Resposta a Henrique Raposo: “Não somos egoístas, somos responsáveis”
Esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito. (...)

Resposta a Henrique Raposo: “Não somos egoístas, somos responsáveis”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.225
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito.
TEXTO: Nos últimos dias tem sido partilhado e glorificado nas redes sociais um texto de Henrique Raposo, publicado pela Renascença, que define “uma sociedade composta por casais que começam a ter filhos aos 40” como “uma sociedade em autodestruição”. O texto prossegue culpando a geração Y que, segundo o autor, se caracteriza pelo egocentrismo e individualismo extremos, uma geração de filhos únicos mimados e egoístas que preferem a companhia dos animais à das pessoas e que se focam na carreira em vez de constituir família. O autor reconhece que não é fácil enfrentar a parentalidade nos dias de hoje, mas encara como obrigação da geração presente não só ter filhos e tê-los mais cedo, como ainda tê-los em maior quantidade. Gostaria de lembrar ao autor dessa crónica, e àqueles que a aplaudiram, o mundo em que vive a minha geração. Esta é a geração que foi convidada pelo seu próprio Governo a emigrar. Ou já se esqueceram? É a geração “mais bem preparada de sempre” porque precisa de fazer face à competitividade no mercado de trabalho, que nunca foi tão grande. Fomos lançados para o mercado de trabalho num país em crise, arruinado por políticas da geração anterior. Tivemos de nos sujeitar a estágios não remunerados e só agora começamos a conseguir empregos. Sobrevivemos balançando empreendedorismo e precariedade. Esta é a geração que ainda não saiu da casa dos pais porque não consegue. Muitos jovens adultos continuam a partilhar casa como nos tempos de estudante, simplesmente porque não conseguem arrendar de outro modo. Cerca de 65% dos jovens recorre ao arrendamento e apenas 19, 5% consegue pagar mais do que 600 euros de renda. Consideremos que há jovens que não ganham mais do que o salário mínimo. . . E que este continua a não garantir um escape à pobreza. Pedir um empréstimo ao banco para comprar casa é coisa do passado, pois os nossos trabalhos precários não oferecem garantias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se a minha geração não quer casar é porque somos os filhos dos divórcios das vossas gerações. Na verdade, apesar de os portugueses casarem cada vez mais tarde, também se divorciam menos. Não temos medo do compromisso, mas somos menos impulsivos. A ideia que não queremos ter filhos também é errada. “Contrariando alguma ideia feita sobre o suposto egoísmo dos millennials, traduzido na eventual rejeição a ter filhos, as respostas registam uma vontade de paternidade/maternidade sempre acima dos 85% e são bastante homogéneas. ” A maioria quer mais do que um filho e, em Portugal, a média é de dois filhos. Em resumo, esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito. Queremos ter condições mínimas para eles. Fomos educados no planeamento familiar e ainda bem. Não somos egoístas, somos responsáveis.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho medo pobreza
O Alentejo no coração, uma aldeia ao fundo e o coelho fetichista
Farpões, Baldios, de Marta Mateus está na Quinzena dos Realizadores, bem como a animaçãoÁgua Mole, de Laura Gonçalves e Xá. Carlos Conceição regressa à Semana da Crítica de Cannes com Coelho Mau. (...)

O Alentejo no coração, uma aldeia ao fundo e o coelho fetichista
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Farpões, Baldios, de Marta Mateus está na Quinzena dos Realizadores, bem como a animaçãoÁgua Mole, de Laura Gonçalves e Xá. Carlos Conceição regressa à Semana da Crítica de Cannes com Coelho Mau.
TEXTO: Talvez este filme, Farpões, Baldios (Quinzena dos Realizadores), tenha começado numa casa sem luz e sem água — a “casa de conto” onde Marta Mateus nasceu, perto de Estremoz. Viveu ali até aos 10 anos. “Não conseguiam pôr-me na escola. Eu queria estar com as pessoas no campo. Contavam-me as suas histórias, como elas eram quando crianças — como era partilhar uma sardinha por dez pessoas” (como era bater às portas para pedir azeite já usado para barrar no pão). “Essa foi a realidade de mais de metade do país. Muitas dessas pessoas eram analfabetas. Mas sabiam contar histórias”. E elas foram os primeiros “filmes” que Marta viu: visões de searas a arder no Alentejo, de luta pela sobrevivência, máquinas, gado, operários, patrões. “Fui ao cinema mais tarde, só tivemos electricidade e televisão mais tarde. Os meus filmes foram essas imagens que aquelas pessoas contavam, naquela paisagem. Era a história deles, e era a minha. ”Era necessário, diz, começar com eles no cinema, começar com uma “noção de comunidade”. Era necessário fazê-los passar outra vez pela dor ao reviver as histórias. Já não são só deles. Também são dela. E o filme vinca que são nossas. “Quando a memória é partilhada ganha outra vida, num outro tempo, passando a ser, para quem a escuta, um passado que também nos pertence. A memória é também feita de imagens e cria outras imagens, mesmo quando recuperada no lugar onde se constituiu. Foram essas memórias que eu quis recuperar, as suas imagens, acompanhadas pela expressão das suas rugas queimadas pelo sol, pela voz que nos conta uma dor, pelos gestos de uma mão cansada, mas viva e pronta, onde se podem ler os vestígios. Por isso é necessário o regresso àquela paisagem, por lá estar guardada em cada canto a história daquelas pessoas, a nossa história”. No final deste fresco (impossível) sobre o Alentejo e sobre Portugal a que ficamos agarrados depois do visionamento, continuando a ser consumidos pelas invocações e pelo exorcismo, todos são reunidos num plano: os mais velhos da infância de Marta e os mais novos que chegaram para conquistar a paisagem (muito bonita a forma como reivindicam sem negociar). A cada um é dada a voz para se nomear no genérico final. Mas até lá eles são rugas, tempo, ditados, aforismos, memória. “Esses ditados, muito abertos, despertam a consciência e o coração. É uma forma de quebrar a barreira entre a ideologia e o coração”. Laura Gonçalves e Xá trabalharam juntas na arte final de filmes de animação de vários cineastas. Isso ajudou a cimentar uma relação afectiva e a vontade de explorar os seus afectos: a animação e a ilustração — Laura concluiu o curso de Arte e Multimédia Animação, na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, Xá é licenciada em Pintura pela mesma faculdade. Viajaram pelo interior. “Eu sou de Belmonte”, começa Laura, “tinha estado em contacto com a emigração e a desertificação. Fomos encontrando pessoas, que apenas por falta de oportunidade não saíam dali. E foram elas os pilares da construção do filme, o lado documental. Depois construímos uma ficção”, com caretos e tudo, em que a memória é uma ilha rodeada de esquecimento: é a história dos últimos habitantes de uma aldeia que não se deixam submergir. Água Mole, curta seleccionada para a Quinzena dos Realizadores, é uma delicada associação entre animação (na imagem) e documentário (no som, com as vozes das pessoas que Laura e Xá conheceram, síntese das quatro aldeias que visitaram). Essa associação faz do real uma experiência sensorial, íntima. “A animação tem poder ilimitado. Enquanto as outras expressões são mais concretas, com a expressividade das formas da animação podem-se explicar sensações”. Completa Xá: “O lado ficcional permite que mostremos o que sentimos. ” São as sensações de Laura e Xá perante as pessoas e as suas memórias. Assim Água Mole é, simultaneamente, um documento sobre histórias a desaparecerem (trata-se do resgate de uma aldeia global, a nossa memória) e a impressão das emoções das realizadoras — feita com a técnica de ponta seca, agulha a desenhar sobre acetato (assim foi realizado 40 por cento do filme, explica Xá; o restante, foi através da recriação, em digital, dessa técnica de gravura. Três anos depois de Boa Noite Cinderela, que juntava Marx à Gata Borralheira— e ironia ao romantismo, com o guarda-roupa e os movimentos de câmara a servirem de memória a uma produção que só podia ser austera —, Carlos Conceição volta a tirar da cartola, na Semana da Crítica, um conto de fadas: Coelho Mau. Irmão e irmã fechados no amor de um pelo outro, ela com doença grave, ele a acudir. Em fundo, como um rumor, uma mãe só interessada no seu gigolo. O irmão vai colocar e tirar máscaras, mestre de um role playing que se vai fetichizando. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Três anos depois da sua anterior participação na Semana da Crítica, continuamos a perguntar a Carlos se ele se posiciona a contra-ciclo em relação à contemporaneidade que os festivais declaram: documentário, ficção do real. . . “Não penso nisso. Vou atrás dos meus gostos. É verdade que não tenho interesse pelo lado didáctico e realista dos filmes. Embora reconheça a utilidade de muitos desse género. O que me interessa é a honestidade em relação aos impulsos originais. ”Havia uma “ideia concreta” antes do bestiário e dos jogos eróticos: “A forma como usamos os outros, a animalidade nas relações. Se há fetichismo, é esse”. Essa ideia foi-se “travestindo”. A palavra é dele: Coelho Mau vai-se mascarando, as transformações transportando o romantismo para a sátira — ou o romantismo é já sátira?“Tenho tendência a ver o que me rodeia com ironia. Como se tudo não passasse de mascarada. A nossa posição no mundo está condicionada pela performance. ” Mas revela: é um filme investido com medos pessoais. “O terror de perder uma pessoa sem a qual não conseguimos conceber o mundo. Eu não tenho medo de morrer, eu tenho medo que a minha mãe morra. ”
REFERÊNCIAS:
Um Natal no Texas
O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. (...)

Um Natal no Texas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade.
TEXTO: 1. Numa mesa cheia de britânicos, outros europeus, alguns americanos e brasileiros, há palavras que não podem ficar de fora nem no Natal, tal como as rabanadas ou o christmas pudding. O que vai acontecer ao "Brexit"? Ninguém sabe nem ninguém se atreve a apostar. O mais recente disparate de Trump? É irresistível, por mais dramático que seja. Também não. O que vai acontecer ao Brasil de Bolsonaro? Há várias hipóteses sobre a mesa. Mesmo assim, nada consegue alterar o ambiente festivo de um subúrbio de Houston onde as crises ficam à porta e se fazem concursos para ver qual é o jardim com a iluminação natalícia mais arrojada, O prémio foi naturalmente para uma casa americana que os europeus são bastante mais sóbrios. 2. No vidro de trás do carro da minha filha ainda se pode ler “Beto for Senate”. Daqui a algum tempo, porventura na minha próxima visita, talvez já se possa ler “Beto for President”. O ideal, discute-se apaixonadamente, seria ter Michelle Obama como vice. Um “dream ticket” que provavelmente nunca acontecerá, embora a anterior primeira-dama seja hoje a mulher mais admirada da América. A mesma América que elegeu Trump há dois anos. Mas é Natal e sonhar é permitido. Ou seja, nem tudo está perdido neste grande país que alguns ainda acreditam que pode e deve voltar a ser “uma força para o bem no mundo”. Uma nação particular, que não nasceu de uma tribo ou de um território, mas de um conjunto de ideais, o primeiro dos quais a liberdade de cada um prosseguir a sua vida em busca da felicidade. Entretanto, o Governo está parcialmente paralisado porque Trump fez birra por causa do muro que quer construir na fronteira com o México, exigindo cinco mil milhões de dólares que o Congresso não está disposto a dar-lhe. Agora ameaça encerrar totalmente a fronteira com o México. O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. Nos jornais, ensinam-se métodos para que os funcionários públicos que estão sem receber salário consigam superar as dificuldades inerentes. Mas isso não impede que centenas de milhares de famílias paguem por uma guerra que não é a deles e vivam o Natal com a ansiedade de quem não sabe o que acontecerá ao seu salário no dia de amanhã. 3. Mas Washington fica longe. As minhas netas deliciam-se com a visita a um rancho gigantesco transformado em museu onde se pode acompanhar a vida dos primeiros colonos que chegaram à região na segunda década do século XIX e que foram progredindo numa típica história de sucesso e de oportunidade americana. A primeira, muito pobre, habitação. A segunda, já com o conforto e a amplitude próprios da época. O negócio foi o gado. A terceira, luxuosa, com a banca a somar-se à prosperidade da família. A quarta, finalmente, uma mansão digna de quem acabou por descobrir petróleo no próprio terreno. Tudo é mantido fielmente igual ao que era. Apenas os cowboys, os cavalos e os touros são actuais, para gáudio dos visitantes. As crianças aprendem História ao vivo. As guias mostram os dois lados da realidade: o que foi bom e o que foi mau ou injusto. Mas não, felizmente, em versão politicamente correcta. Descubro que as minhas netas mais velhas já têm um conhecimento muito razoável da História americana. É assim também que se constrói esta grande democracia às voltas com o seu destino mas capaz de resistir a um momento particularmente mau da sua História. 4. As atenções já estão viradas para 2020, enquanto Trump tenta disfarçar as suas dificuldades internas – que são bastantes – com o cumprimento de promessas eleitorais cujo efeito é muito mais negativo lá fora do que cá dentro. Retirada unilateral da Síria e, para breve, do Afeganistão, o que já levou à demissão do chefe do Pentágono, o general James Mattis, no qual os aliados confiavam para manter alguma racionalidade na política de segurança e defesa dos EUA e garantir a preservação da NATO. Mais um calafrio e mais uma preocupação para a Europa. A França tem tropas no terreno. O Reino Unido também. As forças anti-Assad que os EUA incentivaram, a começar pelos curdos, ficam indefesas. Erdogan rejubila. A mensagem para os aliados da América no mundo inteiro é: não confiem em nós. Mattis estava pelos cabelos, já se sabia. Passou o tempo a tentar tranquilizar os aliados sobre as decisões intempestivas do Presidente, para quem a palavra “aliado” não deve sequer existir no seu dicionário mental. “America First” é mais “America Only”. Mattis desistiu. Trump, em vez de agradecer-lhe os serviços prestados, tentou humilhá-lo publicamente, antecipando em dois meses a data anunciada para a sua saída. Como escrevia o Wall Street Jounal, foi demasiado longe, até para os americanos que se mantêm fieis às ideias mais extravagantes e perigosas da sua campanha. O exército é uma instituição respeitada nos EUA. Nem a visita surpresa que resolveu fazer a uma base secreta das tropas especiais americanas no Iraque ajudou a desviar as atenções. Como sempre acontece com este Presidente, a visita teve um ligeiro percalço: as fotografias que Trump divulgou podem revelar a localização da base. Decididamente, Trump não nasceu para ser Presidente do país mais poderoso do mundo. A história das suas divergências com o secretario da Defesa fala por si. Quando Trump mandou tropas para a fronteira com o México para impedir a entrada de imigrantes, depois de tentar demovê-lo, Mattis foi arrastando os pés até à última ordem do Presidente e ao aviso de que as tropas se defenderiam das pedras com balas. Inquirido pelos jornalistas, Mattis não poderia ter sido mais directo: “Por amor de Deus, eles nem sequer estão armados”. Apenas um exemplo entre muitos. Resta saber quem se segue no Pentágono. Haverá sempre alguém, mesmo que a tarefa de encontrar quem queira trabalhar com Trump se esteja a revelar cada vez mais difícil. 5. Já não falta tudo para 2020, a próxima oportunidade para corrigir este caminho perigoso. A responsabilidade está nas mãos dos Democratas e há tantas cartas em cima da mesa que ainda é muito difícil saber se vão conseguir escolher o ás de trunfo. Joe Biden é o mais popular, de longe. Mas os seus 76 anos, somados a uma carreira política de quase 50 e a um coração demasiado perto da boca (são famosas as suas gafes) desaconselham a sua candidatura, numa altura em que os eleitores anseiam por coisas novas, mesmo que lhes possa sair Trump na rifa. Bernie Sanders, que ia destronando Hillary nas primárias de 2016, padece do mesmo peso dos anos e representa a ala mais à esquerda dos Democratas – dificilmente seria um candidato vitorioso, mesmo que o partido se tenha chegado bastante à esquerda com a eleição de Trump e os movimentos populares de rejeição que alimentou. É o segundo mais popular mas a grande distância de Biden. Diz a imprensa americana que o seu objectivo actual é minar qualquer hipótese de uma candidatura do fenómeno texano Beto O’Rourke. Serão da sua iniciativa as recentes notícias vindas a lume sobre um registo de votos no Congresso que mostra Beto a votar algumas vezes aos lado dos republicanos. Um “defeito” que facilmente se poderia transformar numa virtude, porque as presidenciais não prescindem do eleitorado do centro, que não se revê totalmente num partido ou no outro. Beto é jovem, tem carisma, ganhou dimensão nacional quando desafiou Ted Cruz, o hiper-conservador senador do Texas, nas eleições de meio mandato de Novembro passado e quase ia ganhando, num estado onde eleger um democrata é uma raridade. Beto já mostrou que não tem medo nem das palavras nem das ideias, sejam elas mais ao centro ou mais à esquerda. O seu ar vagamente kennediano (é de origem irlandesa), a sua juventude e o seu carisma nato são trunfos poderosos a seu favor numa América que ainda não desistiu totalmente de ser uma cidade no alto da colina, iluminando o mundo. Como escreve Jake Sullivan no Carnegie Endowment, não nos esqueçamos que, ao longo da sua História, cada grande mudança não ocorreu em tempos de desorientação mas do que veio a seguir. “O New Deal seguiu-se à Grande Depressão, como o Plano Marshall se seguiu à Segunda Guerra”. “Quando Trump sair da Casa Branca, os EUA terão, mais uma vez, a oportunidade para seguir um novo caminho. ” Até lá, “os nossos parceiros não vão desistir de nós”. É Natal. Há que ter esperança.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA NATO
Que a voz não te esmoreça, Éme
No novo Domingo à Tarde, o músico da Cafetra agarra na música popular portuguesa e concretiza-se como escritor de canções, coadjuvado por uma banda em pico de forma. Não queremos sair deste disco. O concerto de apresentação é esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa. (...)

Que a voz não te esmoreça, Éme
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: No novo Domingo à Tarde, o músico da Cafetra agarra na música popular portuguesa e concretiza-se como escritor de canções, coadjuvado por uma banda em pico de forma. Não queremos sair deste disco. O concerto de apresentação é esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa.
TEXTO: Em 2016 morreu David Bowie, morreu Prince, morreu Leonard Cohen. Mas a João Marcelo, músico lisboeta de 25 anos conhecido por Éme, o que “bateu mais” foi o adeus de Adélia Garcia, a cantadeira octogenária da aldeia de Caçarelhos, Trás-os-Montes, no dia 31 de Dezembro de 2016, sem o chinfrim das redes sociais. “Sei que são coisas diferentes, mas por que é que morrer a Adélia não devia bater?”, pensa Éme em voz alta. Descobriu-a através do documentário B Fachada: Tradição Oral Contemporânea (2008), de Tiago Pereira, que a filmou vezes sem conta para esse seu valioso arquivo em constante evolução chamado A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, depois de o etnomusicólogo Michel Giacometti ter chegado lá primeiro nos anos 60. “A forma como ela cantava aquelas músicas era muito única e ela não era nenhuma velhinha burrinha que não sabia que era única”, atira o músico. Pouco depois do adeus, Éme fez com Moxila uma versão para guitarra acústica e cavaquinho de Muito chorei eu no domingo à tarde, um dos cantares de Adélia, para A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria (porque isto anda tudo ligado). É essa versão – agora em coro, agora em grande na sua simplicidade e sinceridade – que fecha o novo e terceiro álbum de Éme, Domingo à Tarde, editado pela família Cafetra e apresentado esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa. É o final e a síntese de um disco que tem um tempo e um lugar: domingo à tarde numa pastelaria (a da capa do disco é o Centro Ideal da Graça), essas coordenadas que fazem parte do ADN e do viver português, na cidade ou na aldeia (“Um brinde à manada/ Com bica na esplanada/ Tuga não tem nada/ Mas há tanto mar", ouve-se em Roma-Sé). “É uma cena muito tuga. Mesmo no Cinema Novo tinhas todas aquelas pastelarias, como a Vá-Vá”, diz Éme. “E não é algo romantizado porque é muito presente. Parece que consegues ter propriedade sobre isto. ”Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Algumas canções – urgentes, necessárias, certeiras, como Puxa a patinha, Buraquinho, Roma-Sé ou Zequinha – colocam Éme directamente numa timeline de escritores de canções portugueses que vai de José Afonso a B Fachada. Sem negar a folk anglo-saxónica dos registos anteriores, aqui é a música popular portuguesa que se eleva. É com ela que Éme canta Portugal no seu encanto e no seu desencanto, na pele de um jovem adulto que lida com as dores de crescimento numa Lisboa varrida pela gentrificação, por rendas proibitivas em casas que tantas vezes mal se seguram de pé (Zequinha: “De volta a Lisboa/ Uma casa bonita/ Até era na boa/ Se eu fosse turista”). A precariedade está lá ao acordar e ao deitar, ao lado dele e de muitos outros. Mas pelo menos há o amor – o arranque do disco, Sem roupa, é balada segura à voz e à guitarra, Éme transparente, canção dulcífica, tiro e queda. Mas pelo menos há os amigos – sem eles, banda em pico de forma, Domingo à Tarde não seria a mesma coisa: sem Mariana Pita (Moxila), nova e feliz contratação, no cavaquinho, nas flautas e no clarinete; sem Júlia Reis (Pega Monstro) na bateria e nas percussões; sem Lourenço Crespo (a solo, Iguanas) nos teclados; sem Miguel Abras (Putas Bêbadas) no baixo. E sem B Fachada, o toque de Midas na produção, enobrecida pela gravação de Eduardo Vinhas nos estúdios Golden Pony. “Tem bué vida este disco, por isso é muito importante para mim”, conta Éme. Passaram dois anos e meio desde o álbum anterior, Último Siso, lançado em 2014. Muita coisa aconteceu. Éme cresceu. Saiu da casa dos pais, passou seis meses no Porto, começou uma vida a dois, deu concertos pelo interior do país, com pouco dinheiro no bolso e em sítios que “nem sabia que existiam” (Comboio, fulgurante, faz o resumo). “Andei por aí fora sozinho, a fazer o meu trabalho por tuta e meia. Numa pessoa com 20 e poucos anos isso muda muita coisa. ”Inevitavelmente, a política entrou-lhe pela porta adentro. “Estou numa fase em que as questões políticas têm uma influência mais directa em mim”, confessa Éme. “Claro que tenho uma rede de apoio se algo correr muito mal, mas antes não pagava impostos, não pagava uma renda, não sentia que estava numa cidade que me diz que se calhar não sou daqui porque não tenho dinheiro para estar aqui por minha conta. Antes sabia quais eram as minhas ideias políticas, mas não tinha de lidar com a estrutura, não percebia tão bem o que se passa à minha volta. ”Entretanto, a dieta musical de Éme mudou também, o que se reflecte no novo disco. Muita música popular portuguesa, de José Afonso a José Almada (que B Fachada sampla e cita na canção Camuflado, do seu último registo homónimo), passando pela tradição oral do interior do país documentada n’A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Sem esquecer uma aproximação à música popular brasileira, de Caetano Veloso a Noel Rosa. “Eu não venho de uma casa onde se ouvissem cenas do Zeca ou do José Mário Branco. Sempre ouvi música de vários sítios, mas mais americana do que outra coisa qualquer”, refere Éme. A esta viragem de direcção não é alheio o reencontro de uma jovem geração de músicos com a língua e a música portuguesas. Muitos foram influenciados, directa ou indirectamente, pela FlorCaveira e por B Fachada. Mas fora desse circuito há outros casos, como a editora Príncipe Discos, onde se reinventa a lusofonia com música electrónica, músicas dos PALOP e música portuguesa – quem já viu um set de Nídia Minaj lembrar-se-á com certeza da chapada na cara que é ouvir a sua remistura de Pimba pimba, de Emanuel. O que muitos tentam fazer – e Éme consegue-o neste disco – é “pegar no património” para começar a construir algo seu. “Muitas vezes espezinhamos coisas da música tuga, ou achamos bimbo olhar para trás, mas também achamos bimbo olhar muito para a frente, ter confiança”, afirma Éme. Dizíamos que Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Sim, mas sem medo de olhar para a frente, de frente, e sem turismo pelo passado. Com respeito, mas sem vacas sagradas (“E eu já sei que não sou bom como outros foram/ Mas não quero saber se os mortos me adoram”, já cantava ele no primeiro álbum a solo, Gancia, quando ainda lhe faltavam “força, jeito e procura”). “O que os outros fizeram é para todos, não é só para eles”, observa Éme. “Por exemplo, o Zeca ser o inigualável, o génio… Para quem vem a seguir dá medo do futuro. Tu podes ir buscar uma cena antiga e meter na tua canção, à tua maneira. Os músicos são gente, não é preciso ter medo. ”Outra peça central para Éme, que caracteriza muito o cosmos Cafetra e vizinhança (Maternidade, Xita Records, Spring Toast), é “admirar os colegas”. “A minha forma de aprender é trabalhar com quem está perto”, sublinha o músico, referindo em particular a influência de Lourenço Crespo (que, além de Moxila, faz o aquecimento do concerto na ZDB). “O disco do Lourenço [Nove Canções, de 2016] abriu-me muitos horizontes na forma como eu podia cantar e escrever letras. Uma pessoa percebe que se calhar não precisa de dar o tom auto-condescendente e que pode mesmo pensar em dar o máximo. ”Autoria:ÉmeApresentação de "Domingo à tarde". Galeria Zé dos Bois - Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto Lisboa, Sexta, 19 de Maio de 2017 às 22hEm Domingo à Tarde, Éme dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Nas melodias, nas letras, concretiza-se e dá o salto. É lindo ver Buraquinho a acontecer: entrada em crescendo de guitarra brumosa, coros e flauta a juntarem-se num travelling (e nesta altura já estamos a pensar em José Mário Branco, tudo certo no sítio certo, com aquela tensão que faz estremecer), refrão monumental com a bateria a servir de maestro – isto é uma orquestra e quem diz o contrário é tolo. Tanto Buraquinho como Puxa a patinha são actualizações de duas músicas integradas numa edição conjunta da Cafetra de 2015, Ou Sim ou Sopas, que ganham aqui mais camadas e ainda mais ressonâncias da música popular portuguesa dos anos 70. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Puxa a patinha, sobre a saída do país do irmão de Éme e a emigração jovem (“Tenho bandeira/ Pronta para hastear/ Bagaço bem servido/ Para não mais lembrar/ O irmãozinho, o meu amor/ Vão embora e não vão voltar”), sente-se a influência da música brasileira na flauta de Moxila, que forma uma frente de ataque com o teclado de Lourenço Crespo. Parece que foram feitos um para o outro: ouçamos Roma-Sé, canção-orvalho a roçar a perfeição, a amizade para neutralizar a ansiedade. Antes, torcemos o nariz em Uma Voz/ Chá com mel, canção viscosa e ligeiramente alucinada em que Éme se estreia nos teclados e ensaia um momento de fuga no disco. Podia não estar aqui, mas vá, não ofende – depois até nos faz entrar de novo no disco com atenção redobrada. E assim seguimos de encontro a Zequinha, outra delícia, jubilante, que traz à memória Cantigas do Maio e Com as minhas tamanquinhas, de José Afonso, com algumas verdades sobre a subserviência no trabalho e essa coisa eterna do comer e calar. A liberdade palpita forte neste disco, e em Joana, aurífera, comunal, é selada com o verso, que tem tanto de excessivo como de vital, “Eu e tu/ Para quê esperar a aprovação?/ Lei é do cu/ E liberdade é do coração”. Em Domingo à Tarde, repetimos, ele dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Que a voz não te esmoreça, Éme.
REFERÊNCIAS:
Só 38% dos médicos formados no Algarve ficaram na região
Começou por ser polémico, mas hoje é considerado pela Ordem “um curso igual aos outros”. Em dez anos, a Universidade do Algarve formou 200 médicos . Estas são algumas das suas histórias. (...)

Só 38% dos médicos formados no Algarve ficaram na região
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Começou por ser polémico, mas hoje é considerado pela Ordem “um curso igual aos outros”. Em dez anos, a Universidade do Algarve formou 200 médicos . Estas são algumas das suas histórias.
TEXTO: Já há 200 diplomados pela Universidade do Algarve (Ualg) com o Mestrado Integrado de Medicina. Mas apenas 38% ficaram na região a fazer a especialidade. “Sempre me fez confusão como é que o Algarve não consegue atrair médicos”, afirmou o primeiro-ministro, António Costa, há ano e meio, quando foi criado o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Para o concurso de 71 vagas, aberto em Março e Junho, o CHUA apenas conseguiu atrair 25 candidatos. Os primeiros especialistas, oriundos do Mestrado Integrado de Medicina da Ualg, saem a meio do próximo ano, quando se celebram os dez anos desde a sua abertura. O curso tem condições especiais de acesso. Só os candidatos detentores de uma habilitação mínima — o grau de licenciatura numa área das ciências da saúde, ciências exactas ou ciências da natureza —, podem concorrer. O mestrado tem quatro anos (seguem-se o ano comum e uma especialidade de quatro a seis anos de formação). Alexandre Teixeira, doutorado em biologia molecular pela Universidade de Oxford (Inglaterra, ) é dos novos estudantes do Algarve vindos do estrangeiro. “Só conhecia o Algarve de passar férias, mas vim para ficar. ” Tem 46 anos e frequenta o 3. º ano do mestrado. “Aqui sou aluno”, sublinha, para que não haja confusão de papéis. Mas noutras circunstâncias já podia ser professor. Quem já passou para o outro lado da bancada foi Nuno Mourão, 35 anos, médico nos Cuidados Intensivos do Hospital de Faro, a fazer o 4. º ano de especialidade em Medicina Interna — Cuidados Intensivos. “Agora, sou regente da cadeira de ciências básicas e clínicas”, adianta. De início, a Ordem dos Médicos (OM) e outros sectores da saúde colocaram algumas reservas ao modelo de ensino deste mestrado, baseado em casos clínicos (Problem Based Learning). Teoria e experiência deram as mãos e o resultado foi positivo. O médico, nascido no Alto Douro, afirma: “Somos uma nova geração de médicos, que quer ajudar a mudar as coisas”, no sentido de dotar a região dos recursos humanos de que precisa na área da saúde. O responsável distrital pela Ordem dos Médicos (OM), Ulisses de Brito, pneumologista no Hospital de Faro, acha que as dúvidas levantadas pela OM sobre a qualidade da formação — mais prática do que teórica — estão ultrapassadas. “É um curso igual aos outros. ”Sandra Silva pertence à primeira leva dos 12 clínicos que vão terminar a especialidade em Medicina Geral e Familiar (MGF), em 2019. Para quem vinha de uma formação clássica — já possuía uma licenciatura em ciências farmacêuticas, e dois anos de experiência profissional —, sentiu-se atraída “pelo aspecto prático do curso”. Ao fim da segunda semana de aulas, os alunos começam logo a rodar pelos centros de saúde, e depois fazem estágios, orientados por um tutor, no conjunto diverso das várias especialidades, explica. “Se puder, vou continuar no Algarve”, diz a jovem médica, de Lamego, que trabalha actualmente no Centro de Saúde de Olhão. Tânia Gago, 36 anos, faz parte da primeira turma do Mestrado Integrado de Medicina da Universidade do Algarve (Ualg), formada por 32 alunos, escolhidos entre 600 candidatos. Para trás deixou cinco anos de trabalho como enfermeira (quatro no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e um no Hospital de Faro). Fez os quatro anos de mestrado. Fez o chamado ano-comum (internato geral, igual para todas as escolas). E ainda o temido exame de seriação Harrison — há décadas que é a nota que obtêm nesta prova, muito baseada na capacidade de memorização, que permite aos recém-licenciados em Medicina de todo o país escolher a especialidade a seguir. O controverso exame será substituído em 2019 por uma nova prova nacional de acesso à formação especializada. A especialidade de gastrenterologia, que dura cinco anos, tem sido realizada por Tânia no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). O director do serviço no centro hospitalar, Horácio Guerreiro, comenta a prestação da antiga enfermeira, que também possui um mestrado em ciências da educação: “Muito empenhada, e boa médica. ”Mas nem sempre os alunos da Ualg tiveram a boa receptividade por parte dos colegas. Nos primeiros anos, recorda, “sentia-se algumas reservas”. Isabel Palmeirim, directora do curso, diz que o modelo de ensino baseado em “problemas” clínicos (Problem Based Learning) é uma tendência a nível mundial e que já está a ser adoptado pela formação clássica. E assegura que “o estigma da desconfiança está ultrapassado”. Lembra, de resto, que a situação foi semelhante ao que se passara antes em Braga, com a criação da Escola de Medicina da Universidade do Minho, a cuja criação também esteve ligada. “Estas escolas vieram revolucionar um pouco o ensino da medicina. ”Tânia Gago, actualmente a estagiar no Instituto Português de Oncologia (IPO), não tem dúvidas quanto à escolha do local onde pretende fazer carreira como médica: “Se for possível, gostaria de ficar em Faro. ”Nuno Mourão não pensava sair do Porto, onde se licenciou em cardio-pneumologia. “É curioso, vim para cá estudar a partir de uma notícia que li no PÚBLICO sobre este método de ensino, baseado mais no raciocínio clínico do que na memorização. ” Na altura, fazia investigação e trabalhava como técnico de diagnóstico e terapêutica. “A urgência é a minha paixão”, enfatiza. A adrenalina “sem stress” corre-lhe nas veias quando está de serviço no INEM, prossegue. As coisas acontecem de forma inesperada — de um momento para o outro, salta para o helicóptero, ou arranca “a abrir” na viatura do 112. Não teve dificuldades em encontrar vaga no Hospital de Faro, porque a unidade possui idoneidade formativa nesta especialidade. O colega Alberto Correia, interno de neuro-radiologia no Hospital Santa Maria, não teve a mesma sorte. “Vim para Lisboa, porque não há esta especialidade no Algarve”, conta. Natural de Póvoa de Varzim, manifesta-se disposto a regressar a Faro, quando abrir vaga. “Fiquei com uma forte ligação sentimental à região, e sinto o dever de dar algo em troca do que recebi. ”A presidente do conselho de administração do CHUA, Ana Paula Gonçalves, responde: “Estamos a trabalhar para fixar médicos, nesta e noutras especialidades. ” A ortopedia, por exemplo, é uma das áreas onde a OM retirou capacidade formativa ao Hospital de Faro, por falta de recursos humanos. Já a neurocirurgia, adquiriu essa competência. E a cirurgia recuperou — tinha deixado de poder formar médicos nessa especialidade havia cerca de três anos. A directora do mestrado, Isabel Palmeirim, afirma: “Muitos médicos [formados na Ualg] não teriam saído se o CHUA tivesse capacidade formativa em todas as especialidades. ”Apesar do bom clima da região, os grandes centros urbanos fora do Algarve continuam a reunir as preferências dos profissionais da medicina. Das duas centenas de clínicos já formados na Ualg, ficaram na região apenas 76 (38%) a fazer a especialidade. A região de Lisboa e Vale do Tejo colocou 70 (35%) e os restantes deslocaram-se para outros pontos do país. Seis emigraram. “É necessário alargar as competências formativas no CHUA, e criar perspectivas de carreiras ligadas às ciências biomédicas e medicina”, diz Isabel Palmeirim. A construção do novo Hospital Central, que já teve direito ao lançamento simbólico de uma “primeira pedra” no Governo de José Sócrates, desapareceu da lista das prioridades de construção de novas unidades de saúde para 2019. A direcção do PS-Algarve, entretanto, renovou a promessa de que vai haver obra na próxima legislatura. A criação do CHUA em Julho de 2017 — integrando os hospitais de Faro, do Barlavento (Portimão) e Lagos, mais o Centro de Medicina e Reabilitação Física do Sul — foi justificada pela necessidade de promover a articulação entre a comunidade científica e o corpo clínico. Isabel Palmeirim realça a “boa colaboração” que se estabeleceu entre as instituições para valorizar um curso, que chegou a ser visto, de forma crítica, como uma forma de promover a ascensão de enfermeiros a médicos. Dos reconhecimentos conquistados no estrangeiro, destaca a vitória da equipa de cinco alunos, coordenada pela docente Alexandra Binnie, que venceu a maior competição europeia entre estudantes de medicina numa simulação médica de urgência, organizada pela Society in Europe for Simulation Applied to Medicine, em Bilbau. Alexandre Teixeira é um caso típico dos bolseiros precários, trabalhou como investigador durante 15 anos. Após o doutoramento em Londres, co-assinou um artigo publicado na prestigiada revista Nature, trabalhou e deu aulas no Instituto de Medicina Molecular e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em Lisboa. De repente, aos 43 anos, viu-se desempregado, casado e com filhos. Decidiu concorrer ao curso de medicina, em Faro. “Informei-me e achei que poderia ser interessante. ” Tentou a sorte e foi seleccionado. De entre as 12 entrevistas destinadas a determinar o perfil do candidato, destaca uma cena onde entrava um gato. De forma inesperada, foi colocado perante a seguinte situação: saiu de casa para a entrevista do emprego que iria mudar a sua vida. Teve um azar — atropelou um gato. O animal, por acaso, pertencia à sua vizinha. A representar o papel da vizinha, conta, encontrou uma actriz. “Não foi fácil explicar o sucedido, com a mulher a chorar compulsivamente”, recorda. Manter a calma foi a chave do êxito no teste. Na vida real, explica Isabel Palmeirim, os médicos são submetidos a muitas situações de stress. E têm de estar preparados para saber comunicar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na aula da quinta-feira passada, a médica Alexandra Binnie colocou os alunos à prova. Sobre a maca encontrava-se uma mulher (um manequim), de 71 anos, a queixar-se com dores no abdómen. O equipamento médico permite ver a frequência cardíaca, respiratória, o ritmo cardíaco, e avaliar outros sinais biológicos. Mas não diz tudo. Para tornar a situação mais complicada, a professora fez ela própria de doente. Às dores abdominais, chamava “facadas na barriga”, e quanto interpelada sobre o que teria acontecido para ir parar às urgências, respondia: “Não sei, não lembro. . . ”Os alunos, perplexos, trocavam opiniões entre eles e, mentalmente, faziam a revisão da matéria dada. Seguia-se o internamento e exames complementares. Se fosse a sério, no Hospital de Faro haveria um problema adicional para resolver — falta de camas para o internamento. Esta unidade, inaugurada há 40 anos, foi projectada para uma capacidade de 350 camas. Com os enxertos arquitectónicos que tem sofrido, fez esticar o espaço para chegar às 500. A sobreocupação obrigou a colocar seis em lugares onde deveriam estar quatro. O coordenador do Centro de Referência do Cancro do Reto (Gastrenterologia), Paulo Caldeira, é um dos médicos da equipa sénior que defendem a necessidade da construção de um novo hospital central, lembrando que o Algarve é a “região do país com menor número de camas por habitante”. Tomando como referência uma população de 442. 000 habitantes e uma média de camas hospitalares de 330 por 100. 000, deveria ter no mínimo 1350 camas, explica. Ora, o CHUA tem cerca de 950. “Essa é uma velha luta, sem resposta por parte dos poderes públicos”, sublinha o representante da Ordem dos Médicos. A transferência de conhecimento produzido na Ualg, observa Ulisses de Brito, “torna ainda mais urgente a necessidade de construir um novo hospital”.
REFERÊNCIAS:
Vincent Lindon: “Se faço os filmes que faço, não é porque esteja apaixonado por interpretar. É um meio de fazer o bem e de fazer política”
De um actor com uma missão — a empatia, ser o espelho das pessoas comuns — há novas, mantendo-se irredutível a melancolia. Filmes para ver na Festa do Cinema Francês e a seguir nas salas: A Aparição, sobre um repórter de guerra que persegue os factos e é abalroado pelo invisível; Em Guerra, sobre um sindicalista que perde a guerra na fábrica — as cores do sacrifício neste homem-espelho. O mundo como lugar de violência e a jornada para o habitar: eis o início desta entrevista. (...)

Vincent Lindon: “Se faço os filmes que faço, não é porque esteja apaixonado por interpretar. É um meio de fazer o bem e de fazer política”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.324
DATA: 2018-11-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: De um actor com uma missão — a empatia, ser o espelho das pessoas comuns — há novas, mantendo-se irredutível a melancolia. Filmes para ver na Festa do Cinema Francês e a seguir nas salas: A Aparição, sobre um repórter de guerra que persegue os factos e é abalroado pelo invisível; Em Guerra, sobre um sindicalista que perde a guerra na fábrica — as cores do sacrifício neste homem-espelho. O mundo como lugar de violência e a jornada para o habitar: eis o início desta entrevista.
TEXTO: Um miúdo com uma pistola de brincar em punho no seu home movie burguês. . . numa rubrica da TV francesa que se chamou Empreintes, aquele que é hoje um actor, uma star e um militante da empatia que tem feito do homem comum a estrela dos seus filmes, olhou para a sua infância. Vincent Lindon, 59 anos, habitava um paraíso triste que parecia a mansão de O Regresso a Howard’s End, o pai ausente pelo divórcio e uma mãe que parecia a Faye Dunaway de The Thomas Crown Affair e não tinha tempo para se interessar pelo filho. . . por isso as unhas roídas e os tiques de Vincent, por isso aquela arma de brincar, por isso a odisseia em adulto pelas provas de amor, por isso aquilo que faz hoje: como uma vingança, impõe ao mundo burguês protegido das suas origens o mundo proletário e o desamparo das pessoas comuns que escolheu interpretar, tornando-as visíveis e transformando-as em heróis. Sendo ele, por isso, o herói — é essa a sua condição, como se viu pela comoção que acompanhou a consagração em Cannes 2015 e nos Césares 2016 da sua interpretação de um desempregado em A Lei do Mercado, de Stéphane Brizé. Desta evolução da “persona” Lindon, um daqueles actores “à antiga”, sempre “ele” quando recebe a personagem, o contrário da metamorfose, os seus dois últimos filmes, A Aparição, de Xavier Giannoli, e Em Guerra, de Stéphane Brizé, trazem novas — mantendo-se a irreversível melancolia, como se decorresse ainda a busca pelo paraíso que Vincent perdeu. Vamos poder ver esses filmes em antestreia durante a Festa do Cinema Francês, que decorre neste momento em Lisboa e alastrará a várias cidade do país. Em A Aparição (dia 5, 6ª, às 21h30, no Corte Inglês, em Lisboa, e a partir de dia 11 em distribuição comercial), interpreta um repórter de guerra contratado pelo Vaticano para investigar a veracidade dos testemunhos de uma vidente — o que faz o céptico Lindon ser abalroado pelo invisível. Em Guerra (dia 14, 21h30, Cinema São Jorge, e nas salas a 1 de Novembro) é a quarta colaboração do actor com o realizador de A Lei do Mercado e é o filme mais problemático da dupla. O actor interpreta um líder sindical que perde a guerra na fábrica. A missão de Lindon como actor cruza-se aqui, numa personagem sem intimidade, espelho dos desejos e frustrações do grupo, com espectáculo sacrificial. Os seus filmes frequentemente mostram o mundo como lugar de violência e contam a busca de uma personagem para o conseguir habitar. A Aparição [Xavier Giannoli, 2018] e Em Guerra [Stéphane Brizé, 2018] dão-nos coisas novas e mais extremas dessa narrativa. No primeiro caso, o encontro com a fé de uma personagem obcecada com a verdade dos factos e que afinal se encontra com o invisível; no segundo, alguém que não consegue escapar aos dados do mundo real, e é essa a sua tragédia e a origem de um acto final de violência. Que ressonâncias têm em si estas narrativas, visto que escolheu protagonizá-las?Como actor não escolho uma causa. Leio argumentos, e propõem-me muitos, dois ou três por semana. Se faço cinema hoje, é para contar alguma coisa que precede algo que vai acontecer ou que sucede a algo que está a acontecer. O cinema é importante para mim por ser um veículo, por ser o testemunho dos meus contemporâneos, de como vai o mundo. Espero que a minha notoriedade sirva para fazer filmes que falem de nós, que conte algo do nosso país, ou da Europa, ou do mundo, ou da filosofia humana num dado momento, hoje, para que daqui a 40 ou 50 anos, ao verem-se esses filmes, se possa dizer: “Era assim. ”Mas primeiro que tudo leio uma boa história. Não abro um argumento dizendo para mim próprio: “Quero contar a história de uma personagem que vai tentar perceber se acredita ou não em Deus. ” Ou: “Ah, é uma personagem que se bate para levar uma greve até ao fim. ” Digo “sim” a uma história e depois debruço-me sobre uma personagem. E não quero reflectir muito sobre ela. O que é interessante é não saber demasiado, porque as pessoas na vida não sabem o que lhes vai acontecer três segundos depois. Leio uma vez o argumento, para ver se me agrada, e não volto a ler. Quero chegar virgem à rodagem. Se sei tudo por antecipação, inconscientemente preparo-me para reagir desta forma ou de outra, e o resultado não será natural. Para A Aparição, por exemplo, não coloquei a questão de saber se duvidava ou se a fé me interessava. Avançava dia a dia, chegava ao plateau e fazia a cena como se a descobrisse fazendo-a. Para estar à altura da personagem. Estar, eu, Vincent Lindon, à frente ou atrás da personagem, isso não me interessa. O mesmo para Em Guerra. Falei muito com o realizador, mas não me meto numa fábrica durante três meses para saber tudo, tudo o que se passa, sob pena de estar à frente da personagem quando o que interessa é reagir no momento. É isso que faz a verdade da vida. Quando se fazem filmes próximos da vida, gosto de trabalhar da mesma maneira que se vive. Mas não é por acaso que certas histórias o tocam e outras não. E depois é um desses actores que, tal como os actores franceses e americanos de outro tempo, antes de mais é ele próprio. O que faz com que, por exemplo, vendo vários dos seus filmes de seguida se tenha a sensação que é também “autor” deles. É como se presenciássemos as várias vidas de uma personagem. Acontece descobrirmos — num filme mais longínquo, La Moustache [Emmanuel Carrère, 2005], por exemplo — que a inquietude das suas personagens de hoje já estava “lá”. Percebo exactamente o que quer dizer, mas para mim é difícil falar disso, não queria soar pretensioso. Os actores de que gostei muito, muito, muito na minha vida quase não mudam de cara, de penteado, vemo-los vestidos quase sempre da mesma maneira de filme para filme, e, contudo, o que fazem é diferente. Alguém como Gary Cooper, alguém como Cary Grant ou John Wayne, Lino Ventura ou Jean Gabin. . . essa gente fez uma multitude de filmes diferentes e parece que nunca mudava — mas mudava enormemente, porque se deixava transportar pela narrativa. Prefiro confiar numa história, casar-me com um argumento, ser como o seu acompanhante, de uma fidelidade extrema a uma história, em vez de pintar o cabelo de loiro, colocar um bigode, encher-me de artefactos. No fim de contas, ser eu mesmo. Uma vez um realizador disse-me: “Nunca fui tanto um autor, nunca fui tão inventivo como quando realizei um filme por encomenda, porque adaptei à minha mão, à minha medida, um exercício obrigatório. ” Penso o mesmo dos actores. Quanto mais nos mascaramos, quanto mais fazemos trabalho de composição, mais isso é um biombo para continuarmos nós mesmos no interior. Quanto mais nos mostramos com as roupas ou com o físico de todos os dias, mais nos expomos e mostramos coisas de nós que não utilizamos na nossa vida e que colocamos ao serviço do filme. Diz-me que os filmes que faço são também filmes “de” Vincent Lindon. Penso também o contrário. Invisto tanto nos papéis para que as pessoas que vão ao cinema possam dizer: “Vejo-me nele. ” Sou tanto mais eu nos filmes quanto permito às pessoas que se identifiquem comigo. Sou uma espécie de homem tipo a que as pessoas se podem agarrar. A propósito de fidelidades, a sua relação com o realizador Stéphane Brizé. Ele disse uma vez: “Vincent Lindon c’est moi. ” Queria com isso dizer que você era a melhor versão dele. Interessante que isso se passe entre duas pessoas de origens tão diferentes: ele o proletário, você o burguês. E é o burguês que, através dos filmes, faz o proletário. O bizarro é que se sou dos actores burgueses do cinema francês, sou aquele em que se investe nos papéis de proletário. Isso talvez se deva a ter sido educado por um pai que era extremamente próximo das pessoas de baixa condição e que não passava socialmente sem essas pessoas mais fracas: só gostava de comer com os seus trabalhadores, só gostava de partir em férias com os seus trabalhadores — nunca com os do seu meio social, que não lhe interessavam, aborreciam-no. Fui educado por um pai que me inculcou esses valores e que me dizia que eu estava melhor numa quinta com os camponeses e com as vacas do que a chegar a uma discoteca de Ferrari. É uma caricatura, mas é para ir directo ao assunto. Sempre gostei de conviver com as forças vivas do país: as pessoas que fazem o país, os trabalhadores, os artesãos. São essas pessoas que me apaixonam, gosto da forma como pensam e por vezes detesto a forma como pensam, porque, por exemplo, politicamente não reflectem para além do seu próprio nariz e escolhem a facilidade; mas gosto de estar no meio deles. Aborreço-me com as pessoas “da alta”. E as pessoas que me aborrecem mais no mundo são os actores de cinema. Não me relaciono com eles. Se faço os filmes que faço não é porque esteja apaixonado por interpretar. Os meus colegas adoram ser actores, adoram interpretar personagens. No meu caso foi um acaso. É um meio, para mim, de fazer o bem e de fazer política. É o meu meio de intervir e de tentar ajudar as pessoas. Só interessa ser uma estrela, se se pode ajudar a fazer filmes que, por dizermos sim, vão poder ver a luz do dia. É servir alguma coisa. Penso frequentemente que quando eu desaparecer. . . estou pensar na frase de um actor de cinema de que gosto muito: “Deixarei sem pesar este métier grotesco”. . . . . . quem disse?Anthony Hopkins. . . Estou-me nas tintas para a minha imagem. Não quero saber se estou bem ou mal penteado, o que as pessoas vão achar ou não, é-me indiferente — e é essa a melhor maneira de conseguir ser amado por todos, estar-se completamente nas tintas. É a diferença entre seduzir e ser um sedutor. Ser sedutor não me interessa nada. Faço o que faço, quando faço e como quero fazer. Se isso agrada, tanto melhor. Voltando a Brizé. . . Um dia veio ter comigo com a personagem do carpinteiro de Mademoiselle Chambon [2009] a dizer que pensava em mim. Tocou-me muito essa história do carpinteiro com a professora da escola do filho. Entendemo-nos de forma maravilhosa, falamos muito, Stéphane e eu. Não paramos de nos questionar durante um filme e nunca estamos de má fé. Dizemos tudo, faço perguntas e ele não tem medo de se questionar. Isso cria um casal de cinema. Não sou eu que sou fiel, ele é que é fiel. É ele que escreve e regressa a mim. Não sou eu que vou ter com ele com uma pistola: “Aviso-te que o próximo filme será comigo. ” São os realizadores que são fiéis, não são os actores. Ele propõe e eu disponho. Nos quatro filmes que fez com Brizé [Mademoiselle Chambon, 2009; Quelques heures de Printemps, 2012, A Lei do Mercado, 2015; Em Guerra, 2018], os dois primeiros passam-se no espaço de intimidade, e com A Lei do Mercado há uma abertura ao espaço público. Como se expusesse os dados fundamentais de uma personagem, a dos filmes anteriores, ao mundo, resultando nisso uma certa violência. Mas Pater [2011], em que interpreto o primeiro-ministo de França e Alain Cavalier o presidente, também era isso, também era um filme muito violento. Como Welcome [Philippe Lioret, 2009] sobre os imigrantes de Calais. . . La Crise, de Coline Serreau [1992], sobre um homem que perde o seu emprego e a sua mulher no mesmo dia, já era um filme muito político. . . Exactamente, por isso comecei por dizer que os seus filmes falam de uma coisa violenta, a adequação ao mundo. A questão sobre Brizé era para chegar à transição de A Lei do Mercado para Em Guerra. É impressionante e traumático como no primeiro tínhamos acesso à intimidade de uma personagem e no segundo, embora existindo fragmentos de uma vida privada, a personagem está desprovida disso, todo ele é apenas luta pública. É uma personagem em guerra. Quando alguém está em guerra, não há tempo para mais nada a não ser para estar em guerra. Quando o Presidente da República está em campanha eleitoral, as imagens que vemos dele são as comícios, aviões, helicópteros. Não estamos a vê-lo no seu salão a beber chá ou café ou a passear os cães no jardim. Este é um homem da fábrica, a fábrica vai fechar, ele é dirigente sindical: se o cinema for para outro lado, desliga-se da personagem. Sobre a relação entre os dois filmes: num eu não digo nada, no outro não páro de falar. Em A Lei do Mercado a personagem é muito introvertida, de tal forma que o espectador se pergunta: “O que é que ele pensa?” Em Em Guerra grito a toda a gente na sala: “Levantem-se, partamos juntos para o combate. ” Um não tem nada que ver com o outro. Como se trata do mesmo realizador e do mesmo actor, as pessoas acreditaram que era o mesmo filme ou uma sequela. Nada que ver, nada. Como é que Brizé lhe apresentou esse filme?Nunca me apresenta. Vejo o Stéphane de três em três dias. Por exemplo, neste momento já me fala do filme seguinte. Já me diz: “Gostaria de falar das pessoas lá de cima, dos quadros, dos patrões e das suas depressões nervosas e esgotamentos. ” Porque é gente que todos os dias faz coisas contra a sua humanidade, e que faz isso para ganhar dinheiro e alimentar a família, ou seja, também se sofre lá em cima, de uma outra maneira de como se sofre cá em baixo. Cá em baixo morre-se de fome, lá em cima morre-se de depressão nervosa. Ele quer filmar isso, e começa a falar-me. Não me apresenta nunca um filme por inteiro, vamos falando aos poucos. Filma desde os anos 80. . . Desde 1985. Mas foi bem mais tarde que as coisas se tornaram mais interessantes, intensas. Estava já com 40 anos. Porquê? Porque o seu investimento passou a ser outro?Há um momento para tudo. Nós, actores, não somos todos iguais. O meu peso, a minha voz, a minha corpulência, tudo isso aconteceu mais tarde. A alguns acontece mais cedo. Há quem já esteja feito para a competição aos 25 anos. Mas aos 50 já cá não está. Há algo que desaparece. Outros precisam de tempo. Em jovens parece que não estão verdadeiramente aqui, mas de repente acontece algo e. . . estão na corrida e até ao final da vida. Comigo aconteceu por volta de 1996, a minha voz mudou, o meu peso mudou. Morgan Freeman também esperou anos antes de estar pronto, antes de estar “lá”. Outros começam logo muito jovens, como Matt Dillon, mas algo se perde depois. A propósito, em La Moustache contracenava com Mathieu Amalric, um actor de uma família diferente da sua. Representa o que de forma grosseira podemos resumir como o actor francês depois da nouvelle vague. Está mais próximo de Jean Gabin e de Lino Ventura. . . Talvez esteja mais próximo de Jean-Paul Belmondo. . . Também, de acordo. Mas Jean-Paul Belmondo é um actor da nouvelle vague. . . De facto, ele esteve com Godard e com outros, mas o que o singulariza é a forma como estabeleceu um laço com o que existira antes, com os “velhos”, Gabin, Ventura, por exemplo, e com cineastas que foram, para os críticos que seriam a nouvelle vague, o “cinéma de papa”. Para mim nunca houve o “velho” cinema. Houve o “grande cinema”. Assim como não sei exactamente o que quer dizer nouvelle vague. Não há uma vida nova, continuamos a vida. Essa vaga que chegou não teria existido sem o que aconteceu antes. Diz-se que nouvelle vague é Godard, Chabrol e Truffaut e que a nouvelle vague é A Bout de Souffle, filme de 1959. Mas Um Homem e Uma Mulher (Claude Lelouch) é de 1966, não é nouvelle vague? É super nouvelle vague. Para mim é mais simples: há grandes filmes, grandes realizadores, grandes actores, ponto final, parágrafo. Lembra-se como se falava de Claude Sautet ontem? Há 15, 20 anos era “velho cinema” ou “cinema de papa”, como diziam, ou “cinema burguês” e “cinema de direita”. Depois de ter morrido, tornou-se intocável, como se fosse Jean Renoir. E como se fala de Claude Lelouch hoje?Alguma vez se sentiu isolado, no cinema francês, em termos de modelos de actor?Compreendo o que quer dizer. Mas não penso nisso. Há aquela frase de Vontade Indómita [King Vidor, 1949]. Um jornalista cruza-se com a personagem de Gary Cooper, de quem ele não gosta, e diz-lhe: “Quando você lê o que escrevo sobre si, o que é que pensa de mim?” Gary Cooper vira-se para ele: “Não penso nunca em si. ” É o mesmo: é-me indiferente. Não olho nunca para o prato do vizinho. Interessa-me o meu prato. Quando era jovem, pensava sempre que a festa-surpresa mais divertida era sempre aquela em que eu não estava. Como é que era a vida onde eu nunca estava? Decidi há algum tempo que o local que interessa é onde estou. Mesmo que não se passe nada. Os meus colegas actores rodam cinco filmes por ano, e, desses cinco, há dois ou três a que eu disse não e que eles fizeram. Faço menos, mas isso cai-me muito bem. Li, não gostei. Se eles gostaram, que o façam. Não lamento nada. Há artistas que têm a seguinte filosofia: “Não quero aquilo que ele tem, mas não quero que o tenha. ” Eu marimbo-me. Não podia ser de outra maneira. Senão a minha vida estaria lixada. Mais valia que me suicidasse. Talvez lamente não ter feito coisas que gostaria de ter feito. Não posso lamentar não ter feito coisas que recusei. Num retrato/entrevista à televisão francesa, Empreintes, falou de três actores, Alain Delon (“plus beau a regarder qu’une belle femme”), Depardieu, alguém que chegou e determinou uma nova fasquia para os actores franceses, e Lino Ventura — que sempre me pareceu uma “ascendência” do actor Lindon. Você fala dele como uma presença sólida, como um pai. Havia papéis que Ventura não aceitava, por questões morais, por exemplo. São questões para si também?Não, nada mesmo. Mas é curioso, porque o que as pessoas me dizem mais é que tenho um lado Gabin. Mas é verdade que hoje, desde que um actor se torne fisicamente forte, diz-se que “tem um lado Ventura” ou “um lado Belmondo” ou um “lado Gabin”. Um dia fazem-se as contas e haverá 25 actores com um lado Ventura. É como uma marca. A verdade é que sou mais comparado a Gabin, o que até prefiro, porque a carreira de Gabin é política, mesmo que não se dê conta disso. Nos filmes da Frente Popular, no Jour Se Lève [1939, Marcel Carné], na Bête Humaine [Jean Renoir, 1938], no Des Gens sans Importance de Verneuil [1956], ele acompanha as grandes correntes políticas, fala da França de 36, fala da França dos anos 50, o que não é o caso de Ventura, que não fazia filmes engagés — fez um, L’Armée des Ombres [1959], de [Jean-Pierre] Melville. É um actor menos engajado de que gosto muito, mas não por uma questão de ética. A minha ética é aceitar bons argumentos. Posso interpretar um monstro, alguém que faça coisas ignóbeis, com a condição de que o argumento seja tão bom que, ao interpretar esse mau, vou ajudar as pessoas a odiarem-no ainda mais — dessa forma levo o bem às pessoas e afasto-as do mal. Em A Lista de Schindler [Steven Spielberg, 1993], a forma como Ralph Fiennes faz de Amon Goeth mostra até que ponto a personagem é ignóbil e isso ajuda as pessoas a odiarem-no ainda mais. Tenho alguns princípios éticos, no entanto: sou dos poucos actores que praticamente não fizeram publicidade, que não fizeram voz off de desenhos animados. . . essa é a minha ética. Quando uma casa me oferece roupa para vestir e fazer publicidade, recuso, compro com o meu dinheiro. Não vou a soirées de lançamento de produtos. Isso para mim é importante. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A questão com Ventura não tem que ver com corpulência, é uma questão de silêncios e de melancolia. Compreendo. Posso perguntar-lhe sobre a sua melancolia, que está tanto nas personagens? De onde é que vem?Melancolia ou nostalgia. . . não posso evitar, é inato. Há actores que têm no rosto e na forma de se mexer qualquer coisa de melancólico, como outros têm qualquer coisa de perverso. Há uns que são escolhidos para os papéis simpáticos, há outros que têm ar inteligente. Outros têm um ar mais lunar. São coisas que não se controlam. Há pessoas que quando as vemos no ecrã nos dá vontade de rir. A outras queremos proteger. Talvez aceite o meu lado feminino, talvez aceite as minhas fraquezas de infância. Há um lado forte e voluntarioso, e talvez seja a mistura dos dois. . . Não decido pôr a minha melancolia nos filmes. Não tenho controlo sobre isso. Mas se me pergunta se sou melancólico na vida. . . sou muito, muito, muito nostálgico, terrivelmente nostálgico. É a minha falha, o meu drama. Penso com muita melancolia quando estou no momento posterior, e é que isso que me dá nostalgia. Sou nostálgico do momento passado. Estou raramente no presente. Penso frequentemente no amanhã e terrivelmente no ontem, e muito, muito pouco no que faço, ou seja, faço as coisas de forma muito instintiva e despreocupada em relação ao que me aconteceu e ao que quero que me aconteça. Está a fazer-me perguntas e eu a dizer-lhe coisas em que não costumo pensar, é o drama das entrevistas, vou parar de dar entrevistas. Não quero dizer-lhe coisas sobre as quais não tive tempo de pensar. Daqui a três anos, quando for ler, vou rir-me dos disparates que disse. Estou a dizer-lhe isso hoje, porque estou com um humor mais alegre, falo com mais energia. Se me tivesse falado ontem, isto teria sido mais lacónico, mais triste.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra lei escola violência filho mulher fome ajuda homem social medo espécie cães divórcio
Portugal em 2019: não, isto não é a aldeia do Astérix
O melhor para o sistema político português seria o PS ganhar as eleições com maioria absoluta, por duas ordens de razões. (...)

Portugal em 2019: não, isto não é a aldeia do Astérix
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O melhor para o sistema político português seria o PS ganhar as eleições com maioria absoluta, por duas ordens de razões.
TEXTO: Muita gente está convencida de que Portugal é como a aldeia gaulesa dos livros de Astérix: resiste hoje e sempre à invasão dos populismos e à italianização do seu sistema político. Não acredito nisso. Nos últimos três anos, António Costa não encontrou a fórmula da poção mágica – apenas manobrou habilmente com muito vento pelas costas, cortesia de uma conjuntura económica internacional altamente favorável (e dificilmente repetível) e do trabalho do governo PSD/CDS no equilíbrio das contas públicas entre 2011 e 2015. Não vai acontecer de novo. Em 2019, Costa e o PS irão ganhar facilmente as eleições europeias e legislativas, a não ser que haja uma revolução à direita, e a tragédia do PSD de Rui Rio nas europeias de Maio seja tão grande (com números abaixo dos 25%) que lhe aconteça o mesmo que a António José Seguro antes das legislativas de 2015. Como isso não parece de todo provável – até porque na actual conjuntura ser líder do PSD não é trabalho que se inveje por aí além –, Rio e Costa enfrentar-se-ão em Outubro em registo Dupont e Dupond, paradoxalmente numa das mais estimulantes eleições da história recente (ninguém faz a menor ideia do que possa acontecer em caso de maioria relativa), e das quais eu acredito que possa sair uma confusão política de proporções assinaláveis. O melhor para o sistema político português seria o Partido Socialista ganhar as eleições com maioria absoluta, por duas ordens de razões. A primeira, é porque essa vitória iria permitir a renovação do PSD e a eleição de um líder mais competente do que Rui Rio, capaz de se assumir como uma verdadeira alternativa ao PS. A segunda, é porque ela iria finalmente mostrar aquilo que António Costa vale sem ter margem para reversões, e sem parceiros à esquerda para serem usados como desculpa para a falta de ímpeto reformista. A última vez que o PS teve uma legislatura pela frente com nuvens negras no horizonte foi em 1983 – e ainda assim puxou o PSD para o seu lado e constituiu o Bloco Central. Já é mais do que tempo de provar que é um partido crescido, capaz de tomar decisões difíceis, e não um partido mimado, que só sabe governar em tempo de vacas gordas. Como já referi várias vezes, tenho António Costa em melhor conta do que a maior parte dos meus amigos de direita – seja pelo que fez à frente da Câmara de Lisboa, seja pela habilidade política que tem demonstrado, e que para mim não deixa de ser uma qualidade assinalável, mesmo discordando das suas ideias –, mas a legislatura 2015-2019 é a maior estátua à paralisia política e social que foi erguida neste país desde os tempos do Estado Novo. As cativações de Mário Centeno são a metáfora perfeita dos últimos anos – estamos feridos pelo passado, presos ao presente e sem perspectivas de futuro. Se António Costa conseguiu o milagre de levar a legislatura até ao fim, há um milagre que não conseguiu fazer: tornar-se um primeiro-ministro genuinamente apreciado pelos eleitores. Toda a gente lhe gaba a inteligência e a habilidade política, mas ele não surge aos olhos dos portugueses como uma pessoa confiável – e não é dessa massa que são feitos os construtores de maiorias absolutas. Duvido muito que vá conseguir tê-la em Outubro de 2019, apesar dos sucessivos hara-kiris de Rui Rio. Que o PSD se está a desmoronar, não há margem para dúvidas; que seja o PS a apanhar os seus despojos, já não estou tão certo. Os próximos nove meses vão ser difíceis para António Costa. A conflitualidade social vai aumentar. O PCP tem interesse em desgastar o governo, para impedir uma maioria absoluta. Os professores prometem guerra sem quartel pela recuperação da totalidade do tempo de serviço. E todo o funcionalismo público está a afiar as garras para conseguir mais dinheiro em ano de eleições. Continuando António Costa a ocupar o palacete de São Bento, aquilo que oferecer agora a crédito é ele próprio quem terá de pagar a pronto na próxima legislatura. Também o preço das cativações, com uma dimensão inédita – Centeno nunca necessitou de orçamentos rectificativos porque optou sempre por orçamentos criativos –, já está a fazer-se sentir não no bolso, mas no corpo dos portugueses. O SNS está caótico, os transportes públicos agonizam e as instituições de protecção civil exibem regularmente a sua incompetência. Isto não mata o governo, mas mói, porque mesmo havendo mais algum dinheiro no bolso, as pessoas têm perfeita consciência de que a qualidade dos serviços públicos está a diminuir de forma significativa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há ainda a frente externa, onde a notícia do fim da História foi manifestamente exagerada. O mundo está em mudança rápida: o “Brexit” lançou o Reino Unido no caos, Macron está em queda, a Itália em convulsões, as democracias liberais recuam, as autocracias progridem, há confusão em Espanha, incógnitas na Alemanha. E quando saímos da Europa as coisas não melhoram muito: do crescimento da China à instabilidade nos Estados Unidos, passando pela nova aventura brasileira com o senhor Bolsonaro, basta um bater de asas para o mundo mergulhar em nova crise. E depois, claro, há a situação da justiça em Portugal. Também aí 2019 será o ano de todos os perigos para o PS, com a instrução da Operação Marquês. Se José Sócrates se vier a safar com um golpe de secretaria, será a descredibilização total da justiça portuguesa. Se José Sócrates voltar a abrir telejornais em véspera de eleições, a vida de António Costa ficará um pouco mais difícil. Neste aspecto, nem o PS de Costa, nem o PSD de Rio, são confiáveis. Mais tarde ou mais cedo, o sistema político português irá reconfigurar-se, por uma razão muito simples: os partidos tradicionais não estão a dar resposta às preocupações dos seus cidadãos. Portugal tem a sorte de não ter problemas com a imigração, mas o sentimento de injustiça quanto à distribuição de rendimentos e a descredibilização da classe política está aí, bem à vista de todos. Ninguém duvide: ele vai mesmo fazer-se ouvir. Muito provavelmente, já a partir de 2019.
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD PCP
Pressão imobiliária já habita no Porto Oriental
Aurora, 83 anos, tem um contrato com mais de 40 anos mas está a ser pressionada para sair. Francisco, 77, não tem para onde ir depois de 31 de Janeiro. Associação de Inquilinos faz 70 atendimentos por semana e chegam cada vez mais pessoas da periferia da cidade (...)

Pressão imobiliária já habita no Porto Oriental
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.2
DATA: 2018-12-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Aurora, 83 anos, tem um contrato com mais de 40 anos mas está a ser pressionada para sair. Francisco, 77, não tem para onde ir depois de 31 de Janeiro. Associação de Inquilinos faz 70 atendimentos por semana e chegam cada vez mais pessoas da periferia da cidade
TEXTO: A temida carta apareceu a 28 de Setembro. E, depois daquele dia, Francisco Ramos Pereira nunca mais descansou. Num discurso jurídico onde não entram sentimentos e as circunstâncias não importam, a senhoria anunciava ao homem de 78 anos a sua oposição à renovação do contrato: o inquilino tinha de deixar a casa “livre de pessoas e bens” até 31 de Janeiro. Francisco Pereira lia a carta e caía num desespero profundo. Pensava na solidão onde se embrulha todos os dias, na ausência de família ou amigos para lhe deitarem a mão, imaginava-se na rua “abandonado como um cão”. A alternativa à saída, soube depois, seria subir a renda para 350 euros, mais 100 do que paga agora. E isso não era alternativa. “Tenho andado em busca do Estado”, repete uma e duas vezes, a tirar os óculos do bolso da camisa: “Nem com isto o encontro”. Para lá do portão verde da sua ilha no Porto Oriental, número 270 da Travessa das Antas, o estreito corredor parece infinito. Na casa nove, “um caixote” onde o preço por metro quadrado parece ter esquecido geografias e contextos, habitam tristeza e revolta. Na sala, não cabe um sofá. Na cozinha, não há espaço para um frigorífico ou máquina de lavar roupa. No quarto, uma cama de casal não daria margem para ninguém se mexer. “Isto vale 350 euros?”, questiona alterado. Francisco Pereira foi ali parar há coisa de dois anos. Depois de se divorciar da mulher, tentou reerguer a vida num lar. Mas um dia falaram-lhe daquela casa pequena, fizeram-no acreditar que teria ajuda para as tarefas domésticas que nunca aprendeu a cumprir: lavar roupa e louça, cozinhar, fazer limpezas. Ele foi. Mas as promessas caíram. Francisco Pereira ajeitou-se como pode. Uns vizinhos da ilha ofereceram-se para lhe lavar a roupa, paga uma limpeza semanal, um restaurante ali perto leva-lhe uma refeição por dia. “Ao almoço como o conduto, à noite a sopa, não dá para mais”. Só a revolta cava mais fundo do que a solidão. “Imagine passar dias e dias sozinha, sem sair nem falar com ninguém”, diz emocionado: “Não fosse a televisão e o computador e já tinha endoidecido”. Por ter uma incapacidade respiratória de 38%, Francisco entra em estado de fadiga com muita facilidade. Toma 12 comprimidos por dia. Subir as estreitíssimas escadas até ao quarto é já uma ginástica difícil, sair de casa está fora de questão. Ainda se inscreveu num centro de dia, em busca de aconchego para os dias longos e solitários no seu “caixote”, mas “apanhar ar no peito” era entrada certa no hospital. Rendeu-se à fraqueza da saúde, isolou-se na sua ilha. “Estou aqui só, abandonado. ”A rescisão não é reversível. As alterações à lei do arrendamento de Março não protegem Francisco Ramos Pereira: tem mais de 65 anos, mas o contrato não foi feito há mais de 15. A 31 de Janeiro terá de sair. Para onde, ainda não sabe. A narrativa é familiar para a Associação dos Inquilinos do Norte de Portugal. Todas as semanas chegam à instituição da Rua Sá da Bandeira uma média de 70 pedidos de ajuda. E se há uns tempos a maioria dos casos se reuniam no centro histórico e na baixa do Porto, a mancha tem-se alastrado. Alexandra Cachucho, uma dos quatro advogados que fazem atendimentos na associação, tem recebido no seu gabinete cada vez mais gente do Porto Oriental. “Campanhã está a mexer bastante, o Bonfim tem muita gente com processos”, revela. E o problema não será alheio ao crescimento do alojamento local nessas freguesias: em Campanhã há já mais de 150 registos, no Bonfim ultrapassam os 900. Aurora de Jesus e Manuel Casal descem lentamente a Rua do Freixo e estacionam à porta do número 1822. Edifício de traça antiga, entrada majestosa, escadas de madeira largas. Aurora, boina cor-de-rosa e bengala na mão, nunca pensou ver-se neste imbróglio. Quando assinou o contrato de arrendamento, o país vivia ainda numa ditadura: “1 de Setembro de 1971”, especifica Manuel Casal ao consultar a capinha onde juntaram toda a papelada da casa perto da estação de Campanhã. Em Abril, uma carta da senhoria instalava o medo no casal, viúvos dos primeiros companheiros, juntos há já trinta anos. Um advogado da Associação dos Inquilinos tentou atenuar-lhes a ansiedade: têm um contrato antigo, ela tem 83 anos, ele 86. A lei está do lado deles. Mas permanecer é mesmo assim um acto de resistência. E quando as pernas falham e a saúde desbota, as leis parecem valer pouco. “Temos vivido sempre aqui e agora querem tirar-nos a casa”, queixa-se Aurora de Jesus. No prédio da Rua do Freixo, já quase não têm vizinhos. Há muito que o tecto amareleceu, à conta da água por lá acumulada. Uma parte da cobertura ruiu há tempos, outra deixa passar pingos da chuva. A pequeníssima casa de banho fica na varanda. A cozinha é exígua. Mas Aurora e Manuel pouco se importam com isso. A vida têm-na acumulada ali: dezenas de fotografias de tempos passados, bugigangas guardadas como memórias, um cachecol do Sporting na entrada, um lenço de Viana do Castelo, terra de Manuel, a gaiola do pássaro, o rádio antigo e cassetes amontoadas, um quadro com uma frase que parece anseio para dias aziagos: “Haja paz neste lar”. Não tem existido. À noite, quando Aurora de Jesus se deita, “o sono não vem”. A comida parece não passar na garganta. “O meu tempo para cá estar já é pouco, mas querem matar-me mais depressa”, diz devagarinho, como se cada palavra custasse. O rádio ecoa fado e Manuel Casal acena em lamento, mas em busca de uma réstia de optimismo: “Eu é que lhe tenho valido. ” Ele, o irrequieto cão Leonardo, a companhia da televisão. Mas de cada vez que a senhoria se torna assunto, com mais uma proposta de indemnização cujo valor nunca lhes foi dito, tudo parece desmoronar: “Já nos disse três vezes que nos quer fora daqui. ”A estratégia é comum e muitas vezes bem-sucedida. Quando os inquilinos têm mais de 65 anos e 15 de contrato, há apenas duas soluções em cima da mesa para o senhorio, aponta a advogada Alexandra Cachucho: ou “faz o realojamento, uma hipótese que a maioria não gosta, ou chega a um acordo e paga uma indemnização”. A pressão é, muitas vezes, avassaladora. “As pessoas começam a receber cartas e visitas de agentes imobiliários que têm o objectivo de criar desgaste”, aponta. “Gente com 70 e 80 anos ficam muito desestabilizadas do ponto de vista emocional”. E muitos, sem forças, acabam por ceder. Em alguns casos - como os de idosos sozinhos que preferem ir para um lar ou gente a viver em prédios sem elevador que mais dia menos dia teriam de mudar de casa - o realojamento acaba por ser positivo. Mas há quem fique sem alternativa. Quem não queira mesmo sair e se veja obrigado a isso. “Nesses casos, quando não há família nem capacidade financeira para arrendar outra casa, reencaminhamos as pessoas para a Domus [Social]”. Aí começa um outro problema. Em Setembro, a lista de espera para habitação social "ultrapassa[va] os 1000” fogos e a cada ano eram entregues cerca de 300 casas. No Porto há 13 mil fogos de habitação social, onde residem 30 mil pessoas, o que faz da câmara o senhorio de “cerca de 12% do património habitacional da cidade”, disse o gabinete de comunicação da autarquia ao PÚBLICO recentemente. Alexandra Cachucho olha para os últimos anos e vê diferenças importantes. Se em 2012 a pressão era feita mais sobre os contratos de arrendamento antigos, agora também os recentes se tornaram um problema. “Acabam e não são renovados. Muitos senhorios nem têm sequer interesse em negociar um aumento. ” Consequências? “O mercado negro está a crescer”, aponta a advogada. À associação têm chegado nas últimas semanas casos de pessoas que, por falta de alternativa, aceitam morar em casas sem qualquer tipo de contrato. “Ao fim de 15 dias batem-lhes à porta e dizem que têm de sair. E nós pouco podemos fazer”, lamenta. São senhorios sem lei, que tudo exigem porque sentem haver sempre quem aceite: “Costumo dizer que os apartamentos no Porto passaram a arrendar-se em regime de leilão. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Francisco Pereira tem memória de uma outra cidade. Nascido na Rua Fernão Magalhães, o mais velho de cinco irmãos, apaixonou-se pela escola e pelas letras, fez-se “escravo” da biblioteca pública em São Lázaro. Quando acabou a quarta classe preparou um discurso e implorou ao pai para não sair da escola. Ele levantou o dedo indicador, apontou para cada um dos irmãos como quem mostra a inevitabilidade: “Tens de ir trabalhar. ” Ele foi para o Teatro Nacional de São João como carrejão: carregava às costas os painéis de promoção das peças, 30 ou 40 quilos. Depois trabalhou num escritório, passou por uma fábrica de tecidos, fez tropa, casou-se. “Nunca vivi às custas de ninguém. Contribuí para o meu país. E a caminho dos 78 é isto que me dão. ”No ecrã do computador portátil com o qual Francisco Pereira engana a solidão está uma fotografia da bandeira de Portugal. Patriota, inconformado com a emigração dos filhos, já prometeu que há-de morrer na terra onde ganhou vida. Mas agora que se sente abandonado por um país, enreda-se em revolta, perde as forças: “Quem andou não tem para andar”, deixa sair em surdina. Francisco Pereira recupera o fôlego para regressar ao ponto de partida, que é para ele o fundamento de tudo: “Suplico ao Estado. Só quero ter um tecto acima da cabeça. Terei de morrer para isso?”
REFERÊNCIAS:
“Brexit”: Estudo prevê quebra de 26% nas exportações para o Reino Unido
Análise aos efeitos sobre as empresas portuguesas da saída do Reino Unido da UE, promovido pelo CIP, estima impacto negativo entre 0,5% e 1% do PIB nacional. Santos Silva garante que está tudo a ser feito para uma saída com acordo. (...)

“Brexit”: Estudo prevê quebra de 26% nas exportações para o Reino Unido
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Análise aos efeitos sobre as empresas portuguesas da saída do Reino Unido da UE, promovido pelo CIP, estima impacto negativo entre 0,5% e 1% do PIB nacional. Santos Silva garante que está tudo a ser feito para uma saída com acordo.
TEXTO: O divórcio entre Reino Unido e União Europeia não será nada auspicioso para as exportações de Portugal para o território britânico. De acordo com um estudo sobre as consequências do “Brexit” para a economia e empresas portuguesas, promovido pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP), estima-se uma quebra no volume de exportações até 26%. O sector automóvel deverá ser um dos mais prejudicados pela saída britânica que, aponta o documento apresentado esta quarta-feira em Lisboa, terá um impacto negativo entre os 0, 5% e 1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. “A alteração do quadro de relacionamento entre o Reino Unido e UE encerra um risco forte para as exportações de bens e serviços portuguesas, que pode resultar em reduções potenciais das exportações globais entre cerca de 15% e 26%, dependendo do tipo de relacionamento comercial futuro que vier a ser estabelecido”, lê-se no estudo realizado pela Ernst & Young – Augusto Mateus & Associados (EY-AM&A) e intitulado “Brexit”: As consequências para a economia e as empresas portuguesas. Embora sublinhando que as “magnitudes destes efeitos devem ser lidas com cautela”, o documento relembra que o Reino Unido é o 4. º mercado de destino das exportações portuguesas de bens e o 1. º das exportações de serviços. Nesse sentido, “resulta claro um sinal de que os efeitos podem ser muito significativos”. Relativamente aos bens, prevê-se um impacto nocivo mais acentuado nas regiões do Alto Minho, Cávado, Ave e Tâmega e Sousa, seguidos de Trás-os-Montes, Área Metropolitana do Porto e Beiras e Serra da Estrela. Quanto aos serviços, calcula-se um risco mais elevado para a Área Metropolitana de Lisboa, Algarve e Madeira e, num segundo plano, Área Metropolitana do Porto e Coimbra. Os autores do projecto avaliaram as potenciais consequências do “Brexit” por produtos e sectores e concluíram que há três particularmente “sensíveis” ao abandono britânico do clube europeu: o sector dos produtos informáticos, electrónicos e ópticos; o sector de equipamentos eléctricos; e o sector dos veículos automóveis. Quanto aos sectores considerados mais “resilientes” ao “Brexit”, o estudo destaca a silvicultura, a exploração florestal, a pesca, entre outros. Para além disso, há que ter em conta os efeitos da saída do Reino Unido da UE no turismo britânico em Portugal. Dando o exemplo dos “cerca de dois milhões de hóspedes britânicos que passaram por Portugal” em 2016, o documento refere que “a quebra do poder de compra dos ingleses é uma ameaça, dado o impacto na dinâmica turística nacional que tem beneficiado a economia portuguesa e que tem contribuído para que o turismo tenha vindo a assumir uma importância crescente”. O estudo estima ainda reduções de fluxos de investimento directo estrangeiro para Portugal entre 0, 5% e 1, 9% e reduções de remessas de emigrantes entre 0, 8% a 3, 2%. Tudo somado, calcula-se um impacto negativo entre os 0, 5% e 1% do PIB nacional. Na linha da frente dos efeitos nocivos da saída agendada para o dia 29 de Março de 2019 estão países como a República da Irlanda, a Bélgica, Chipre, a Holanda ou Malta – para além de Noruega, esta fora da UE. Portugal faz parte do grupo de Estados-membros cujo impacto económico do “Brexit” é catalogado de “intermédio” ou de “segunda linha”. Uma posição que não deve, no entanto, servir para aligeirar o debate sobre as consequências do divórcio entre Londres e Bruxelas na economia portuguesa. Chris Sainty, embaixador do Reino Unido em Portugal, afirma que só o facto de Portugal “ter exportado mais do dobro para o Reino Unido” do que aquilo que o Reino Unido exportou para território português, faz com que “o impacto da saída seja muito pior para Portugal” do que para os britânicos. Já o economista e coordenador do estudo Augusto Mateus, defende que é impossível o “Brexit” ser “menos clean (limpo) e mais hard (duro)” do que o previsto e estima que todas as partes envolvidas – Reino Unido, União Europeia como um todo e cada um dos Estados-membros – sofrerão perdas significativas durante “pelo menos a próxima década”. “O “Brexit” é e será sempre um jogo de soma zero, não há como fugir a esta realidade”, sublinhou. Nesse sentido, Augusto Mateus sugere, como linhas de actuação fundamentais para Portugal poder apaziguar os efeitos nocivos do “Brexit”, a “proactividade na valorização do Reino Unido como parceiro económico de Portugal” e a orientação para “objectivos claros de diversificação do relacionamento económico” de Portugal com outros mercados e sectores. À lista dos desafios futuros para as empresas portuguesas, onde se inclui o “Brexit”, o presidente do CIP, António Saraiva, acrescenta ainda a multiplicação recente de políticas e programas económicos proteccionistas, a guerra comercial entre Estados Unidos e a China e as consequências do impasse na aprovação do orçamento italiano pela Comissão Europeia. Realidades que, considera, perspectivam “um desaceleramento do fluxo de trocas comerciais” que, por sua vez, “terá um maior impacto em economias menos competitivas”, como a portuguesa. Saraiva pede, por isso, que o Governo português “desenvolva estratégias, em termos de políticas públicas” para “mitigar e corrigir” os efeitos destes fenómenos, e diz que, no caso do “Brexit”, é “essencial chegar a um acordo de saída” com o executivo britânico. Augusto Santos Silva garante que “um cenário de não-acordo” é a “pior alternativa” para Portugal e para a União. O ministro dos Negócios Estrangeiros falou no encerramento da apresentação do estudo e referiu que só não foi assinado um compromisso com Theresa May na última cimeira europeia porque a primeira-ministra e o seu governo “não estavam preparados para o fazer” devido a “questões políticas internas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A melhor maneira de gerir o ‘Brexit’ é através de um acordo de saída”, assegurou o chefe da diplomacia portuguesa. “Um acordo que reduza tudo o que puder reduzir em matéria de tarifas, em matéria de barreiras não alfandegárias e que promova tudo o que poder promover em matéria de circulação de serviços e de abertura de mercados públicos. É esse é o acordo que queremos”, esclareceu. Santos Silva destacou ainda a complexidade do processo negocial – até pela importância das dimensões política e securitária, que diz andarem de mão dada com a dimensão económica – e lembrou que Portugal não está sozinho na negociação, já que faz parte de um grupo que inclui mais 26 Estados-membros, representado pelo francês Michel Barnier. “Não tenho dúvidas de que alcançaria muito facilmente um acordo bilateral com minha contraparte britânica, caso tivesse mandatado para o fazer”, afirmou o ministro socialista, que prefere destacar, no entanto, o que já foi acordado com May: a protecção dos direitos dos cidadãos portugueses a residir no Reino Unido: a verdadeira “preocupação número um” do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
"Brexit": Cuidado com o que desejas
Uma sondagem resultante de várias sondagens recentes indicava que o “Remain” ganharia ao “Leave” por 52% contra 48%. O resultado invertido do referendo de Julho de 2016. (...)

"Brexit": Cuidado com o que desejas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.1
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma sondagem resultante de várias sondagens recentes indicava que o “Remain” ganharia ao “Leave” por 52% contra 48%. O resultado invertido do referendo de Julho de 2016.
TEXTO: 1. "Cuidado com o que desejas. ” O velho provérbio foi utilizado recentemente por um analista britânico, Neal Lawson (na Open Democracy) para resumir o grau de indefinição que continua a envolver o destino do Reino Unido sobre o seu lugar na Europa. A questão pode colocar-se assim: se houvesse outro referendo, como votariam os britânicos? Os que não querem sair, ainda acreditam que, depois de dois anos de confusão e desorientação generalizada, o pragmatismo levá-los-ia a rever a sua posição. Nada de mais incerto. Uma sondagem resultante de várias sondagens recentes indicava que o “Remain” ganharia ao “Leave” por 52% contra 48%. O resultado invertido de Julho de 2016. Demasiado estreito para garantir a vitória. “Pobres dos eleitores britânicos não filiados, que olham para as conferências do Outono [do Labour e dos Conservadores] à procura de inspiração”, escreve a Economist num dos editoriais da sua última edição. “Os dois grandes partidos estão hipnotizados pelo 'Brexit'. ” O Labour já teve a sua conferência anual, que terminou na quarta-feira. Os tories começam hoje a sua, com uma agenda de tema único: como sair. 2. As negociações com Bruxelas entraram num impasse, sobretudo desde o confronto a que se assistiu em Salzburgo, na reunião informal dos líderes europeus. Esperava-se um ambiente de maior conciliação, quando as negociações entram na sua fase final. Houve crispação de parte a parte e, dos parceiros europeus de Theresa May, uma clara rejeição do seu “plano Chequers”, apresentado como a derradeira oferta negocial, mas ainda longe de algumas “linhas vermelhas” contidas no mandato aprovado pelos outros 27 Estados-membros. As dificuldades continuam a estar na “indivisibilidade” do Mercado Único, ao qual o Reino Unido não pode ter acesso apenas nas “liberdades” que lhe convêm, com a questão da fronteira irlandesa como pomo central da discórdia. O Governo britânico continua a insistir em que não haverá qualquer tratamento de excepção para os imigrantes oriundos da União Europeia – a livre circulação é uma das quatro liberdades do Mercado Único. A recusa em estabelecer um controlo de mercadorias algures entre a Irlanda e a Grã-Bretanha, para deixar aberta a fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, abre as portas à liberdade de circulação de mercadorias, que Bruxelas não aceita sem que haja alguma espécie de restrições. Bruxelas espera uma clarificação durante a conferência conservadora. May já avisou que não tenciona alterar o seu plano. 3. O risco maior que envolve as negociações, quando faltam seis meses para a data de saída e apenas meia dúzia de semanas para a data prevista para concluir um acordo, já não parece estar na distância que separa as duas partes. Está, sim, na crescente contestação à primeira-ministra, vinda do seu próprio partido e da incerteza que paira sobre o congresso dos conservadores. Sabe-se que será uma tempestade, faltando apenas saber se de grau 5, com risco de destruição total, ou de grau menos elevado, que deixará destroços, arrancará telhados, derrubará algumas árvores, mas não matará a continuação das negociações conduzidas por Theresa May. Os radicais do "Brexit", dos quais a figura mais emblemática é Boris Johnson, vão para Birmingham dispostos a destruir o “plano Chequers”, que vêem como uma “traição” ou uma “rendição”. Os mais radicais falam em “vassalagem”. Querem um corte total. Com se o Reino Unido passasse a ser, digamos, o Canadá. Será o momento para avaliar quem tem mais apoio nas hostes conservadoras. May endureceu o discurso nos últimos dias, admitindo que é melhor não haver acordo do que um mau acordo. É um caminho perigoso. 4. O congresso do Labour terminou na quarta-feira passada, em Liverpool, sem que se possa dizer que houve uma clarificação da posição do partido sobre o "Brexit". Jeremy Corbyn, que virou o Labour decididamente para a esquerda, tentou evitar um compromisso demasiado explícito. Falhou, em parte, o seu objectivo. Não queria que a conferência abrisse as portas à hipótese de um segundo referendo com a mesma pergunta: ficar ou sair. A pressão das bases, mais a intervenção de alguns dirigentes importantes, entre os quais Keir Starmer, o ministro-sombra para o "Brexit", acabaram por levar à adopção de uma moção que não exclui essa possibilidade. Muitos membros do Parlamento, sobretudo os que são eleitos em círculos mais distantes das grandes metrópoles ou nos antigos bastiões industriais do Norte da Inglaterra, duvidam que haja uma mudança de sentido do voto entre os seus eleitores, muitos dos quais votaram pela saída. Uma boa parte das bases do partido, incluindo as mais jovens ou o que resta do New Labour, insistem em que ainda é possível reverter o processo. “Sim a Corbyn, não ao Brexit” - frase bem legível em muitas T-shirts nas ruas de Liverpool. Corbyn, que vem da velha ala esquerdista do Labour dos anos 1980, nunca gostou da Europa (votou contra a adesão, submetida a referendo em 1975) e, mesmo reconhecendo que os tempos mudaram, não é um entusiasta. O seu objectivo é ganhar as eleições. O que lhe interessa são as reformas económicas radicais que foram aprovadas na conferência. O "Brexit" adapta-se. “Bruxelas desenrolou a passadeira vermelha para Jeremy Corbyn”, escreve o site Politico. eu, referindo-se ao encontro do líder trabalhista com Michel Barnier, na quinta-feira. O negociador europeu afirmou que “não estava a negociar”, apenas a “recolher opiniões”. Mas, como refere o mesmo site, receber com pompa o líder da oposição dois dias antes do início do congresso do Partido Conservador britânico onde May joga a sua sorte, não é propriamente um acto amistoso para a primeira-ministra britânica. “Cuidado com o que desejas” é um aviso que também se pode aplicar à União Europeia. Nem o europeísmo de Corbyn é de molde a fazê-lo correr riscos políticos pela Europa; nem a opinião pública britânica, alimentada há décadas pela fúria antieuropeia dos tablóides, mas também por um sentimento de orgulho (legítimo) no seu passado europeu, se deixará simplesmente vencer pelo puro pragmatismo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. 5. Não há tema mais divisivo na política britânica do que a Europa. Sempre foi assim desde o fim da II Guerra, quando a integração europeia passou do sonho à realidade como o único caminho para evitar que os europeus se autodestruíssem ciclicamente. Foi Winston Churchill quem apelou aos Estados Unidos da Europa no Congresso de Haia, em 1948. Com uma ressalva: o velho leão britânico deixava de fora o seu país. Dois anos antes, noutro célebre discurso em Fulton (Missouri), Churchill tinha avisado para a nova ameaça que as democracias europeias enfrentavam: “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro caiu sobre o continente…”. A Guerra Fria e a economia foram os dois grandes motivos para a adesão do Reino Unido à então Comunidade Europeia, que se concretizou apenas em 1973, depois de De Gaulle ter abandonado o Eliseu e levado consigo o veto à entrada de um país que, apesar de ter ajudado a salvar a França do opróbrio, continuava a ver como um “cavalo de Tróia” dos americanos. O Partido Conservador teve líderes com um profundo sentimento europeu, como Edward Heath, que liderou as negociações de adesão. Nos anos 1980 e parte da década seguinte, o Labour foi consistentemente antieuropeu, como era anticapitalista e antimilitarista. Em 1994, Tony Blair mudou de rumo. Durante os seus 10 anos de mandato, o Reino Unido ganhou uma influência crescente, por vezes decisiva, nas decisões tomadas em Bruxelas. Nesses anos, os conservadores foram mudando de líder a cada derrota, com a Europa a “amarrá-los” ao estatuto de oposição. David Cameron representava uma nova geração igualmente eurocéptica mas muito longe de pretender abandonar o barco. Jogou a Europa na roleta do referendo para acalmar internamente o seu partido. Nunca esperou o resultado. As consequências da sua decisão continuam a ensombrar os conservadores e o seu país.
REFERÊNCIAS: