Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer
É um caminhante que faz perguntas e procura respostas na literatura. No seu último livro, a primeira pergunta foi: como lembrar sem morrer de dor? Nele, faz o luto da morte do filho, vítima da guerra entre Israel e o Líbano, em 2006. (...)

Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um caminhante que faz perguntas e procura respostas na literatura. No seu último livro, a primeira pergunta foi: como lembrar sem morrer de dor? Nele, faz o luto da morte do filho, vítima da guerra entre Israel e o Líbano, em 2006.
TEXTO: Uma conversa com o escritor David Grossman raramente começa pela literatura, talvez porque a sua escrita ande sempre muito colada à realidade. Israelita, natural de Jerusalém, onde nasceu em Janeiro de 1954, tem associado o seu nome à luta pelo fim do conflito que se eterniza entre o seu país e a Palestina. Nos seus romances, a tragédia de viver, pensar e amar num território em guerra assumem uma densidade invulgar que o tornam um dos mais respeitados autores em todo o mundo. Há nove anos, a guerra — desta vez com o Líbano — matou o seu filho Uri, de 21 anos, quando escrevia um livro sobre o medo de perder um filho para a guerra. Até ao Fim da Terra, publicado em Portugal em 2012, foi a “casa” onde se refugiou quando não sabia como viver. Terminou-o numa altura em que ainda lhe era difícil falar da morte. O luto seria feito com um livro “estranho”, chama-lhe “criatura”. Foi o seu modo de aprender a viver com a memória. Falling Out of Time saiu em 2014 e será editado em Portugal em 2016. Foi esse livro que permitiu esta conversa, em Cascais, onde o escritor esteve como convidado para o festival internacional de cultura no passado domingo. Começou com literatura e terminou com gargalhada. Sim, acho que é um bom modo de se estar nesta vida. A vida é ofensivamente pequena e muitos de nós esforçam-se demasiado em não ser eles mesmos, não ouvindo o que deveriam ser. Muita da nossa realidade é-nos imposta por expectativas de outras pessoas, pelos ditames de outras pessoas e vemos muita gente a viver em paralelo em relação às vidas que deveriam viver. Porque fizeram a escolha profissional errada, escolheram o casamento errado, muitas vezes com o género que negam. Escrever é uma maneira muito eficaz de não negar a nossa própria vida, não nos evadirmos da nossa vida, de confrontar tudo o que a nossa alma ou corpo nos sugere que confrontemos. Quando perdemos o Uri, eu estava a escrever Até ao Fim do Mundo, que era sobre o sentimento de perder um filho na guerra. Olhando em retrospectiva, parece estranho, mas é algo que muitos pais que vivem em Israel sentem, a ansiedade de perder os seus filhos. Depois dos sete dias de lamento — no judaísmo temos sete dias de luto, o shivá, que devo dizer que é uma das grandes invenções do judaísmo…Todas as pessoas que fazem e fizeram parte da nossa vida vêm até nós para estar connosco e com os nossos e fazem-nos esquecer a dureza do nosso sofrimento nos primeiros sete dias. Eles não nos deixam sós, não estamos sós, eles abraçam-nos, acodem-nos, mesmo fisicamente. E, nesse momento, toda a nossa vida passa à nossa frente. Os nossos amigos do jardim-de-infância vêm, os do liceu, da tropa, da universidade, de todos os trabalhos que tivemos, todos vêm e ao estar connosco expressam algo que é muito mais forte do que palavras. Mas, claro, todos sabemos que é apenas por uma semana e que depois somos outra vez confrontados com a nossa ferida. Quando no dia a seguir ao shivá, voltei ao pequeno espaço onde trabalho, comecei a reescrever a história que naqueles dias era a única coisa sólida na minha vida. Era o único lugar que se assemelhava a uma casa. Todas as outras casas estavam destruídas pela catástrofe. Nada estava assegurado, garantido. Nada [pausa]. Senti uma espécie de instinto, de responsabilidade pelas personagens, pela história em que estava a trabalhar havia tanto tempo. Sim. Trabalhei como um carpinteiro, acho. Ou como um sapateiro. Não muito com a minha cabeça, mas com um instinto da fisicalidade das coisas e apenas para continuar esta casa que era a história, intocada, sólida. Mas mais tarde comecei a notar que não era apenas o tempo que impedia as paredes de cair, mas que estava a incutir aspectos nas minhas personagens, características, dei-lhes notas muito específicas, dei-lhes calor e vitalidade e sexualidade e humor e sensibilidade. Comecei a sentir que essas coisas continuavam em mim. De certa forma, sim. Estava surpreendido por ainda ter estas coisas em mim. Quando aquilo aconteceu, Amos Oz e A. B. Yehoshua, amigos muito próximos, vieram imediatamente, no mesmo dia, e ambos sabiam o que eu estava a escrever, porque costumamos conversar entre nós sobre o que cada um escreve e mostramos versões uns aos outros. Eles sabiam isso e sabiam o que me estava a acontecer. Lembro-me de lhes dizer que não sabia se era capaz de salvar o livro. E Amos Oz respondeu-me: “É o livro que te vai salvar a ti. ”De uma certa maneira, sim. Chamo-lhe “criatura”. Tem a sua própria vida (risos). Depois da morte de Uri, levei mais um ano a terminar Até ao Fim da Terra. Quis permanecer leal, fiel a essa história, ao que ela era antes de a realidade me mudar. Eu queria que o livro permanecesse como era antes. O livro não era sobre a perda, mas sobre o medo da perda. Há uma grande diferença. Era sobre essa ilusão de que podemos combater o medo da perda, de que podemos prevenir a perda. É o que Ora faz. [Ora é a protagonista, uma mulher que deixa a sua casa em Jerusalém e caminha para a Galileia, tentando fugir de possíveis mensageiros que a queiram informar sobre a possível morte do filho, em Hebron. ] Com o seu pensamento mágico, ela luta contra a ameaça de morte que está sempre presente, que é uma constante, sobre o seu filho Ofer. Ela conta a sua história, os pequenos momentos de devoção, culpa e frustração, sentimento de falhanço, de amor e cuidado que depositamos num filho. Ela sente que ao fazê-lo ela combate a ameaça, a selvajaria, a dureza do mundo e que ele enfrenta e ela com ele. Mas o novo livro, Falling Out of Time, foi depois da perda. O que significa continuar a viver depois de ter experimentado uma coisa assim? E como lembrar? Como separar a memória da dor? Toda a memória era tão dolorosa que é preciso parar de lembrar, tinha de parar de lembrar. Era como tocar em electricidade com mãos molhadas. Acho que foi algo que descobri nesses anos, que quando se perde alguém não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do medo de lhe tocar. Há espaços da nossa vida onde não queremos mais entrar porque são intoleráveis. Foi então que senti que queria lembrar. Não queria que grande parte da minha vida fosse confiscada pelo luto. Eu teria de viver a dor para lá chegar. Como é que se faz isso? Como se separa a dor da memória e como esquecer sem morrer disso? [Pausa] É muito, muito complicado. Como esquecer sem matar e como lembrar sem morrer? Era de tudo isso que andava à procura com esse livro. Ajudou. Era inevitável. Não posso perceber como fui capaz de…Sim, evitar escrever sobre isso. Sim. Há fases na vida. Muitas vezes me perguntavam sobre isso e eu não era capaz de falar. Claro que falava com a minha família e amigos, mas levou-me tempo até ser capaz de dizer o que estou a dizer aqui. Acho que escrever esse livro tornou isto possível. Escrevi tantas nuances de luto e depois entendi este lugar que quis atingir, onde quis chegar, um ponto de encontro muito evasivo, sempre a tentar escapar, que é o que está entre a vida e a morte, um lugar onde podemos continuar a arranhar o exterior desta dimensão hermética e monolítica da morte. Eu sou um não crente, sou uma pessoa secular. Não posso retirar conforto da ideia de uma vida além da morte ou de paraíso ou de deus. Sim. Há muita solidão, mas prefiro a solidão a qualquer tipo de ilusão que vem do acto de acreditar numa história picaresca de deus e diabo e paraíso. Quem me dera conseguir acreditar, mas não consigo. Para mim, isso não é verdade. Se quem acredita retira disso algum conforto, alguma ajuda, fico feliz por eles, mas eu não conseguiria retirar algum conforto disso. Sinto que o único lugar onde posso sentir no mesmo segundo vida e morte é no espaço da arte, da criação, da literatura, da prosa, da poesia, no cinema, no teatro, na música. Para mim, é nesses sítios que a vida de facto acontece e é neles que estamos totalmente cientes da morte. Esse lugar da arte não é um lugar assustador, nem sequer um lugar triste, é um lugar profundo…Exactamente. Um lugar de um entendimento profundo. Eu comecei a pensar em todos os livros que li, todos os filmes que vi, as músicas que ouvi, e eles foram tão significantes, criaram-me, fizeram-me crescer e trouxeram-me a um maior entendimento do que sou, desde criança. Tudo aconteceu sempre neste ponto, todos estavam nesse ponto entre vida e morte. Acho que toda a peça de arte séria deve ter lugar aí, nesse intenso espaço. Sim, está sempre a lembrar-me da morte. Sim. Muitas vezes me zanguei, senti raiva daquele lugar, e frustrado, muitas vezes desesperado, mas é o único lugar que entendo. Vamos assumir que a partir de hoje vou viver aqui em Cascais. Acha que alguma vez eu seria capaz de entender o lugar, o comportamento das pessoas, as suas memórias, as histórias de embalar que os seus pais lhe leram, as cantigas de criança? Nunca iria conseguir. Só em Israel sou capaz. E como a vida é tão tremendamente curta, quero viver a minha vida num lugar relevante, num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim, mesmo quando me repugna ou me faz perder a cabeça. Sim. É verdade. Quando ele afirmou que iria interferir, eu imediatamente retirei a minha candidatura. Tinha lido nos jornais que era o principal nomeado. Achei que o que ele fez foi ultrajante. Mas ele fez isso e eu sei de onde vem essa atitude. Sei interpretar a sua maneira de pensar, porque é que enquanto primeiro-ministro interfere na escolha de um prémio literário num Estado democrático. Vê, tudo isto é relevante, é irritante. Israel é uma casa, no sentido em que entendo o país. Infelizmente não é a casa que eu desejaria, onde qualquer cidadão se possa sentir seguro, possa sentir a doçura da pertença. Esse lugar ainda não é assim, porque a mensagem que passa é que enquanto os palestinianos tiverem ali a sua casa nós não teremos a nossa. É uma tragédia, porque para mim a definição mais profunda de um judeu é a de alguém que nunca se sente em casa em nenhum lugar do mundo, mesmo nos sítios mais amistosos. Vivemos sempre no perigo de ser atacados ou perseguidos ou expulsos. Era suposto que Israel fosse a nossa casa porque este é o lugar de onde somos originalmente, enquanto povo e religião e cultura e língua, e tem potencial para ser uma casa, e desejamos que o seja. Como lhe disse, quero estar lá, quero que os meus filhos estejam lá, quero que seja um país atractivo para os mais jovens, mas enquanto não houver paz não será uma casa. Quando se perde alguém, não se perde só a pessoa e o futuro que ela poderia ter, mas perde-se também o seu passado e, com isso, o nosso próprio passado por causa do medo de lhe tocarNão consigo separar a arte do real. A arte é um meio de estar no mundo real e é outro modo de descodificar a vida além da religião, da psicologia. As religiões são modos diferentes de olhar a vida, de acomodar o crente. A psicologia faz o mesmo e a arte também. Todas nos sugerem um modo de entender mais neste pequeno período de tempo que é uma vida. A arte é isso, uma maneira mais precisa de estar na vida. Ela ajuda, em especial porque a vida está a ser formulada pelos meios de comunicação social, e eles são uma alternativa muito frágil para essa descrição. Pensamos muitas vezes nos mass media como um meio de chegar às massas, mas eles são um meio de fazer com que os seres humanos pensem em si enquanto parte de uma massa, transforma-os em massa… É um processo terrível. O ser humano está a tornar-se uma multidão. A sua vida interior e a de biliões de pessoas estão a ser formuladas pelo que a televisão e todos os meios de comunicação lhes dão, lhes mostra, convencendo-os de que devem pensar e sentir de uma certa maneira. É uma mistura de kitsch, de posição farisaicas, de agressão, de qualquer coisa violenta contra o modo como somos. Nesse mundo de anonimato, a literatura pode ajudar-nos a reconquistar a nossa face mais autêntica. Na literatura vemos as coisas através de matizes, somos capazes de sentir o que é ser outro ser humano. Claro que quando lemos os suplementos de jornais de sábado ou de domingo nos deixamos levar por uma história comovente e íntima, mas há nisso qualquer coisa de falso. Não sentimos que realmente somos capazes de entender a pessoa de que o jornal nos fala. Sentimos outra coisa que pode ser muito perversa. Se nos permitirmos levar, tornamo-nos parte de um imenso colectivo kitsch. Há algo de muito caloroso e doce nisso. Sabemos o como precisamos desses doces para a alma. Mas alguém nos está a manipular. Há um milhão de pessoas a ler o mesmo jornal numa sexta-feira à noite e aquele jornal fá-los pensar e parecer iguais; mas quando mil pessoas estão a ler o mesmo livro, se for um bom livro, é lido por cada uma delas de um modo diferente. Um bom livro permite o acesso a diferentes partículas da alma. Muitos leitores escrevem-me cartas e em cada um desses textos leio uma reacção diferente que não fui capaz de antecipar ou imaginar. Acho que li em cerca de 40 línguas a expressão: “A Ora sou eu. ”É exactamente o que sinto quando leio um bom livro de uma cultura diferente, de um tempo diferente. Sim, eu podia ter sido este Raskolnikov [personagem de O Crime e Castigo de Dostoievski] e que sorte tive por poder sentir isso e ler esse livro. É por isso que não posso confundir este sentimento com o outro, o que me quer confundir com a multidão, com o modo como os mass media funcionam e que é quase sempre preconceituoso, que julga e culpa, com o poder de arrancar uma gargalhada durante cinco minutos. A literatura permite-nos estar com uma pessoa, com o pobre Raskolnikov. Pense só, se uma pessoa escreve um longo artigo, de sete páginas, sobre Ralskolnikov num jornal, hoje, nunca estará perto do que Dostoievski escreveu. É essa a diferença. Em todos os meus livros há muito movimento físico porque quando escrevo, caminho. Vou contar: nos últimos nove anos todas as manhãs, a um quarto para as seis, a minha mulher, eu e um casal de amigos andamos cinco quilómetros. Vemos gazelas — tenho aqui [mostra o telemóvel] uma fotografia de uma gazela prenha que a minha mulher enviou da caminhada que fez hoje de manhã. É como começamos o nosso dia. É fantástico, muito bom. Mas mesmo antes disso, já caminhava. No meu primeiro livro, que não está traduzido, há uma pessoa que corre. Em todos os livros há esse movimento. Eu preciso de me movimentar. Quando escrevo, não consigo estar sentado. Sento-me à secretária e se tenho uma boa ideia tenho de fazer qualquer coisa com aquela energia. Não sei. E ando, há muitos dias em que ando 15 quilómetros numa sala. Ando durante seis horas. Não é uma piada [risos]. A minha mulher brinca, diz que eu deixo marcas nas carpetes, que sulco o chão como um prisioneiro. Aluguei a sala onde trabalho e do que gosto mais ali é do corredor entre as salas. Tem cerca de 30 metros. Percorro aqueles 30 metros durante cinco ou seis horas. Sei que pode parecer estranho. Quando se caminha, quando se está em movimento, não se está fossilizado, não se está congelado. Fico horrorizado com pessoas que congelam, não gosto da ideia de congelar. Vejo tantas pessoas à minha volta que a partir de uma certa idade, muito jovem, caem e são apenas eles mesmos, muitas vezes nem isso, sem qualquer movimento fértil ou qualquer flexibilidade. Caminhar é fazer perguntas. A cada momento estamos num lugar diferente. É por isso que gosto tanto de viajar. Viajo muito com os meus livros. Conheço pessoas, ouço histórias. As pessoas adoram contar histórias a um escritor. Não sei. Mas acho que sou um bom ouvinte. Conheço a minha própria história por isso não sinto qualquer necessidade de a impor, a não ser nos livros. Mas contam-me histórias muito interessantes. Não faço qualquer uso de muitas delas, porque são irrelevantes para o que eu escrevo, mas tiro tanto prazer da maneira como as pessoas contam as histórias. Há pouco [fora desta conversa] falávamos do que se diz sobre o fim do romance [enquanto género] e acho que fica claro o que penso sobre isso. Tem tudo a ver com o modo como ouvimos e contamos histórias. Isso define-nos. As histórias são a nossa base. Sim, por isso são tão populares. Tenho muitos livros para crianças entre os três e os quatro anos e eles perguntam-me se aquilo aconteceu mesmo. Pergunto-lhes se queriam que tivesse acontecido e quando me dizem que sim, digo-lhes que essa é a resposta. Acho que é o mesmo com os textos sagrados — muitas pessoas, grande parte da humanidade, quer que eles sejam verdade e essa é a origem do seu poder. Sim. Sim, é verdade. Se se conhecer os caminhos, é fácil. Há caminhos para a recrear e inventar e as pessoas imediatamente entendem. É difícil. Como posso dar um exemplo em hebraico… Há a palavra nightwalker ou moonwalker, alguém que caminha pela noite. Mas se eu quero descrever uma criança que caminha atrás de uma borboleta eu digo he moonwalked after… Em hebraico corresponde a uma palavra totalmente nova e imediatamente toda a gente entendeu. Intuitivamente fazemos essa arrumação. Na língua há sequências desde há três, quatro mil anos, e isso significa que se Abraão, o patriarca, estivesse sentado connosco à mesa, ele poderia entender pelo menos metade da nossa conversa. Acho isso notável. Há dois mil anos era uma língua do belo, ninguém falava hebraico. Era uma língua sagrada, apenas para rituais, para dias santos. [Risos] Claro. Agora lembrou-me uma velha história. Acho que há uns 40 anos a minha mulher e eu viajámos por Portugal. Eu estava a conduzir e fomos parar a uma pequena vila, não me lembro exactamente do nome. Pode ser Nazaré?Era à beira-mar. Chegámos a um sítio e era preciso ligar para casa, já não me lembro porquê, e não era possível fazer uma chamada directa por telefone, tinha de passar por uma operadora. Disse-lhe em inglês: “Pode por favor ligar-me a Jerusalém?” E ela começou a rir. Perguntei-lhe porque se estava a rir e ela respondeu: “Jerusalém é no céu. ” Isso foi verdade. Cresci com o hebraico. Sei que pode parecer algo mágico, não sei… Penso em imagens e quando quero entendê-las penso em hebraico e falo comigo em hebraico. Invento-a de imediato. É intuitivo. E é o meu trabalho. Sei o que fazer para encontrar uma palavra. É verdade. Quando a língua era sagrada, se limitava à beleza, não se faziam negócios em hebraico, um soldado não dava comandos em hebraico, os casais não faziam amor em hebraico e as crianças não brincavam em hebraico. Muita coisa mudou e muita coisa teve de ser inventada. Houve um homem incrivelmente inteligente, Eliezer Ben-Yehuda [1858-1922, um dos responsáveis pelo criadores do hebraico moderno], que começou a ler hebraico às crianças. Foi buscar muitas palavras à Bíblia, à Tora, mas no tempo da Bíblia não havia gelado, ou helicóptero ou tomate. Ele inventou ou reinventou baseado nessas regras antigas e as pessoas percebiam o que ele queria dizer. Agora toda a nossa vida se formula em hebraico. Sinto-me muito privilegiado por escritores como Amos Oz e A. B. Yehoshua, que me aceitaram apesar de eu ser mais novo, como o seu irmão mais novo. É uma boa família. Sim, terminei um romance há nove meses, que está a ser traduzido e está a ser publicado já em alguns países da Europa. Chama-se Walks a Horse Into a Bar. É um livro totalmente diferente do anterior e é uma sessão de stand-up comedy em Netanya, uma cidade de Israel. É uma mistura de horror e gargalhada. Há muitas anedotas lá e o título é o início de uma anedota muito famosa em Israel. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há centenas de anedotas de um cavalo a entrar num bar. Vou contar uma: um cavalo entra num bar e pede um vodka ao empregado. Ele serve-lhe o vodka, pergunta quanto é. São 25 paus. Ele abre a carteira, paga e quando se dirige à saída, o empregado corre para ele: “Desculpe-me senhor Cavalo, espere um momento. Isto é fantástico, nunca vi um cavalo que fala. ” O cavalo olha para ele e diz-lhe: “Com os seus preços, não voltará a ver. ”Quero viver a minha vida num lugar onde tudo o que acontece é relevante para mim, mesmo quando me repugna ou me faz perder ?a cabeça
REFERÊNCIAS:
Resistir ao vazio
Um romance inteligente que confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos. (...)

Resistir ao vazio
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um romance inteligente que confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos.
TEXTO: A escritora e ensaísta Dubravka Ugresic (n. 1949), nascida numa vila da antiga Jugoslávia (numa região que actualmente pertence à Croácia), é uma das vozes mais originais e eruditas da literatura da Europa Central — nomeada em 2009 para o International Man Booker Prize e em 2016 recebeu o Neustadt de Literatura (para alguns uma espécie de ante-câmara do Nobel) — deixou a Croácia em 1993 (depois de anos a ensinar literatura russa e as suas vanguardas na Universidade de Zagreb), e isto porque foi acusada pelo poder, no Parlamento e na imprensa, de “bruxa, puta e traidora”; tudo isto devido às críticas assertivas e irónicas que fez, entre outros, ao regime autoritário e nacionalista de Tudjman e às causas da Guerra dos Balcãs. A mestria técnica de Ugresic é uma das suas características mais notadas, ao conseguir juntar, por exemplo, subtis intertextualidades (conhece bem as tradições literárias e filosóficas europeias) com diálogos assertivos que iluminam sátiras corrosivas; ou como consegue fazer uso do seu sentido de observação para os detalhes sócio-culturais. A complexidade do seu pensamento é expressa com uma simplicidade tocante. A estrutura dos romances é quase sempre episódica, resultando numa acumulação de partes narrativas e de polifonia de registos, num patchwork em construção. Raposa não difere deste modo narrativo. Autoria: Dubravka Ugresic (Trad. de Guilherme Pires) Cavalo de Ferro Ler excertoAntes da desagregação da antiga Jugoslávia, Dubravka Ugresic — que estudou e ensinou literatura russa e as suas vanguardas — escreveu, numa espécie de exercícios de ironia paródica, romances cómicos e arremedos pós-modernistas de histórias românticas com um final feliz. Mas veio a Guerra dos Balcãs e os tempos mudaram: foi obrigada a deixar o ensino em Zagreb, e depois de ter passado por várias “residências artísticas”, e se ter fixado em Amesterdão, tornou-se numa autora mais “séria”, passando a escrever (alternando entre a ficção e o ensaio) sobre o exílio, a vida de escritor, os nacionalismos, ou a imposição arbitrária de fronteiras e de identidades. Em português tinha até agora dois livros traduzidos: Museu da Rendição Incondicional (Cavalo de Ferro, 2011) — brilhante e ambicioso exercício reflexivo sobre a poética do exílio, tendo sempre a memória como metáfora da possibilidade de reconstrução da vida e do passado — e Baba Yaga Pôs Um Ovo (Teorema, 2010) — um romance originalíssimo baseado na figura mítica de uma bruxa do folclore eslavo, e que Ugresic transpôs para o nosso tempo, servindo-lhe de lente para um olhar sobre a feminilidade e o envelhecimento, a sexualidade, o amor e os seus segredos. Curiosamente, neste Raposa também recorre ao folclore e ao simbolismo dos seus arquétipos. É sabido que o campo simbólico da raposa (apesar das diferenças de substracto cultural) pressupõe a astúcia, a perfídia, a artimanha, a mentira, a hipocrisia, a duplicidade, o egoísmo, a luxúria, a reclusão. E Dubravka Ugresic interroga-se ao longo de toda as partes do romance: “A raposa é o totem do escritor?” Talvez por isto afirme: “A vida literária só é interessante quando estamos à nossa secretária, entre quatro paredes. Tudo o resto evoca um sentimento de derrota, tanto humana como profissional. ”Na primeira parte do romance — que é dividido em seis — titulada Uma História Sobre Como as Histórias Se Tornam Matéria Escrita, é aquela onde mais se define a afinidade entre o escritor e a “raposa aldrabona”: a autora parte de um conto do escritor russo Boris Pilniak (1894-1938) — e conta histórias adjacentes, aparentemente reais, à história narrada nesse conto (também se acredita que verídica). Algumas das histórias chegam misturadas com elementos autobiográficos — a autora estudou, nos anos 1980, em Moscovo, tentando escrever uma tese de mestrado sobre Pilniak — tornando a ficção em auto-ficção, recorrendo a alguns truques do pós-modernismo. Enquanto narra parte da história escrita por Pilniak em 1926 (baseada, em parte, numa suposta autobiografia da personagem), Ugresic fala da Moscovo dos anos 1980, um tempo em que “as pessoas não alimentavam expectativas nem tinham quaisquer esperanças”. E depois interroga-se: “Estarei a contar uma história sobre o conto de Pilniak ou uma história sobre mim mesma?”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Erudita e inteligente, Dubravka Ugresic confunde o real e o imaginário de maneira a interrogar ambos. Assim, nas partes seguintes, a viúva de um escritor recria o seu legado, criando na realidade as ilusões que o marido criara na sua obra. Chegando-se a uma possível existência de um último romance desse escritor, mas que na verdade parece existir apenas na memória de outros escritores que com ele privaram. Pelo meio surgem referências, por exemplo, a Bulgakov e a Nabokov e a episódios das suas biografias. Desta maneira a História da Literatura começa a fazer parte da própria literatura, a confundir-se com a ficção. Os temas habituais de Ugresic surgem mais uma vez: o exílio, os nacionalismos, a reabilitação da História, o modo de vida do escritor, e o mercado cultural da arte. Sobre este último: “Os festivais literários que hoje temos não são assim tão diferentes das feiras rurais medievais, nas quais os visitantes caminhavam de tenda em tenda, passando do espectáculo dos engolidores de fogo para o dos malabaristas. Actualmente, os escritores já não aborrecem o seu público com uma leitura; hoje em dia, actuam. ”Em Raposa, a autora croata parece querer reivindicar uma maior veracidade para a magia da literatura, a que nos ajuda a resistir ao vazio.
REFERÊNCIAS:
A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado. (...)

A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado.
TEXTO: Mesmo com quatros músicos em palco, mesmo com um deles a dar tudo, e bem, no bandoneón, é difícil não centrar o olhar em François Chaignaud. Entra em cena muito suavemente, mas também muito dramaticamente, com um figurino medieval feito à medida, uma face impecavelmente maquilhada, um corpo que tanto poderia ser de homem como de mulher. O bailarino e coreógrafo francês, adepto do transformismo e que tantas vezes põe em confronto, no seu próprio corpo, as suas pesquisas enquanto historiador, é mesmo assim: nunca se sabe como vai aparecer diante de nós, mas é sempre coisa para parar o trânsito. Em 2016, no Rivoli e com o solo Dumy Moyi, vimo-lo de rabo à mostra a equilibrar pássaros na cabeça, entre outras coisas, enquanto cantava árias ucranianas do século XIX e canções medievais sefarditas, inspirado pelas cerimónias theyyam do Sul da Índia. Esta sexta e sábado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no âmbito da programação do Teatro Municipal do Porto, vamos vê-lo a encarnar três personagens da mitologia espanhola em Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet criada juntamente com o músico e artista transdisciplinar Nino Laisné. Este espectáculo resultou de um processo de investigação e criação de quatro anos, focado nas tradições orais, musicais e coreográficas espanholas desde o século XVI. Tudo começou com uma residência em Huesca, onde François Chaignaud e Daniel Zapico, um dos músicos que viria a integrar Romances inciertos, apresentaram um performance. A partir daí, Chaignaud e Laisné viajaram por aldeias de várias regiões de Espanha “à procura de melodias e tradições seculares”. “Também trabalhámos com muitos maestros de flamenco, fandango, jota [dança folclórica espanhola]. Todos estes materiais levaram-nos a fazer Romances inciertos”, contextualiza Nino Laisné. “Esta peça nasceu também da vontade em criar um corpo completo, em que as canções e as danças estão muito próximas. Um corpo que pudesse viajar no tempo e na geografia. ”A solo ou acompanhado – muitas vezes com a coreógrafa Cecilia Bengolea, com quem tem a companhia Vlovajob Pru –, François Chaignaud sempre procurou não só fazer convergir referências e repertórios históricos heterogéneos, dos tempos medievais às danças de rua, como ensaiar diálogos íntimos entre o movimento e o canto – e em Romances inciertos subiu definitivamente a parada. Podemos dizer que está mais cantor do que nunca, e também é seguro dizer que isso lhe sai da pele. “Há uma exigência neste espectáculo que nós não queremos esconder”, afirma o coreógrafo. “Na maior parte do tempo, canto num contexto ‘hostil’, em que o corpo está inquieto e desequilibrado. ”Chaignaud é uma figura saturnina, uma presença magnética e exuberante, mas ao mesmo tempo muito real, muito próxima de nós: há uma vulnerabilidade naquele corpo em autoconstrução, entre a disciplina e a libertação, entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ele gosta de complicar, de implicar os figurinos na própria coreografia, como se fossem um segundo corpo. “Este espectáculo é um belíssimo recreio para pesquisar sobre canto e dança, simultaneamente. Adoro as dificuldades que nele existem, as oportunidades formais e, claro, o poder ficcional. ”Romances inciertos, un autre Orlando desenrola-se em três actos, cada um correspondente a uma personagem. A primeira é Donzela Guerreira, uma jovem mulher que corta os cabelos, disfarça o peito e veste-se com roupas de homem para poder lutar na guerra. Depois é a vez do arcanjo São Miguel, “cujas representações pictóricas apresentam sempre uma certa ambiguidade”, descreve Nino Laisné – nos poemas de García Lorca, esta figura é imbuída de “erotismo e androginia”. Por fim, vemos Chaignaud enquanto Tarara, uma cigana andaluza de coração partido. “Ela aparece na música sefardita antes de se ter tornado numa figura-chave do flamenco. Alguns versos fazem referência à sua provável intersexualidade. ”Há uma androginia e uma desconstrução das normas de género em comum entre estas três personagens, que de alguma forma desestabilizam o lugar do masculino e do feminino, pondo em causa a concepção de género enquanto marcador cultural e social estático. Numa altura em que se começa a falar mais sistematicamente sobre estes assuntos, Nino Laisné considera que olhar para estas figuras “das culturas tradicionais” é uma maneira de nos “lembrar” que as questões de género já andam por cá há séculos. François Chaignaud concorda. “Sinto que a perspectiva histórica do espectáculo permite reenquadrar estas questões de uma forma muito mais ampla. A fluidez de género não é uma coisa recente”, observa, referindo que procura reflectir nos seus trabalhos o seu próprio “processo de identidade”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o coreógrafo, “é muito inspirador” conectar-se com “estas manas dos séculos passados”. “A nível artístico, elas são como fantasmas que visitam os nossos corpos; politicamente, legitimam as negociações de género enquanto processo secular. Impressiona-me o facto de estas figuras serem movidas pela sensualidade e pela intensidade dos seus desejos, que as colocam numa situação de vida precária, mas que ainda assim mostram o caminho para uma acção e agência inspiradoras. ” Outra dessas “manas” é Orlando, a personagem marcante de Virginia Woolf, que apesar de não estar na peça, é evocada no título por causa de algumas “semelhanças” entre o romance de Woolf e a forma como o espectáculo está construído. “Os sonos de Orlando, durante os quais muda de identidade de género, poderiam ser aqui os momentos em que eu saio do palco por alguns minutos, que são como décadas e que me permitem reaparecer com uma identidade diferente”, aponta Chaignaud. Apesar de as questões de género estarem habitualmente presentes nas suas performances, o coreógrafo e bailarino francês diz estar muito mais interessado “na prática de danças e de músicas específicas”. Neste caso, foi beber ao ballet, ao flamenco e ao jota, às danças de corte e às danças com andas. Outro eixo central da coreografia é “os pés, os sapatos, o chão”. Dos saltos altos às andas, aquilo que usa nos pés “determina muitas das (im)possibilidades” do movimento. E isso tem também a ver com as personagens. “Ao colocarem-me constantemente num equilíbrio impossível, estes objectos espelham a procura das personagens, o sentido de risco delas. ”Mesmo que não consigamos tirar os olhos de François Chaignaud – e ele parece que nasceu para isto, para encarnar estas personagens – a verdade é que nem esta Donzela Guerreira, nem este arcanjo São Miguel nem esta Tarara existiriam sem os músicos em palco. “Isto não é um solo com quatro músicos. Os nossos cinco corpos convergem para fazer com que cada figura apareça. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher homem social género corpo donzela
O cinema é um milagre
Com Na Via Láctea Emir Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração. (...)

O cinema é um milagre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20161231180500/http://publico.pt/1756225
SUMÁRIO: Com Na Via Láctea Emir Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração.
TEXTO: Emir Kusturica (n. 1954) é um realizador controverso que, como poucos, suscita as mais extremadas opiniões. E é assim controverso por duas ordens de razões. Por um lado as propriamente cinematográficas, pela adesão ou rejeição imediata, epidérmica mesmo, que suscitam a desmesura e imaginário figurativo dos seus filmes. E, por outro, pela sua trajectória política durante a guerra na ex-Jugoslávia e suas sequelas, bem como pelas suas idiossincracias megalómanas – e note-se que estas últimas são matérias de facto e não da subjectividade de apreciações. Kusturica destacou-se logo com Recordas-te de Dolly Bell?, Leão de Ouro para a melhor primeira obra em Veneza em 1981 e foi consagrado com O Papá Está em Viagem de Negócios, Palma de Ouro em Cannes em 1985, muito claramente duas obras de “jovem cineasta”, duas revisitações sob prisma íntimo da História da Jugoslávia comunista de Tito, os anos 60 na perspectiva de um adolescente, no primeiro filme, a de 1950 narrada por um miúdo, no segundo. O seu cinema evoluiu entretanto num sentido desmesurado que, podendo até nalguns casos estar inscrito em matérias do real e da História ou, na mesma ordem de razões, da cultura e sentir de uma comunidade específica, no caso os ciganos, é feito de excesso e “para além” do real, num “sobre-real” mesmo, quando não até taxativamente “surrealismo”. E assim se sucederam O Tempo dos Ciganos (1989), a viagem americana de Arizona Dream (1993) e dois absolutos delírios, a apoteose de Underground (nova Palma de Ouro em Cannes, 1995) e o regresso aos ciganos com Gato Preto, Gato Branco (1998). Só que…Só que ocorreu com Kusturica o horizonte negativo dos cineastas, dos artistas, que operam nesse estreito fio de risco que são a desmesura e o excesso. A Vida é um Milagre (2004) era (é) uma catástrofe também ela absoluta, e Promise me this (2007, nunca estreado em Portugal e um fracasso internacional) um “monumento” de auto-indulgência e auto-citação insuportavelmente repetitivo. Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para ainda se deixar ser surpreendido – já me ocorreu mais que um caso em que considerei um realizador já “assunto encerrado” e depois haver um filme que me levava a reconsiderar. Além disso´, e no caso concreto, com Na Via Láctea Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima, absolutamente espantosa, que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração. Este é, por demais claramente, um caso de “pegar ou largar”. Compreendo que haja rejeições veementes do filme mas por mim estou “pegado”, e não sou eu que “pego” o filme, é ele que se “pega” a mim, logo desde o assombroso primeiro plano do falcão na montanha – fica-se “colado” ao ecrã. Este é um daqueles raríssimos casos em que temos de repor a questão de base, perdida na sucessão de visões de filmes, ou até na voracidade do consumo: o que é o Cinema?O aparato e a arte cinematográfica têm uma capacidade ímpar de indagar, captar e registar os indícios do Real e da História, constituindo-se como uma experiência do mundo tanto mais relevante quanto é rápida e alargada a sua possibilidade de difusão. Mas a arte cinematográfica é também espectral e fantasmática, propiciadora de espantos e assombrações. São de algum modo, ainda que transfigurados, os dois polos existentes desde os primórdios, Lumière ou o real, Méliès ou a ilusão. E porque se repõe a questão com Na Via Láctea? Porque o filme anuncia-se, num cartão logo ao princípio, ser baseado em histórias reais, e aborda uma ineludível tragédia real, a das guerras na ex-Jugoslávia (inclusive de modo muito mais frontal que Underground, que tinha supostamente como quadro a II Guerra Mundial, embora não deixe de ser óbvia que era uma metáfora das turbulências do desmembramento do antigo país, que se torna explicito no final, com o bocado de terra que se separa e a derradeira frase, “era uma vez um país”), e todavia transcende em absoluto qualquer realismo, de modo inaudito e até “miraculoso”. Eis também o que nos conduz a uma “digressão” pela obra de Kusturica. Ele estudou na FAMU, a famosa escola de Praga, e nessa sua obra cedo se dá a ver a decisiva influência dos filmes checos de Milos Forman (antes da invasão soviética e do seu exílio), o “realismo íntimo” mas também de implicações geracionais e sociológicas dos maravilhosos O Ás de Espadas (1964) e Os Amores de uma Loira (1965), depois a dança incendiária e carnavalesca de O Baile dos Bombeiros (1972). Lembras-te de Dolly Bell? evoca irresistivelmente O Ás de Espadas e de modo mais lateral Os Amores de uma Loira, e não foi nada fortuito que a inesperada Palma de Ouro a O Papá Está em Viagem de Negócios tenha sido atribuída por um júri presidido por Forman. Só que com as personagens principais de um e outro já havia práticas ou ocorrências que, ainda que não saindo do quadro do real, eram de âmbito digamos que “para-normal”: o Dino de Dolly Bell praticava “hipnose, auto-sugestão”, inclusive com o seu coelho (começo logo no “anunciador” primeiro filme do inacreditável bestiário que Kusturica foi reunindo), o Malik de O Papá tornava-se sonâmbulo. Mas havia ainda outra recorrência. O primeiro plano do primeiro filme era um homem, o “controleiro”, o pregador do partido, com grossos óculos escuros e o encarregado que se ocupava dos miúdos era chamado de “Quatro Olhos” pelos seus espessos óculos; isso tinha também Mirza, o irmão mais velho de O Papá…. Ou seja, desde os primeiros filmes Kusturica punha em cena uma condição “reforçada” de visão, mas também distorcida, o que voltava a acontecer com o rapaz que é personagem principal do filme seguinte, O Tempo dos Ciganos, que também usa óculos muito graduados, com a particularidade acrescida de a lente esquerda estar tapada - e o Kosta interpretado pelo próprio Kusturica de Na Via Láctea reforça a visão com um monóculo!E, claro, desde os primeiros filmes havia a música, as cançonetas e os bailes, em roda-viva, que nos dois filmes de guerra, Underground e este agora, se tornam delirante dança macabra. Crucial na filmografia foi a opus seguinte, O Tempo dos Ciganos: não só o cinema de Kusturica, já para além do real, “entrava em levitação” (estado que a partir daí nunca faltaria), coma a estrutura precisamente do tempo deixava de estar comprimida e uniforme, antes havendo cenas e sequências longuíssimas que, nos seus melhores momentos, neste filme e nos posteriores, têm o caracter de alucinações hipnóticas. E começava a ser patente a proximidade com o universo de Fellini – mas disso já falaremos. Alucinações, hipnoses, sonhos (Arizona Dream se chama o belíssimo filme americano – mesmo que o realizador tenha antes achado a experiência um pesadelo), fantasmagorias – o real e o “sobre-real”, quando não ocorre ser taxativamente “surrealismo”, afirmam-se como o universo distintivo do autor. É um cinema de “visões”: se há muitas personagens com questões de vista (neste agora há um olho de vidro), os ângulos de visão multiplicam-se até ao uso recorrente da grande angular (mas como é possível filmar intensamente em exteriores com essa lente?, o que sucede em Na Via Láctea, e é um dos mais destacados prodígios ou “milagres” do filme), e há com frequência “visões”. E, em paralelo, há o continuado bestiário: o coelho, a pomba e os cães em Dolly Bell, os pombos e os cães de O Papá…, o peru e o gato do Tempo dos Ciganos, as tartarugas e o porco de Arizona Dream, o macaco, o papagaio, os gansos, etc. . , etc…em Underground, os gatos, cães, peru, patos… de Gato Preto…Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para ainda se deixar ser surpreendidoOcorre haver animais em filmes, muitos cães, cavalos, pombos e gatos sobretudo, mas nada que se assemelhe ao circo zoológico de Kusturica. Cabe sim mencionar que há dois animais que “são” personagens principais de filmes e até lhe dão título, evidentemente o burro de Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson e o falcão de Kes (1970) de Ken Loach. Um burro e um falcão, que coincidência, vem a calhar…Por muitos animais que haja em filmes de Kusturica, não há precedente para o estatuto que ele dá em Na Via Láctea ao falcão, ao burro, ao urso e à serpente, inclusive creditando-os como intérpretes no genérico final. A serpente é um caso particular. A história que a envolve (mais que uma vez aliás) é dramaturgicamente da maior importância e o realizador refere-a sempre como um dos acontecimentos reais em que se baseou, o de um soldado russo que no Afeganistão foi enrolado por uma serpente que de facto o salvou de um tiroteio. Mas a serpente não é propriamente “ensaiável” e controlável, e nessas cenas há efeitos especiais de tratamento digital. Mas os outros, com quem obviamente Kosta/ Kusturica tem uma “relação pessoal”, são mesmo animais dele, parte do “circo privado” que mantém e com o qual até se desloca. Pode-se suspeitar aliás que essa foi uma razão determinante para uma das maiores dificuldades do filme, o facto de Kusturica ser também protagonista. Mas como conseguiu ele estar atrás da câmara, com movimentos extremamente complexos e incríveis “orquestrações” de figuras e eventos, e estar ao mesmo tempo frente a ela, como actor principal?! É da ordem do prodígio, mas se é de um virtuosismo imenso não é reduzível a isso, é o espantoso “investimento pessoal” do autor neste filme. Fica-se boquiaberto e rendido – eu por mim fico. Como conseguiu ele estar atrás da câmara, com incríveis “orquestrações” de figuras e eventos, e estar ao mesmo tempo frente a ela, como actor principal?!A peculiaridade do “circo privado” leva-nos às idiossincracias de Kusturica e à sua megalomania. O narcisismo vedetista da pose de rock star com que ele andou à frente da No Smoking Band (até fez um documentário sobre ele e o grupo) é coisa menor comparado com a construção de uma cidade para a rodagem de A Vida É um Milagre, a qual, chamando-se Andricgrad, em homenagem ao Prémio Nobel da Literatura Ivo Andric, autor de A Ponte sobre o Drina (a “cidade” fica junto aos locais referidos no romance), é uma “kusturicalândia”, uma Disneylândia nos Balcãs. E que interessa isso para a consideração do seu cinema? Importa porque coloca a interrogação desse cinema não ser mais que exibicionista (o que muitas e respeitáveis pessoas acham), suscitando a tal questão da característica felliniana, inegável em Kusturica. Ora “felliniano” é coisa que não sou de todo, o que não me impede de achar que há filmes, e esses são obras-primas (Amarcord, E la Nave Va… ou a tocante homenagem ao circo que é I Clown) em que ele se “transcendeu”. “Transcendência” é um conceito que ocorre a propósito de Na Via Láctea, sobretudo depois dos dois imensos desastres anteriores. Citei dois polos do cinema, Lumière e Méliès. Cabe referir, a título de paradigmas, um outro, Dreyer e Buñuel, o ascético e crente e o surrealista e herético. O título Na Via Láctea deriva de ser pelo leite que a misteriosa mulher ordenha das vacas e entrega a Kosta que se estabelece a proximidade entre os dois, mas remete também para a desmesura cosmológica do filme, no modo como intenta criar um universo. O tão surrealizante Kusturica não podia contudo desconhecer que Na Via Láctea se chama o mais herético dos filmes daquele que é “o” cineasta surrealista, Buñuel. Não podia desconhecer, note-se, mas pelo contrário o epílogo até é com a conversão de Kosta em monge ortodoxo. Não é por esse religioso final que se invoca um paradigma com Dreyer, mas porque um prodígio maior do filme é fazer-nos “acreditar” nele, questão de “crença” portanto. Não é de modo nenhum preciso ser crente para acreditar no milagre em A Palavra de Dreyer. De outro modo de todo diferente e sem estar a fazer comparações, Na Vida Láctea é um filme que nos faz “acreditar” nele, em que o cinema pode ser “um milagre”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mais importante é a possível objeção ética ao filme como não só legitimação da posição pró-sérvia do autor (e, de resto, até da sua conversão ao cristianismo ortodoxo) como, mais grave, de branqueamento de crimes de guerra. Não é nada inocente, antes pelo contrário é motivo de perplexidade, que Kusturica tenha situado o filme na Krajina, “república sérvia” em território croata, em que houve gravíssimos crimes, ou proceda ao seu “ajuste de contas” com a intervenção ocidental nas guerras da Jugoslávia, apresentando como “a má da fita” uma brigada da SFOR (Stabilisation FORce), os destacamentos enviados pelo Nato, embora ao abrigo de uma resolução do Conselho de Segurança. Compreendo a objeção e respeito-a, mas ainda assim acho que o cerne é outro. “Esta guerra não é connosco” diz a velha aldeã, e o par da “Noiva” e Kosta não estão envolvidos na guerra, são sim cercados por ela. Não sendo nada fortuito que este seja o filme em que Kusturica enfrenta directamente as feridas das guerras na Jugoslávia, é divergente o fio da narrativa: “é possível o amor em plena guerra?”.
REFERÊNCIAS:
Tapeçaria de Katty Xiomara em leilão solidário para a Acreditar
O leilão solidário começa a licitação nos 3000 euros e reverte a favor da Associação Acreditar (...)

Tapeçaria de Katty Xiomara em leilão solidário para a Acreditar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O leilão solidário começa a licitação nos 3000 euros e reverte a favor da Associação Acreditar
TEXTO: A primeira tapeçaria de Katty Xiomara, criadora de moda portuguesa, vai ser leiloada online a partir do primeiro minuto de quarta-feira, 22 de Março. A licitação começa nos 3000 euros e o total do montante conseguido vai ser doado à Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro que abriu há um mês uma casa no Porto. Considerando o valor comercial da tapeçaria, a organização do leilão espera atingir pelo menos os 6000 euros. Os interessados têm até ao fim do dia da próxima segunda-feira, 27 de Março, para licitar no tapete em tons de azul que tem quatro metros de comprimento por dois de largura e pesa quase 50 quilos. A tapeçaria única de oito metros quadrados foi fabricada com lã neozelandesa e fio de viscosa, com “técnicas de tufagem que combinam a tradição manual com a mais moderna tecnologia de produção industrial existente em Portugal”, lê-se no comunicado da Desistart. A peça chama-se “Enamorado” e é uma representação da música “El toroenamorado de la luna”, interpretada pelos Gipsy Kings, um grupo de música cigana que toca rumba flamenca. Os tufos de diferentes alturas (entre oito e 65 milímetros) realçam as formas dos animais e da lua, num contraste entre tons azuis frios e castanhos e vermelhos escuros. A peça foi produzida pela Desistart, uma empresa portuguesa especializada no fabrico de tapeçarias de luxo e pode ser vista ao vivo no desfile de apresentação da colecção Outono/Inverno da estilista integrado nesta edição do Portugal Fashion, que se realiza na antiga Cadeia da Relação do Porto na sexta-feira, 24 de Março. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Katty Xiomara ficou contente com o resultado final da tapeçaria “pela qual toda a gente de bom gosto se irá enamorar”, diz em comunicado. A empresa e a estilista já tinham trabalhado juntas numa peça para o desfile que a organização do Portugal Fashion realizou em Nova Iorque, no mês passado. Para licitar no leilão solidário, os interessados têm de se registar previamente no site oficial da Desistart. Texto editado por Ana Fernandes
REFERÊNCIAS:
Tempo Março
“Na Galiza instalou-se uma narcocultura”
Passou-se da ostentação à discrição. Do marketing social dos “narcos” a uma quase opacidade de costumes. Mas o tráfico de droga continua. A Justiça aposta na pista do dinheiro para acabar com a lavagem. Operações a que Portugal não esteve imune. (...)

“Na Galiza instalou-se uma narcocultura”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Passou-se da ostentação à discrição. Do marketing social dos “narcos” a uma quase opacidade de costumes. Mas o tráfico de droga continua. A Justiça aposta na pista do dinheiro para acabar com a lavagem. Operações a que Portugal não esteve imune.
TEXTO: É a história do narcotráfico galego a que Nacho Carretero descreve ao longo de 295 páginas em Farinha (edições Desassossego), um livro que depois de dez edições e 30 mil exemplares vendidos está apreendido em Espanha (ver texto abaixo). Tem um título fácil: Fariña, no original, Farinha em português, uma das designações cifradas da cocaína. O relato começa em finais do século XIX, na raia seca como berço do contrabando com o outro vizinho peninsular, e desagua numa costa de 1498 quilómetros recortada por enseadas, com desembocaduras tentaculares nas rias e em portos de abrigos naturais. Foi na costa que, do contrabando do tabaco se passou ao narcotráfico, numa aproximação ditada pelo domínio comum do castelhano entre os clãs da Galiza e os cartéis colombianos de Cali e Medellin. “Na Galiza instalou-se uma narcocultura”, sintetiza Carretero ao P2 a evolução da trama. As actividades ilícitas na raia galego-portuguesa ilustram a história e as vicissitudes económicas dos dois países. Não é por acaso que os territórios de Portugal e Espanha confinantes com a fronteira são dos mais pobres de cada nação. O ilícito era sobrevivência em Espanha e exercício de desenrasca em Portugal. Do contrabando de bens de primeira necessidade após a Guerra Civil (1936/39): quando a luz eléctrica de Portugal ofuscava as aldeias galegas iluminadas por lamparinas, o aroma do café era conforto e a penicilina uma urgência escassa do outro lado. Era uma economia paralela, a única possibilitada pela pobreza e ditada pela emergência, numa peculiar aproximação do mercado ao consumidor, em que o mercador – Portugal – supria pelo contrabando as misérias de um país devastado pela guerra e pela fome. Os velhos da raia ainda contam a história. Um vizinho cruzava diariamente a fronteira entre a Galiza e Portugal de bicicleta, carregando sempre um saco ao ombro. Cada vez que atravessava a raia, a Guarda Civil mandava-o parar e perguntava-lhe o que levava no saco. O homem, paciente e educado, mostrava sempre o conteúdo. ‘É só carvão’, explicava. E os agentes, ofendidos, deixavam-no passar. No outro lado a cena repetia-se: a Guarda Fiscal portuguesa (conhecida pelos “guardinhas”) também revistava o saco do homem e deixavam-no continuar a pedalar. A mesma cena repetiu-se durante anos perante o mal-estar crescente dos guardas fronteiriços. Não só eram incapazes de encontrar material de contrabando como em cada nova revista sujavam o uniforme de carvão. (…) O segredo do homem da raia esteve à vista ao longo de todos esses anos. Era um contrabandista de bicicletas. Este relato, do qual Nacho Carretero não conhece a origem e a veracidade, passou de geração em geração no imaginário galego. Lenda? Justificação? É uma espécie de ode. Nele respira a astúcia face à norma, o engenho contra a ordem, está a desobediência de mãos dadas com a sobrevivência. A partir dos anos 50, com menos carências básicas em Espanha, o contrabando passa a mercadorias que não são de primeira necessidade: sobresselentes de automóveis, cobre, lenços, arame, cola…Uma década depois, há uma inversão. A raia é procurada pelos desertores da guerra colonial a caminho do exílio. Os “carneiros”, como na Galiza são apelidados os contrabandistas reconvertidos a passadores, cobravam 131 euros pelo salto de um mancebo. Mas é no tabaco que vem de Portugal que as redes centram o seu negócio e moldam a sua estrutura. “Quando os contrabandistas galegos têm poder, as multinacionais do tabaco aliam-se a eles, passando-lhes material defeituoso e excedentário, ou seja, nos anos 50 os galegos trabalharam para os portugueses e, depois, superaram-nos, convertendo-se em distribuidores de tabaco em grande escala”, explica Carretero. Um negócio rentável, como refere o autor. Na década de 80 do século passado, 1/3 do tabaco ilegal que entrava na Europa era movimentado pela Galiza. As Finanças espanholas estimam, aliás, que por ano deixaram de cobrar o equivalente a 60 milhões de euros em impostos. E, entre 1980 e 82, as 150 tabacarias galegas deixaram de vender por ano cinco milhões de euros de tabaco legal. Esta mudança de escala dá-lhes fortaleza económica. Converteu os contrabandistas em donos daquilo tudo, em ícones de sucesso, em beneméritos sociais – um cocktail previsível. “O contrabando de tabaco em 1970 e 1980 não estava mal visto, dava emprego aos jovens de uma região que se considerava abandonada e maltratada por Madrid. Para os políticos locais, era bom ter proximidade destes líderes da comunidade”, constata Nacho Carretero. Os contrabandistas eram líderes de comunidade nas suas mais diversas facetas. Farinha dá exemplos: da reconstrução de um telhado da igreja às festas patronais – que chegaram a ser adiadas um dia para as traineiras ocupadas no contrabando do Winston regressarem a tempo de desfilar engalanadas; o apoio, patriarcal, aos que eram presos, das custas dos advogados às necessidades da família. Foi assim que uma sociedade paralela se construiu à margem dos poderes do Estado. E corroeu-o. Como sempre, os políticos correram atrás do prejuízo. “O maior contrabandista de tabaco era Vicente Otero, amigo íntimo de Manuel Fraga Iribarne (fundador da Aliança Popular, antecessora do PP, um dos pais da Constituição espanhola e presidente do governo regional durante anos), que financiou campanhas”, revela Carretero. “Um juiz disse-me que todos os partidos tinham sido financiados pelo contrabando e, mais tarde, pelo narcotráfico”, explica. Numa comunidade pobre, com problemas estruturais que a manta do Estado não cobria, uma resplandecente economia paralela ilegal dava trabalho aos locais, entrava nos partidos e convivia com a ordem institucional apurada em eleições livres. “Então havia um prometedor jovem que presidia à deputação de Pontevedra que não gostava nada que [os contrabandistas] “Terito”, “Nene” e outros estivessem tão perto (alguns dentro) do partido. Aquele díscolo chamava-se Mariano Rajoy e enfrentou Manuel Fraga devido a estes estreitos laços que o patrão tinha com os contrabandistas. Fraga não gostou do relevo de Rajoy e deu-lhe um conselho que já faz parte da história popular da Galiza: “Mariano vai para Madrid, aprende galego, casa-te e tem filhos”, relata o autor em Fariña. E assim Rajoy fez. O confronto com o chefe Iribarne ficou na memória de quem foi, até há pouco, presidente do Governo espanhol. Rezam as crónicas que o livro lhe foi oferecido quando apareceu nos escaparates, em 2015, por Pablo Iglésias, líder de Podemos. Depois da leitura, Mariano escreveu a Nacho Carretero. Caro Nacho. Obrigado por Fariña, já o li. Está muito bem documentado. Imagino que terá levado muito tempo a escrever e é um bom contributo. Oxalá não tenhas de voltar a escrever sobre o tema. Seria uma boa notícia. Um forte abraço. Muito obrigado. Mariano Rajoy. Assim agradeceu quem liderou até há uma semana o executivo espanhol. Rajoy, sempre acusado de falta de reflexos na sua acção política, quando era um jovem a começar carreira, teve a intuição do problema – de que os poderes do Estado, a economia informal e as actividades clandestinas não eram bom par de dança. Tinha razão. “Quando o tabaco perde valor, aparece uma mercadoria mais rentável, o haxixe e, depois, a cocaína”, prossegue o autor. “O salto para o haxixe e a lavagem de dinheiro na Suíça estreita os laços com os narcos marroquinos, argelinos e sírios. ” Internacionaliza os galegos, abre-lhes horizontes, quando, em finais dos anos 70 e princípios dos 80 [do século passado], era aplicada a mesma legislação do contrabando ao narcotráfico. “Afinal tinha o mesmo risco e, sobretudo, mais lucro”, destaca Carretero. Só a partir de 1982 o contrabando de tabaco passou a ser delito, até então era uma falta. Foi esta a equação que levou os contrabandistas de tabaco, “os senhores do fume” como eram conhecidos, a darem o salto qualitativo. O primeiro a entrar foi Sito Miñanco. Preso em 1984 em Carabanchel, nos arredores de Madrid, teve contacto com detidos do grupo de Pablo Escobar, do cartel de Medellín. Tinham algo em comum: era no Panamá que Escobar lavava o dinheiro da cocaína e Miñanco os proveitos do contrabando de tabaco. Não apenas os islamistas se radicalizam nas prisões – no velho presídio de Carabanchel, segundo o autor, Sito Miñanco, a quem já tinha sido sugerida a mudança de ramo, toma a decisão. Na cela ao lado tinha contactos fáceis com os fornecedores, dinheiro nos mesmos paraísos fiscais para a lavagem e um modus operandi comprovado, com barcos de pesca em alto-mar, lanchas rápidas a poucas milhas da costa, os todo-o-terreno para o transporte e uma completa infra-estrutura em terra: “estacas”, vigilantes, esconderijos e favores comprados nas forças de segurança. E um incomensurável mercado à sua espera. Recorda Nacho Carretero que no início dos anos 90 do século XX a Drug Enforcement Administration, a DEA norte-americana, que então começou a trabalhar com os espanhóis, estimava em quase 80% a cocaína a circular na Europa que entrava pela Galiza. Os barcos de pesca vindos da Colômbia fundeavam a 200 milhas das águas internacionais, onde acorriam lanchas cada vez maiores e mais potentes com pilotos treinados durante décadas no contrabando de tabaco e conhecedores de cada rocha das rias (ver infografia). De Espanha os fardos rumavam aos consumidores finais no Reino Unido, França, Itália, Suécia, Polónia, Letónia e Rússia. Tudo corria bem aos narco galegos que exibiam a sua riqueza com o mesmo à vontade que frequentavam os corredores do poder. “Têm uma impunidade total, ostentam a riqueza, conduzem Ferraris, são os reis da Galiza, têm contactos políticos, corrompem as autoridades, beneficiam de um marketing social”, lembra Carretero. Só no final dos anos 80 parte da sociedade galega começa a reagir devido à geração perdida, os jovens mortos e afectados pelo consumo”, salienta. “São os protestos das Mães contra a Droga, que despertam os meios de comunicação e as forças da autoridade. É a pressão da sociedade civil que leva à Operação Nécora”, reconhece. Na madrugada de 12 de Junho de 1990, o juiz Baltazar Garzón, o magistrado Antidroga Javier Zaragoza e responsáveis da polícia desencadeiam uma operação sem precedentes. Na noite de 11 de Junho, colunas policiais partem de Madrid no maior sigilo. Na esquadra central da Polícia Nacional de Santiago de Compostela amontoam-se agentes entre densas nuvens de fumo e de dúvidas. A ordem de partida é dada, ainda o dia não nascera. Chegados às carrinhas, os agentes encontram no volante um sobrescrito com o destino e as ordens. Que grande confusão que arranjámos. Foi esta a confidência de Garzón a Zaragoza contemplando o início da marcha das furgonetas, com agentes armados de metralhadoras. O objectivo era apanhar os narcos em pijama. E assim aconteceu. “No julgamento, a maioria viria a ser absolvida devido a problemas processuais, mas posteriormente houve novas investigações e acabaram quase todos por ser condenados”, recorda Nacho Carretero. “No entanto, a Operação Nécora foi a primeira reacção das autoridades que, finalmente, perceberam que a Galiza se estava a aproximar da Sicília, com autarcas processados, políticos nas proximidades das redes, uma teia de advogados em trânsito entre os narcos e a política; travou-se o poder político dos narcotráficos”, admite o autor. Daí o drama galego não ter a densidade dos relatos de Roberto Saviano sobre a Itália meridional. Mas houve um antes e depois no despertar das consciências na Galiza e em Espanha. Aos gritos de “Garzón, vales un montón” (Garzón vales muito) as Mães contra a Droga concentraram-se às portas dos paços e dos castelos convertidos em mansões onde residiam os barões da droga, desfilaram pelas ruas vitoriando o primeiro grande golpe e desafiaram os esbirros dos clãs. A luta de sofrimento pelos danos que a droga infligira aos seus filhos tivera uma primeira consequência – e reconhecimento. Comecei a ler, ele estava sentado com a mão na testa e a cabeça baixa. Não se movia. Quando terminei, levantou a cabeça e vi que estava a chorar. Este é o relato de Carmen Avendaño de uma reunião com Manuel Fraga Iribarne, presidente da Xunta da Galiza, o governo regional. Carmen, uma das Mães contra a Droga, acabara de expor ao governante a situação dos jovens dizimados. Anos antes, Fraga reagira mal ao reparo de Rajoy pela sua amizade com o contrabandista “Terito”. Os bens dos traficantes foram apreendidos, das frotas sumptuosas aos iates, os pasos e vinhedos ficaram sob administração judicial. Nos leilões são apenas admitidas sociedades que foram escrutinadas, para evitar a recompra. A classe política reagiu mas sem linearidade. Em 2013, El País publicou uma foto do Verão de 1995 do actual presidente da xunta, Alberto Nuñez Feijóo, e então número dois da Secretaria de Saúde da Galiza, no iate de Marcial Dorado, “um senhor do fume”, condenado pela venda do barco South Sea, que viria a ser utilizado para uma descarga de cocaína, e por lavagem de dinheiro. “É verdade que Marcial Dourado foi um contrabandista de tabaco, mas isso não quer dizer que não se dedicasse ao narcotráfico”, afirma a sentença da Audiência Nacional. Mesmo na Galiza, peritos afirmam que Marcial foi dos poucos que não passaram dos maços de tabaco para os fardos de cocaína, o que não converte o contrabando em actividade legal. Há cinco anos, Nuñez Feijóo disse que a amizade era pessoal, que não estava a par dos negócios de Marcial e que cortaram em 2003. Feijóo é um dos nomes no totobola espanhol para a direcção do PP depois do abandono de Rajoy. “Hoje, a política separou-se do narcotráfico, a convivência pode ser mortal para uma carreira política, mas a Galiza continua a ter tolerância para com o narcotráfico”, lamenta Nacho Carretero. “Na Galiza instalou-se uma narcocultura, os colombianos sempre apostaram nos galegos, confiam nas suas alianças, continua a entrar coca, mas os narcos são agora discretos e a sociedade não os apoia”, prossegue. O tráfico continua, mas mudaram procedimentos. “Os narcotraficantes agora não entram em contacto com a droga, o que a Justiça tenta é seguir o rasto do dinheiro, a lavagem do dinheiro. É muito difícil condenar alguém por narcotráfico, procura-se a condenação por lavagem de capitais e fuga ao fisco”, explica. Um clássico que já vem do tempo de Al Capone. Mas mantém-se o narcotráfico. “Na Galiza, a droga entra por lanchas, no Sul de Espanha em contentores de quatro a seis toneladas, mas agora os galegos são narcotransportadores, ficam com entre 20% a 30% da coca que vendem novamente aos colombianos, que, depois, a colocam em Espanha e pela Europa”, explica. Como sempre, fica droga na Galiza. “Há um acesso fácil e muito consumo de coca”, destaca Carretero. Também se mantém um atlas de geografia de conveniência, consoante o tipo de estupefaciente: “A Galiza está na rota da cocaína, o haxixe vem do Norte de África, a heroína tem origem no Afeganistão, é distribuída pela Turquia e entra na Europa pela Itália, Grécia e Holanda. ” É igualmente mantida uma prática de décadas. “Os grandes traficantes galegos nunca estiveram próximo da heroína, nos anos 80 diziam que matava muita gente, mas houve casos em que deram o seu beneplácito a contactos com clãs búlgaros e russos e com algumas famílias ciganas que a distribuíam por toda a Espanha”, adianta. A confiança mútua, que leva os narcos galegos a confiar a vida de um mensageiro aos clãs colombianos, enquanto a droga não chega ao destino, não vigora com os grupos do Leste. Também é diferente a língua. Durante mais de 50 anos no século XX, o contrabando mais rentável, o do tabaco, animou a raia. “Os galegos trabalharam muito tempo com os portugueses – aliás, em 1983 muitos fogem para Portugal, para a casa dos seus sócios do outro lado da fronteira”, recorda Carretero. Deste lado da fronteira também houve o salto. “Há estruturas em Portugal com ligações ao narcotráfico galego. Basta recordar o Minho Connection de Manso Preto”, prossegue. De resto, no âmbito das investigações preliminares à Operação Nécora, o juiz Garzón esteve no Porto a investigar a passagem de cocaína para Espanha através do Norte de Portugal. A proximidade, a porosidade da fronteira e o hábito ditaram outras situações, reveladas em Farinha. Cascais foi uma das escalas do iate de Marcial Dorado, no Verão de 1995, com Nuñez Feijóo no deck. Uma paragem ocasional, sem significado para além do interesse turístico, embora Dorado fosse detentor de uma empresa vinícola e de quatro quintas em Portugal. Também foi por motivos ímpares, de segurança, que Ricardo Portaballes, confidente de Garzón na Operação Nécora, viveu em Portugal e talvez por aqui ainda esteja. Mas há factos com outra casuística. Luis Falcón, “Falconetti”, com 73 anos e já retirado do negócio, passou do tabaco ao haxixe. Nos anos de 1980, quando lhe negaram uma licença urbanística no município de Vilanova de Arousa, colocou uma pistola em cima da mesa e disse ao alcaide que sempre poderia trazer uns tipos de Portugal para lhe dar uma ensinadela, o que custava apenas um milhão de pesetas. A obra avançou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Josefa Charline Pomares, filha do patriarca Manuel Charline Gama, foi detida em 2001 no Porto e condenada em Espanha a 11 anos de prisão. Dirigiu o clã dos Charlines a partir do Norte, entre 1994 e 2000, onde tinha uma empresa de vinhos. Já o chefe dos Romas, Ramiro Vásquez Roma, um marinheiro de Cambados que prosperou no negócio de embarcações de recreio, preso em 2007, estendeu a Viana do Castelo a sua actividade de construtor de lanchas. No estaleiro minhoto, construiu uma potente embarcação de 25 metros, a pedido de um grupo de traficantes marroquinos. A venda de Fariña está proibida em Espanha, pouco depois do aparecimento nos escaparates da 10. ª edição do livro, devido a uma providência cautelar aceite por uma juíza de Collado-Villalba, nos arredores de Madrid. Na acção interposta em Janeiro de 2016, o antigo alcaide da localidade galega de O’Grove, José Alfredo Bea Gondar, que fora eleito pelo Partido Popular, acusa Nacho Carretero de ter ferido a sua honra e pretende 500 mil euros de indemnização. A juíza ordenou também o encerramento da página web de apoio a Carretero entretanto aberta. O julgamento tem início a 21 de Junho. No livro, há duas referências a Bea Gondar, relativas a uma investigação do juiz Baltasar Garzón, que o acusou de ter alugado um carro, guiado por um colombiano, onde seguiam 30 quilos de cocaína. O autarca foi acusado de narcotráfico pela Audiência Nacional, sentença depois revogada pelo Tribunal Supremo, ao ser declarado inválido o depoimento de uma testemunha, o que não consta da edição. Mais tarde, o político viria a ser condenado sem possibilidade de recurso por um delito de lavagem de dinheiro. “Se ele me tivesse pedido a correcção, há uns meses atrás teria concordado. Hoje, com o pedido de uma indemnização de 500 mil euros, é claro que o seu interesse é económico”, afirma o autor. “Tudo isto, quando ele não é uma personagem importante. Foi julgado e depois absolvido e mais tarde novamente julgado e condenado por lavagem de dinheiro”, prossegue. “A apreensão do livro surpreendeu-nos”, refere Nacho Carretero. Trata-se de uma medida não usual em Espanha, onde, desde a transição democrática de finais dos anos 70 do século passado, seis obras foram apreendidas por ordem judicial. “Estamos a par dessa providência cautelar em Espanha, mas confiamos na Justiça portuguesa para o mesmo disparate não se repetir por cá. Não é a proibir livros que se chega à verdade, e os portugueses cada vez aceitam menos a impunidade com que os criminosos se passeiam pelos tribunais”, disse ao P2 Luís Corte Real, director-geral do grupo Saída de Emergência, a que pertence a editora Desassossego. Uma série televisiva de dez episódios tendo como guião Fariña foi entretanto exibida no canal espanhol Antena3 TV. “Foi emitida, gerou controvérsia e debate, mas nada judicial”, comentou Nacho Carretero.
REFERÊNCIAS:
Étnia Búlgaros
Na sala do 5.º C as provas de aferição não são motivo para nervos
Não contam para a nota. Nem chumbam. Mas são um verdadeiro teste nacional ao que os alunos sabem. Cerca de 100 mil do 5.º ano de escolaridade, com 10, 11 anos, fazem nesta quinta-feira a sua primeira prova nacional. Exames a sério só no 9.º. (...)

Na sala do 5.º C as provas de aferição não são motivo para nervos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não contam para a nota. Nem chumbam. Mas são um verdadeiro teste nacional ao que os alunos sabem. Cerca de 100 mil do 5.º ano de escolaridade, com 10, 11 anos, fazem nesta quinta-feira a sua primeira prova nacional. Exames a sério só no 9.º.
TEXTO: É um teste “para ver se sei tudo”. É um teste “para decidir se passamos”. Na sala do 5. º C da Escola Básica Paula Vicente, do Agrupamento de Escolas do Restelo, em Lisboa, as opiniões dividem-se sobre as provas de aferição que vão fazer este mês. A primeira é já nesta quinta-feira e vai estar em avaliação História e Geografia de Portugal. A 12 de Junho será a vez de Matemática e Ciências Naturais, dois conteúdos curriculares na mesma prova, o que é também uma das novidades deste ano. Para cerca de 100 mil alunos do 5. º ano será a primeira vez que realizam uma prova nacional. No ano lectivo passado deveriam ter feito o exame do 4. º ano de escolaridade, mas esta avaliação foi abolida pela actual equipa do Ministério da Educação. Na aula do 5. º C discute-se agora se a prova de aferição conta ou não para a nota. André já sabe que não, mas muitos dos seus colegas ainda pensam que sim. Foi uma das estratégias adoptadas pela professora de Matemática e Ciências Naturais, Ana Gaspar, para que os alunos valorizassem a prova de aferição. Oficialmente esta não conta para a nota final, mas no princípio do ano lectivo Ana Gaspar combinou com os pais que isto não se diria aos alunos. Com idades entre os 10 e os 11 anos, numa sala com vista para o Tejo, os 17 que no início desta semana compareceram à aula de Matemática (faltaram três) tinham 90 minutos pela frente de preparação da prova. Já haviam treinado antes, mas sem ocupar as aulas inteiras. Depois do teste final da disciplina, contudo, Ana Gaspar decidiu intensificar os preparativos. Diz que os alunos não têm evidenciado nervosismo em relação às provas de aferição. Quando questionados pelo PÚBLICO, eles também não falam de nervos, mas mais uma vez as opiniões dividem-se. Os melhores alunos estão com vontade de fazer esta avaliação e alguns deles mostram-se mesmo aborrecidos por não terem tido hipótese de fazer os exames nacionais do 4. º ano. Já outros vão dizendo que “não têm vontade” de realizar a prova, acham que ela “é muito grande”. “Matemática para mim é fácil, por isso não me importo, mas gostava que também houvesse exame a Educação Física”, remata André. Na maioria dos casos parecem estar à vontade nas lides matemáticas. Durante 90 minutos non stop passaram do cálculo decimal para as frequências, destas para as propriedades da multiplicação e depois fracções e mais tarde ângulos. João está sempre de braço no ar. Quer responder a tudo, impacienta-se, a professora tem que lhe dizer repetidamente para deixar os outros responder. Afonso, um dos seus colegas, resume-o assim: “O João é o melhor aluno a Matemática, mas também é o mais nervoso. "João está sentado ao lado de Ana, um dos sete alunos de etnia cigana da turma. Estão atentos, mas a sua produção é muito inferior à dos colegas. E também faltam mais. “Fora da escola não estudam, não têm apoios”, justifica Ana Gaspar, que diariamente tenta encontrar um equilíbrio para não deixar para trás os alunos com mais dificuldades e não desiludir aqueles que já estão mais à frente. “Não nivelo nem por baixo, nem por cima. Fico-me pelo meio”, relata. Professora há 27 anos, diz que o que mais gosta de fazer é precisamente “dar aulas”. E isso percebe-se na interacção que vai tendo com os alunos, no modo como tenta puxar por eles e até fazer incursões por matérias de anos mais avançados, como é o caso da raiz quadrada. “Já tinha feito com o meu pai”, diz uma das crianças. Quase todos as outras demoram pouco a percorrer o caminho entre as potências e a raiz quadrada. Ficam contentes. “Mas vai sair na prova?”, pergunta um. Ana Gaspar responde pela negativa, diz-lhes que esta é matéria que do 7. º ano de escolaridade. Margarida tem outra dúvida, mas desta vez não teve resposta: “Quem inventou a raiz quadrada?”A propósito do cálculo do percurso de vários animais distintos, segue-se um desvio pelas Ciências Naturais para saber quais as características dos bichos. É assim que será a prova de aferição. Ana Gaspar concorda com esta forma de fazer, diz que os cruzamentos entre as duas disciplinas são vários e que os alunos não estranharão a mistura. Na sala de aula eles mostram que assim é. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Numa carteira mais atrás, Giovana permanece calada, mesmo quando é interpelada pela professora. Chegou à escola, vinda do Brasil, apenas no final do 2. º período. Tudo ainda é novo para ela: a cidade, a escola, os colegas, os professores, as matérias. Mas nesta quinta-feira estará a fazer a prova de avaliação. Segundo o Ministério da Educação, ao identificarem o que os alunos sabem ou não sabem, as provas de aferição funcionam como uma “radiografia do sistema educativo”. São provas nacionais, elaboradas pelo Instituto de Avaliação Educativa com as mesmas questões para todos os alunos do mesmo ano de escolaridade de todo o país. Os resultados da avaliação são qualitativos (não há uma nota, mas sim uma descrição do desempenho do aluno). Tanto os pais como as escolas recebem um relatório pormenorizado sobre como se saíram as crianças. As provas de aferição realizam-se actualmente no 2. º, 5. º e 8. º ano de escolaridade (os alunos do 8. º também fazem nesta quinta-feira prova de Ciências Naturais e Físico-Química). Exames a contar para a nota final só a partir do 9. º ano, antes disso não. Esta foi uma das mudanças introduzidas pelo actual Ministério da Educação. Ana Gaspar discorda. Defende que no final de cada ciclo de escolaridade os alunos deveriam ter provas finais que contassem para a sua avaliação final. E justifica: “Estamos a preparar futuros adultos que vão ser avaliados a vida toda. "
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola educação
Inscrição de Auschwitz "Arbeit macht frei" roubada
A célebre inscrição “Arbeit macht frei” (“o trabalho liberta”), afixada à entrada do campo de concentração nazi de Auschwitz, no sul da Polónia, foi roubada durante a noite por indivíduos desconhecidos, foi esta manhã revelado por responsáveis do museu histórico que ali funciona. (...)

Inscrição de Auschwitz "Arbeit macht frei" roubada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2009-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: A célebre inscrição “Arbeit macht frei” (“o trabalho liberta”), afixada à entrada do campo de concentração nazi de Auschwitz, no sul da Polónia, foi roubada durante a noite por indivíduos desconhecidos, foi esta manhã revelado por responsáveis do museu histórico que ali funciona.
TEXTO: "Foi levado pelas 6h00 [locais, menos uma hora em Portugal]. Um cão polícia foi posto em busca do rasto dos ladrões”, precisou porta-voz da polícia de Auschwitz, Malgorzata Jurecka, em declarações à rádio pública Trojka. Estão agora a ser examinadas as câmaras de segurança instaladas no local, que fica encerrado durante a noite. “É uma profanação do local onde mais de um milhão de pessoas foram assassinadas. É vergonhoso”, lamentou o porta-voz do museu de Auschwitz, Jaroslaw Mensfeld, precisando que se trata do “primeiro caso de um roubo desta gravidade neste local”. As autoridades do museu - que ocupa pouco mais de um terço do espaço de cerca de dois quilómetros quadrados do campo - já instalaram uma réplica do sinal no portão, a qual fora usada já antes quando o original esteve a ser reparado, informa a edição online do diário polaco Gazeta Wyborcza. O sinal, feito em ferro forjado por prisioneiros judeus, erguia-se às portas de Auschwitz desde o início da década de 1940, por ordem de Rudolf Höss, comandante do campo, o qual – segundo o historiador britânico Laurence Rees – acreditava que o trabalho manual o ajudara a ele próprio na experiência de prisioneiro de guerra, durante o período da república de Weimar, que precedeu a ascensão dos nazis ao poder na Alemanha. O slogan nazi “Arbeit macht frei” foi colocado nos portões de vários campos de concentração sob ordem directa do general das SS Theodor Eicke, inspector dos campos e primeiro comandante em Dachau. A inscrição à portas de Auschwitz1 – o maior dos campos de concentração e extermínio de judeus durante a II Guerra Mundial – tem a particularidade de a letra “B” de “Arbeit” ser maior do que as restantes, dando-lhe a aparência de uma letra invertida. Historiadores calculam que 1, 1 milhão de pessoas, 90 por cento das quais judeus, morreram em Auschwitz entre 1940 e 1945. As demais vítimas foram sobretudo polacos não judeus, ciganos e prisioneiros de guerra soviéticos. Notícia actualizada às 8h55
REFERÊNCIAS:
Altas temperaturas provocaram desmaios em crianças e idosos na comunidade cigana de Beja
Sem água potável nem a sombra de uma árvore, cerca de uma centena de pessoas enfrentam desafios acrescidos perante o calor extremo dos últimos dias. (...)

Altas temperaturas provocaram desmaios em crianças e idosos na comunidade cigana de Beja
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 13 | Sentimento 0.16
DATA: 2018-08-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sem água potável nem a sombra de uma árvore, cerca de uma centena de pessoas enfrentam desafios acrescidos perante o calor extremo dos últimos dias.
TEXTO: Mais de uma centena de pessoas, que habitam barracas e tendas e que não têm acesso a água potável, vivem assustadas de que um dia o fogo se propague no mato que os rodeia. Já se conhecia a dureza do dia-a-dia da comunidade cigana que vive no bairro das Pedreiras, em Beja, onde nos invernos rigorosos o frio afecta sobretudo as crianças e a chuva e o vento destrói as tendas e barracas cobertas com lonas, plásticos e chapas metálicas. Quando a secretária de Estado da Habitação Ana Pinho, acompanhada de Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, do alto-comissário para as Migrações, Pedro Calado e do presidente da Câmara de Beja, Paulo Arsénio, se deslocaram ao bairro no final de Janeiro, o panorama era desolador: as crianças estavam mal agasalhadas, eram acossadas por tosses persistentes e os pais reclamavam por uma habitação que os libertasse de vidas inteiras a viver debaixo de toldos. Faltava conhecer o quotidiano da comunidade durante o período estival. Com a chegada do calor extremo, a realidade que se observa no referido bairro “é de penar”. Quando o PÚBLICO se deslocou ao local pelas 11h deste domingo, com a indicação de que crianças e pessoas mais velhas desmaiavam por não terem acesso à água, a temperatura ambiente era mais uma vez “insuportável”. No espaço onde vivem mais de cem pessoas, na sua maioria crianças e idosos, em tendas e barracas rodeadas de montes de entulhos deixados pelos serviços municipais, que tem nas proximidades o seu parque de materiais, não há uma única árvore. O mato seco e denso rodeia e intercala o espaço entre as barracas e as tendas. O ponto de água que abastecia estas famílias encontra-se a quase dois quilómetros de distância, na fonte de Suratesta, mas tem uma placa a dizer que estava imprópria para consumo humano. Entretanto, dizem os que dela se serviam, “foi secando e ficando verde e deixamos de lá ir”. Na última reunião do executivo municipal de Beja, realizada na passada quarta-feira, o PÚBLICO alertou o presidente da câmara, Paulo Arsénio, da ausência de acesso a água potável, que patenteava um evidente risco de saúde pública. Estava por cumprir a promessa feita pelo vereador Luís Miranda, quando no início de Junho se comprometeu perante dezenas de famílias ciganas que se tinham deslocado aos Paços do Concelho, reclamando o direito a habitação e, no imediato, o acesso à rede eléctrica e a um ponto de água. Decorridos dois meses, Luís Miranda adiantou ao PÚBLICO que estava a ser “muito difícil” levar a água à zona das barracas, escusando-se a entrar em mais pormenores, acrescentando apenas que a promessa que fez não era em nome da câmara mas “em nome pessoal”. Paulo Arsénio escusou-se a fazer comentários à situação relatada. Na manhã de hoje, a falta de água não era compensada com a colocação na passada sexta-feira de uma torneira a cerca de uma centena de metros do aglomerado de barracas. A “fonte” revelou-se inadequada e insuficiente para satisfazer as necessidades das pessoas. Por estar colocada junto à zona onde a Câmara de Beja construiu em 2006, um bairro com 50 habitações para alojar cerca de 250 pessoas de origem cigana e que hoje acolhe o dobro, o novo ponto de água é disputado para todo o tipo de necessidades. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ofélia Barão ainda conseguiu lavar a roupa da família, e encher a pequena banheira insuflável para “meter os dois filhos lá dentro” para os refrescar. A disputa do novo ponto de água passou a servir para "matar o calor”. Adultos, crianças e jovens passaram a tomar banho vestidos e calçados. “É a única maneira da gente fugir por um bocadinho ao calor”, explicaram ao PÚBLICO. A família de Júlio Martins conta como a falta de água e as temperaturas muito elevadas acabaram por matar à sede as galinhas que tinham. "Até o cavalo lhe secou a boca”. E para o animal não morrer à sede, dois jovens da família foram buscar água numa pequena banheira para bebés. “O bicho despachou-a num instante”, observou uma das netas de Júlio Martins. Contudo, o problema maior está na frequência de desmaios em crianças e idosos. "Veio-lhe o desmaio e depois vimos que não tinha água na garrafa”, disse uma filha de Júlio Martins, apontando para uma idosa que se arrastava à procura de sombra, afectada por um problema de diabetes. Mal conseguia falar. “Os bebés ficam escaldando”, acrescentam os relatos. “Nem para a assear a casa temos água”, acrescenta uma jovem mãe. Ofélia Barão diz que o mais a assusta são as cobras, mas sobretudo o medo de um incêndio. Em redor das barracas, e até entre elas, o mato denso e seco apresentam um risco eminente de incêndio que a comunidade cigana tenta acautelar. “Se uma chama chega às nossas casas, morremos todos assados” receia Ofélia Barão.
REFERÊNCIAS:
Comunidade cigana denuncia discriminação e ameaça fazer uma concentração nacional
A Câmara de Beja construiu um muro à volta do bairro, que ficou transformado num gueto. Uma ONG europeia fala em segregação e critica as condições "deploráveis" daquele espaço. (...)

Comunidade cigana denuncia discriminação e ameaça fazer uma concentração nacional
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-07-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Câmara de Beja construiu um muro à volta do bairro, que ficou transformado num gueto. Uma ONG europeia fala em segregação e critica as condições "deploráveis" daquele espaço.
TEXTO: As condições "deploráveis" em que moram as famílias ciganas que, desde 2006, vivem no Bairro das Pedreiras, em Beja, deram origem a uma queixa contra Portugal. A denúncia foi apresentada em Abril, pelo European Roma Rights Centre (ERRC) junto do Comité Europeu dos Direitos Sociais (CEDS). A União Romani Portuguesa, que representa as comunidades ciganas, ameaça com uma concentração nacional às portas de Beja, caso a autarquia não resolva vários problemas, a começar por um muro construído pela câmara e que acaba por isolar o bairro do resto. As autoridades nacionais são acusadas de casos de segregação, da baixa qualidade das habitações e da falta de acesso a serviços básicos de saúde e educação. Mais grave ainda é a construção de um muro de 2, 5 metros de altura que, num dos lados, esconde este bairro marcado pela polémica desde que, em 2005, foi apresentado como projecto. O muro, afirma o ERRC - uma organização não-governamental que combate a discriminação de comunidades ciganas na Europa - é um claro exemplo de "exclusão e discriminação social". A queixa feita em Abril pode chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. "Diga lá se isto não parece uma cadeia", denuncia um dos residentes à reportagem do PÚBLICO. "Tantos anos a lutar contra o muro de Berlim e temos um muro em Beja", acentua o presidente da União Romani, Vítor Marques, criticando a forma como se tenta "isolar uma população" como se "sofresse de lepra ou de outra doença contagiosa". O projecto de "reinserção social" dinamizado pela Câmara de Beja, para instalar 53 famílias ciganas que residiam no bairro de lata nos arredores daquela cidade, não cumpriu o objectivo de "integrar aquelas famílias sem ofender a sua cultura", observa Vítor Marques. "Estamos perante um caso evidente em que soluções remediadas degeneraram em situações xenófobas. " "Queremos evitar a todo o custo o conflito social, quando sabemos que são outros a promovê-lo". Mas "se as coisas não arrepiarem caminho faremos uma concentração nacional em Beja da comunidade cigana", adverte. As famílias que ali vivem foram instaladas nas traseiras do parque de materiais da Câmara de Beja e junto ao canil/gatil municipal. O amor e os ratos"As reclamações são mais que muitas, mas a câmara não lhe dá sequência" queixa-se Armando Marques, pai de nove filhos e que tem ainda a seu cargo a sogra com 90 anos. Outro problema grave é que "os ratos são tantos que davam para encher um camião", insurge-se, agastada, Nazaré Reis, enquanto o PÚBLICO visita a sua habitação, exígua para uma família com cinco crianças. No único quarto que a casa dispõe, amontoam-se as "camas" - um eufemismo para os cobertores que, à noite, são estendidos no chão. As 53 habitações do bairro onde vivem cerca de 400 pessoas têm todas a mesma configuração e o mesmo número de divisões: um quarto, uma casa de banho e uma sala. É neste espaço com cerca de 50 metros quadrados de área que se amontoam agregados familiares com oito, nove e até 12 elementos. Em Maio, a câmara ordenou o desmantelamento, com apoio das forças policiais, de pequenos anexos e barracas construídos pelos moradores para alojar pessoas e animais. Armando Marques já foi obrigado a facultar o quarto a um dos filhos que casou recentemente, e colocou a sogra a dormir numa tenda que ergueu junto à residência, contrariando desta forma a orientação do município que proíbe este tipo de soluções, "Não tenho outra solução. Jogamos os moços fora?", pergunta, antes de um último desabafo: "As condições a que nos obrigam a viver não nos deixam ter intimidade. Para fazer amor com a mulher tenho de ir para o campo. "
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