em relação aos corações e às mentes dos europeus, dos africanos e dos asiáticos. O racismo em casa complicava a diplomacia dessas décadas. O contexto da Guerra Fria ajuda a explicar os esforços das administrações em dessegregar os Estados do Sul no pós-guerra, como os trabalhos de vários historiadores têm demonstrado (Mary Dudziak, Penny von Eschen e Paul Gordon Lauren foram os mais proeminentes). Também aqui, uma história mais útil do passado começou a ser criada: do racismo como um atavismo e uma excepção ao que Gunner Myrdal identificou como o “credo americano” — roubando a ideia sem o dizer a Alain Locke, da Universidade Howard, já agora. Mais tarde, a escritora Toni Morrison escreveu sobre a tendência poderosa, na cultura do pós-guerra, de “silêncio e evasão” sobre o passado e o presente do racismo. Eu peguei na ideia e traduzia-a usando um termo em voga na teoria das relações internacionais nos anos 1990: descrevi-a como a “norma contra a detecção”. Outro aspecto importante que sublinha tem que ver com o facto de a contribuição de académicos afro-americanos nessas disciplinas ser também desvalorizada ou omitida. Qual a razão? A realidade é hoje diferente?Não há exemplo mais poderoso do silêncio e evasão do que a persistente ignorância sobre os académicos negros e as suas inovações intelectuais numa academia profundamente segregada. Só começa a mudar quando académicos negros são admitidos nas torres de marfim (brancas) nos EUA. O mesmo é verdade em relação às mulheres nas relações internacionais, e há agora trabalho a ser feito por Patricia Owens e outras pessoas no Reino Unido no sentido de identificar académicas influentes neste campo, mas que hoje estão completamente esquecidas. Em alguns meios, a ideia de que os EUA eram essencialmente um poder anti-imperial e anticolonial persiste. É uma consideração sustentada na sua condição de antiga colónia e no facto de, mais tarde, ter sido uma das grandes potências que patrocinaram a descolonização. A história entre estes dois momentos perde-se, ou é desvalorizada. Pode falar-nos um pouco mais dessa história e de como condicionou o desenvolvimento de várias ciências sociais?O saudoso e grande economista do MIT Morris Adelman — que é uma personagem central no livro que estou a escrever agora sobre os vários mitos que preocupam a esquerda anti-imperialista e a direita imperialista nos EUA — disse uma vez que “o senso comum sabe muitas coisas que não são verdade”. As crenças que referem sobre os EUA, aparentemente indisputáveis, mas na verdade artificiais, encaixam-se nesta definição. Deixei de me surpreender com os vários mitos ou verdades doutrinárias que os professores repetem sem questionarem determinadas certezas, sem reflectirem seriamente sobre a natureza das “provas” e sobre os problemas que resultam de se pensar a partir dessas “provas”. Por isso, pergunto no White Order: como é que aqueles que acreditam que os EUA nunca foram imperialistas explicam que uma geração pioneira de pensadores conservadores, liberais e progressistas tenha dito o oposto? Porque estão eles errados?Após as invasões americanas do Afeganistão e do Iraque, deu-se uma renovação do interesse nas histórias do colonialismo, da administração colonial e da repressão colonial. Como é que as ciências sociais se relacionaram com estas dinâmicas? E com os seus trágicos falhanços, posteriormente?É verdade que o início dessas guerras no Médio Oriente, que agora percebemos serem intermináveis, deram um novo fôlego ao estudo do colonialismo, e a ideia de que os EUA eram um império emergiu de uma forma que não víamos desde os finais dos anos 1960 e inícios de 70. Victor Bulmer-Thomas e Tony Hopkins lançaram este ano novos e detalhados estudos, Empire in Retreat e American Empire, respectivamente, que “nasceram” das invasões no Afeganistão e no Iraque. O coronel na reserva Andrew Bacevich, que também se reformou recentemente na Universidade de Boston, onde leccionava História e Relações Internacionais, escreveu sete livros sobre o militarismo e a política externa norte-americana desde 2003, e, talvez devido ao seu historial e conservadorismo profissional, granjeou maior visibilidade nos media do que a maior parte dos outros críticos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Eu diria que o padrão mais significativo nas ciências sociais se prende com a militarização da academia desde 2001. A Antropologia, a Psicologia, a Ciência Política tiveram papéis auxiliares a desempenhar na contra-subversão, no regime de tortura e por aí fora. As antigas “escolas de estratégia” (Harvard’s Kennedy School e Belfer Center, a School for Advanced International and Strategic Studies da John Hopkins, a Woodrow Wilson School de Princeton e as suas cópias) prosperam, enquanto o Departamento de Defesa e o arquipélago de intelligence (CIA, DIA, NSA, etc. ) são hoje fontes muito mais importantes de financiamento para os meus colegas do que as fundações privadas. Ao contrário do que sucedia na década de 1960, não há praticamente oposição a esta transformação altamente problemática. No seu livro, e entre os vários escritos dos autores que estudou, deparamo-nos com um medo generalizado da “mistura racial”, da “decadência civilizacional” e com um alarmismo relacionado com as políticas populacionais. Infelizmente, podemos encontrar ansiedades semelhantes hoje em dia. O que é novo e o que é velho nos discursos presentes do medo?Concordo completamente sobre os ecos que se fazem sentir do passado, e creio que não dei o devido valor ao peso que o medo assumiu (e continua a assumir) nesses projectos. Estou agora a tentar, de facto, acompanhar o que as ciências sociais têm a dizer sobre o medo. Ele é fundamental, como deixam claro, para os argumentos a favor da restrição da imigração e similares, mas também remete para crenças irracionais sobre escassez de recursos e sobre as ameaças como o Irão ou o Iraque colocavam ao “acesso” a estes. Posso estar errado, mas tenho dificuldades em ver diferenças sérias entre os argumentos produzidos por actores políticos e intelectuais da, sei lá, década de 1920, e os do presente. Qual a importância de expandirmos as nossas investigações sobre processos que tornam o racismo invisível ou marginal, no sentido de lidarmos com os desafios políticos contemporâneos? Ainda é possível detectar uma Realpolitik racial hoje em dia?Da mesma forma, entendo que uma Realpolitik “racial”, ou melhor, “racista”, com a sua imaginada fractura de absoluta e inerradicável diferença, está viva, e bem viva, hoje em dia. Retorno ao tema que estou a estudar presentemente. Na década de 1920, as “matérias-primas” que se dizia estarem em escassez e que, como tal, despertavam a ameaça de um futuro conflito, tal como hoje, estavam nas colónias, semicolónias e dependências de África, da Ásia e América Latina. Apologistas da ordem imperial começaram a insistir que as matérias-primas encontradas nos trópicos e semitrópicos eram, por direito, “a herança da humanidade”. Como o ex-governador da Nigéria Frederick Lugard enquadrou o problema no seu Dual Mandate in British Tropical Africa (1922), as raças que habitavam estes lugares não tinham qualquer “direito de negar as riquezas aos que delas precisavam”. Era uma questão de vida ou morte. Durante a Guerra Fria, os gurus de uma “geopolítica” reabilitada (ou, pelo menos, eles assim o esperavam), George Kennan a despontar entre eles, opunham-se à independência das colónias, sustentando que essa independência bloquearia inevitavelmente o acesso do Ocidente a essas matérias-primas de que tanto necessitava. Também eles se dirigiam para a ideia de “herança da humanidade” e desdenhavam da que postulava direitos soberanos. Estas crenças persistiram incólumes desde o trauma nacional erradamente recordado como o “boicote da OPEP”, quando as acções dos países produtores, como um precoce crítico desta duplicidade de princípios o colocou, foram regularmente condenadas como “crime”, “máfia”, “pirataria” e “chantagem de preços”, e que persistiram até às intervenções de 1991 e 2003 no Iraque e bem depois disso.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação (...)

Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.285
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação
TEXTO: No dia em que lhe demoliram a casa, eram umas 9h. Ondina Tavares desceu do seu quarto, apagou o lume, abriu a porta e deu de caras com a polícia e com alguém que julga ser funcionário da Câmara Municipal da Amadora. — A senhora vai ser desalojada hoje, tem de sair. Vá arrumar as suas coisas, disseram-lhe. Estava à espera de um papel na porta da sua casa no Bairro 6 de Maio, Amadora, a notificar. Mas nada. De roupão, perguntou:— Não põem papel na porta, não avisam, não telefonam? Mas têm o meu número!Era dia 3 de Outubro. Estava sozinha. Subiu ao segundo andar para ligar à filha. — Fiquei a tremer, não conseguia fazer nada. Nada, nada, desabafa hoje, voz trémula, nervosa na conjugação dos verbos. Ondina tem problemas de tiróide e de tensão, tem um pacemaker. — Maria Suzete, vem rápido porque eu estou desorientada, pediu à filha. A câmara mandou tirar as coisas, a casa vem para baixo. Ela continuava desorientada. Deixou os homens que entraram a tratar das suas coisas. Sentia-se incapaz. — Não sabia dar conta de nada. Eles deviam ter avisado… eu tirava as minhas coisas, queixa-se hoje. Foram eles que puseram as coisas em sacos de lixo pretos, ainda hoje amontoados em casa do irmão, para onde Ondina, a filha e os netos foram temporariamente viver. Os móveis seriam levados para um armazém da câmara, com remédios e papéis de consultas lá dentro. 77 agregados PER (dos 424 iniciais), ainda esperam realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. Ondina dirige-se agora ao lugar a que chamou casa durante 18 anos. Uma carcaça de cimento pintada de verde-claro com azulejos brancos — e que era a casa do vizinho — ainda se mantém de pé. Em baixo havia uma sala com um corredor, a cozinha e a casa de banho; em cima eram os dois quartos. Pagava uma renda de 250 euros. Tinha espaço suficiente para cinco pessoas. Hoje atravessa sempre a estrada para não passar mesmo ao lado da casa que foi sua. Não trabalha e teve de “mandar buscar” a filha Suzete a Cabo Verde para tratar dela. Na câmara, quando foi tentar perceber a sua situação, disseram-lhe: “Não tem direito a casa. ”Sugeriram que ela e a família fossem viver com o irmão, a pessoa que oficialmente ficou com direito a ser realojado por via do Programa Especial de Realojamento (PER) – a casa onde está provisoriamente era da mãe. O irmão “ainda não decidiu se vai aceitar o dinheiro”, diz Ondina. Criado em 1993 para realojar “pessoas residentes em barracas” nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, dando apoio financeiro para construção ou aquisição de habitações, o PER tem vindo a ser executado de maneira diferente pelas autarquias. A Câmara Municipal da Amadora (CMA), que diz já ter investido mais de 46 milhões de euros nos realojamentos, tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de Maio. Muitas queixas são sobretudo de pessoas que estão fora do PER, ou seja, que não foram recenseadas pelo INH – Instituto Nacional de Habitação (hoje IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana). O 6 de Maio tem sido demolido ao longo do tempo, mas mais sistematicamente desde 2015. Ainda lá estão 77 agregados PER (dos 424 iniciais) à espera de realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. A presidente Carla Tavares, ex-vereadora da Habitação, diz que “os números estão sempre a mudar”. Enquanto Ondina e a família estão alojados temporariamente em casa do irmão, ele mudou-se para a da namorada. — Eu tenho o meu agregado familiar, diz Ondina. Achava que podia [ter uma casa com] a minha filha, os meus netos que estão no meu coração. Não estou a conseguir dormir: eu dentro e a minha filha e neto na rua… Fui internada quatro vezes, quem é que me ajuda?É reformada por invalidez, e no total recebe cerca de 400 euros, que tem de dar para se sustentar, comprar medicamentos, ajudar a família em Cabo Verde. — O dinheiro não chega, sinceramente. Na casa onde agora está, pouco espaço existe para se circular. Chega-se atravessando becos do bairro. Pelo meio circulam jovens, alguns ficam à esquina parados. Suzete pede desculpa pelo cheiro abafado e a esgoto no ar. Mostra o quarto onde o filho dorme, colado à cozinha. Teme pela saúde dele. Ela dorme com outro filho num divã que se abre à noite e fecha de manhã na pequena sala. 400 euros de reforma por invalidez é quanto recebe Ondina Tavares. É com este valor que se sustenta, compra medicamentos, ajuda a família em Cabo VerdeA casa não tem janelas, e as paredes, apesar de pintadas, mostram o sinal da humidade. Em todos os cantos há sacos de plástico empilhados. Uns bidões azuis têm roupa dentro, às vezes também comida. Ondina dorme num quarto com um desumidificador, que fica ligado durante a noite e retém litros de água. A janelinha dá para um beco sem luz. Maria Suzete vem da cozinha, onde as paredes têm bolor e os canos escorrem água. — Isto não são condições para a minha mãe viver, ela é doente. Nas paredes da sala há várias estátuas de Nossa Senhora. Ondina costuma ir a Fátima pedir ajuda. — O bairro vai acabar. Não se importa de sair. Só quer uma casa onde viver. Não interessa onde. A casa de Ondina tornou-se em mais um dos escombros que por estes dias dominam o 6 de Maio. Desde que as demolições começaram em força no início de 2015 que o bairro se tem tornado um cenário apocalíptico. Tijolos, entulho, roupas, lixo, móveis abandonados, sofás, sapatos, garrafas, toalhas, tudo se amontoa naquilo que já foram ruelas de um bairro habitado maioritariamente por famílias de origem imigrante. Algumas paredes ainda têm azulejos. Outras têm graffiti. Pelo soalho agora partido adivinha-se que alguém investiu em melhorar o chão que pisava. A Irmã Deolinda Rodrigues vive no bairro há anos. Trabalha desde 1986 com população imigrante que foi chegando à Amadora e criando o 6 de Maio ou os já desaparecidos Fontainhas e Estrela de África. É directora do Centro Social 6 de Maio, gerido pelas Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário. Vive também o despejo das famílias. “Actualmente, o bairro não tem nada que ver com o que era. Quase metade está demolido”, lembra no seu escritório no Centro Social. “As crianças daquele tempo são agora adultas com filhos. ”Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”Preocupa-a quem veio depois do recenseamento de 1993, e não tem direito ao PER, ou quem estava no PER mas está indocumentado e é excluído. “Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”, desabafa. Numa reunião no Centro Social para apoiar no processo de despejo e realojamento, com técnicos da autarquia e de organizações de voluntariado, foram poucas as presenças. Duas mulheres estavam hesitantes entre aceitar o apoio financeiro/ indemnização ou o realojamento. As questões eram muitas. A CMA tem três programas para quem está no PER: o PAAR, Programa de Apoio ao Auto-Realojamento, que financia 20% do valor da casa que teria de ser construída se a família fosse realojada (o dinheiro é usado como se quiser), o Retorno, que financia o mesmo valor para a pessoa regressar ao país de origem (com pouca adesão); e o PAAR Mais, que financia 40% do valor da casa que teria de ser construída mas o dinheiro tem de ser usado na compra de um imóvel. Para os agregados PER do 6 de Maio, foi criado um programa em que financia 60% do valor do fogo que teria de ser construído (o que representa até agora 1, 5 milhões de investimento). Os valores máximos oscilam entre 78. 296 euros para um T4 e 43. 546 euros para um T0. 46 milhões de euros, ou mais, é quanto a Câmara Municipal da Amadora diz já ter investido nos realojamentos. A autarquia tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de MaioNo terreno, as soluções que apresentam a quem está fora do PER são ir para um centro de acolhimento temporário ou um mês de renda e outro de caução mediante apresentação de contrato de arrendamento. A autarquia tem argumentado que “ninguém fica na rua” e todos são acompanhados por técnicos durante meses. “O bairro está muito degradado, penso que grande parte das famílias se pudesse ia-se embora. Já não apetece viver aqui”, diz a irmã Deolinda, preocupada com o tráfico e consumo de droga. Deolinda ainda se lembra da altura em que a câmara colocava um papel na porta a avisar que a casa ia ser demolida. Hoje “parece” que já não o faz. Mas “ninguém pode dizer que não sabia”, há anos que se anunciou que o bairro vai ser demolido, justifica. “Em alguns casos as pessoas são descuidadas. ”Há também situações em que “a gente não sabe o que dizer, nem que pensar”, desabafa, partilhando o sentimento de desespero de quem, se pudesse, dava casas às pessoas. Muita gente veio alugar casas nestes bairros por várias razões, lembra Rita Silva, da Habita, uma associação que tem feito pressão contra os despejos sem alternativa. Mas isso é apenas “manifestação do problema brutal que existe no acesso ao mercado privado da população negra e pobre. Os senhorios não gostam e pedem fiador, e as rendas são caras. As pessoas viram-se para estes bairros onde as rendas são mais baratas e os pré-requisitos menores”. À medida que as casas caem, cai também o cuidado com o ambiente à volta. Andar pelo 6 de Maio hoje é pisar despojos de vidas. Ainda assim, a vida continua. Um grupo de homens reúne-se à entrada do bairro. Numa mesinha, servem chá à marroquina, mudando a bebida de um copo para outro até formar uma certa espuma. Às vezes também aparece uma senhora a cozinhar numa fogueira panelas de couratos, por exemplo. Adriano Furtado, mais conhecido como “Florzinho”, aproxima-se. Usa um blazer cinzento e uma boina. É falador. — Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. Quem é que reage com a força policial que eles põem aqui no bairro?Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. “Florzinho” vive no primeiro andar de uma das casas que estão à entrada. A estrutura de tijolos à vista tem um pequeno balcão, onde armazena um grelhador e se empilham um micro-ondas e restos de cadeiras. Lá dentro, o chão em placas de madeira dá mais luz à sala, com um sofá, uma mesa e cadeiras. Aos 66 anos, pensionista, recebe 320 euros por mês. Gravou com músicos como Katuta Branca. Até aparece na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, com direito a fotografia, tocando fero. Está em Portugal desde 1971, aqui cumpriu o serviço militar. Foi mobilizado para Angola, voltou em Janeiro de 1974. Entregou a farda em Cabo Verde, onde nasceu, depois do 25 de Abril. Vive desde 1975 no bairro. — A barraca não tinha número. Não havia telefone. Íamos buscar as cartas à papelaria, lembra. O primeiro emprego foi como cobrador na Carris. A zona onde estamos sempre foi bem servida de transportes. Apesar de viver ali há décadas, dizem-lhe que não está recenseado no PER. Foi a várias reuniões na câmara, mas nada. Pagava cerca de 40 euros anuais de IMI. Tem um advogado a tratar do assunto. — Se a câmara vier aqui pôr-me na rua, da maneira que eu vejo fazer, que vida é minha? Para onde vou? Para debaixo da ponte? Sou negro mas sou português de nascimento. Já disse: ‘Vocês querem expulsar os negros de Portugal. ’ Andei a dar a minha vida pela pátria portuguesa. E agora: sou um cão?“Florzinho” usa estas palavras para descrever o que viu acontecer no bairro a pessoas como Mozer Almeida, quase 25 anos. Com o 7. º ano, desempregado, anda a dormir em casa de uma familiar enquanto a situação não se clarifica. Mozer está em cima de um cadáver: os escombros do que foi a sua casa durante seis anos, no Estrela de África, bairro contíguo ao 6 de Maio. A casa era do avô. Depois do despejo, esteve uns tempos a dormir no carro; outros em casa de um primo, outros em casa de amigos, pessoas que têm as suas próprias vidas. Há uma lixeira do lado de lá das paredes que ainda estão intactas. Uma delas tem um quadrado que era uma janela, a única do quarto e praticamente a única de casa tirando a porta de entrada. O tio é que o ajudou a fazer aquela janela. — A parede suava. Quando era calor, era calor demais; quando era frio, era frio demais, diz. O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama de casal e um armário. Vivia ali com a avó, doente, que agora está em casa de uma prima. Aos 72 anos, é reformada e recebe uma pensão de 237 euros. Ele não tem direito a subsídio de desemprego, anda à procura do que for preciso. Mas não é chamado. A avó não estava abrangida pelo PER. Saíram pelas 7h30 de dia 3 de Outubro. — Nunca recebemos nenhuma notificação, queixa-se. Ninguém da autarquia os contactou a avisar, acusa. Eram os vizinhos que diziam “um dia a vossa casa vem abaixo”. Derrubaram tudo com as coisas dentro, como o frigorífico, conta. Ele levou para o armazém da câmara um colchão, sacos com roupa, loiças. — Foi o pior dia da minha vida em Portugal. Nunca esperei. Podia ter sido tudo diferente com avisos, ajudas. Mas fomos tratados como animais, com polícia dentro de casa. Empurram as portas e põem as pessoas na rua, entram com armas como se fosse um crime. À avó, propuseram-lhe ir para um lar ou para Cabo Verde. Não quis. — Uma pessoa que trabalha 20 anos para depois ser tratada como um animal… A entrarem assim… é barraca mas é a casa, é o lar, o porto de abrigo da pessoa. Sentiu-se “humilhado”. — Ainda por cima à frente das pessoas, a tirar as coisas à pressa…Foi o pior dia da minha vida, repete. Não conseguia olhar para ninguém. A Habita está a apoiar 25 agregados familiares no 6 de Maio que estão fora do PER. “As pessoas não podem ser despejadas sem que haja uma alternativa”, diz a dirigente, Rita Silva, ex dirigente do Bloco de Esquerda. “Tem de haver uma resposta do Estado, seja do Governo ou da câmara. ”Por causa de situações como a de Mozer ou Ondina, a Habita escreveu várias vezes ao provedor de Justiça que ainda recentemente emitiu uma recomendação para que o PER seja revisto. José de Faria Costa disse na carta enviada ao Ministério do Ambiente (MA) — o supervisor do PER — que “a resposta não pode ser encontrada apenas pelos municípios”. Contactado pelo P2, o MA não respondeu a tempo desta reportagem. Deu dados: em 1995 estavam identificadas quase 48. 500 famílias para realojar, neste momento faltam 3301 famílias. O investimento total até agora no PER foi de 2, 4 mil milhões de euros. A Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”Terão sido estes os dados que o MA passou, esta semana, aos dois peritos em direitos humanos da ONU que vieram a Portugal em missão de recolher informações para avaliar o impacto das medidas de austeridade nos grupos mais vulneráveis, focando-se na habitação. Entre os locais que visitaram, estava o 6 de Maio. Esta terça-feira dão uma conferência de imprensa. A Habita fez uma queixa à ONU em 2012 sobre demolições e despejos. “Em Cascais, conseguimos que as mulheres com crianças fora do PER fossem realojadas”, diz Rita Silva. “Mas a Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições do 6 de Maio, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos. ”O mesmo aconteceu meses antes a Suleimane Baldé, 47 anos. Entraram e demoliram-lhe a casa. Ele ficou sem lugar para onde ir. Não recebeu qualquer justificação ou apoio. A fotógrafa Ana Brígida, que acompanhava as demolições (autora do portfólio que acompanha este texto), foi quem lhe tentou arranjar apoio através da linha de emergência social. Deu-lhe dinheiro para os transportes até ele chegar a um Alojamento de Emergência. Mas passados dias teve de sair. É o Instituto da Segurança Social (ISS) que presta apoio a quem fica na rua, mas “apenas nas situações de grave vulnerabilidade e desprotecção social”, segundo a assessoria de imprensa. E, “na impossibilidade de encontrar alternativa habitacional em tempo útil”, encaminha as pessoas para os Centros de Alojamento de Emergência, “mantendo-se o acompanhamento até à existência de condições de autonomia”. Operado cinco vezes, Suleimane não pode trabalhar nem voltar à Guiné-Bissau justamente por causa da sua saúde. Agora está no quarto de um amigo, depois de ter dormido numa garagem, ao frio, e numa mesquita na zona. O seu corpo é esguio e visivelmente frágil. Vivia naquela casa com mais quatro homens desde 2010. Em Fevereiro de 2015, vinha da mesquita e viu tirarem-lhe as coisas de casa. Já o tinham avisado. Mas Suleimane Baldé não tinha qualquer condição para pagar renda, não tem modo de trabalhar. Há oito meses que está sem casa. — Tenho dificuldade. Fiquei admirado com a câmara e a Segurança Social. Cadáver não precisa de comer. Cadáver não precisa de casa. Cadáver não precisa de dinheiro. Mas uma pessoa que vive precisa de ajuda. Antropóloga que acompanhou as demolições no bairro de Santa Filomena e no 6 de Maio, Rita Alves não tem dúvidas de que nestes processos estão a ser “violados um rol de direitos, do direito à habitação à intimidade e família”. Autora da tese de mestrado “Para uma compreensão da segregação residencial: o plano especial de realojamento e o (anti-racismo)”, diz: “O mais grave é a violência e a negação sistemática da dignidade às pessoas”, critica. Contextualiza o PER: nos anos 1990, aparece um discurso de reconhecimento da periferia “que faz uma racialização e criminalização dos bairros”. O programa é criado num período de projecção de Portugal (primeiro na Lisboa Capital da Cultura 1994 e depois na Expo-98). É um “projecto robusto” de realojamento que também faz “uma limpeza das cidades”. Além disso, o PER usa a palavra barraca quando na verdade “a maioria das casas são construções de alvenaria feitas por pessoas que trabalharam nas grandes obras públicas em Portugal”. Ao realojar, “não está a dar casa”: na maioria dos casos, as pessoas fizeram investimentos, sacrifícios, em territórios simbólicos que elas próprias transformaram. Na sala de Amália, 39 anos, ouve-se, por estes dias, a retroescavadora que destrói a casa do lado. — Eles vão partir a minha parede, diz, olhando para trás, assustada ao som da destruição. — A parede protege o meu quarto. Se partirem a janela, fica na rua — e isso mete-lhe medo. Ouve-se também, de vez em quando, o choro da neta de dois meses. As paredes tremem, e a filha, de 23 anos, também. Amália foi mãe aos 16/17 anos. Tem outro filho com dez anos. Vive com os três, sozinha. Já fez muita coisa na vida, entre elas, ser ajudante de cozinha, o último emprego que teve. Veio-se embora porque o patrão queria que ela ficasse a trabalhar de segunda a sábado, por 530 euros, em horário repartido (das 10h às 15h e depois das 19h30 às 23h30). Não aceitou. Ao fim de meses a insistir, conseguiu finalmente que ele lhe passasse uma carta para ela receber o subsídio de desemprego. Está a sobreviver com a ajuda do pai do filho e o abono de família de 40 euros. Mora há 13 anos no 6 de Maio, e é um dos exemplos de quem investiu na casa. Fez remodelações. E as mudanças notam-se. Entra-se por um quintal amplo onde há um sofá por baixo do telheiro. A roupa está estendida ao ar. Dentro de casa ouve-se o som da máquina de lavar. A filha aparece com a bebé. Enquanto pisamos o chão de azulejos em direcção à mesa da cozinha, ela diz:— Já fiz muitas obras. Mesmo lá em cima, para proteger das chuvas. A humidade continua, porém, a estender-se pelas paredes. Desde que começaram as demolições, e agora com a retroescavadora à porta, há mais água a entrar. O filho de dez anos tem asma, que “apanhou por causa da humidade”. Antigamente, todos os anos pintava a casa de fresco. Costumava comprar muitas velas e ambientadores para disfarçar o cheiro a esgoto e humidade. Não tem meios para sair dali. — Uma casa T2 são 400 e tal euros. O ordenado mínimo é 500 e poucos…A autarquia ajuda-a com um mês de caução e um de renda, mas Amália tem de encontrar uma casa para ela, os dois filhos e a neta por, no máximo, 300 euros mês. — Pedem contrato de trabalho, fiador, está muito complicado mesmo…Pagava 150 euros de renda, até que um dia disseram-lhe, na câmara, que o dono da casa tinha resolvido o seu caso pelo PER. — Fiquei, fiquei. Em 2007, ela chamou-me para eu entregar documentos. Disse que não tenho direito a PER, mas estava no programa Pro Habita [alternativa de apoio a quem estava fora do PER e que foi suspenso por alegada falta de verbas em 2009]. Fiquei com esperança de ter uma ajuda. Vou procurando trabalho, a minha filha também, se me ajudarem com avanço do princípio…Na autarquia deram-lhe até 19 de Dezembro para resolver a situação. Investigador em Estudos Urbanos, António Brito Guterres lembra que passaram 23 anos desde o PER, e isso significa que muitas pessoas morreram, outras já nasceram, novas foram morar para os bairros. Por isso há uma enorme massa de gente que fica de fora do programa. “Muita da resistência tem que ver com isto. Como é que se pode agarrar este processo sem actualização de recenseamento?”, questiona. Grande parte do problema, neste e noutros bairros do concelho da Amadora, está no facto de a CMA não ter construído o número de habitações suficientes para o recenseamento que fez, acusa Rita Silva. “O Estado tinha que encontrar soluções para dar habitação àquelas famílias, que não são assim tantas”. O parque habitacional da autarquia distribui-se por vários bairros periféricos, como o Casal da Mira, da Boba, do Silva ou o Bairro do Zambujal, e por casas dispersas em vários bairros do concelho. Carla Tavares, a presidente, diz que não há espaço nem meios para construir mais habitação social. Reconhece que a solução tipo Casal da Mira é a prova de erros que não se devem cometer. “As dificuldades de gestão e de vivência são imensas. ” É um mau exemplo porque “são 750 fogos, com seis andares, não é possível manter as relações de proximidade que havia” e as pessoas vivem longe de tudo. Nisso a CMA e a Habita estão de acordo. A aplicação do PER destruiu laços de suporte social que existiam e “guetizou”, acusa Rita Silva. Por isso defende “um realojamento in loco”. Explica: “O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”, argumenta. “Parte significativa” do terreno onde está o 6 de Maio “é municipal”, esclarece a autarca. Mas construir e realojar ali os moradores está fora de questão. “Vá visitar o Casal da Mira e percebe o que é realojar uma Azinhaga dos Besouros em 750 fogos. ” Quanto a Santa Filomena, os terrenos são privados. "O PER mandata a erradicação dos bairros degradados mesmo em terrenos privados. Ao contrário do que diz o Bloco de Esquerda e o Habita nunca entrou na câmara uma pretensão urbanística para aquele terreno, embora tanto quanto sei Santa Filomena está num fundo fechado", responde. O Casal da Mira, hoje freguesia da Encosta do Sol, é um lugar para o qual muitos não querem ir. Foi construído em 2004 e as rendas são calculadas com base nos rendimentos declarados, composição e características do agregado familiar. A autarquia financiou este empreendimento com 22, 6 milhões de euros. O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”Pelo menos é essa a narrativa que circula entre moradores e entre quem acompanha os realojamentos. “Rusga ‘rende’ sete presos”, “Polícia cerca Casal da Mira” são títulos da imprensa sensacionalista sobre o bairro. Com prédios brancos e laranjas todos iguais, é difícil lá chegar de transportes públicos. No Google Maps, por exemplo, não há circuito sugerido para autocarro, camioneta ou comboio. A porta do prédio para onde Maria da Piedade se mudou há pouco mais de um mês está aberta. Subimos no elevador. Na sala, a árvore de Natal já pisca com as luzinhas. Um móvel castanho tem fotografias de família e estatuetas de porcelana. Uma imagem da Mona Lisa enorme pendurada na parede finta quem está sentado num dos sofás. É um apartamento com uma boa sala e dois quartos. — Estou melhor, porque onde estava não estava bem, não tinha sítio certo. Maria da Piedade, 49 anos, vive aqui com o filho e o companheiro. O outro filho, a filha e a mãe ainda vivem no 6 de Maio, em casas diferentes. Em casa da mãe entra chuva, “estamos fartos de falar com a câmara”, queixa-se. Lá vivem seis pessoas: a mãe e os irmãos, um deles com deficiência auditiva e outros dois com deficiência mental. Está a tentar que sejam realojados junto dela. Entre a família, foi a primeira a ser realojada. Arranjou um advogado, depois de lhe ter sido dito que estava fora do PER. Morava, na verdade, no Estrela de África, na casa do pai dos filhos. Ele vendeu a casa e “deixou-a na rua”. Ficou contente por ir para o Casal da Mira, não reconhece o retrato negativo que traçam. Sabe que “a câmara não dá casa”: “aluga casa”. Doente crónica, desempregada, recebe Rendimento Social de Inserção. Cresceu ao mesmo tempo que os bairros Estrela de África e 6 de Maio. O pai chegou de Viseu eram eles pequenos. Punha-a a pedir esmola, a acartar papelão, a buscar água, ainda o bairro funcionava a gerador. Lembra-se bem das destruições no Bairro de Santa Filomena, quando subiu a uma retroescavadora para impedir que destruíssem a casa de uma mulher. — Na maneira como fazem às pessoas, só na Amadora acontece, queixa-se. Na Damaia sentia-se melhor. Tinha amigos vizinhos, “porta a porta”. Tinha transportes. Aqui só rodoviária: nem Carris nem metro. — Nunca vou esquecer do bairro 6 de Maio. A nossa casa é a nossa casa. António Brito Guterres fez tese de licenciatura em Serviço de Acção Social sobre o realojamento na Pedreira dos Húngaros (que acabou em 2003) e lembra que o que está a acontecer no 6 de Maio não é novidade. Há movimentos parecidos: quem foi realojado por vezes regressa regularmente ao bairro antigo, caso do Flávio, que todos os dias vai ter com as amigas a Santa Filomena, a uma das poucas casas que resistem. Volta porque pelo menos ali havia vida de bairro, o pai construiu a casa e aumentou-a à medida da sua família, explica num dia de sol. A sensação de ser “um espaço conquistado”, no sentido em que as pessoas tinham capacidade para decidir sobre ele, reforçava uma relação afectiva que parece desaparecer quando as populações são realojadas, analisa Guterres. Parece que o realojamento é negativo? “Nem sempre”, responde. “Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidade, o emprego, as relações com os vizinhos. Depois, o centro de saúde fica mais longe e a escola é mais segregada. ”Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidadeAntropólogo de formação, doutorado em Geografia, Eduardo Ascensão faz parte do Expert, um projecto interdisciplinar e internacional de investigação que estuda a política de habitação e o papel dos peritos no PER. Lembra que desperta o interesse dos colegas estrangeiros por ter incluído uma solução de realojamento maciço, como o Casal da Mira, onde vive Maria Piedade, numa altura em que na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de políticas já não se praticava (tinham sido substituídos por outro tipo de modelos como subsídio à compra ou ao arrendamento). “A maior parte desses modelos veio a revelar concentração de pobreza, situações problemáticas que fazem com que haja uma espiral para baixo, com corte das ligações económicas com o resto da cidade”, analisa. Autor do artigo “A barraca pós-colonial: materialidade, memória e afecto na arquitectura informal”, analisa a relação do PER com o passado colonial, pois a maioria dos recenseados na altura vinham das ex-colónias portuguesas em África. Olha para o programa como “um dos instrumentos da nossa reconfiguração social como país”. Por um lado, foi “maravilhoso”, afirma, por ser o primeiro programa de habitação pública com os imigrantes como destinatários. Por outro, as instituições do Estado, autarquias, IHRU várias vezes trataram “os destinatários de cor do PER com poder coercivo excessivo”. E isso fez com que “ficassem desprotegidos”, praticando assim “formas aproximadas de racismo institucional”, analisa. Exemplos: “A falta de voz com que algumas pessoas ficaram, o facto de em alguns sítios as populações brancas terem sido realojadas primeiro. ” Outro exemplo, o programa Retorno: “A indemnização era bastante abaixo de um fogo público e portanto havia aqui a ideia de que ‘ajudamos-te a ir embora e deixas de ser problema nosso’. ”O que o turismo tem que ver com as demolições?Neste momento, “o PER já não responde à sua função que é realojar, está é a justificar o despejo”, critica Rita Silva. António Brito Guterres acrescenta: “É intolerável as pessoas viverem em sítios esconsos, sem esgotos. Mas não realojá-las é escandaloso. O que está em causa é que estamos no século XXI e não dão alternativas além da rua. Dão dois meses de renda a quem não tem fiador, nem rendimento, nem muitas vezes documentos. ”Para Eduardo Ascensão, os agregados “não PER” “muitas vezes” têm condições “mais precárias e são mais pobres do que os que foram recenseados em 1993”. Defende que o facto de “serem administrativamente não PER” não os deve excluir. É taxativo: é preciso concluir o programa e “resolver de vez estes casos”, que têm sido “tratados de forma brutalmente opressiva por parte de agentes do Estado”, “injectando, se for preciso, financiamento adicional”. Situações como a de Amália, de Suleimane, de Ondina, de Mozer, em que o “dono da barraca” aproveita o seu próprio realojamento para fazer dinheiro, são minoritários, diz. “O Estado tem obrigação de providenciar habitação digna para estas pessoas. Não pode deixar as autarquias em roda livre e ser cúmplice de situações que já foram denunciadas. ” Se o investimento no PER foi de 2, 4 mil milhões, neste momento para fechar o programa é necessário “uma ínfima parte disto”. Acrescenta: “A transferência de populações deu imenso dinheiro a ganhar a muita gente. Menos às pessoas que lá viviam. ”O que devia ser feito ao PER? Primeiro concluir. Depois, planear com os moradores, defende António Brito Guterres: “Estou habituado a trabalhar em processos com as pessoas, por isso confio nisso para decidir melhor. ”A verdade é que, lembra, o próprio primeiro-ministro, António Costa, parece ter sugerido indirectamente o falhanço do PER na Cimeira Europeia de Bratislava, Eslováquia, em Setembro, ao apresentar como medidas de combate ao terrorismo a regeneração urbana, o desenho de políticas públicas específicas e “regeneração física dos bairros periféricos” na Europa. Algumas das soluções propostas pela Habita para resolver o problema da habitação social em Portugal passam pela expropriação e acordo com os privados nos terrenos em que foram construídos estes bairros, misturando depois a construção de habitação a custos controlados com a habitação privada (sendo que em alguns casos, como no bairro da Cova da Moura, a reestruturação seria suficiente). Apesar de serem consideradas barracas, é preciso lembrar que os proprietários pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis em quase todos estes casos. 6690 número de pessoas a viver em barracas em 2011, segundo o INE. Em 1981 eram 74. 603 em 1981. Mas a habitação social não chega aos 2%A realidade alterou-se muito nos últimos anos. O número de pessoas a viver em barracas passou de 74. 603 em 1981 para 6690 em 2011, segundo o INE. Mas a habitação social não chega aos 2%. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isto mostra que “não há política social de habitação neste país”, diz Rita Silva. “Depois do PER, não houve outro programa de habitação social. O Estado gastou muito dinheiro público desde os anos 1980 em créditos bonificados, que eram subsídios à banca através das famílias. E investiu muito pouco em habitação social”, critica a activista. As verbas deviam ter sido usadas para a habitação social, defende. “Os aumentos dos arrendamentos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são preocupantes. A pressão é enorme, faz com que esteja a haver aumentos em toda a AML de Lisboa e Porto, o que afecta a maior parte das famílias. ” A consequência é a população ser empurrada para os segundos e terceiros subúrbios. “A habitação social não tem de ser esta construção pobre, feia, para os pobres”, critica, por outro lado, Rita Silva. E sublinha: “A sociedade acha inaceitável que seja recusado um tratamento hospitalar a alguém por não ter dinheiro. Mas é bastante aceite que uma pessoa seja despejada por não ter dinheiro, nem alternativa. ”Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. ”
REFERÊNCIAS:
Sete refugiados olham-nos nos olhos: e agora?
Sanctuary, de Brett Bailey, coloca os espectadores no labirinto burocrático e moral em que a União Europeia se transformou desde a crise migratória de 2015. Na nova instalação-performance do polémico encenador sul-africano – até dia 24 em Lisboa, a partir de dia 2 no Porto – não há cadeiras confortáveis, só arame farpado. (...)

Sete refugiados olham-nos nos olhos: e agora?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Refugiados Pontuação: 18 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sanctuary, de Brett Bailey, coloca os espectadores no labirinto burocrático e moral em que a União Europeia se transformou desde a crise migratória de 2015. Na nova instalação-performance do polémico encenador sul-africano – até dia 24 em Lisboa, a partir de dia 2 no Porto – não há cadeiras confortáveis, só arame farpado.
TEXTO: Não é algo de que ele goste de se gabar, mas a realidade não tem parado de dar razão a Brett Bailey – só na última semana, por exemplo, a realidade deu-lhe 629 razões, uma por cada migrante resgatado pelo navio Aquarius que a Itália se recusou a receber (“Na nossa casa mandamos nós”, declarou para memória futura Matteo Salvini, o novo ministro do Interior, imediatamente aplaudido por 59% dos eleitores do país) e que após vários empurrões e o habitual non-sense europeu acabaram por encontrar um porto em Espanha. “Bom, e entretanto temos o ministro do Interior da Alemanha [Horst Seehofer] num braço-de-ferro com a chanceler [Angela Merkel], a ameaçar com deportações unilaterais. Definitivamente, as tensões na Europa estão a ficar descontroladas. E há mais tempestades a caminho”, diz o polémico encenador e artista visual sul-africano ao PÚBLICO, sempre no seu flow torrencial, antes de desligar o telefone. À hora em que nos dá esta entrevista sobre Sanctuary – a instalação-performance que até dia 24 acampa na Tobis Portuguesa, em Lisboa, e que de 2 a 7 de Julho sobe ao terceiro andar do Palácio dos Correios, no Porto –, Brett Bailey ainda não sabe que 86% dos alemães subscrevem a ideia de deportar os imigrantes ilegais rapidamente e em força, mas adivinha. Os meses que passou a visitar campos de refugiados, fronteiras “difíceis” e centros de acolhimento para migrantes e requerentes de asilo nos países europeus onde a questão migratória se tornou mais crítica foram bastante elucidativos – e antes disso já tinha aprendido tudo o que havia para aprender na África do Sul, “que após o fim do Apartheid, quando as fronteiras se abriram, se tornou a terra das oportunidades para milhões de pobres de toda a África subsariana” e, paralelamente, um viveiro de “violência xenófoba” que teve o seu apogeu em 2008, quando só numa semana 41 estrangeiros foram assassinados e 60 mil pessoas fugiram para campos de refugiados. Há mais de 15 anos que a África do Sul também é essa história pouco edificante de pobres contra pobres, e há mais de 15 anos que, com a sua Third World Bunfight, Brett Bailey a vem querendo contar nos seus espectáculos sempre apontados ao coração das trevas. Num dos últimos, Macbeth, que em 2014 trouxe ao Teatro Maria Matos, atirava à cara dos seus vizinhos africanos, mas também do Ocidente, a avidez com que os traficantes de diamantes e as multinacionais dos smartphones continuam a predar a República Democrática do Congo, onde nos últimos 20 anos se amontoaram 5, 5 milhões de cadáveres. Entretanto, como era de prever, África trouxe-o à Europa – Exhibit A (2010) e Exhibit B (2013), os seus esforços para denunciar a persistência dos “sistemas raciais” do colonialismo, visaram, respectivamente, o passado alemão da Namíbia e o passado belga da República Democrática do Congo – e aqui estava em 2015, quando as notícias cada vez mais apocalípticas sobre a “crise migratória” e os inquietantes sinais “do crescendo da resposta xenófoba” o puseram nervoso, ou seja desejoso de entrar em campo. O espectáculo a que chegou (muitos relatórios, muitas reportagens, muitos vídeos amadores, muitos documentários, muitas entrevistas presenciais e muitas visitas de estudo depois) é a sua maneira de dar voz às tensões “que estão a dilacerar a Europa” – vista de fora, diz, “a fractura é cada vez mais ostensiva”. E também a sua maneira de colocar os espectadores europeus, ainda que muito temporariamente, no labirinto burocrático e moral em que se transformou o lugar a que chamam casa, e que vários milhares de pessoas por ano morrem a tentar atingir. Aqui não há cadeiras confortáveis nem distância de segurança: apenas vedações, arame farpado, funcionários de rosto fechado, câmaras de vigilância e um fio de lã vermelho, cor de sangue, a conduzir o público, dividido por grupos de seis ou sete pessoas, até às histórias que Brett Bailey quis contar. Não são histórias reais. Mahmoud, o proprietário de uma loja de vestidos de Yarmouk, na Síria, que acaba sozinho com um bebé nos braços no campo de refugiados de Idomeni, na fronteira entre a Grécia e a Macedónia, ou Fatima, a vendedora de frutas e legumes de Turalei, no Sudão do Sul, que acaba em soutien num peep-show de Nápoles depois de uma odisseia de violências e violações, são ficções. Mas são ficções que nos olham directamente nos olhos, e nunca desviam o olhar. Tal como Simone, a reformada francesa, vizinha da “Selva” de Calais, que se entusiasma com os slogans xenófobos de Marine Le Pen na televisão, ou Marcel, o funcionário municipal alemão que até aplaudiu a disponibilidade de Angela Merkel para receber migrantes e refugiados mas agora acha sinistros os bandos de homens sem mulher e sem família que se juntam no jardim ao fim da tarde. São nove flashes, nove quadros-vivos da Europa tal como Brett Bailey a vê hoje. “Quis contar histórias similares às que encontrei nos campos de refugiados de Lesbos e de Calais, ou nos centros de acolhimento de Hamburgo, ou na fronteira entre a Áustria e a Eslovénia: histórias de migrantes que dão por si presos num limbo quando chegam à Europa, vindos de um país que viram violado ou destruído, e descobrem que afinal o lugar a que chegaram não é o santuário que tinham imaginado; e histórias de europeus que sentem que o seu próprio santuário tem sido violado por intrusos”, explica. Uma parte do que está em Sanctuary, “talvez uns 10%”, vem do que viu nos meses em que deambulou por esses purgatórios, “à procura de sons, de imagens, dos pequenos detalhes que tornam as coisas reais” – o rasto de “malas, roupas e coletes de salvação fluorescentes espalhados pela praia” em Lesbos depois da "relocalização" dos refugiados para a Turquia, as condições atrozes da “Selva” de Calais, entretanto desmantelada, a espera interminável, reunião após reunião, formulário após formulário, do nigeriano há 12 anos retido num abrigo em Palermo. Os restantes 90% são uma mistura de coisas – reais, como parte dos intérpretes, que a cada apresentação Brett Bailey recruta localmente a partir de entrevistas com refugiados, imigrantes ou activistas (em Portugal, haverá quatro performers novos: um iraquiano, um sírio, e dois cidadãos da União Europeia), e imaginárias, como o mito do Minotauro, a metáfora em que o encenador encontrou um chão para isto tudo. Sentados numa cadeira de rodas à porta de uma loja, entre cartazes do Syriza e anúncios de marcas de roupa, ou mantidos à distância por uma barreira policial, os figurantes de Sanctuary não abrem a boca. Mas Brett Bailey acredita que os vemos melhor aqui do que em mais um zapping apressado pelos telejornais, em mais um scroll pelo mural do Facebook, em mais uma corrida pelos corredores do metro: “Eu não estou só a pedir aos espectadores para olharem, talvez até lhes esteja a pedir o contrário. A principal instrução que dou aos performers é: olhem para os espectadores fixamente, sem desviarem os olhos. É muito desconfortável. E torna impossível não reflectir sobre a situação. Principalmente porque estamos habituados a ver estas pessoas entre anúncios, o último tweet idiota do Trump ou o gatinho fofinho que alguém postou. Aqui não há mais nada, não há distracções, não há interrupções: tens mesmo de te confrontar com estas histórias. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nesse processo, a história dos outros acabará por tornar-se nossa. Porque é aqui, em casa, que isto está a acontecer, e está a acontecer há muito tempo, desde a Antiguidade. O mito que estrutura a peça é a história do neto de uma princesa fenícia raptada por um deus grego, meio homem, meio touro, preso num labirinto e condenado a devorar rapazes e raparigas até à eternidade – e a princesa chama-se Europa. “Era irresistível ir buscar um mito grego, que ainda por cima é um mito sobre as relações entre a Europa e o Médio Oriente, via Mediterrâneo, porque parte desta crise está a desenrolar-se na Grécia e tem a sua origem na Síria”, diz o encenador. E quem é o Minotauro desta história? “Ah, boa pergunta… Acho que é a ganância. É a ganância que nos desumaniza, que nos faz perder de vista que as pessoas são pessoas e esquecer que somos em parte responsáveis pela destruição dos países de onde estas pessoas estão a fugir. ”Ao contrário do que aconteceu quando replicou os infames zoos humanos que divertiram os europeus do século XIX para mostrar como o colonialismo não é uma história totalmente ultrapassada – a apresentação de Exhibit B acabou cancelada em Londres e Paris na sequência de petições e protestos violentos –, ainda ninguém lhe perguntou o que é que dá a um branco sul-africano o direito de falar em nome de migrantes e refugiados sírios, sudaneses, iraquianos ou eritreus. “Aprendi muita coisa com esse terrível episódio. Muita coisa má, também, porque trouxe imensa auto-censura ao meu trabalho. A sensação que às vezes tenho é de que fui atropelado por um carro e tive de aprender a caminhar outra vez. Na primeira versão de Sanctuary ainda estava nitidamente a cambalear; entretanto, reescrevi a peça completamente”, conta. Depois da estreia em Atenas, e de uma digressão que passou por Hamburgo e Marselha, Sanctuary chegou esta terça-feira a Portugal para integrar o ciclo com que o Teatro Maria Matos se despede, dedicado ao tema das Migrações, e que inclui também, esta quinta-feira, às 18h30, uma conferência com o sociólogo argelino Mehdi Alioua e a jurista francesa Claire Roudier, e, a partir de dia 28, uma série de apresentações da peça Provisional Figures, que Marco Martins construiu com a comunidade de imigrantes portugueses de Great Yarmouth. Será o primeiro país no roteiro desta peça onde a presença dos refugiados não tem uma “dimensão cataclísmica”, nota Brett Bailey. Estamos longe desses lugares onde ele encontrou a “desesperança” que, se tudo correr bem, dominará por estes dias os corredores da Tóbis e do Palácio dos Correios. “É uma sensação difícil de descrever: a sensação de estar encurralado num lugar tão longe do sonho, sem poder sair, e de mesmo assim o sonho permanecer. ”
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos. (...)

Isto é uma guerra, dizem os bóeres de Terre"Blanche
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-05-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Terre"Blanche era o rosto da extrema-direita sul-africana. Sobre a sua campa, o sucessor jura pela independência bóer. Acha que os negros vão atacar os brancos e portanto os bóeres estão a treinar-se para a guerra. Viagem ao mundo rural, onde 85 por cento da terra continua na mão dos brancos.
TEXTO: Às 10h da manhã, arranha-céus com roupa estendida no centro de Joanesburgo, e a meia-hora de distância as grutas onde viveram os nossos avós australopitecos. Bem-vindos à África do Sul. Estamos a 1500 metros, mas não se dá por isso. Saindo da cidade, é um infindável planalto. E, à medida que continuamos para noroeste, estufas, milharais, girassóis abertos, fardos de palha, vacas e ovelhas, fazendeiros brancos, trabalhadores negros. Dezasseis anos após as primeiras eleições democráticas, 85 por cento da terra agrícola continua na mão de brancos, e esta não é excepção. No tempo do apartheid, era a província do Transvaal, uma das regiões dominadas por afrikaners. Os afrikaners vêm de holandeses, franceses e alemães que se instalaram na África do Sul - os holandeses colonizaram o Cabo no século XVII; franceses protestantes chegaram em fuga às perseguições católicas; juntaram-se-lhes alemães (e ainda escandinavos, irlandeses, escoceses). Descendentes deste caldo, os afrikaners falam afrikaans (uma deriva do holandês), e constituem 60 por cento da população branca. Os outros brancos têm o inglês como língua materna e provêm dos colonos ingleses. Foi para escapar ao poder inglês que muitos afrikaners subiram do Cabo até estas províncias do Norte, no século XIX. Domaram a terra, e por isso são chamados bóeres, ou seja, agricultores. Mas agricultores-guerreiros, como se provou em duas guerras com ingleses e várias batalhas com povos nativos, como os zulus. Uma delas, a de Bloedrivier, em 1838, tornou-se um mito afrikaner: Deus mostrou-lhes que eram o povo escolhido de África. É esse mito levado à letra que alimenta a extrema-direita afrikaner, personificada por Eugène Terre"Blanche. Na versão supremacista dele, os bóeres não são apenas europeus que se tornaram africanos. São os verdadeiros africanos. E a África do Sul é a Terra Prometida. O mundo já não se lembrava deste punhado de eleitos divinos desde o fim do apartheid, mas a 3 de Abril Terre"Blanche foi encontrado na cama sem calças e a cara desfeita. Espancado com um tubo de ferro e esquartejado com uma panga (faca grande), morreu assim, aos 69 anos. Dois negros entregaram-se à polícia como autores do homicídio, alegando autodefesa. O mundo receou uma explosão em vésperas do primeiro Mundial em África. Centenas de polícias foram destacados para o funeral. Milhares de afrikaners acorreram. Tudo isto aconteceu em Ventersdorp, a terreola para onde estamos a avançar. Avó, mãe, filhaA primeira coisa que se avista é a torre de uma igreja. Igreja, lojas-armazém, bomba de gasolina, vacas na erva. Podia ser uma terreola do Kansas, com duas diferenças: os letreiros estão em afrikaans e só se vêem negros e mestiços na rua. Depois entramos num supermercado agrícola, e há uma branca obesa semiadormecida ao balcão, e atrás dela um branco a limpar as mãos a um pano. Cheira a fritos. Perguntamos pela sede do partido de Terre"Blanche, Movimento de Resistência Afrikaner (AWB, na sigla em afrikaans), onde o sucessor nos espera. - Viram à esquerda na igreja e seguem em frente - explica o homem. Parece fácil, mas perdemo-nos até dar com a rua, uma daquelas ruas de brancos com casas de tijolo, relvado e pick ups. A pick up dos bóeres é uma extensão da casa, serve para a fazenda e para os churrascos. E no pátio de uma das casas, cá está uma pick up, duas mulheres dentro e uma fora, a despedir-se. São avó, mãe e filha, Lina, 65 anos, Alta, 42, e Joanne, 18, todas com os mesmos olhos verde-clarão, que se enchem de lágrimas quando se fala em Terre"Blanche. Cada fazendeiro tem os seus lutos. - O meu marido e o meu irmão foram mortos há seis anos - diz Lina. - Estavam a apanhar trabalhadores ao pé de Pretória e deram-lhes um tiro. Quem?Lina hesita. - Não se sabe. Até hoje não o apanharam. Joanne, a mais nova, inclina-se para a janela. - A situação é muito má. Há um mês, no Free State [província vizinha, a sul], um negro veio com uma faca para o meu irmão. Ele tirou-lhe a faca e prenderam o meu irmão 24 horas. Os polícias também eram negros. Muita gente agora teme pela sua vida. Já ninguém quer viver nas quintas. Mas sem quintas não haverá comida. - O meu marido tem abelhas na quinta de Terre"Blanche - acrescenta a mãe. - E gostava muito dele. - Ele era muito gentil para toda a gente - reforça a filha. A avó começa a chorar. Às armasA sede do AWB é aquela casa mais à frente com portão de grades e uma velha carruagem à entrada. Pastores-alemães saltam na relva, à volta do novo líder. - São os cães do senhor Terre"Blanche, não fazem mal - assegura ele. Apresenta-se com férreo aperto de mão. André Visagie, 56 anos, cabelo cor-de-palha, sorriso fino e aquela pele dos ruivos que a todo o momento pode ficar vermelha. Além dos cães, rodeiam-no três rapazes de pistola no bolso e cara fechada, a ganharem barriga. Entramos. Átrio com ursos de peluche, sala de recepção com duas senhoras de província, e depois a sala do líder. Uma secretária imponente rodeada de retratos ancestrais e na parede principal a enorme pintura de uma águia a segurar nas garras o símbolo do AWB: uma espécie de suástica negra. André identifica a galeria de ilustres. - Eram generais da guerra anglo-bóer. E este é o senhor Terre"Blanche a cavalo. No seu inglês muito claro, diz sempre "Mr. Terre"Blanche". E, a propósito, nos nomes do AWB parece haver uma estranha predisposição racial. Terre"Blanche significa terra branca. - E o meu nome, André Visagie, significa cara branca, ou cara limpa - assegura ele, sorridente. Puxa duas cadeiras e sentamo-nos em frente à secretária, como se fosse um altar. O cadeirão do líder morto mantém-se vazio. - A situação é tensa, a nossa gente está furiosa. E agora o povo bóer afrikaner reclama a independência porque não recebe protecção do governo neste genocídio. Desde 1994, mais de 3000 fazendeiros foram mortos por negros. E mais de 50 mil brancos das cidades foram mortos por negros. Segundo as estatísticas, desde o fim do apartheid foram mortas cerca de 650 mil pessoas. Se 53 mil eram brancas, as outras 600 mil eram negras. Ou seja, na África do Sul morrem 12 vezes mais negros que brancos. Mas os fazendeiros brancos têm sido, de facto, um grupo particularmente atingido. Os sindicatos apontam problemas sociais por trás disso: os negros continuam a ser maltratados, com salários muito baixos, e os fazendeiros usam trabalho imigrante ilegal ainda mais barato, deixando muita gente sem subsistência. Os dois rapazes negros que mataram Terre"Blanche trabalhavam para ele. Um tem 28 anos e veio do Zimbabwe. O outro tem 15 e é da township vizinha, onde vivem os que trabalham para os brancos. Segundo o seu advogado, pastoreava o gado de Terre"Blanche das cinco da manhã às sete da tarde, por 50 euros por mês, uma taça de comida e alojamento num estábulo. Porque é que Terre"Blanche estava sem calças? A polícia disse que encontrou sémen nas partes íntimas. Levantou-se a hipótese de ele ter tentado violar os rapazes, ou de lhes ter pago por sexo. Também se levantou a hipótese de terem sido os rapazes a puxar-lhe as calças para o castrar. Crê-se que o fazendeiro lhes devia dinheiro. O processo vai continuar nos próximos meses. André Visagie não tem dúvidas. - Foi assassinado por razões políticas. É absurdo pensar num crime sexual. A imprensa fez do senhor Terre"Blanche um racista. Então, tem de decidir se ele é racista ou homossexual com negros. Não bate certo. Porque haveriam os rapazes de ter razões políticas para o matar?- Porque ele tinha a capacidade de unir os bóeres. Mas o AWB é um partido minoritário entre os bóeres. André sorri o seu sorriso fino, águia por trás das costas. - Só posso responder-lhe com o número que foi ao funeral, 20 mil. Gente de todo o país. As reportagens mencionaram "alguns milhares". A BBC falou em três mil. E a maior parte eram fazendeiros que não pertencem ao AWB. - Mais de mil foram ao funeral em uniformes do AWB. Caqui, e aquela suástica. Com quanta gente conta, então, o AWB?- Entre 100 e 150 mil pessoas. Como sabe isso?- De terça a quinta estamos a fazer reuniões pelo país, e chegamos a ter sete mil pessoas. Tenho falado do futuro da nação bóer. Recebemos mensagens a dizer que o Zimbabwe vai mandar os seus veteranos de guerra treinar os negros da África do Sul para tomarem as quintas dos brancos, como no Zimbabwe. "Mata o bóer"No Zimbabwe, Robert Mugabe levou 4000 fazendeiros brancos a deixar o país. O Presidente Jacob Zuma garantiu que aqui não acontecerão tomadas de terra. Mas o Zimbabwe é o fantasma dos fazendeiros sul-africanos. E para isso tem contribuído Julius Malema, o líder da Juventude do ANC, onde se destacaram homens como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Oliver Tambo. Longe dessa tradição conciliadora, Malema é um incendiário que insiste em cantar uma velha canção anti-apartheid com as palavras "mata o bóer". Os fazendeiros acusam-no de incitar assim mortes como a de Terre"Blanche, e o ANC baniu a canção. - A invasão das fazendas vai acontecer aqui - garante André. - E a nossa primeira linha de defesa é dizer às pessoas que vão para as quintas e resistam. Armem-se para quando forem atacados por esta gente negra. Um milhão de pessoas da nação bóer já fugiu para escapar a este genocídio. O fim do apartheid gerou medos. Dos 4, 4 milhões de brancos da África do Sul, cerca de 800 mil partiram. Mas ao contrário do que muitos temiam, não foram só alguns negros a enriquecer. O poder de compra dos negros subiu 37, 5 por cento, mas o dos brancos subiu 83, 5 por cento. Apesar dos programas de discriminação positiva para negros, os brancos ganham hoje sete vezes mais do que os negros. São ainda os efeitos do apartheid. Não só os negros quase não tiveram acesso a boa formação como, desde o chamado Natives Land Act de 1913, os brancos ficaram com 87 por cento da terra. O governo quer que até 2014 um terço da terra agrícola passe para negros, mas até agora apenas passaram dois por cento. Isto é combustível para o populismo de Malema. O mundo admirou a contenção dos negros sul-africanos que depois de décadas de opressão não tocaram na propriedade branca. Quando o AWB de Terre"Blanche tentava impedir a democracia com atentados terroristas, Nelson Mandela manteve o país calmo. Foi um militante do AWB que assassinou o popularíssimo Chris Hani do ANC antes das eleições livres, e Mandela evitou a vingança com um apelo histórico. Desde que surgiu, nos anos, 70, a história do AWB é de confronto e violência. E por trás dessa história esteve sempre Terre"Blanche, a acicatar multidões, apesar do álcool e de nem sempre se aguentar no cavalo. A jovem bóer Joanne pode recordá-lo como gentil, mas não será essa a memória do empregado da bomba de gasolina que Terre"Blanche espancou e do segurança que tentou assassinar, ambos negros. O segurança ficou paralisado e com danos no cérebro. Eugène Terre"Blanche foi condenado a seis anos e cumpriu três, de 2001 a 2004. Quando saiu, anunciou-se cristão renascido. Independência ou morte- Isto é uma guerra - resume o seu sucessor. - É uma guerra que a polícia já não controla e temos de nos proteger. Cada pessoa está armada. Eu tenho as minhas armas de fogo, a minha mulher tem as dela. E entretanto, as crianças aprendem. - Ensino os meus filhos a disparar. A minha mais nova tem 13 anos e dispara melhor que eu. Tínhamos nove repúblicas bóeres e queremos a independência. Não estamos disponíveis para ser absorvidos nesta nova África do Sul. Temos a nossa religião, a nossa cultura, a nossa língua. E porque não ter tudo isso entre os negros?- Pela mesma razão que os portugueses não vivem com os espanhóis. Não é por serem pretos e brancos misturados, é por serem pessoas de nações diferentes. Porque é que não podemos ter uma nação nossa? É por sermos brancos? O apartheid não era apartheid, era separar nações diferentes. Com 75 por cento da população apertada em 13 por cento do território. - As fronteiras fazem paz. Primeiro, vamos abordar o governo e reclamar a nossa terra. Depois vamos para o Tribunal de Haia, para as Nações Unidas e para a Carta das Liberdades. Nós, quem? O AWB?- A Frente Afrikaner, formada nos últimos dois anos, que tem todas as organizações afrikaners. Teremos eleições no próximo ano. E até lá?- Não temos outra hipótese senão dar treino militar aos nossos homens. Quantos?- Os suficientes. Sorriso fino. - Não direi quantos. Estão a ser treinados em todo o país. Não põe a hipótese de partir?- Não. Podem matar-me e exportar o meu corpo, se quiserem. É o meu país. Os meus antepassados pagaram-no com sangue e eu tenho o direito de ficar. A campa de Terre"Blanche fica a 15 quilómetros, fora da cidade. André mete-se no carro com os seus três guarda-costas e arrancam. Vão levar-nos até lá. Passamos a cidade, estrada de asfalto, depois um caminho de terra à direita, sem qualquer sinal. Milho de um lado, capim do outro. Os dois carros saltam entre as pedras. Quando acaba o caminho, é mato mesmo, até umas árvores. Aí, a céu aberto, estão as sepulturas da família Terre"Blanche, várias, desde o século XIX. A campa nova destaca-se por estar coberta de flores embrulhadas em plástico. Como as flores apodreceram, ao longe parece lixo. Depois, ao perto, vê-se uma cruz de madeira no chão com palavras em afrikaans. - "O nosso herói descansa em paz" - traduz André. Metade da campa está guardada para a mulher de Terre"Blanche, que se mantém na casa de Ventersdorp e não fala com jornalistas. - Esta casa está vazia - diz André, apontando a quinta ao fundo. - E vendeu-se o gado dele. Contempla a cabeceira da campa, onde está o símbolo do AWB, com aquela suástica de três pernas. - Sabe o que isto significa? São três "7" que representam as três figuras de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. É o número perfeito, 777, em contraste com o de Satã, 666. É o símbolo de Deus que adoramos. E não receiam a comparação com a suástica nazi?- Não, porque a suástica nazi é assim. . . . - agarra num pauzinho e tenta desenhá-la na terra, mas engana-se. Depois acerta. - E o círculo vermelho à volta é o sangue de Cristo que nos lava. A nossa organização está enraizada na religião. Exemplo de um líder no mundo que admire?André mira o céu. - Eugène Terre"Blanche. Um líder do século XX?- Não consigo pensar em ninguém melhor que Eugène Terre"Blanche. O que pensa de Nelson Mandela?- Hum. Um prisioneiro libertado, a servir uma sentença por bombardear gente inocente. Talvez para o seu povo fosse bom, mas para nós não. E apontando as cores na campa. - Não reconhecemos a nova bandeira e o novo hino. Não nos importamos de os ter como vizinhos, se querem ter uma taxa de crime única no mundo, não nos importamos. Mas queremos a nossa nação, a nossa língua. Ninguém tocou no afrikaans. - Mas agora temos 11 línguas oficiais! É um circo!Depois cala-se, a olhar a campa. - Ainda não acredito que o meu líder tenha morrido. E de uma forma tão trágica. Um dos guarda-costas vem por trás e apaga o desenho da suástica com o pé. O novo líder levanta a cabeça. Agora não há sorriso, e a cara está vermelha. - Diga às pessoas que se protejam quando vierem para o Mundial. Os criminosos vão apontar aos visitantes. A toda a volta é capim. O sol desce rápido, como só em África. O medo continuaNo centro de Ventersdorp continuam a só andar negros, mas é difícil encontrar quem fale. Em nenhuma township encontrámos esta relutância. Júlia, 43 anos, três filhos, está sentada na sua pequena drogaria, onde não parece haver mais de dez coisas para comprar. Grande parte das lojas é de brancos. Isto para ela é uma novidade. - Trabalhei nas quintas a apanhar milho. A maior parte das pessoas aqui trabalha para os brancos. Alguns são bons, tratam bem as pessoas, outros não. Mais adiante, Mamase, 28 anos, é empregada de uma loja de móveis. A dona branca está lá ao fundo, ao telefone. - Eu vivo na township. Venho todos os dias com os meus pés. - Ri-se e aponta os pés. Conhecia Terre"Blanche?Ela ri. Não diz nada. Depois diz:- Conheço-o desde miúda. Lembro-me de estar na escola e a professora nos mandar sair porque pensavam que havia uma bomba do Terre"Blanche. Cá fora, de boné, está o carteiro Nadazana, 46 anos. Primeiro não quer falar, depois faz muitas perguntas. - Houve medo por causa da morte do senhor Terre"Blanche - explica, enfim. - Eu cresci aqui. Conheci o senhor Terre"Blanche há muitos anos. Fizeram uma coisa má em matá-lo, mas ele era cruel. Porquê?- Era racista. Tivemos medo que houvesse uma vingança dos brancos. As pessoas têm medo de falar, porque podem ver-nos no jornal. Quem?- Os gajos do AWB. Estas lojas são todas de gente do AWB. Nem de propósito, um carro com várias mulheres brancas encosta junto ao passeio e chama Nadazana. Ele debruça-se para responder. Depois o carro arranca. Nadazana viveu 30 anos sob o apartheid. É um homem experiente. - Perguntaram o que é que eu estava a falar convosco - explica. - E eu disse-lhes que vocês eram estrangeiros que queriam investir na África do Sul. Esta é a primeira de várias reportagens até ao início do Mundial.
REFERÊNCIAS: