Como criar um país sem sair de casa
São olhados de lado pelas pessoas sérias, e é fácil tomá-los por loucos ou excêntricos. Criam países em casa ou na Internet, mas muitos deles só querem tornar o mundo real um pouco menos aborrecido. (...)

Como criar um país sem sair de casa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: São olhados de lado pelas pessoas sérias, e é fácil tomá-los por loucos ou excêntricos. Criam países em casa ou na Internet, mas muitos deles só querem tornar o mundo real um pouco menos aborrecido.
TEXTO: Quem não se lembra daquela vez em que o Ducado de Grand Fenwick, uma minúscula nação perdida na imensidão dos Alpes franceses, declarou guerra aos poderosos Estados Unidos da América com um ridículo exército de 20 e poucos homens, armados com arcos e flechas, e saiu vencedor? Os historiadores continuam a ignorar este feito, mas quem viu a comédia O Rato Que Ruge, de 1959, ou leu o livro que lhe deu título, nunca esquecerá o dia em que as nações mais pequenas do mundo vergaram as grandes potências e forçaram-nas a seguir o caminho da paz. Mais de meio século depois, muitas outras nações imaginárias como o Ducado de Grand Fenwick continuam a tentar construir o seu próprio mundo, longe da realidade das Nações Unidas e da monotonia de quem insiste em levar-se a sério, mas muito perto do absurdo ou da pura diversão. São conhecidas como micronações, apesar de o termo servir para definir quase tudo menos uma equipa de futebol. Há micronações no quarto, na sala, numa propriedade relativamente grande, ou sem as restrições de espaço que a Web permite. As que se levam a sério — ou as que dizem levar-se a sério — acabam por ter os seus 15 minutos de fama, como é o caso da República Livre de Liberland, autoproclamada em Abril passado pelo checo Vit Jedlicka, um jovem político de 31 anos fascinado com os ideais libertários. Jedlicka, membro do Partido dos Cidadãos Livres, foi entrevistado por rádios, jornais e estações de televisão europeus e norte-americanos, fascinados com a sua ideia de reclamar soberania sobre um pedaço de terra na fronteira entre a Sérvia e a Croácia, aproveitando-se de uma disputa que está por resolver desde o fim da II Guerra Mundial. Em poucas semanas, a autoproclamada República Livre de Liberland foi inundada com dezenas de milhares de pedidos de cidadania, de todos os cantos do mundo, de pessoas que partilham os ideais libertários de Vit Jedlicka: impostos e intervenção do Estado reduzidos ao mínimo; respeito total pela propriedade privada; e uma tolerância sem limites em relação à vida íntima e às crenças de cada pessoa — desde que “não tenham um passado comunista, neonazi, ou qualquer outro extremismo”, como se pode ler no site oficial. O problema é que a autoproclamada “República Livre de Liberland” foi concebida na cabeça de Vit Jedlicka mas quer nascer num local pouco hospitaleiro. Apesar da exposição mediática do seu fundador, o Governo da Croácia já disse que a ideia não passa de uma piada — e até ordenou a detenção de Jedlicka por duas vezes, obrigando-o a pagar uma multa por atravessar a fronteira de forma ilegal; a Sérvia referiu-se a Liberland como um “assunto fútil”; e o Governo da República Checa, pátria de Vit Jedlicka, disse que as acções do seu compatriota são “inadequadas e potencialmente nocivas”. Talvez por isso, o Egipto viu-se obrigado a assumir uma posição pública, depois de as notícias sobre Liberland e as entrevistas ao seu fundador terem captado o interesse de milhares de egípcios nas redes sociais. “Muitos jovens são manipulados, e há associações criminosas que se apoderam do seu dinheiro. Aconselhamos cautela, e apelamos aos jovens que peçam informações nos nossos consulados”, disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do país, Badr Abdel Atty, num alerta contra possíveis “fraudes”. Ao contrário da República Livre de Liberland, há inúmeras micronações que têm noção dos seus limites, como a República de Molossia, autoproclamada pelo norte-americano Kevin Baugh no seu terreno, no deserto do Nevada, e que passam mais despercebidas. Mas a troca acaba por compensar: apesar de os seus líderes não serem ouvidos pela CNN, pelo The New York Times ou pelo The Guardian, estas micronações são infinitamente mais divertidas. Tal como na versão cinematográfica do Ducado de Fenwick, cujos destinos eram liderados pela duquesa Gloriana XII (Peter Sellers), pelo primeiro-ministro Rupert Muntjoy (Peter Sellers) e pelo chefe das forças armadas Tully Bascome (Peter Sellers), também a República de Molossia, fundada e liderada por Sua Excelência, o Presidente Kevin Baugh, está em guerra. A diferença é que esta micronação de faz-de-conta envolveu-se num conflito armado com um país que já não existe: a República Democrática Alemã. Sentado na cadeira do poder, e vestido à melhor maneira de um ditador militar sul-americano saído de décadas passadas, Sua Excelência — como insiste em assinar a correspondência trocada com a Revista 2 — conta a história: “A Alemanha de Leste ainda existe, na forma de uma pequena ilha na costa de Cuba, que foi oferecida por Fidel Castro nos anos 70. Tecnicamente, essa ilha ainda é território da Alemanha de Leste, apesar de não ser habitada. Por isso, declarei-lhe guerra em 1983, quando era primeiro-ministro de Vuldstein, a anterior designação da República de Molossia. Nunca mais me lembrei da declaração de guerra, mas encontrei-a há alguns anos, nos meus ficheiros. Foi então que descobri que a Alemanha de Leste ainda existe — na forma dessa ilha — e que a nossa guerra está em curso, e assim vai continuar, provavelmente para sempre. ”A ilha a que Kevin Baugh se refere chama-se Ernst Thälmann, e foi assim nomeada por Fidel Castro em memória do líder do Partido Comunista alemão durante a república de Weimar, entre o fim da Grande Guerra e a ascensão ao poder dos nazis de Adolf Hitler. Preso em 1933, Thälmann passou 11 anos na solitária e foi executado em 1944. A ilha com o seu nome não é — nem nunca foi — território da Alemanha de Leste; Castro apenas lhe mudou o nome, durante uma visita a Cuba do então líder da RDA, Erich Honecker. Adiante — se há coisa que a República de Molossia não tem, é um Ministério para os Assuntos Sérios. Kevin Baugh é um norte-americano de 52 anos, nascido em Dayton, no estado do Nevada, e trabalha “no departamento de recursos humanos de uma grande empresa”, que insiste em não querer identificar. “Eu e o meu amigo James [Spielman] vimos um filme antigo com o Peter Sellers, O Rato Que Ruge, e pensei que seria divertido criar a nossa própria nação. Fizemos uma bandeira, a nossa própria moeda e as nossas leis. Mais tarde, ele desistiu, mas eu continuei com a ideia, e quando comprei um terreno no Norte do Nevada mudei o nome da propriedade para República de Molossia, hasteei a bandeira e comecei a construir a nação. ” Loucura? Delírio? Nada disso, diz Kevin Baugh — para ele, Molossia “foi sempre um símbolo de soberania pessoal, criatividade, imaginação, e um pouco de sátira”. O seu lema resume bem a ideia de que “o humor é algo muito sério”, uma frase atribuída ao escritor, jornalista, cartoonista e etc. James Thurber, e replicada por milhões de outros seres humanos, antes e depois do aparecimento do Twitter: “Nós divertimo-nos em Molossia, mas Molossia não é uma brincadeira. ”Hoje em dia, a República de Molossia é um terreno de 5000 metros quadrados, cercado por todos os lados pela localidade norte-americana de Dayton e pelos restantes Estados Unidos da América. Tem bandeira e moeda próprias (a valora), e a capital chama-se Baughston (qualquer relação com o nome do “ditador benévolo” Baugh não é pura coincidência). Quase nada falta à República de Molossia — se esquecermos os pormenores do reconhecimento internacional e/ou a capacidade de fazer negócios com países a sério. Caminho-de-ferro? Molossia tem: é uma réplica em miniatura, com uma estação a condizer, que Kevin Baugh opera sempre que é necessário. Cemitério? “Check. ” Uma praça central gigantesca? Molossia tem, só que não é nem central, nem gigantesca: é constituída por uma pequena fonte e dois bancos de jardim, enquadrados pela bandeira e por um canhão que não faz mal a ninguém vai para séculos. E, mais importante do que tudo o resto, tem um povo. “Temos 28 cidadãos, incluindo os nossos cães”, diz à Revista 2 Kevin Baugh. “Seis seres humanos e cinco cidadãos cães vivem em Molossia, e os restantes vivem fora do país, nos EUA, como expatriados. ” Quem estiver interessado em juntar-se a Kevin, à sua mulher — a primeira-dama de Molossia — e aos seus filhos, o melhor é pensar em alternativas: “Desculpem, mas não estamos a aceitar novos cidadãos. O nosso país é pequeno de mais. ”Desculpem, mas não estamos a aceitar novos cidadãos. O nosso país é pequeno de mais. ”Mas as visitas são bem-vindas. O importante é deixar uma “pequena contribuição” no posto fronteiriço — controlado por um boneco chamado Fred — e respeitar a lei: nada de lâmpadas incandescentes e sacos de plástico, “porque são maus para o ambiente”; armas e tabaco; missionários e vendedores; cebolas e morsas; e “tudo o que vier do Texas, excepto a cantora Kelly Clarkson”. A vida na República de Molossia — ou na vivenda da família Baugh, como diriam os mais circunspectos observadores internacionais — é igual a tantas outras em repúblicas de faz-de-conta fundadas em terrenos particulares: como não há dinheiro para empregados, é Sua Excelência quem mete as mãos à obra e varre a praça, poda as árvores e atende o telefone. Os três filhos mais pequenos — todos membros dos Rangers de Molossia, os escuteiros lá do sítio — beneficiam das vantagens de viverem numa micronação que é um gigantesco parque de diversão e de educação. O Ministério para a Exploração Aérea e Espacial da República de Molossia lançou em 2002 o seu primeiro foguetão (um modelo Tidal Wave, que ainda se pode comprar no eBay por cerca de 40 euros), e desde então já inaugurou o Observatório Nacional (um telescópio) e um Monumento Espacial (um pequeno foguetão espetado em varas de alumínio), ex-líbris do Cosmódromo Alphonse Simms e Campo de Broomball. Quando não está a cuidar da república com vassouras e aspiradores, nem a responder a perguntas de jornalistas portugueses, Kevin Baugh passa horas no deserto do Nevada a lançar e a apanhar pequenos foguetões, que descem de pára-quedas muito mais devagar do que o entusiasmo dos seus filhos. Mas, afinal, como se financia um banco, uma estação de correios, uma sociedade de geografia e um instituto de vulcanologia, entre muitas outras actividades de faz-de-conta? “A maioria das receitas de Molossia são enviadas por cidadãos convidados a trabalhar nos EUA. Também fazemos algum dinheiro com a venda de artigos turísticos. Desde o início do ano já recebemos 30 turistas. Pode não parecer muito, mas é um verdadeiro feito, se tivermos em conta o tamanho e a localização da nossa nação, no deserto do Nevada”, explica Baugh. Da conversa com Sua Excelência, o Presidente de Molossia — ou, para sermos mais correctos, Sua Excelência, o Presidente Grande Almirante Coronel Doutor Kevin Baugh, Presidente de Molossia, Protector da Nação e Guardião do Povo, como se pode ler no seu site —, ficou uma promessa a Portugal. A inquietação justifica-se porque Molossia tem uma armada (três barcos insufláveis), de que Kevin Baugh é, de forma pouco surpreendente, chefe do estado-maior, e Portugal tem uma das maiores zonas económicas exclusivas do mundo. “Envio calorosas felicitações do povo de Molossia à nação e ao povo de Portugal. Um sítio belíssimo, que espero visitar um dia. Prometemos não violar as vossas águas territoriais. ”Por vezes, as micronações resvalam para projectos de eremitas armados, com comportamentos libertários extremistas. Molossia — e muitas outras micronações experimentais — é o oposto. São tantas as micronações espalhadas por esse mundo fora, que o gigante dos guias turísticos, a Lonely Planet, lançou um livro, e Hollywood tem um filme na calha, com o originalíssimo título provisório Micronações, em que o actor Jack Black vai desempenhar um papel inspirado no Presidente de Molossia. “Sim, o Jack Black, o [actor, realizador e argumentista] Jared Hess e vários produtores vieram cá fazer pesquisa para o filme, que é inspirado em Molossia. Ele garantiu-me que eu e a primeira-dama vamos ter um pequeno papel no filme, por isso vamos chegar em breve ao cinema!” Embrulha, Vit Jedlicka e os 15 minutos de fama da tua Liberland. Mas antes do filme, o livro: Micronations: The Lonely Planet Guide to Home-Made Nations foi publicado em 2006, por obra e graça dos australianos John Ryan, George Dunford e Simon Sellers. Ryan, nascido em Melbourne há 44 anos e formado em História da Arte e em Estudos Cinematográficos, teve a ideia quando era editor do site da Lonely Planet, influenciado pela história de uma micronação australiana chamada Província de Hutt River, fundada em 1970. “No início, apreciei o humor e a excentricidade do Príncipe Leonard [chefe de Estado da micronação actualmente conhecida como Principado de Hutt River], e a sua luta contra o governo sobre as taxas aplicadas ao trigo. À medida que fui crescendo, fui-me interessando cada vez mais pelos conceitos de soberania e Estado-nação, a partir do caso de Hutt River. Eu sabia que aquilo não era realmente um país, mas não conseguia perceber porquê. Então, comecei a encontrar cada vez mais micronações em todo o mundo. Era um movimento”, recorda o co-autor do guia da Lonely Planet em conversa com a Revista 2. (Sim, também há micronações em Portugal — como o Reino Unido de Portugal e Algarves —, mas nenhuma tem uma armada de barcos insufláveis, nem opiniões públicas sobre a cantora Kelly Clarkson. )O primeiro obstáculo que John Ryan encontrou quando pensou em escrever um guia sobre micronações foi, provavelmente, o mesmo com que muitos leitores se depararam quando começaram a ler este texto: “Pensei que era uma boa ideia, mas a maioria das reacções foram de indiferença e mesmo de confusão. ”Até que a ideia chegou ao colo de Roz Hopkins, que editara o sucesso The Travel Book na Lonely Planet. “Ela percebeu a ideia imediatamente”, conta o autor do guia sobre micronações. “O único problema é que só me deu quatro meses para escrever o livro. Por isso, convidei dois amigos que partilham comigo o interesse sobre micronações e o absurdo. Pesquisei e escolhi as nações, defini a estrutura do livro e os três partilhámos a escrita. Foi mesmo à justa, mas cumprimos o prazo. ”E qual será a mais fascinante das micronações, segundo a opinião de um especialista certificado e autor publicado? A resposta surge sem hesitações, e poderia servir para fechar o círculo, se este texto acabasse aqui. “A micronação mais deliciosa que eu encontrei foi a República de Molossia, de Kevin Baugh. Para mim, é o exemplo perfeito da natureza bem-humorada e do espírito livre do melhor que as micronações têm para oferecer. Ele é muito divertido, mas está realmente a criar o mundo em que quer viver. Por vezes, as micronações resvalam para projectos de eremitas armados, com comportamentos libertários extremistas. Molossia — e muitas outras micronações experimentais — é o oposto. No geral, os líderes de micronações estão apenas a divertir-se, mesmo que tenham sido espicaçados por algo que consideram ser uma injustiça”, considera John Ryan. O fenómeno das micronações modernas levou um empurrão estratosférico em meados da década de 1990, cortesia da Internet. Mas a ideia de construir um país de faz-de-conta com alicerces no sentido de humor — seja com território, apenas virtual, ou imaginário — é muito mais antiga do que a expressão “à distância de um clique”. Em 1977, mais precisamente no dia 1 de Abril, o jornal britânico The Guardian publicou um suplemento de sete páginas sobre o arquipélago imaginário de San Serriffe, constituído por duas ilhas em forma de ponto e vírgula; e as repercussões foram “muito além dos sonhos mais delirantes”, disse-nos um dos jornalistas que participaram na brincadeira. Tim Radford, jornalista do Guardian durante 32 anos, onde foi editor das secções de Artes, de Literatura e de Ciência, distinguido por quatro vezes como melhor jornalista de Ciência britânico, recorda “o episódio de San Serriffe como um dos momentos mais felizes e privilegiados de uma longa carreira no jornalismo”. “A ideia inicial era que a ilha tivesse origens espanholas, localizada no Atlântico, mas, depois de um terrível desastre aéreo nas ilhas Canárias, a localização foi mudada à última hora para o Índico, e os nomes dos colonizadores foram alterados para nomes portugueses. ” Calma, caixa de comentários: “San Serriffe não foi uma piada sobre Espanha ou Portugal, mas sim sobre a Grã-Bretanha e os britânicos”, explica o jornalista. “A relação colonial portuguesa existia nas nossas cabeças. Precisávamos de uma ideia geral, um contexto simples para que os detalhes pudessem fazer sentido, e naquela época todos nós tínhamos idade suficiente para nos lembramos de Goa e Macau como territórios portugueses”, justifica. Resultado? Um dos correspondentes do Guardian foi à BBC na qualidade de cônsul britânico em San Serriffe desmentir “a lamentável cobertura jornalística” sobre o arquipélago; e poucas horas depois de o suplemento ter chegado às bancas, o jornal recebeu uma carta de um grupo auto-intitulado Frente de Libertação de San Serriffe, conta o jornalista, reformado há dez anos. “Os nossos leitores entraram na brincadeira. Nas semanas seguintes, recebemos cartas de candidaturas à Universidade de San Serriffe, agentes de viagens telefonaram-nos a perguntar se aquilo era mesmo uma piada, e depois diziam com voz pesarosa: ‘É pena, podíamos vender muitos pacotes de viagens. ’ Por essa altura, o Ministério da Administração Interna queria deportar dois americanos, e um deles pediu para ser deportado para San Serriffe. A deportação foi adiada porque o Ministério dos Negócios Estrangeiros teve de confirmar que não existia nenhum sítio com aquele nome. ”Dez anos depois, do outro lado do Atlântico, no Canadá, um miúdo que frequentava a escola primária teve também a ideia de criar o seu próprio mundo. Mas a imaginação de Eric Lis não ficou fechada num pequeno país — preferiu pensar em grande, e assim nasceu o Império Aericano (Aerican Empire no original, um trocadilho com “império americano” e o primeiro nome do seu criador). Mais dez anos passados, em 1997, e o Império Aericano aproveitava a boleia da Internet para alargar os seus domínios. Influenciado pelo humor dos Monty Python e pelos filmes de Mel Brooks e do trio formado por John Abrahms e os irmãos Zucker (Airplane, de 1980, ou Top Secret, de 1984), Eric foi tornando o seu império cada vez mais “silly”, chegando a reclamar soberania sobre uma porção de território na Lua. “Sem dúvida que houve períodos em que tivemos mais elementos ficcionais. No final da década de 1980 e na década de 1990, por exemplo, assumimos a soberania de centenas de planetas e tínhamos descrições detalhadas de muitas raças sensíveis que habitavam neles. Mas o coração do Império Aericano sempre foi muito real para nós”, conta à Revista 2 Eric Lis, agora na pele de psiquiatra com consultório próprio em Montréal, e investigador no Centro Médico da Universidade McGill. Mais: o homem que alimenta desde criança uma vida paralela num império imaginário que nunca saiu da Internet é director dos Laboratórios de Percepções Psiquiátricas sobre Tecnologias Emergentes, numa universidade que deu 12 Prémios Nobel ao mundo real, cinco deles na categoria Psicologia ou Medicina. Então, terá sido o psiquiatra uma criação do miúdo com sonhos do tamanho de um império? “É uma pergunta difícil. Fundei o Império quando era muito jovem, na prática fez sempre parte da minha vida. Diria que as minhas experiências ensinaram-me a ter uma mente aberta em relação ao que é e ao que não é possível. Para além disso, como passei a maior parte da minha vida a colaborar com pessoas de diferentes culturas, com crenças diferentes, percebi a riqueza do mundo em que vivemos, e isso contribuiu sem dúvida para o meu interesse sobre psicologia e, mais tarde, sobre a psiquiatria”, reflecte Eric Lis. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na Universidade McGill, o imperador Eric estuda “a forma como as pessoas entendem, usam e temem os avanços tecnológicos, em particular as tecnologias de comunicação e as redes sociais”, uma área de interesse que admite ter resultado da sua própria experiência de “como a Internet teve um papel tão importante” na sua vida — a tal ponto que o seu laboratório está a preparar a realização de estudos “sobre saúde mental e traços de personalidade dos micronacionalistas”. Eric tem noção de que algumas pessoas olham para ele — e para o seu império de faz-de-conta — e não conseguem ver para além do excêntrico. Para ele, isso nunca foi nem nunca será um problema: “A maioria das pessoas tem uma visão muito redutora do que faz sentido e do que não faz sentido, e imagino que isso torna o mundo delas mais aborrecido do que o meu. Contesto a ideia de que uma coisa engraçada não pode ser também séria, importante ou com significado. O maior problema deste mundo é que as pessoas que estão no poder tendem a não ter a capacidade para se rirem delas próprias e das suas crenças. ”E se, ainda assim, alguém continuar a pensar que o imperador de faz-de-conta é doido, o psiquiatra defende-o: “Tenho um emprego, que adoro. Tenho amigos e família, que gostam de mim e que me respeitam, e tenho mantido relações amorosas duradouras. Segundo todas as classificações de distúrbios psiquiátricos, ninguém que cumpra todos estes requisitos tem um problema de saúde mental. ”
REFERÊNCIAS:
Itália apela à UE para mudar leis da imigração e teme-se que tenham morrido 300 imigrantes
Governo italiano tenta levar União Europeia a discutir política de imigração. Mergulhadores disseram ter visto dezenas de cadáveres. Muitos terão sido levados por correntes marinhas. (...)

Itália apela à UE para mudar leis da imigração e teme-se que tenham morrido 300 imigrantes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-10-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Governo italiano tenta levar União Europeia a discutir política de imigração. Mergulhadores disseram ter visto dezenas de cadáveres. Muitos terão sido levados por correntes marinhas.
TEXTO: Reacende-se o debate em Itália sobre as leis de imigração, sobretudo as que tornam crime o apoio no mar a embarcações com imigrantes ilegais - o motivo que terá impedido o socorro ao navio que naufragou já perto da ilha de Lampedusa, na quinta-feira. O número oficial de mortos mantinha-se, nesta sexta-feira de manhã, em mais de 130, mas o elevado número de desaparecidos faz temer que tenham morrido pelo menos 300 pessoas, entre as quais crianças. “Já não temos esperança de encontrar sobreviventes”, disse à AFP um elemento das forças policiais envolvidas nas operações de resgate de um desastre que relança o debate sobre a política europeia de imigração. A Itália está esta sexta-feira a viver um dia de “luto nacional”. Até à manhã desta sexta-feira só foram salvas 155 pessoas das 450 a 500 que o navio transportaria, o que pode fazer do desastre a maior tragédia da imigração, nos últimos anos. Mergulhadores que exploraram a zona próxima do navio afundado disseram ter visto dezenas de cadáveres. Muitos outros terão sido levados da zona pelas correntes marinhas. A última grande tragédia com imigrantes ocorreu em Junho de 2011, quando 200 a 270, oriundos da África subsariana e fugidos da Líbia em guerra, se afogaram ao tentarem chegar a Lampedusa. Segundo a organização não-governamental Migreurop, com sede em Paris, nos últimos 20 anos, 17 mil imigrantes morreram ao tentar chegar à Europa. “Já não temos espaço, nem para os vivos nem para os mortos”, disse ainda na quinta-feira, poucas horas depois do naufrágio, a presidente da câmara de Lampedusa, Giusi Nicolini. O vice-primeiro-ministro italiano, Angelino Alfano, confirmou à AFP a detenção do capitão do navio, que partiu do porto líbio de Misrata, lotado de imigrantes, maioritariamente somalis e eritreus. Já esta sexta-feira, na Câmara dos Deputados, Alfano defendeu a necessidade de “actuar, na Europa e em África”. Na Europa, o vice-primeiro-ministro considera necessário mudar as regras “que fazem pesar demasiado a imigração clandestina sobre os países de entrada”. Na quinta-feira reivindicou a possibilidade de a Itália alargar o patrulhamento “para além das suas águas territoriais”. Agir na UEAlfano disse ter conversado ao telefone com o presidente da Comissão, Durão Barroso, e que este lhe deu "abertura" para reabrir o dossier da entrada de imigrantes ilegais na Europa. "Prometeu-me que virá connosco a Lampedusa para lhe mostramos o que se passa nesta parte da Europa", disse Alfano, citado pelo jornal La Repubblica. "Faremos ouvir alto a nossa voz na Europa para alterar os tratado de Dublin, o acordo internacional que atribui muito, muito, muito peso da imigração aos países de primeiro ingresso. "A ministra da Integração italiana, Cécile Kyenge, primeira negra num governo italiano, reclamou a criação de “corredores humanitários para tornar mais segura a travessia daqueles que são vítimas de organizações criminosas”. A comissária europeia dos Assuntos Internos, Cecilia Malmström, afirmou no Twitter a sua convicção de que é preciso mudar a situação: "Os meus pensamentos estão com as vítimas e com as suas famílias. Devemos redobrar os esforços para lutar contra os traficantes de pessoas que exploram o desespero. "Mas outros recordaram em Itália que a própria legislação italiana está na origem de problemas, não só a lei Bossi-Fini, como, mais recentemente, uma alteração que transforma em crime de favorecimento da clandestinidade prestar ajuda em alto mar a embarcações de imigrantes ilegais que estejam em perigo. Por isso, diz a presidente da câmara de Lampedusa, Giusi Nicolini, os pescadores se mantêm afastados destes navios. Três barcos de pescadores afastaram-se da embarcação que transportava estes imigrantes, que se incendiou e acabou por naufragar, dado o pânico das pessoas a bordo. As autoridades italianas informaram que cerca de 25 mil imigrantes entraram este ano em Itália, três vezes mais do que em 2012. Segundo as Nações Unidas, no ano passado, quase 500 pessoas morreram ou foram dadas como desaparecidas no mar, quando tentavam chegar à Europa.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave crime guerra lei imigração ajuda luto negra pânico
Condenação de líderes dos Khmer Vermelho reconhece o genocídio no Camboja
Quase 40 anos depois do fim do regime de Pol Pot, o tribunal especial criado com a ONU condena os dois principais responsáveis ainda vivos – com grande probabilidade, os últimos a serem julgados. (...)

Condenação de líderes dos Khmer Vermelho reconhece o genocídio no Camboja
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Quase 40 anos depois do fim do regime de Pol Pot, o tribunal especial criado com a ONU condena os dois principais responsáveis ainda vivos – com grande probabilidade, os últimos a serem julgados.
TEXTO: Lah Sath tem 72 anos e pertence à minoria muçulmana cham do Camboja, que os Khmer Vermelho tentaram aniquilar ou converter à sua utopia ateia de uma sociedade agrária pura, sem moeda nem cidades. Esta sexta-feira foi ao tribunal especial criado para julgar os crimes de guerra do regime. Levou a mulher e quatro netas. Já tinha ouvido falar; desta vez, quis ver com os seus olhos. Os Khmer Vermelho cometeram “genocídio”, disse pela primeira vez o tribunal – e Lah Sath, a quem mataram o irmão por não cuidar bem de uma vaca, estava lá para ouvir. “A câmara conclui que crimes de genocídio foram cometidos” contra “o povo vietnamita” e contra os “muçulmanos cham”, afirmou Nil Noon, juiz presidente do tribunal que integra magistrados cambojanos e internacionais, em Phnom Penh. Já condenados por crimes contra a humanidade (transferências forçadas e desaparecimentos em massa), em 2005, Nuon Chea, de 92 anos, conhecido como “Irmão Número Dois” e considerado o principal ideólogo do regime, descrito pelo tribunal como “a mão direita de Pol Pot”, e Khieu Samphan, de 87 anos, que foi chefe de Estado entre 1976 e 1979, são agora condenados por genocídio – o primeiro contra os vietnamitas do Camboja e os cham; o segundo contra os vietnamitas. Na extensa lista de crimes lida por Noon (Chea pediu para sair nessa altura por se estar a sentir mal), inclui-se assassínio, extermínio, esclavagismo, deportação, encarceramento, tortura, perseguição religiosa, racial e política, desaparecimentos e violações em massa através da política de casamentos forçados…Ambos integraram um “programa criminoso conjunto” realizado para estabelecer “uma sociedade ateia e homogénea”, sem diferenças “étnicas, nacionais, religiosas, raciais, de classe ou culturais”. Os primeiros condenados por genocídio no Camboja serão muito provavelmente os últimos acusados pelos crimes do regime de terror iniciado a 17 de Abril de 1975 – e que em três anos, oito meses e 20 dias matou à fome, por trabalho forçado ou através de execuções 1, 7 milhões de pessoas, um quarto da população. Os alvos do extermínio, para além das minorias, foram os “inimigos do povo” entre os khmer. Estes eram a maioria da população e, naturalmente, das vítimas. Por isso demorou tanto até o tribunal se referir como genocídio aos crimes ordenados por Pol Pot (que morreu em 1998) – para ajudar a provar o genocídio dos vietnamitas, o tribunal ouviu um discurso de Pol Pot em que este assegurava, em 1978, já não haver “nem uma só semente” vietnamita no Camboja; vítimas cham descreveram como os membros da sua comunidade foram objecto de execuções em massa, proibidos de usar nomes muçulmanos ou praticar a sua religião e obrigados a comer porco (os budistas também eram frequentemente humilhados). Nuon Chea e Khieu Samphan são dois entre apenas três responsáveis julgados pelo tribunal criado em 2006, depois de delicadas negociações entre as Nações Unidas e o Governo. Hun Sen, primeiro-ministro desde 1985, reeleito em Julho sem oposição, é contra o julgamento da história e diz que mais processos poderiam conduzir a uma guerra civil. É acusado de interferir no tribunal, conseguindo o arquivamento do outro processo, contra quatro quadros de nível intermédio do regime radical maoísta. Levar a tribunal todos os que integraram nalgum momento esta estrutura de poder significaria, por exemplo, julgar Hun Sen e muitas figuras do seu Governo – o primeiro-ministro desertou quando começaram as grandes purgas internas e acabou por se juntar às forças do Vietname que derrubaram os Khmer. Antes destes dois responsáveis, apenas Kaing Guek Eav (conhecido como “Duch”), comandante da infame prisão S-21 de Phnom Penh – onde 15 mil cambojanos foram torturados antes de ser executados – tinha sido condenado, a prisão perpétua, pelo tribunal especial. “Pouco e tarde” ou “um dia absolutamente histórico”, há opiniões bem diferentes sobre o veredicto agora conhecido. “Foi um regime tão maléfico”, disse o procurador Nicholas Koumjian. “O veredicto é oportuno e necessário. O facto de estes crimes terem acontecido há 40 anos não diminui de nenhum modo o impacto do veredicto para os que foram afectados, pessoas cujos pais foram torturados e mortos. ”David Scheffer, ex-enviado especial da ONU para os julgamentos, considera o veredicto “muito significativo”: “É comparável ao julgamento de Nuremberga depois da Segunda Guerra Mundial. Isso vale o esforço e o dinheiro”, afirma, citado pelo diário britânico The Guardian. Entre as principais críticas ao tribunal está a lentidão com que trabalhou e os gastos de mais de 260 milhões de euros. Para a advogada e sobrevivente Theary Seng, que falou aos jornalistas à porta do tribunal, “justiça adiada é justiça negada”. O veredicto “é a acumulação de anos e anos de espera”, diz. Seng também tem dificuldades em aceitar que “só três pessoas tenham sido julgadas, quando houve milhares de assassinos”. “Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A Amnistia Internacional descreve o veredicto como “justiça adiada e amarga”. Já a Human Rights Watch nota que o mundo devia exigir a “Hu Sen que explique por que é que pediu aos juízes cambojanos que ponham fim aos processos”, lê-se num comunicado. “Se os Khmer Vermelho deixaram de existir como entidade política e militar, de que é que o Governo tem medo?”Lah Sath, como tantos, foi expulso da cidade e obrigado a trabalhos forçados no campo, contou à Al-Jazira. A ele, um dos muitos cham que encheram a sala de audiências na capital, basta falar sobre os Khmer para reviver “memórias horríveis”. Desta vez, depois das memórias veio o veredicto que torna oficial o sofrimento de tantos e lhe chama genocídios.
REFERÊNCIAS:
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Um melodrama, Mommy, varreu a competição do Festival de Cannes, reconciliando-nos com esta edição. (...)

Xavier Dolan, o menino das mamãs, com a imprensa a seus pés
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-05-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um melodrama, Mommy, varreu a competição do Festival de Cannes, reconciliando-nos com esta edição.
TEXTO: O Festival de Cannes andou a amamentar o seu filho, dando-lhe prémios em secções paralelas, criando o monstro do “menino-prodígio”. Agora, à quinta longa-metragem, na quarta vez no festival, primeira na competição principal, a figura de Xavier Dolan, 25 anos, está a provocar a seguinte pergunta pelos corredores do Palácio dos Festivais: o que pode (ainda?) fazer ao seu ego uma Palma de Ouro?A resposta vai ficar para depois. Para já, estão aí as emoções com que um melodrama, Mommy, varreu a competição desta 67. ª edição (flashback para 1996, Segredos e Mentiras, de Mike Leigh, é desse nível a coisa…), reconciliando-nos com uma edição que só a espaços estabeleceu mais do que relação de rotina com o espectador. Para dizer a verdade, qualquer dilema que Dolan possa colocar agora cai por terra perante a admiração que o seu tour de force está a suscitar: num subúrbio quebequense, aquele em que Dolan cresceu, a história de uma mãe, do filho doente e violento que ela tenta manter ao seu cuidado, em vez de o internar numa instituição, e de uma vizinha, ex-professora que deixou de falar depois de um trauma, que se junta a esse par – trio formado ao sabor das manobras de compensação emocional de cada um, e que vive efémera história de folie à trois, contra tudo e todos, contra até o formato quadrado do ecrã que os aprisiona, mesmo que elas, com um toque de mãos, em momentos condenados também à efemeridade, possam empurrar para os lados os limites dessa prisão, o ecrã, deixando entrar mundo e podendo ambicionar um lugar no mundo (epifania ao som de Wonderwall, dos Oasis, por exemplo). Foi decisivo para a afirmação pública da maturidade do cineasta Dolan um filme como Tom à la ferme (2013), o anterior – já comprado para Portugal, tal como Mommy, mas ainda não estreado. Pela forma como, ao suspender a aceleração folclórica, que parecia imparável e em rota para o acidente, o cinema do realizador do Quebeque deixava os espectadores, tal como as personagens, pendurados no fio do desejo. Foi esse passo, talvez, que permitiu que Dolan regressasse com Mommy a um motivo autobiográfico, a relação com a sua mãe, que estava na origem da primeira longa, J’ai tué ma mère (2009), e o refundasse desta forma: gloriosamente. Encontrando um centro de gravidade para o histrionismo do seu cinema e para a voracidade pagã do vernáculo quebequense junto de actrizes habituais, como Anne Dorval (a mãe) ou Suzanne Clément (a amiga) – o filho, Antoine Olivier Pilon, é uma versão graúda, imprevisível, grotesca e profundamente comovente do Macaulay Culkin de Home Alone, ou seja, é tocado espiritualmente pelo Alex/Malcolm McDowell de Laranja Mecânica. Fazendo um filme já não sobre a sua mãe, fazendo um filme já não com a determinação caprichosa, adolescente, narcísica de a “matar” para poder exibir a sua voz, como no primeiro opus, mas fazendo um filme sobre a Mãe e oferecendo-lhe o seu cinema. “Para ganhar. Para fazer o que a vida não nos deixa fazer. É a beleza deste métier”, disse numa conferência de imprensa que se prolongou mais do que o habitual, na qual percebeu que tinha a imprensa a seus pés, e que afinal todos lhe desejam a Palma – uma vez que não é possível um filme receber o prémio máximo e ao mesmo tempo outros galardões, a coisa pode ser jogada contra a Palma de Ouros, se o júri preferir premiar a(s) intérprete(s) do filme. Ele disse-se viciado na adrenalina de um plateau de cinema, vício esse “de elevado consumo” – e causado também, o que começa a deixar de ser surpreendente, por uma inquietação e um toque de gravidade: “Sei que sou novo, mas não sei quanto tempo me resta para criar. ” Falou no desaparecimento natural da figura do pai nos filmes – apenas “acontece”, corresponde ao que se passa na sua vida, foi criado pela mãe, o contacto com o pai foi tardio, agora é “amigável”, mas não é figura que o impressione a ponto de querer fazer filmes sobre ele. E regressou (sempre) a Titanic, de James Cameron, o filme que lhe mostrou que havia realização, música, guarda-roupa, o filme que deu “fé e ambição” às suas histórias, e que lhe tirou o medo de contar as suas histórias. Assinalou que brevemente vai abrandar, para regressar à escola, para estudar. E para “dar beijos” em pessoas da sua idade. Ovni GodardKen Loach anunciara, durante a rodagem problemática de Jimmy’s Hall, que esse seria o seu último filme. Terá voltado atrás, agora que tudo passou, porque do cinema não se desliga facilmente. O seu filme é mais do mesmo – pior do que o mesmo, aliás. Elogio da dissidência, a partir de um episódio real da História irlandesa, a deportação para a América do comunista James Gralton, nos anos 30, não tolerado pelo establishment político e religioso irlandês, que não viu com bons olhos o seu projecto de uma sala para noites de dança e dias de discussão e arejamento de ideias, é middle of the road. Como o era, aliás, o filme de Loach que venceu a Palma de Ouro em 2006, The Wind that Shakes the Barley. Nesse nível de convenção encontra-se com os últimos filmes de Mike Leigh ou dos irmãos Dardenne. Numa competição com estes parâmetros, o Adieu au langage de Godard faz figura de ovni, disseram-lhe. Pode-se perguntar se Godard não é já o ovni de prestígio para os programadores do festival, por exemplo, que em contrapartida não toleraram Abel Ferrara, nem o facto de ele não ter querido fazer cortes a Welcome to New York e por isso o filme ficou no limbo das Sessões Especiais, projectado em ritual underground, numa praia. Sétima selecção de Godard em competição no festival, condiz com a condição de marginal de prestígio não ter vindo a Cannes, até porque, disse, receber uma Palma de Ouro faz mal; ele tem conseguido evitá-lo até hoje. Adieu au langage faz-se das idiossincrasias godardianas de sempre, da sua solidão, de uma voz off ruminante que espectaculariza o desaparecimento, o fim (“On va bientôt tous avoir besoin d'interprètes, ne serait-ce que pour se comprendre soi-même"), de um casal e das suas ficções em estilhaços. Adieu au langage faz-se em frente à televisão e na sanita de uma casa de banho, com pedaços de corpos que ainda estavam inteiros na sua tristeza em Passion (1982) ou no Prenom: Carmen (1983). E faz-se fabricando uma curiosidade de bricoleur e com a ilusão de uma inocência quase infantil com a utilização do 3D. Mas quem parece livre e de corpo inteiro é Roxy Mieville, o cão de Godard. Não se sabe para onde vai esta descarga inventiva, nem que sentido lhe atribuir aos estilhaços. A relação com o cinema de Godard passa por permitir um encontro de solidões, há até qualquer coisa de reconfortante nisso (e com este filme há este cão), não é preciso perguntar. O seu lugar estará sempre protegido (venha ele a Cannes ou não), a sua solidão intacta. “Que pensez-vous du film de Godard?” Não é para pensar.
REFERÊNCIAS:
Mais de 20 refugiados encontrados mortos em camião na Áustria
Polícia diz que morreram entre 20 e 50 pessoas na zona de carga de um camião, provavelmente sufocadas. Cimeira que discute Balcãs dominada pelas questões dos refugiados e de imigração. (...)

Mais de 20 refugiados encontrados mortos em camião na Áustria
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 14 Refugiados Pontuação: 21 | Sentimento 0.15
DATA: 2019-05-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: Polícia diz que morreram entre 20 e 50 pessoas na zona de carga de um camião, provavelmente sufocadas. Cimeira que discute Balcãs dominada pelas questões dos refugiados e de imigração.
TEXTO: O drama dos refugiados centrava-se esta quinta-feira na Áustria, onde um camião foi descoberto à beira da estrada com dezenas de mortos no interior – o estado de decomposição não permitiu às autoridades dizer quantos. A descoberta coincidiu com uma cimeira de líderes em Viena, que iria discutir a política União Europeia-Balcãs mas que acabou centrada nas questões de imigração e refugiados. O chefe da polícia de Burgenland, a região perto da fronteira com a Hungria em que estava o camião, disse que esta é a pior tragédia no local desde a II Guerra Mundial. Responsáveis europeus usam a marca da II Guerra para fazer notar que a crise dos refugiados é a maior que a Europa enfrenta desde então. O responsável da polícia regional, Hans Peter Doskozil, explicou numa conferência de imprensa que o camião chamou a atenção por estar parado há algum tempo numa área de serviço ainda relativamente perto da fronteira húngara. Fluido escorria da porta entreaberta. Um funcionário da auto-estrada que liga a fronteira húngara à capital chamou a polícia que descobriu os corpos em avançado estado de decomposição. Análises pretendem agora determinar quantos eram os mortos, de que nacionalidades, que idades teriam. A polícia não sabia sequer dizer se havia crianças entre as vítimas, que provavelmente terão morrido sufocadas. A maioria dos refugiados chega à Hungria depois de começar pela travessia da Turquia para a Grécia, em pequenas embarcações insufláveis e com muito mais pessoas do que deveriam, e seguem depois viagem para a Macedónia, Sérvia, e então Hungria, que esta semana declarou guerra aos imigrantes e refugiados. Em todos os países, as autoridades queixam-se de não ter meios para lidar com o número cada vez maior de chegadas. Que estes refugiados morram na Áustria depois de tantos perigos é uma ironia horrível. “Hoje refugiados perderam as vidas que tinham tentado salvar ao escapar, mas perderam-nas às mãos dos traficantes”, lamentou o chanceler austríaco, Werner Faymann. Ainda no dia anterior a polícia austríaca tinha detido três condutores suspeitos de transportarem refugiados da Síria; um deles tinha levado 34 pessoas na traseira de uma carrinha branca, incluindo dez crianças pequenas, que foram depois abandonadas à beira de uma auto-estrada perto de uma cidade a meio caminho entre a fronteira e a capital. Os refugiados dizem que mal conseguiam respirar, e que o condutor foi directo da Sérvia até à Áustria, ignorando os seus pedidos para mais ar. Cada vez mais há apelos para criar vias seguras para os refugiados poderem chegar à Europa evitando os traficantes. As autoridades austríacas prometem agir contra os que transportam os refugiados e migrantes nestas condições. A ministra do Interior, Johanna Mikl-Leitner, reforçou esta ideia na conferência de imprensa sobre o camião. “Esta tragédia devia preocupar-nos a todos”, disse Mikl-Leitner. “Os traficantes de pessoas são criminosos que não se interessam pelo bem-estar dos refugiados, apenas pelo lucro”, sublinhou. “Desengane-se quem ainda achar que eles ajudam os refugiados”, continuou, apelando a que ninguém dê auxílio ao condutor a escapar às autoridades. Está em curso uma caça ao homem para o encontrar, em coordenação com as autoridades húngaras. Sabe-se que o camião, de uma empresa eslovaca de carne de aves, foi vendido em 2014 e está registado em nome de um cidadão romeno. A polícia não sabe quando terá mais informações. “Não temos referência para um caro destes”, dizia um responsável à emissora pública ORF. A Hungria está a ver números recorde de refugiados passarem a sua fronteira, numa altura em que ameaça parar a sua progressão com muros, arame farpado, e até xército. Na quarta-feira, verificou-se um novo pico de pessoas a passar a fronteira da Sérvia com a Hungria - 3241 pessoas. ´O ministro sérvio dos Negócios Estrangeiros, Ivica Dacic, pediu à União Europeia um “plano de acção”. “Este é um aviso para resolvermos este problema e mostrarmos solidariedade”, comentou a chanceler alemã, Angela Merkel, que participava na conferência. A Alemanha – que receberá este ano 800 mil pessoas, mais do que qualquer outro país europeu – vem a apelar repetidamente a outros países que partilhem o número de refugiados. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O ministro austríaco dos Negócios Estrangeiros, Sebastian Kurz, também opinou que é necessária uma melhor redistribuição dos refugiados, sugerindo por exemplo que no país de chegada possam escolher o local onde querem pedir asilo (as regras actuais ditam que têm de pedir asilo no primeiro local onde chegam, ou então chegar ao local onde querem pedir asilo). Enquanto isso, Kurz juntou-se ao coro de alertas sobre uma ameaça ao espaço Schengen: A União Europeia “sem fronteiras no seu interior está em risco”, se as fronteiras no seu exterior não estão seguras, afirmou. PUB
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra imigração homem carne aves
A casa da avó
Nunca conheci a minha avó sem o meu avô. Contudo, as casas dos meus avós foram sempre “a casa da avó”. (...)

A casa da avó
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nunca conheci a minha avó sem o meu avô. Contudo, as casas dos meus avós foram sempre “a casa da avó”.
TEXTO: Primeiro, houve aquele apartamento pequeno, às portas de Paris, cidade onde vivi a minha primeira infância, época longínqua durante a qual se formaram, cresceram e fincaram as raízes da relação visceral que vivi com a minha avó. Talvez por causa disso houvesse pouco ou nada que eu lhe pudesse esconder. Criança, adolescente ou mulher, as amarras que a ligavam a mim iam directamente à minha alma e tornavam-me transparente ao seu coração. Era com a força desse órgão transbordante que me via, me aconselhava, rezava por mim e me acompanhava, mesmo que estivéssemos fisicamente distantes uma da outra, como acabámos por estar grande parte das nossas vidas. Recordo o cheiro a madeira e a cera que emanava das escadas que era preciso subir para chegar à porta do pequeno apartamento dos meus avós. Para chegar à casa da avó. O corrimão brilhava com a luz que entrava pelas janelas altas e estreitas que acompanhavam a escadaria. Recordo o toque suave da sua madeira polida, sempre limpa, e o prazer que me dava olhar para baixo, pelo vão elegante, para observar a tijoleira preta e branca do pavimento, no rés-do-chão. Chegada ao segundo andar e aberta a porta do apartamento, era recebida por um dos primeiros cheiros a casa de que me recordo e que poderei recriar um dia, mas apenas em parte. Não me bastará misturar o aroma da laca Elnett ao perfume Aramis. Faltarão sempre os odores inimitáveis da pele dos meus avós. O cheiro do pescoço da minha avó, sempre o mesmo, desde as minhas memórias mais remotas até àquele dia, no hospital, quando teve ainda lucidez para me pegar nas mãos, falar comigo e abraçar-me. O cheiro doce a charneca algarvia de há cem anos, a erva-príncipe e a arcas onde se guardavam lençóis, amêndoas e figos secos. Avó, que bom foi eu ter encostado o meu nariz ao teu pescoço só mais uma vez. O corredor estreito desembocava na pequena cozinha, dominada por um grande frigorífico que se abria pondo o pé sobre um pedal de metal. Havia uma mesa onde se faziam todas as refeições e na qual me era oferecido um lugar à cabeceira quando estava de visita. Ficava, então, de frente para a janela, de onde se via o céu e os telhados e na qual se pendurava a gaiola de um canário saltitante, cantor, feliz. Nessa cozinha, a minha avó tirou-me uma fotografia a lavar a loiça, era eu tão pequena que precisava de uma cadeira para chegar à bacia. Deve ter chamado por mim antes de carregar no botão da Kodak (como chamava a toda e qualquer máquina fotográfica): “Xani!” Clic. Fiquei no retrato, a olhar para trás, sobre o meu ombro direito, a olhar eternamente para ti, avó. Nessa cozinha comi baguetes estaladiças ao pequeno-almoço, carregadas de manteiga que derretia no calor do pão acabado de cozer. E pães com chocolate e folhados de maçã ao lanche. E esparguete, que a minha avó regava com o seu molho de tomate caseiro. E omeletes de queijo acompanhadas de batatas fritas, que eram a especialidade do meu avô. Só em Portugal, muitos anos mais tarde, o vi a cozinhar uma outra coisa: sardinhas. Já a minha avó era uma cozinheira exímia que combinava o melhor da culinária portuguesa e da francesa, e até a de outras paragens. Lembro-me de a ver anotar com minúcia as instruções, em francês, de quem cozinhava na televisão a preto e branco, das suas colecções de revistas de culinária e dos recortes com receitas avulsas que ia recolhendo e guardando em pastas. Neste último Natal, avó, a ausência das tuas tartes de amêndoa e de maçã sobre a mesa da consoada foi um grito de saudade insuportável. Havia um quarto pequeno, uma cama de casal com uma colcha de veludo verde, uma única mesa-de-cabeceira, um duche exíguo para onde se entrava subindo um degrau e um espelho em frente do qual punha laca nos cabelos e pintava os lábios com batom antes de sair de casa, fosse para o que fosse. Caminhava na rua com a cabeça erguida e seguia confiante como quem encarna toda a dignidade do mundo. Era gentil, cumprimentava, sorria. O som dos teus tacões nos passeios de Paris, avó, e a minha mão na tua. A sala era a maior e mais luminosa divisão da casa. Um sofá, a televisão, uma vitrine com bibelots, uma mesa que se abria nas ocasiões especiais, mas que no dia-a-dia servia para apoiar o telefone e à qual se sentava para preencher, semana após semana, as apostas no Lotto e no Tiercé. Só que o dinheiro, esse, veio exclusivamente de 25 anos de trabalho como emigrante. Da janela da sala via-se o pátio interno do prédio e a janela da casa da concierge. Cá de cima, observava o canteiro redondo, relvado, afastando os cortinados translúcidos, e quando voltava a concentrar a minha atenção nos detalhes da sala, percorria com o olhar o padrão hipnótico do papel de parede, provavelmente colado nos anos 1960. Dourado sobre bege. Desenharia esse padrão agora, se mo pedissem. Era nessa sala que eu dormia, numa cama improvisada, feita com as almofadas do sofá colocadas no chão e impregnadas do cheiro dos meus avós. Era a minha cama dos longos meses de Julho quando, terminadas as aulas em Portimão, eu regressava a França. Regressava a tua casa, avó. Um Verão houve em que soube que aquela era a última vez. Os meus avós reformaram-se, guardaram os seus haveres em caixas de cartão, entregaram os móveis a uma empresa de mudanças e, no início de Agosto, entrámos no Renault do meu avô para regressar de vez a Portugal. Eu, pré-adolescente, sentada no banco de trás, olhei para o prédio, para a rua, enquanto o carro se afastava, ainda o dia não tinha nascido. Não quis chorar, mas levava um nó no peito que nunca desatei: não voltaria a entrar naquela casa pequena, recheada de memórias e cheiros primordiais. Paris já não era a minha cidade havia uns anos; agora deixava de ser a cidade dos meus avós, deixava de ser a cidade da casa da avó. Era o adeus definitivo a uma certa forma de felicidade. A casa que os meus avós foram habitar em Portimão — a nova casa da avó — é uma casa da família. Eu mesma já lá vivera com os meus pais e o meu irmão, no nosso regresso a Portugal. Reformada, com saúde, feliz por voltar à terra e com mais espaço, a minha avó expandiu-se nesta casa, que se encheu de gente e passou também a albergar um cão. No grande quintal onde eu brincara tanto, foram plantadas árvores de fruto, roseiras e ervas de cheiro para chás e temperos. Na sala, com o dobro do tamanho da de Paris, a mesa foi palco de almoços e jantares memoráveis, aqueles em que nos perguntava, deleitada, se a comida estava boa ainda antes de termos posto a primeira garfada na boca. Ninguém sabia receber como a minha avó. Uma refeição em sua casa era um acontecimento. Tudo era planeado com detalhe, das entradas às sobremesas, e a mesa posta com esmero porque seria o palco dos seus momentos predilectos: ver-nos comer, colher os elogios, explicar como se fazia. No Verão instalou-se o hábito de fazermos a sardinhada dos netos. Era quando o meu avô entrava em cena, de roda das sardinhas reluzentes, fresquíssimas, compradas de manhã bem cedo, e do fogareiro cujo carvão tinha de estar no ponto certo para receber o peixe sobre a grelha. Uma arte. E lá ia ele, do fogareiro para a mesa, da mesa para o fogareiro, transportando pequenas travessas de sardinhas assadas, sorrindo permanentemente. Por vezes parava, olhava para nós — na época, sete netos e um bisneto — e dizia: “Quem há-de morrer e deixar uns netos tão lindos. . . ”Sorríamos, convencidos de que tínhamos ainda todo o tempo do mundo. Nesta outra casa da avó reencontrei os objectos de Paris e descobri muitos outros, agora com espaço para serem expostos e para reclamarem a sua principal função: compor a cronologia da família, contar a nossa história, alimentar a memória e adiar o esquecimento. Surgiram as fotografias dos antepassados — a minha trisavó, o rosto onde me revejo; o meu bisavô, seu filho, fardado para defender território português, no Norte de Moçambique, durante a Grande Guerra —; os bordados feitos pela bisavó quando adolescente, emoldurados e pendurados na parede; os anéis, as pulseiras, os móveis herdados; um registo antiquíssimo do Sto. António, que passa de mães para filhas há várias gerações. Esta imagem centenária ocupou o lugar central de uma camilha no quarto dos meus avós e foi à sua volta que se multiplicaram outras imagens de Sto. António, vindas de várias partes do mundo, ao ritmo das viagens dos filhos, dos netos, dos amigos. Nunca a vi ajoelhada nas suas orações àquele homem bom, mas construí na minha cabeça essa imagem porque sei que pediu por mim, durante longas horas, no meu pior momento. Todos os dias agradeço esse milagre, avó. Os bisnetos que foram chegando e que visitavam a casa da avó ouviram o mesmo que eu quando era pequena: “Não se mexe nas coisas da avó. ” Todos obedecemos. Até ao dia em que a avó morreu, o avô também, e a casa teve de ser vazada, e nos vimos obrigados à violência da pior devassa. O Museu da Inocência, de Orhan Pamuk, foi o primeiro livro que li este ano. Conta a história do amor obsessivo de um homem que durante anos rouba e colecciona objectos da mulher que idolatra. Mais tarde, organiza um museu para expor esses mesmos objectos e contar a história do seu amor, um museu que existe mesmo, em Istambul, e que é um dos mais belos que alguma vez visitei. No início deste ano, avó, quando fui pela última vez à tua casa, foi deste museu que me lembrei. Tinha diante de mim — espalhada sobre a cama, o sofá, as cadeiras, as mesas, os móveis, o chão — a vida dos meus avós, retirada dos fundos dos armários, das gavetas, das caixas. As conquistas, as alegrias, as tristezas, as fragilidades: tudo exposto sem pudor. Mais de 90 anos de vida; mais de 70 anos de casamento. Os relógios da casa, desacertados, continuavam a medir um tempo que já não interessa. As roupas pareceram-me mortas, também. Toquei e peguei no que quis: os frascos de perfume a meio, as garrafas de licor por abrir, os óculos graduados abandonados, um porta-moedas castanho com um punhado de francos franceses, as centenas de fotografias guardadas em envelopes, os terços, as loiças, os estanhos. Aí, onde estás, importar-te-ão estes objectos? Terão ainda valor para ti? Estarás a repreender-me, sem que eu possa ouvi-lo, “não se mexe nas coisas da avó”?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É que a mim — que me emocionei às lágrimas no Museu da Inocência, sensibilizada pela devoção de um homem aos objectos da mulher que amou — tudo me pareceu, na casa que já não é a da avó, insensato. Passamos uma vida a apegar-nos a coisas e depois morremos e deixamos de herança uma saudade imensa que não encaixa na forma de uma fotografia emoldurada, de uma écharpe, de um bibelot, de uma chávena de chá ou de um livro. Creio que me emocionei no Museu da Inocência porque não conheci, nem amei, os seus protagonistas. Fiquei, apenas, sob o efeito da história bonita e do lugar peculiar. Mas na casa da avó que amei profundamente, rebelei-me contra os objectos inertes, que impunham uma presença arrogante, como se tivessem direito a estar ali, quando quem de facto importava, quem devia ocupar aquele espaço e o vazio no meu coração, quem eu queria tocar já tinha partido. No entanto, eu quis — todos nós quisemos — ficar com um pouco dos despojos da casa da avó. E assim, em diversas outras casas, se construíram pequeníssimos museus à maneira de cada um. Espalharam-se os objectos. Espalhar-se-ão até as roseiras. A morte expulsou-nos da tua casa, avó, mas o teu amor, que é a nossa casa, prolongar-se-á em nós.
REFERÊNCIAS:
O desgraçadismo foi sobrevalorizado
Em tempos, Pacheco Pereira cunhou a palavra “engraçadismo” para classificar aqueles que, como eu, utilizam o humor para falar de assuntos políticos, com uma superficialidade (diz ele) que impede uma genuína reflexão sobre os problemas do país. Hoje, eu queria devolver o cumprimento e acusar Pacheco Pereira de “desgraçadismo”, que podemos classificar como a utilização de um discurso catastrófico para falar de assuntos políticos, com um primarismo (digo eu) que impede uma genuína avaliação do estado do país. Não digo isto só para embirrar com Pacheco Pereira em vésperas de eleições, mas porque a sua atitude me pare... (etc.)

O desgraçadismo foi sobrevalorizado
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
TEXTO: Em tempos, Pacheco Pereira cunhou a palavra “engraçadismo” para classificar aqueles que, como eu, utilizam o humor para falar de assuntos políticos, com uma superficialidade (diz ele) que impede uma genuína reflexão sobre os problemas do país. Hoje, eu queria devolver o cumprimento e acusar Pacheco Pereira de “desgraçadismo”, que podemos classificar como a utilização de um discurso catastrófico para falar de assuntos políticos, com um primarismo (digo eu) que impede uma genuína avaliação do estado do país. Não digo isto só para embirrar com Pacheco Pereira em vésperas de eleições, mas porque a sua atitude me parece sintomática do desfasamento que existe entre a realidade do país e a narrativa que sobre ele foi sendo construída ao longo dos últimos anos. Todos estamos admirados com as sondagens, e há seis meses não se vislumbrava vivalma capaz de admitir em público a sua fé na vitória da coligação. Contudo, há uma diferença significativa entre o espanto e a incompreensão. Eu estou espantado, mas percebo. Já a esquerda da pátria, e a própria esquerda do PSD, não está pura e simplesmente a perceber o que lhe está acontecer. Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobretaxa de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?Não, o povo não embruteceu de vez, embora o mesmo não se possa dizer de quem decidiu resumir os últimos quatro anos de Portugal a uma espécie de “waste land” – para esses, Outubro pode bem vir a ser o mês mais cruel. Ao mesmo tempo que fomos sendo esmagados por um discurso mediático centrado em números de desemprego, programas de ajustamento, cortes, emigração, quedas de bancos e protestos de corporações descontentes, havia centenas de milhares de portugueses a fazer pela vida e a tentarem desenrascar-se sem a velha bengala do Estado, cada vez mais frouxa e desconjuntada. O desgraçadismo está muito sobrevalorizado. É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os comunistas votaram em Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã – não há um único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o governo de ter ido além da troika, quando o maior erro do governo foi ter ficado aquém da troika. Tivesse alguém dito: “o governo perdeu uma excelente oportunidade para reformar o país”, e eu estaria ao seu lado. Mas não. Em toda esta campanha apenas se ouviu a conversa do desgraçadinho. Ora, para quem não é desgraçadinho, não se sente desgraçadinho e não está viciado em desgraçadismo, o discurso do queixume e as promessas de regresso a vacas gordas em prado ralo são muito pouco convincentes. O país mudou e o PS estava distraído. Acreditou que para ganhar folgadamente as eleições bastava, como dantes, sacar o voto do descontentamento. Enganou-se: desta vez, os descontentes não são todos iguais.
REFERÊNCIAS:
Papa pede à Europa para acolher os imigrantes que fogem dos conflitos na Líbia
Bento XVI lamentou hoje a guerra na Líbia e pediu à Europa para não deixar de acolher os imigrantes desesperados que fogem dos conflitos no Norte de África. Mais de cem mil pessoas assistiram à missa pascal na Praça de São Pedro. (...)

Papa pede à Europa para acolher os imigrantes que fogem dos conflitos na Líbia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 10 | Sentimento 0.8
DATA: 2011-04-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Bento XVI lamentou hoje a guerra na Líbia e pediu à Europa para não deixar de acolher os imigrantes desesperados que fogem dos conflitos no Norte de África. Mais de cem mil pessoas assistiram à missa pascal na Praça de São Pedro.
TEXTO: O Papa presidiu esta manhã à cerimónia religiosa numa Praça de São Pedro apinhada de gente e ornamentada com 42 mil flores brancas, oferecidas pela Holanda para simbolizar a esperança e o amor. Bento XVI, que proferiu as saudações pascais em 65 línguas, lembrou a tristeza das guerras, pobreza e sofrimento no mundo, especialmente no Norte de África. “Aqui, a alegria da Páscoa contrasta com o choro e os lamentos que surgem de tantas situações dolorosas: privações várias, fome, doenças, guerra, violência”, disse na sua mensagem “Urbi et Orbi” (“Para a Cidade e para o Mundo”). Referindo-se à Líbia, em guerra civil há três meses, o Papa apelou à diplomacia e ao diálogo em vez das armas e falou da importância da ajuda humanitária chegar a quem mais precisa dela. O Sumo Pontífice pediu respeito pelos direitos humanos no Médio Oriente e no Norte de África e apelou à Europa para acolher as pessoas obrigadas a fugir dos conflitos naquelas regiões do planeta. “Que as pessoas de boa vontade abram os seus corações e os recebam, para que as necessidades prementes de tantos irmãos e irmãs tenham resposta, num espírito de solidariedade”. Bento XVI também apelou ao restabelecimento da coexistência pacífica na Costa do Marfim, dizendo que o país “precisa urgentemente de trabalhar no caminho da reconciliação e do perdão” para sarar as feridas causadas pelas violências recentes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos guerra humanos violência fome ajuda pobreza humanitária marfim
"Pode entrar-se para a maçonaria mandando um email"
Em entrevista, Fernando Lima, grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, demarca-se da maçonaria brasileira que apoiou Bolsonaro. (...)

"Pode entrar-se para a maçonaria mandando um email"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em entrevista, Fernando Lima, grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, demarca-se da maçonaria brasileira que apoiou Bolsonaro.
TEXTO: Há um ano e meio, Fernando Lima foi reeleito para um terceiro mandato na liderança do Grande Oriente Lusitano. O seu lema, durante a campanha, foi "Renovar a prosseguir" e uma das prioridades era aumentar o rigor e a exigência nos recrutamentos para a maçonaria. Defende que todos os maçons deviam dizer que são maçons. Consegue convencer os seus irmãos de que isso seria bom para a maçonaria? Acho que hoje já há uma tendência genérica de assumirem. Não estou a dizer que todos estejam convencidos ou que não pensem que haja constrangimentos na sociedade relativamente à assunção. Esta frase não é minha, inspirei-me sempre no António Arnaut e no António Reis: não há razão nenhuma para que os maçons hoje não se assumam. Houve uma proposta no Parlamento que defendia que os deputados deviam dizer se pertenciam à maçonaria, de que clubes de futebol eram sócios… Como viu isso? Mal. Um princípio fundamental das sociedades abertas é a liberdade de consciência, que é o respeito pelas convicções e crenças de cada um. Não temos de estar a criar anátemas sobre as pessoas para que revelem as suas convicções íntimas…É um mau princípio e falta de respeito pela consciência das pessoas. Mas não haveria assim mais transparência? Até vai ao encontro do que diz que os maçons deveriam assumir-se… Tão transparente como eu pedir a alguém que revele a sua orientação sexual. Eu tenho direito a violar a privacidade de alguém?Mas os maçons são acusados de trocarem favores entre si… Não existe… Eu não gosto de falar em maçonaria, há várias maçonarias. Estou a falar da maçonaria tal como eu a entendo aqui no Grande Oriente Lusitano. É uma instituição humana como outra qualquer. Naturalmente, aqui temos do melhor, temos pessoas que são menos boas e também temos algumas coisas que nem sempre nos abonam muito, como em qualquer outra instituição, seja na imprensa, seja nos tribunais… Eu não posso dizer que não haja dois ou três que façam coisas que face aos nossos princípios são reprováveis. Mas dizer que quem entra para a maçonaria é porque vai conspirar, vai trocar favores… Normalmente, essas pessoas resistem cá pouco tempo. Sabemos que algumas pessoas entram na maçonaria porque acham que aqui conseguem fazer uma carreira, conhecem pessoas… Aqui no Grande Oriente Lusitano dou-lhe quase a garantia de que quem pensa assim não está cá muito tempo. Foi reeleito há ano e meio com um programa que prometia mudanças. Tem conseguido fazer algumas mudanças, nomeadamente abrir mais a maçonaria ao exterior? Têm acontecido muitos debates, tivemos cá a Raquel Varela, o Pacheco Pereira…O Pacheco Pereira sempre defendeu que os deputados deviam ser obrigados a dizer se são maçons… Sim, mas ele quando cá vem lembra-se do avô dele que era maçon…Temos tido debates pelo país, discutimos aqui o Orçamento do Estado com membros da comissão parlamentar. Olhe, ainda há dias fiz um comunicado contra os valores e princípios que levaram à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Mas Bolsonaro foi apoiado pela maçonaria brasileira. Já lhe disse que há maçonarias e maçonarias. Eu não me identifico com a maçonaria brasileira. Mas pode perguntar porque é que fizemos o comunicado a propósito do Bolsonaro e não fizemos a respeito de outras coisas. Mas temos feito muitos comunicados, às vezes em conjunto com a maçonaria europeia – as pessoas é que não notam – contra o facto de o parlamento da Sicília ter feito uma lei proibindo os maçons de ocuparem cargos públicos, o facto da Liga Norte do Salvini querer fazer uma lei a proibir as sociedades secretas, uma lei exactamente igual à nossa de 1935 (que ilegalizou a maçonaria) que, aliás, foi inspirada numa lei de Mussolini. Não sei se muita gente sabe isso. Em 1925, houve um debate entre o Gramsci e o Mussolini no parlamento italiano, porque o Mussolini propôs uma lei que nós viemos a copiar em 1935. Mas a aliança maçónica europeia tem protestado contra a situação na Hungria, onde a vida dos maçons não é fácil. Os maçons estão a ser perseguidos na Hungria? Não é perseguidos no sentido de serem presos, mas o ambiente é de tal modo claustrofóbico que têm alguma dificuldade em estar à vontade. Mas na Hungria também há perseguições anti-semitas. Na própria Polónia, a maçonaria tem tido algum retrocesso. Mas porque é que o Grande Oriente Lusitano fez um comunicado sobre o Brasil? Porque temos um património comum, que é a língua, temos uma ligação mais forte. E foi um maçon [D. Pedro] que fundou o Brasil… Foi um maçon que fundou o Brasil. E eu estar a ouvir coisas como uma mulher bonita é para ser violada… ou dizer “torturaram uns tantos, o melhor era ter morto aquela malta toda”. Isto para nós… e o voto não chega! O Hitler também foi eleito por voto. As democracias também são legitimadas pela forma como respeitam os direitos humanos. Estamos a assistir a um retrocesso? Olhamos para Donald Trump nos Estados Unidos, outro país fundado por maçons… É evidente que desde a Idade Média até agora o mundo tem progredido muito. Não é isso que está em causa. Há 70 anos o mundo era horrível… Há muitas coisas que têm evoluído. Mas a sensação que tenho é que nos últimos 20 anos – e estou a citar Pacheco Pereira, veja onde eu já cheguei – tivemos retrocessos civilizacionais graves relativamente àquilo que se conquistou nos últimos 200. Por exemplo? Esta coisa das democraturas [democracia ditadura], como eu gosto de chamar. . . estas ditaduras meio disfarçadas que existem por aí, dos Trump, dos Bolsonaro, a Hungria, já para não falar do Sudeste Asiático. Os direitos humanos são uma temática que aqui no Grande Oriente Lusitano nós discutimos muito que é o problema do pós-humanismo e o transumanismo. A inteligência artificial, as nanotecnologias, as biotecnologias. O que vai ser o mundo daqui a 50 anos? Somos robôs? Será que passaremos a poder programar os nossos filhos? Haverá um momento em que teremos de dizer aos cientistas: a partir daí, parou. Eu quero continuar a amar, a morrer, a gostar dos meus filhos, a ter afectividade, a ter lágrimas nos olhos. Isto é que é ser humano. Eu não quero viver até aos 200 anos. E as novas tecnologias acentuam ainda mais aquele que é o maior problema do mundo, a desigualdade social. Nós, maçons, somos humanistas. Queremos um progresso que não acabe com a Humanidade. Diga-me uma coisa, como é que se entra para a maçonaria. Imagine que eu queria entrar – eu não quero – como é que fazia? Temos uma maçonaria feminina muito interessante, atenção…Mas como é que se faz? Ia falar com um amigo maçon? Normalmente é por indicação de um amigo ou conhecido. Mas também pode mandar um e-mail. Pode-se escrever um e-mail? Pode escrever um e-mail a dizer que gostava muito de entrar para o Grande Oriente Lusitano. No seu caso, como isto é uma obediência masculina, era mais complicado (risos). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pronto, se fosse homem. Nomeávamos aqui dois ou três maçons – a gente chama-lhe aqui sindicância –?, não é no sentido da investigação, é falar com a pessoa, o que faz na vida, repescar um bocadinho a antiga frase que os maçons diziam, que para a maçonaria só entram “homens bons e de bons costumes”. (Risos) É uma frase onde cabe tudo (risos). Eu tenho aqui alguns maçons que entraram assim. Mandaram um e-mail? Sim, sim. Ou por carta ou por e-mail. Mas não se faz uma investigação como aquelas para entrar no SIS? Não, é uma conversa. Como é que se chama, o que faz na vida, quais são os seus princípios morais, os seus valores. Não passa disto.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
The Gifted, a série de super-heróis que não fecha os olhos aos problemas sociais da América
É mais uma adaptação das histórias eternizadas nas bandas desenhadas de super-heróis da Marvel para os ecrãs de televisão: The Gifted regressa para a segunda temporada e tenta reflectir no seu enredo a perseguição a minorias nos EUA – mas desta vez são os mutantes que estão em fuga. (...)

The Gifted, a série de super-heróis que não fecha os olhos aos problemas sociais da América
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.011
DATA: 2018-10-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: É mais uma adaptação das histórias eternizadas nas bandas desenhadas de super-heróis da Marvel para os ecrãs de televisão: The Gifted regressa para a segunda temporada e tenta reflectir no seu enredo a perseguição a minorias nos EUA – mas desta vez são os mutantes que estão em fuga.
TEXTO: Entre dezenas de séries em que os superpoderes são protagonistas, The Gifted faz da diversidade e da luta pelas minorias a sua bandeira. A série da Fox e da Marvel, criada por Matt Nix, surge num universo ficcional em que os X-Men desapareceram e em que os mutantes (humanos com superpoderes, concedidos pelo gene X) se vêem obrigados a lutar contra leis cada vez mais restritas que lhes vão retirando o acesso à saúde e à cidadania, atirando-os para a clandestinidade. A segunda temporada de The Gifted estreia-se esta segunda-feira, dia 8, na Fox, e os 13 episódios serão exibidos todas as segundas, às 23h05. “Uma das coisas que fazemos bem é reflectir a sociedade”, garante o actor britânico Stephen Moyer numa entrevista colectiva num hotel londrino, quando questionado sobre a influência de acontecimentos políticos em The Gifted. “Não há outra forma de se fazer isto numa série sem que seja uma espécie de reflexo do que se passa hoje em dia. Mas também não há maneira de reflectir aquilo que está a acontecer actualmente nos Estados Unidos, porque a realidade muda a cada dois minutos”, brinca o protagonista, sem receio de criticar a Administração norte-americana. Nesta série, Moyer interpreta Reed Strucker, um procurador que prende mutantes, mas passa a defendê-los depois de descobrir que os seus dois filhos têm poderes. “Acho que é essa a essência dos X-Men quando foram criados há anos; é uma representação daquilo que estava a acontecer no movimento dos direitos civis. Portanto, sejam questões de religião, de raça ou de orientação sexual, os X-Men são um reflexo daquilo que a sociedade é”, assevera Moyer. A diversidade do elenco de The Gifted tem sido, aliás, reconhecida pela crítica e pelos próprios actores: na série há personagens negras, latinas, asiáticas, nativo-americanas e personagens que sofrem bullying ou que lidam com doenças mentais. Nesta segunda temporada, as questões políticas ganharam força e o compromisso dos produtores é olhar para os dois extremos do espectro narrativo: os mutantes que lutam contra a humanidade e os que acreditam ser possível fazer-se uma aliança com os humanos. A juntar a isso há uma nação norte-americana cada vez mais polarizada, com o aumento de manifestantes de extrema-direita que criam grupos antimutantes e a favor dos direitos humanos (e aqui “humanos” exclui quem tem superpoderes). De um lado há organizações de apoio a mutantes e, do outro, comícios em que os políticos se mostram abertamente contra os mutantes — e dizem ser urgente prendê-los e despojá-los dos seus direitos. O próprio criador da série, Matt Nix, admite à revista Hollywood Reporter que “não é preciso um olho de lince” para se perceber as semelhanças entre os Serviços Sentinela (os que perseguem os mutantes) e os raides do ICE (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras norte-americano, que têm separado crianças das suas famílias que imigram ilegalmente na fronteira dos EUA com o México). Na série, tenta-se mostrar essas semelhanças sem ditar o que está certo ou errado. “Expõe-se o assunto, mas não dizemos o que se deve pensar. Mostramos as personagens que existem neste universo, mas não fazemos comentários”, sintetiza Stephen Moyer. “Explicamos porque é que as personagens são como são, em vez de simplesmente dizermos aos espectadores: ‘Isto é errado. ’ Deixamos que os espectadores decidam. ”A actriz norte-americana Natalie Alyn Lind (a filha mutante da personagem Reed Strucker ), que também fez parte do elenco da série Gotham, da DC Comics, acredita que houve uma transposição para a série daquilo que ela vê acontecer hoje nos EUA: “Há uma categorização das pessoas, uma atribuição de rótulos, sem que lhes seja verdadeiramente dada uma chance de se defenderem. ”Antes de protagonizar o “pai de família” em The Gifted, Stephen Moyer encarnou o vampiro Bill Compton, na série True Blood (HBO). Na entrevista que deu em Londres, o actor britânico refere que The Gifted é facilmente comparável a True Blood, uma série em que os vampiros ficam à margem da sociedade humana, lutando pelos seus direitos. A série produzida por Matt Nix surge numa onda de adaptações das histórias eternizadas nas vinhetas de banda desenhada da Marvel para os ecrãs de televisão: Inhumans, Jessica Jones, Luke Cage, Iron Fist, Legion, O Demolidor, O Justiceiro, Os Defensores, os Agentes S. H. I. E. L. D. — passando grande parte destas séries no Netflix. A produção destas narrativas sobre mutantes parte também da DC Comics, que produz séries como Arrow, Gotham (também da Fox), The Flash, Black Lightning, Krypton, e espera-se ainda a chegada de Titans (renovada para uma segunda temporada ainda antes de se estrear). Para os dois actores entrevistados, The Gifted difere de todas as outras séries que têm surgido no universo de super-heróis precisamente por se focar nas desigualdades sociais e na ambiguidade das personagens – que não são necessariamente boas ou más, o que é perceptível na origem das suas motivações –, integrando arqui-inimigos e superpoderes na narrativa, mas não se centrando apenas neles. Isso, de resto, não é incomum no universo Marvel — tome-se o exemplo da narrativa em torno de Magneto (que na série se pressupõe ser o pai de Lorna Dane). Entre tantas produções do género, pode tornar-se difícil para uma série com muitas personagens e com um enredo que já vai longe da premissa inicial manter a atenção dos espectadores. No arranque da segunda temporada nos Estados Unidos, The Gifted teve menos espectadores do que na estreia da primeira temporada: foram 4, 8 milhões de espectadores na primeira temporada (em 2017) e 2, 6 milhões na segunda, o que corresponde a uma perda de 45% de audiência entre as duas premières. A série é de super-heróis (ou de superpoderes, já que a fronteira entre quem é herói e quem é vilão é ténue), mas tem a sua dose de drama familiar. Na primeira temporada, a família é precisamente a força que faz avançar o enredo —o casal Reed e Kate (Amy Acker) descobre que os seus dois filhos têm superpoderes (uma espécie de telecinética e manipulação molecular) e vêem-se obrigados a fugir do Governo e a procurar auxílio numa rede de mutantes clandestina (chamada Mutant Underground). No final da temporada, essa rede de mutantes divide-se e as duas facções resultantes passam a estar em guerra entre si. Não temendo a sua herança genética, o filho Andy (Percy Hynes White) separa-se então da família e decide juntar-se ao Inner Circle, o exército de mutantes que quer destruir os humanos e que pertence à antiga organização terrorista Hellfire Club. Tal como na primeira temporada da série, no enredo continuam a existir referências ao ataque de 7/15 (15 de Julho) — em paralelo com o 9/11 (11 de Setembro) — no Texas, em que uma marcha de apoio a mutantes se transformou numa manifestação violenta em que morreram milhares de civis, agravando a repulsa e apreensão pela comunidade mutante. Ainda que nunca tenha sido tornado claro na série, Matt Nix já mencionou em entrevistas que este evento está associado ao desaparecimento dos X-Men do universo ficcional em que decorre The Gifted. As telepatas irmãs trigémeas Frost – nas bandas desenhadas da Marvel as irmãs são mais do que três clones – funcionam como elemento catalisador no final da primeira temporada e continuam a ser importantes nesta segunda temporada, cuja acção se muda de Atlanta para Washington D. C. As clones são comandadas por uma nova presença feminina, a poderosa Reeva Payge, interpretada por Grace Byers. A entrada de Reeva, uma mulher negra, dá um novo contexto a todas as discriminações retratadas na série: antes de ser odiada por ser mutante, Reeva diz num dos episódios que já era odiada pela cor da sua pele. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Afastando-se da narrativa base das bandas desenhadas da Marvel e dando um lado mais humano à herança dos superpoderes, continua a ser nestes pormenores que a série tenta transportar para os ecrãs televisivos o espírito de activismo político e de igualdade social que preenche as páginas de quadradinhos dos X-Men. O PÚBLICO viajou a convite da Fox
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA