Ney, camaleão excelentíssimo
Atento aos Sinais, que esgotou na noite de 7 de Maio o Coliseu de Lisboa (estará no do Porto no dia 10), mostra Ney Matogrosso no zénite da sua luminosidade. (...)

Ney, camaleão excelentíssimo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2014-05-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Atento aos Sinais, que esgotou na noite de 7 de Maio o Coliseu de Lisboa (estará no do Porto no dia 10), mostra Ney Matogrosso no zénite da sua luminosidade.
TEXTO: Atento aos Sinais Ney Matogrosso Coliseu de Lisboa, 7 de Maio 5 estrelasQuem assiste aos espectáculos de Ney Matogrosso em Portugal, desde a sua estreia em 1983, no Coliseu, já lá vão três décadas, não pode deixar de notar que o tempo lhe tem trazido um refinamento que nada tem a ver com acomodação ou rotina, pelo contrário, dá a cada uma das suas apresentações o tom, mais ou menos exuberante, de um começo. Dos momentos de maior “exposição exagerada”, como ele lhes chama, aos de maior recato (como se à calmaria tivesse sempre de suceder a tempestade e vice-versa), Ney recria-se e renova-se nesse personagem feérico que ele próprio inventou, erguendo cada novo espectáculo com excelente minúcia. O actual, Atento aos Sinais, dá de algum modo continuidade à exuberância de Inclassificáveis (pelo meio houve Beijo Bandido, mais suave, porém não menos intenso) mas, em termos de cenário e figurinos, tem novos e acertados recursos: projecções (quatro enormes telas vídeo, verticais, no fundo do palco) e luzes extraordinariamente sincronizadas com as flutuações musicais. Sem concessões, o espectáculo recria o disco (que, por sua vez, embora gravado em estúdio, nasceu da rodagem do espectáculo no início de 2013). Ney surge no palco numa vertigem de animal alado com Rua da passagem (trânsito) e explode literalmente em Incêndio, enquanto pela tela passam imagens de um mundo em forte convulsão, das Primaveras árabes à Nigéria. Vida louca, vida breve (que Lobão escreveu e Cazuza celebrizou) foi o tema seguinte, fortíssimo, intenso: “Vida louca vida/ vida breve/ já que eu não posso te levar/ quero que você me leve. ” Roendo as unhas, samba de Paulinho da Viola transfigurado por Ney, abriu caminho à belíssima e melancólica Noite torta, de Itamar Assunção (quem ouviu Caetano, na mesma sala, cantar Estou triste, poderia ter estabelecido um paralelo na atmosfera criada): “Minh’alma chora/ lá fora, está tão gelado. ” A ilusão da casa, de Vítor Ramil, prolongou o fascínio e a melancolia, já depois de vermos Ney sombrio e magistral, silhueta negra sob um intenso foco de luz azul, enquanto os sopros elevavam a canção por sobre o tremolo misterioso da guitarra. E o camaleão, excelentíssimo, trocou de pele: as vestes negras deram lugar à prata, num “strip” calculado para agarrar o público (e feito junto a uma cadeira de espaldar alto, toda ela revestida a espelho), enquanto se ouviam assobios como nos cabarés. Ney sorriu, giocondidamente, e passou à frente. Ou seja, a Two naira fifty kobo, de Caetano, bem a propósito quando o Brasil anda revolvido por “Copa” e futebol: “No meu coração da mata gritou Pelé, Pelé/ faz força com o pé na África”. E a África, exuberante, nas telas, seguida por imagens de índios da Amazónia, mulheres e bebés na água, felizes. Freguês da meia-noite, de Criolo, e Isso não vai ficar assim, de Itamar Assunção, guinaram ao amor e aos seus sinais, evoluindo de um bolero e acabando com o cantor junto à plateia a ser salpicado por pétalas de rosas vermelhas por uma admiradora, enquanto cantava “Beije-me, beije-me muito/ como se fosse esta noite… la ultima vez. ” Piscadela de olho à velha canção mexicana de Consuelo Velásquez. Não era a última noite, claro. Do “happening” Ney trouxe uma rosa, inteira, consigo para o palco. Nas canções, o lugar era já dos novos. Depois de Criolo, ouvimos Beto Boing (Pronomes, com Ney a simular ondulações do sexo à boca do palco), Jerry Espíndola (Beijos de ímã, com duas bocas a preto e branco, na tela, a trocarem beijos) e Rafael Rocha (Não consigo, numa atmosfera sensualmente densa e vibrante). Para ficar ainda pelos novos, Ney apresentou Tupi fusão, do rapper alagoano Vítor Pirralho, alegoria à chegada dos portugueses ao Portugal mas olhada do ponto de vista dos índios. O resto continuou como no disco: primeiro o divertido Samba do Blackberry (um sujeito que se queixa porque a mulher o trocou por um telemóvel) e Todo o mundo o tempo todo, final perfeito para o concerto. Mas não era o final. Com a sala às escuras passaram, um a um, nas telas, evitando a apresentação oral do costume, os nomes e imagens dos músicos. E que músicos! Sacha Amback (teclas), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussões), Maurício Negão (guitarra), Dunga (baixo), Everson e Aquiles Moraes (sopros). Tal como com os figurinos e luzes, a exigência de Ney com os músicos é acertada e total.
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Os meninos que calçam as chuteiras da pátria
São rapazes privilegiados que transformaram a brincadeira de criança na profissão que muitos ambicionam. Os jogadores da selecção de futebol vão à África do Sul cumprir um desejo antigo, estar no Mundial, mas carregam a responsabilidade de representar uma nação inteira. Para o bem e para o mal. (...)

Os meninos que calçam as chuteiras da pátria
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: São rapazes privilegiados que transformaram a brincadeira de criança na profissão que muitos ambicionam. Os jogadores da selecção de futebol vão à África do Sul cumprir um desejo antigo, estar no Mundial, mas carregam a responsabilidade de representar uma nação inteira. Para o bem e para o mal.
TEXTO: Certo dia perguntaram à escritora e teóloga alemã Dorothee Sölle como é que explicaria a uma criança o que é a felicidade: "Não explicava", respondeu ela: "Atirava-lhe uma bola de futebol para brincar. " Esta resposta talvez ajude a perceber por que razão os jogadores da selecção nacional foram chegando à Covilhã, onde decorre o estágio de preparação para o Mundial deste ano, com um sorriso na face e os olhos brilhantes. Talvez ajude a entender a razão de milhares de pessoas passarem uma manhã de sol a ver um simples treino de sete jogadores. Talvez ajude a compreender por que tantas pessoas se amontoam à saída do Complexo Desportivo da Covilhã para, pelo buraco da vedação, conseguir um autógrafo dos craques. Um aceno de mão de um jogador, uma rubrica numa bola, uma simples foto, um treino, um jogo ou uma final. Uns duram segundos, outros hora e meia, mas todos estes são momentos em que se une a paixão comum pelo futebol. De quem joga e de quem vê. De quem cumpriu o sonho de chegar à selecção e de quem nunca concretizou (ou de quem espera concretizar) o desejo de ser futebolista. O que significa, afinal, representar a selecção? "Significa que estou a concretizar um sonho", disse Miguel Veloso, médio do Sporting, nas primeiras palavras quando chegou ao estágio. "É o dia mais feliz da minha vida", garantiu Liedson, um avançado nascido no Brasil mas que joga com a camisola de Portugal. "Tinha o sonho de um dia estar presente num Mundial e felizmente esse dia chegou", acrescentou Pedro Mendes. E o desfile de frases podia continuar, porque cada um dos 24 futebolistas convocados pelo seleccionador Carlos Queiroz foi, com maior ou menor intensidade, abrindo o coração. Os sentimentos fortes não se resumem, no entanto, a quem está do lado de lá da vedação - o lado dos que andam no autocarro laranja da selecção, dos que são aplaudidos (ou assobiados), dos que são protegidos por seguranças (como se de obras de arte se tratassem), dos que chegam ao estágio de Ferrari (como Hugo Almeida) ou de helicóptero (como Cristiano Ronaldo). O futebol na vidaDo lado de cá, também há emoções fortes. Mesmo num estágio que é apenas um momento preparatório. Mesmo quando Queiroz ainda só tinha sete jogadores para treinar, o entusiasmo era grande. "Nani, Nani. " "Liedson, Liedson. " Crianças pequenas, de infantários e escolas do 1. º ciclo, gritam pelos craques logo no primeiro dia do estágio. E ainda faltava um mês para o Mundial, que se inicia a 11 de Junho. Sentado na bancada do campo da Covilhã, Miguel Galvão, de oito anos, olha os craques no primeiro treino da selecção. "Gosto de jogar à bola. Se pudesse, jogava de manhã à noite. Lá na escola até jogamos na lama", conta. Ainda é novo, mas já joga no Clube Académico do Fundão. Quer ser futebolista e o pai não se importa: "Vou ser o empresário", diz o pai, Cristóvão, não escondendo o sorriso. Um pouco ao lado, Diogo Rabasquim, de dez anos, segue pelo mesmo caminho. "Se puder, quero ser futebolista. " Mas porquê futebolista? A mãe de um outro miúdo haveria de dizer que é porque "se ganha bem", mas a inocência infantil guia-se por objectivos mais nobres e menos materialistas: "Gosto mais de futebol do que de outras actividades", justifica Diogo. "Gosto mais de actividades desportivas", completa o raciocínio, com um ar professoral, inesperado num miúdo de dez anos. Miguel e Diogo são apenas duas das 150 mil pessoas que em Portugal praticam futebol, de forma oficial (inscrita na federação) - o número inclui praticantes de futebol, futsal e futebol de sete masculinos e femininos. Mas há muitos mais a praticar este desporto de modo informal, nas escolas e nas ruas, nos pavilhões e nas praias, em grupos de amigos ou em jogos de empresas. Voltando a Miguel e a Diogo, e à ambição de ser futebolista, podemos dizer que as aspirações destes rapazes em 2010 não são muito diferentes dos desejos de outros que viveram a infância nos anos 1980 e 1990. Mesmo dos que estão hoje na selecção nacional. "Não sei se foi o futebol que entrou na minha vida ou se foi a minha vida que entrou no futebol. Certo é que, além dos habituais esconde-esconde e pega-pega [escondidinhas e apanhadas], eu não fazia mais nada a não ser bater babas [jogar à bola] com os amigos. De manhã, à tarde e à noite", conta Liedson na autobiografia, escrita pelo jornalista João Almeida Moreira. Liedson era um menino magrinho, no estado da Baía, no Brasil. Do outro lado do Atlântico, a mais de 5000 quilómetros, e alguns anos mais tarde, outro rapaz igualmente magricelas sentia a mesma atracção por esse objecto esférico que pode explicar a felicidade. "A bola sempre foi a minha melhor amiga. Para além de jogar futebol nos intervalos da escola, eram muitas as vezes que me escapava sorrateiramente às aulas para brincar com ela, inclusive na pré-primária, em que frequentei um colégio de freiras", lê-se na autobiografia de Cristiano Ronaldo, escrita por Manuela Brandão. "A primeira coisa que fazia quando regressava a casa era atirar com a mochila para o sofá ou para a cama do meu quarto, agarrar numa banana e num iogurte, fazer um "furinho" no fundo da embalagem e, com a bola debaixo do braço, correr para a rua. Sim, porque era na rua que eu jogava. Ou melhor, na estrada da Quinta do Falcão, onde nasci. "A atracção de muitos miúdos pela bola é quase inexplicável. Num destes domingos, enquanto decorria o treino da selecção na Covilhã, um menino de dois anos dava chutos na bola nos corredores de acesso às bancadas. Mal consegue falar, mas já sente aquele prazer (a felicidade, nas palavras de Dorothee Sölle) de içar a perna e pontapear aquele objecto esférico (e não redondo, como meio mundo diz). Uma felicidade que não andará muito distante daquela que Liedson, Ronaldo, Deco, Pedro Mendes, Hugo Almeida e muitos outros futebolistas da selecção viveram quando eram crianças. "Costumava imitar o Zico e o Maradona", disse à Pública Deco, que tem memórias vagas do Mundial de 1982 (tinha cinco anos) e recordações bem presentes do México 1986, em que Maradona levou a Argentina ao título mundial. "É tão bom sonhar"Pedro Mendes é quase dois anos mais velho do que Deco (tem agora 31) e dois anos fazem toda a diferença nas memórias do Mundial. "Tenho vagas ideias do Mundial de 1990, mas o mais antigo de que me recordo bem foi o de 1994, talvez por causa do penálti falhado pelo Roberto Baggio na final com o Brasil", diz este médio, recordando os jogadores que foi apreciando ao longo de vários Mundiais. "Gostava de ver o Redondo na Argentina, o Zidane pela França, o Ronaldo Fenómeno pelo Brasil. Gostei de ver quando o Owen aparece contra a Argentina e marca aquele golo [em 1998]. "Estas são memórias do Pedro Mendes criança e adolescente, que nem sonhava ainda com o Mundial. "Comecei a jogar com oito ou nove. Jogava no Vitória de Guimarães e quem eu mais idolatrava eram os jogadores do Vitória. Ia ver os treinos e havia aquela adoração", lembra o jogador: "Longe de mim pensar que iria estar num Mundial. Não fazia parte dos meus planos a curto prazo. "Hugo Almeida é um caso diferente. O avançado do Werder Bremen, que completou 26 anos neste mês, é um sonhador assumido. "É tão bom sonhar", suspirou, no dia de aniversário, em conferência de imprensa. Antes disso, já ele tinha confessado à Pública que desde miúdo pensava em representar a selecção. Mesmo quando tinha apenas dez anos e viu Roberto Baggio falhar o penálti na final de 1994 e Maradona ser apanhado com doping. "É o primeiro Mundial de que me lembro. "Nascido na Figueira da Foz, Hugo Almeida é um fã de Mundiais e de cadernetas de cromos. "Ainda hoje colecciono. Vou fazer a colecção do Mundial 2010", revela. "Agora é mais fácil, porque há mais sítios onde comprar. Antigamente era mais emocionante. Tinha de trocar os cromos na escola com os meus amigos. E só trocava se me dessem "x" cromos em troca. "Este fascínio pelos cromos é mais um ponto de ligação entre quem joga e quem idolatra. De um lado, o cromo - Hugo Almeida é o 561. Do outro, o coleccionador. Hugo Almeida é um e outro. E quando colecciona não é muito diferente de Miguel Galvão, o miúdo de oito anos, que na bancada do Complexo Desportivo da Covilhã se apercebe que deixou a caderneta dos cromos em casa: "Ainda tenho poucos. Comecei a fazer [a colecção] há pouco tempo, mas queria um autógrafo do Miguel Veloso", diz Miguel Galvão, sempre de olho no seu jogador preferido. Miguel Veloso era um miúdo traquinas, que partia as árvores em casa do pai, porque as usava como baliza. A história foi contada por António Veloso, ex-futebolista do Benfica, numa entrevista há dois anos ao site Maisfutebol. A mesma em que Miguel, o filho, recordou os tempos de criança, em que procurava autógrafos. "Quando tinha a idade deles e via um ídolo, fazia o mesmo. Agora os papéis inverteram-se. Sinto-me contente e lisonjeado. " Miguel Veloso partia árvores. Afonso Dias, de 12 anos, um rapaz que foi assistir a um dos treinos da selecção com os colegas da escola, estraga sapatilhas. Veio do Tortosendo, uma localidade nos arredores da Covilhã. - Quem são os teus jogadores preferidos?- Ronaldo, Nani e Liedson. - Queres ser o quê quando fores grande?- Futebolista. - Porquê?- Porque gosto de jogar. - Costumas jogar à bola?- Sim, nos intervalos das aulas. E também fora da escola. (Conta, sentado na bancada atrás da baliza. ) - E jogas onde?- Há um campo no cabeço. (Diz ele, recorrendo a uma palavra muito beirã. ) - Os teus pais não se importam?- Não. Só quando estrago as sapatilhas. - Gostavas de jogar pela selecção nacional?- Isso é que era, pá. Seria fixe. - E já imaginaste como seria vestir a camisola da selecção, entrar em campo num Mundial?- É pá, isso agora. . . Isso agora é demasiado rebuscado para a imaginação de um rapaz de 12 anos que está mais concentrado nas bolas que vão caindo na bancada - os jogadores estão a treinar livres e nem sempre acertam na baliza - do que na conversa com o jornalista. Mas ainda há tempo para mais duas perguntas. - O que é que gostas mais nos jogos da selecção?- Dos golos. E do hino. - Do hino? Sabes cantar o hino?- Sei. E desata a cantar, em plena bancada: "Heróis do mar/ Nobre povo/ Nação valente e imortal. . . " A certo ponto, pára e pergunta: "Já chega?"Já chega, sim senhor. Afonso vai à sua vida. E a sua vida é amontoar-se junto aos painéis de publicidade, ansiando por um autógrafo dos jogadores. É um daqueles (raros) momentos em que podem aproximar-se dos futebolistas, tocar-lhes, levar uma recordação para casa. Vuvuzelas, o chifre de kuduAfonso, Miguel, Diogo e muitos outros milhares de alunos das escolas da Covilhã receberam bilhetes para os treinos. Os ingressos são gratuitos, mas, como as entradas são limitadas a cerca de três mil espectadores, só quem tiver o "papelinho" mágico pode entrar no recinto dos treinos, isto claro quando as sessões são abertas aos adeptos. A maioria não é, porque o segredo é a alma do negócio e o seleccionador quer trabalhar tranquilamente. Quem não consegue lugar para assistir ao treino contenta-se a ver os jogadores a entrar no autocarro. Era assim no domingo, à porta do Hotel Turismo da Covilhã, um dos dois hotéis reservados para a selecção. Um a um, os jogadores iam saindo do hotel rumo ao autocarro. Cada aceno era festejado como se fosse um golo. "Apanhei o Ronaldo de lado", contava Sílvia, que fez 70 quilómetros, de Castelo Branco à Covilhã, só para ver os craques por uns segundos. Manuela Santos e a família ainda vieram de mais longe. Do Porto. Só para ver a selecção? "Sim. Como a selecção está cá, viemos passar o fim-de-semana à Covilhã. "É por casos como este que a cidade serrana está mais movimentada. O presidente da câmara, Carlos Pinto, reconhece que não é a vinda da selecção que vai resolver a crise em que vivemos, mas confia que pode retirar benefícios para o futuro. E, pelo menos por estes dias, a Covilhã é uma cidade diferente. Por todo o lado, há bandeiras de Portugal. Nos stands de automóveis, nas montras das lojas, nas janelas e em algumas casas. A mascote da cidade, com as cores da selecção, é exibida na principal rotunda da cidade e a toda a hora scooters de patrocinadores da selecção passeiam-se pelas ruas. Até fora do centro da Covilhã, há um cheiro a Mundial. Mesmo em Boidobra, Tortosendo e Canhoso, localidades dos arredores com nomes sonoros e desconhecidos, há cachecóis e bandeiras da selecção, especialmente nos cafés e restaurantes. E até vuvuzelas, essa corneta sul-africana que promete ser uma das estrelas do Mundial. Para já, são todas laranjas, da cor de um dos patrocinadores da selecção, e ouvem-se frequentemente pela Covilhã. Na África do Sul, as vuvuzelas terão tido origem no chifre de kudu (um antílope) que antigamente era usado para chamar os habitantes das aldeias para as reuniões. Há já alguns anos, tornou-se num instrumento de apoio às equipas desportivas em África (lembram-se dos jogos da Taça das Nações Africanas?) e agora está a disseminar-se pela Europa. Na Covilhã, há adeptos que já sabem soprar na vuvuzela. Usam-na para dar colorido sonoro aos treinos e jogos. E até para chamar pelos jogadores, se bem que captar-lhes a atenção não é fácil. Há sempre cordões de segurança em redor da equipa, seja nos hotéis ou nos locais de treino. "As pessoas têm de compreender, porque estamos aqui para trabalhar", diz Carlos Godinho, director desportivo da Federação Portuguesa de Futebol (FPF). À volta dos jogadores estão sempre os seguranças. Ao todo, uma centena de elementos da PSP, GNR e de uma empresa de segurança estão no terreno para evitar problemas. O esquema de segurança (e não só) é condicionado por outra particularidade. O estágio da Covilhã divide-se por dois hotéis. Os jogadores dormem nas Penhas da Saúde, a 1550 metros de altitude, já a caminho da Serra da Estrela. Todos os dias de manhã descem a estrada serpenteante até à Covilhã e à noite fazem o percurso inverso, tendo oportunidade de contemplar uma paisagem inspiradora. É um local "calminho e porreiro", com o definiu Nani, um dos primeiros jogadores a integrar o estágio. Durante o dia, os jogadores têm estado na Covilhã. A treinar ou em repouso no Hotel Turismo, onde também há ginásio e piscina para lazer e recuperação. É lá que Pepe tem feito boa parte do seu trabalho de recuperação. Voltando à serra, e se não quiserem apenas ficar a pensar no futuro enquanto olham para a vista deslumbrante das Penhas da Saúde, os jogadores têm muitas formas de ocupar os tempos livres. Bilhar, matraquilhos, consolas Wii e PlayStation. Há sempre as tradicionais cartas e, claro, o pingue-pongue, de que Nani já falava ainda antes de Cristiano Ronaldo chegar à Covilhã. Os ex-companheiros de equipa no Manchester United costumam jogar ténis de mesa e, no estágio, não perderam o hábito. "Já houve alguns jogos. Ele [Cristiano Ronaldo] sempre foi melhor. Jogámos jogos equilibrados mas ele ganhou. Nunca desisto e continuo com esperança de ganhar", contou Nani, o mais "brincalhão" da selecção. Carlos Queiroz já tinha revelado numa entrevista ao jornal A Bola que o avançado dos Red Devils é o mais extrovertido e agora há informadores independentes que o podem confirmar. São jovens jogadores do Sporting da Covilhã e da Associação Desportiva da Estação (ADE), que foram chamados aos treinos da selecção. Primeiro, para se treinarem com os sete jogadores que estiveram a trabalhar na primeira semana do estágio, e alguns depois, para ajudarem em exercícios de recuperação com Pepe. "O Nani foi o que falou mais connosco. É muito divertido. Está sempre na brincadeira e até jogámos pingue-pongue com ele", conta Renato Silva, um jovem de 18 anos, jogador da ADE e estudante no 12. º ano. Os dez jovens jogadores, a que se juntaram depois mais alguns, nunca tinham sonhado sequer com a possibilidade de se treinarem com os ídolos. "No início, pensei que era brincadeira. Só depois é que percebi que podia mesmo acontecer", acrescenta Renato, que está a pensar concorrer a um curso na área da Gestão ou Economia. Rui Silvestre, também da ADE, foi outro dos privilegiados e diz que foi a melhor prenda de aniversário que já recebeu. Fez 19 anos no primeiro dia em que trabalhou com a selecção. "Foi uma semana marcante, que não se irá repetir", acrescenta este estudante, futuro candidato ao curso de Fisioterapia. Rui até marcou um golo num treino, algo inesquecível. "Ouvi palmas de 3000 pessoas. Deu para viver um bocadinho como é estar num Mundial. Vivemos momentos de fama, com aquele apoio do público", reconhece. Fama é, aliás, algo que não falta aos jogadores da selecção. Aparecem na televisão a toda hora, em anúncios ou notícias, a mostrar as casas luxuosas, os carros desportivos ou a peça de roupa de última moda. São membros do star system português, modelos para os jovens. Como escreveu o escritor uruguaio Eduardo Galeano, "[o futebolista] aparece nos jornais e na televisão, as rádios dizem o seu nome, as mulheres suspiram por ele e as crianças querem imitá-lo". É um dos lados da vida deles. Mas também há outro, menos acolhedor. Não têm direito "a cansar-se, nem a enganar-se", disse o mesmo Galeano. E essa exigência ficou à vista no jogo particular, frente a Cabo Verde. Os adeptos dão apoio, mas querem golos e vitórias em troca. Um empate a zero sabe a pouco. Foi, é e será sempre assim. As palmas e os assobios ao sabor dos resultados, as discussões nos cafés, as conversas à mesa, os comentários na Internet, as críticas aos treinadores e jogadores pouco apreciados e a defesa dos jogadores queridos são apenas os primeiros sinais da febre do Mundial. O momento em que, como postulou o escritor brasileiro Nelson Rodrigues, a pátria fica de calções e chuteiras. Neste caso, 23 jogadores representam dez milhões. Ou, pelo menos, os milhões (não sabemos quantos) que gostam de futebol. Cristiano Ronaldo, o capitão e ícone da selecção, já prometeu um grande Mundial. E também já revelou como gosta de enfrentar estes momentos. Publicou-o na autobiografia, em tom de compromisso. "Eu, Cristiano Ronaldo, gosto de me ver como um miúdo. Hei-de lutar para sê-lo sempre, mesmo que a idade o contrarie, porque só dessa forma acredito ser possível encarar as adversidades com mais leveza e optimismo. " E será assim que meninos anónimos transformados em adultos famosos e pagos principescamente vão jogar à bola. Já não em campos pelados, mas nos estádios sul-africanos a partir de 11 de Junho. Já não na brincadeira, mas muito a sério. Porque há milhões de euros em jogo e contratos milionários a defender. Porque são os representantes de uma nação desejosa de triunfos. Porque são eles que calçam as chuteiras da pátria. E, no fundo, porque, parafraseando Nelson Rodrigues, a selecção "representa os nossos defeitos e as nossas virtudes". Para o bem e para o mal.
REFERÊNCIAS:
Os cromos que não vão ao Mundial
Estão cansados, estão gordos, estão velhos, estão lesionados ou ainda mais simples do que isso: Maradona não vai com a cara deles. (...)

Os cromos que não vão ao Mundial
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-06-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Estão cansados, estão gordos, estão velhos, estão lesionados ou ainda mais simples do que isso: Maradona não vai com a cara deles.
TEXTO: Ainda faltam alguns dias para o início do Campeonato do Mundo, transformado numa ampulheta que deixa escapar estrelas por entre os dedos. Cromos em falta: 46, 67, 78, 104, 113, 114, 135, 186, 190, 196, 260, 264, 267, 268, 269, 325, 415, 417, 500, 502, 504, 540, 549, 554, 572, 618. . . Lançar a caderneta oficial de um Campeonato do Mundo a semanas de distância do pontapé de saída significa rasgar carteiras e colar autocolantes de uma série de jogadores que nem sequer estarão na África do Sul. Tarefa ingrata a da Panini (a editora da dita caderneta). Para a posteridade, fica mais uma colecção que não tem uma bola de cristal, que não adivinha quem pendurará as chuteiras, quem rebentará com a escala da balança lá de casa, quem andará com más companhias, quem não fará parte da lista de amigos Facebook de Diego Armando Maradona ou quem contrairá o vírus unglück (azar) na Alemanha. Ainda faltam algumas dias para o início de tudo. E nada garante que não tenhamos que arrancar mais alguns cromos aparentemente bem colados. Nos últimos dias, soltou-se o cromo de Rio Ferdinand (n. º 186), cuja lesão no joelho esquerdo fez cair outro capitão inglês (o "escandaloso" John Terry foi o primeiro), descolou-se o do nigeriano Obi Mikel (n. º 135), também com problemas num joelho, e perdeu força a cola que segurava Didier Drogba (n. º 542), Andrea Pilro (n. º 422) e Arjen Robben (n. º 348), trio supostamente recuperável. Por muitas voltas que se dê à caderneta, o plano das páginas 30 e 31 será sempre o menos fiel à realidade deste Mundial - e Joachim Löw o menos afortunado dos seleccionadores. Semana após semana, Löw, natural de Schönau, na Floresta Negra, foi riscando a vermelho nomes da sua lista. Ao contrário de muitos outros seleccionadores, o alemão não deu más notícias a quase ninguém (tirando talvez Kevin Kuranyi e Torsten Frings). Recebeu-as. A conta-gotas. Kevin-Prince Boateng. Durante muito tempo, os adeptos alemães não esquecerão o nome do jogador do Portsmouth que atirou para a enfermaria Michael Ballack, médio do Chelsea, capitão e estrela alemã. Aconteceu na final da Taça de Inglaterra, jogo que encerrou a temporada em Inglaterra. Foi protagonizado por dois jogadores alemães. E só um deles vai ao Mundial: Ballack, 98 internacionalizações, tão cedo não poderá atingir a centésima; Boateng, origens ganesas, será adversário da Mannschaft no Grupo D. . . Frustrado com o estado do tornozelo direito de Ballack (cromo número 268), Löw terá ainda que lidar com as ausências forçadas do defesa Heiko Westermann (n. º 264), do médio Simon Rolfes (n. º 267) e principalmente de Rene Adler (n. º 260), potencial titular da baliza alemã, isto para não falar da última vítima, Thomas Hitzlsperger (n. º 269), um dos poucos que perderam a vaga sem andar de muletas (não atingiu os mínimos ao serviço da Lazio). Entre as faltas de comparência no Mundial, muito poucos gozarão de um estatuto equivalente ao de Ballack nas respectivas selecções. Um deles é certamente Essien (curiosamente também é Michael, também é jogador do Chelsea, também disputaria o Grupo D e também ficará de fora devido a lesão), o mais influente ao serviço da selecção do Gana. "Privados do seu líder, os meus jogadores deverão ser mais inteligentes, mais combativos, deverão estar a 200 por cento", disse o seleccionador Milovan Rajevac. O mesmo poderia dizer-se de David Beckham, que há pouco tempo foi apresentado ao seu tendão de Aquiles, mas a verdade é que a recente lesão do jogador" dificilmente será sentida nos relvados deste Mundial, onde provavelmente Fabio Capello já esperaria mais de "Becks", de 34 anos, como mestre-de-cerimónias da comitiva inglesa do que como médio-do-pé-de-ouro. Aos saltos desde que saiu do Real Madrid, Beckham (cromo n. º 190) dificilmente seria a estrela na África do Sul - não tinha sequer garantida a presença na equipa de Capello -, onde o inglês "apenas" coleccionaria o seu quarto e último Campeonato do Mundo. Diplomata, o italiano Fabio Capello lamentou a pequena tragédia e seguiu em frente, agradecendo igualmente a Paul Scholes ("Tentámos convencê-lo a regressar, mas ele disse não. Prefere ficar com a família. Tentámos", disse Capello) a entrega em anteriores Mundiais. Com a boca aberta ficou Theo Walcott (n. º 196), cujo nome caiu no último desbaste da convocatória inglesa. O jovem de 21 anos tinha sido responsável, por exemplo, por um memorável hat-trick contra a Croácia, na qualificação para o Mundial. Dunga e MaradonaNão há memória de uma convocatória consensual. Uma utopia. "Alguém tem que ficar de fora", dizia Carlos Queiroz, na Covilhã, instantes depois de ditar uma lista de 24 jogadores na qual não constava nem o lesionado Bosingwa (cromo n. º 549) nem o até então confiante João Moutinho (n. º 554), que, segundo os informadores da Panini, também viajaria para a África do Sul. Vários ilustres foram ficando de fora das listas, cada vez mais magras no decorrer das últimas semanas. Chamaram a atenção as ausências de Francesco Totti, do holandês Ruud Van Nistelrooy, do francês Karim Benzema, de Marcos Senna, cuja nacionalidade espanhola parece ter perdido o prazo de validade. . . Muitos deles nem sequer chegaram a fazer parte do grupo de 30 pré-seleccionados. Todos eles terão que ver o Mundial através da televisão. Mas as escolhas de Dunga no Brasil e de Maradona na Argentina foram aquelas que mais pó levantaram. Danny Jordan, director executivo do Comité Organizador do Mundial, chegou a criticar publicamente Dunga por não ter convidado Ronaldinho Gaúcho (cromo n. º 500) a fazer parte da festa. "Às vezes penso que estes treinadores acreditam que são deuses e precisam demonstrar que podem fazer qualquer coisa, boa ou má", comentou, apelidando Ronaldinho de "génio do futebol" e dizendo que Dunga está "cego pelo poder". A jogada do seleccionador brasileiro apanhou desprevenida inclusive a Nike, que, em vão, pagou a Kobe Bryant para imitar o baile de Ronaldinho no incrível anúncio Escreve o Futuro. Dunga justificou-se, falando de renovação - a renovação que lhe exigiram em 2006, no rescaldo do Mundial. "Encerrámos um ciclo e trouxemos jogadores com atitude, compromisso e paixão pela camisola. " Consequência directa: Adriano (cromo n. º 504). Massimo Moratti foi outro dos indignados de alta patente. "Sentido", o presidente do Inter insurgiu-se contra a falta de comparência de Javier Zanetti (n. º 113) e de Esteban Cambiasso (n. º 114). "Recuso-me pensar que Maradona os tenha poupado em benefício do Inter", disse Moratti ainda antes de o clube de José Mourinho ter conquistado a Liga dos Campeões (e a tripla) com os dois argentinos em grande nível. Diego Milito e Walter Samuel foram chamados por Maradona, uma consolação para Massimo Moratti, consciente da temporada "monstruosa" do quarteto de argentinos ao serviço do clube de Milão. Nada que incomode "El Pibe", que nunca chegou a ponderar acrescentar uma errata à sua lista, da qual não constam Gago, Lucho, Lisandro. . . Troca de clubesA muitos jogadores de nada serviu a estratégia de trocar de clube no Inverno, passar do Inter para o Manchester City (como o francês Patrick Vieira), trocar o Real Madrid pelo Hamburgo (como o holandês Van Nistelrooy) ou viajar de Munique para Roma (como o italiano Luca Toni), procurando mais minutos e a confiança do seleccionador. "É sempre um momento difícil", disse, a propósito de Vieira, Raymond Donenech, que castigou Karim Benzema (cromo n. º 104), pouco utilizado no Real Madrid, "com talento, mas com um ano difícil", segundo o seleccionador francês, que não quis associar a sua decisão ao escândalo de prostituição que atingiu de frente o jogador de origem argelina. "Tem uma idade que lhe permite sonhar", completou Domenech, sem Samir Nasri na bagagem. A frase foi repetida um pouco por todo o planeta. Há dias, o sul-africano Benny McCarthy (cromo n. º 46) engordou a lista dos ausentes, juntando-se a nomes influentes como o do uruguaio do FC Porto Cristian Rodriguez (n. º 78), o do mexicano Miguel Sabah (n. º 67), o do costa-marfinense Bakari Koné (n. º 540), o do hondurenho Carlos Costly (n. º 618) ou o do suíço Marco Strellar, há algum tempo a contas com uma lesão. Marcello Lippi, seleccionador italiano, tem sido outro dos nomes na berlinda. Preso por ter cão, preso por não ter, criticado pela gestão do grupo campeão na Alemanha. "Não posso deixar em casa 23 jogadores só porque estiveram em Berlim, em 2006", explicou o seleccionador, que deixou de fora Totti, ansioso por regressar, Luca Toni, com um pouco secreto sonho mundialista, Antonio Cassano, Mario Balotelli, Nicola Legrottaglie (n. º 417), Fabio Grosso (n. º 415). . . Cromos em falta? O Mundial não se responsabiliza. A selecção dos excluídosNo futuro, os irlandeses continuarão a defender que os grandes ausentes do Mundial de 2010 foram os jogadores da sua selecção, afastados no play-off de qualificação com a ajuda da célebre mão de Thierry Henry. Muitos outros jogadores poderiam abrilhantar a competição, mas, aos poucos, foram ficando pelo caminho. O P2 ficou com os restos, tentou dividir o mal pelas aldeias e convocou 23 jogadores mais quatro suplentes. Guarda-redes: Petr Cech (República Checa); Shay Given (Irlanda); Akinfeev (Rússia)Defesas: Chygrynskiy (Ucrânia); O'Shea (Irlanda); Vermaelen (Bélgica); Riise (Noruega); Chivu (Roménia); Perea (Colômbia); Juan Vargas (Peru)Médios: Valencia (Equador); Modric (Croácia); Arshavin (Rússia); Misimovic (Bósnia-Herzegovina); Arda Turan (Turquia); Fletcher (Escócia); Jovetic (Montenegro); Benayoun (Israel)Avançados: Ibrahimovic (Suécia); Adebayor (Togo); Robbie Keane (Irlanda); Shevchenko (Ucrânia); Berbatov (Bulgária); Bellamy (País de Gales); Bryan Ruiz (Costa Rica); Falcao (Colômbia); Claudio Pizarro (Peru)
REFERÊNCIAS:
Da África do Sul à contracosta, com Ruy Duarte de Carvalho
Ninguém, à excepção do Ruy Duarte de Carvalho, sabia grande coisa sobre a África do Sul para além das suas tensões recentes. É ele que vai à frente nesta viagem de 13 dias e seis mil quilómetros, portanto, e logo a seguir os seus jovens amigos: o Luhuna, que ia recolhendo numa câmara materiais de observação directa; Miguel Carmo, certeiro nas impressões e navegações espaciais; e as Martas -a Mestre que ia avivando a conversa, e a outra Marta, esta que vos escreve, gerindo a logística de uma viagem redonda, de Joanesburgo a Joanesburgo, do interior à costa pela outra costa, deixando de fora a província do Cabo Oriental, berço de lutadores anti-apartheid, ainda assim presente nas histórias de bordo. (...)

Da África do Sul à contracosta, com Ruy Duarte de Carvalho
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-08-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ninguém, à excepção do Ruy Duarte de Carvalho, sabia grande coisa sobre a África do Sul para além das suas tensões recentes. É ele que vai à frente nesta viagem de 13 dias e seis mil quilómetros, portanto, e logo a seguir os seus jovens amigos: o Luhuna, que ia recolhendo numa câmara materiais de observação directa; Miguel Carmo, certeiro nas impressões e navegações espaciais; e as Martas -a Mestre que ia avivando a conversa, e a outra Marta, esta que vos escreve, gerindo a logística de uma viagem redonda, de Joanesburgo a Joanesburgo, do interior à costa pela outra costa, deixando de fora a província do Cabo Oriental, berço de lutadores anti-apartheid, ainda assim presente nas histórias de bordo.
TEXTO: Desde cedo até ao fim da tarde: mãos rotativas ao volante, pneus a rasgar as boas estradas sul-africanas, olhos maravilhados e exaustos de reter as paisagens a cada solidão um monte ou deserto preferido -e dentro do carro uma voz que se ouve mais do que as outras. Antes da África do Sul, tinha havido um cozido à portuguesa na Baixa de Maputo, em Setembro. Decorria, no Dockanema, "E agora. . . vamos fazer mais como?", ciclo dedicado ao escritor e cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho, que acumula admiradores no mundo lusófono, e a viagem, patrocinada pelo Instituto Camões, começava a ganhar forma. Uma viagem espraiando-se por mudanças de relevo, animais, campos de pastagem, cores e brilhos que vão ocorrendo na paisagem: a sua adaptação morfológica ao clima e a metafísica que nos faz empatizar com ela. Uma viagem atenta à história das várias expansões e colonizações do país. Que fosse a origem, com base nos materiais recolhidos e nas conversas semeadas, do livro "As Paisagens Efémeras, Atas de Santa Helena", de Ruy Duarte de Carvalho, e também de um possível filme. Ou não estivesse a viagem sempre inscrita em tudo o que faz. Mas há outras ambições nesta viagem: problematizar o processo de ocidentalização do mundo e os seus efeitos, focalizados no espaço atlântico. Que relações existiram entre europeus e populações locais? Que fenómenos desencadearam? Isto tudo pelo gosto de entrelaçar tempos. De ver naquilo que é já passado, vestígio só, matéria de conjectura histórica. De encontrar os traços do antecedente na imagem presente e nas projecções do futuro. Então lá estamos nós dentro de um carro dias a fio. E acabamos por aprender qualquer coisa da complexidade deste país africano que está nas bocas do mundo por causa do futebol e da persistente violência. Conclusão: a África do Sul é um país bizarro. O Ruy está contente e só se cala esporadicamente para fixar um pormenor da paisagem e depois dizer coisas como "na vida ou se escreve ou se vive", citando Pirandello, ele que faz tão bem as duas coisas. Traz leituras e considerações, enche o espaço de referências e pensamento, de paisagens efémeras e propícias, de figuras da História. Conta episódios da vida e anedotas também. Fala no feminino quando conversa com as raparigas. "É uma narrativa sólida e quente que transforma a paisagem da África do Sul em nostalgia", há-de escrever um de nós. Angola, aonde regressa sempre apesar de agora viver em Swakopmund, na Namíbia, é tema recorrente e que nos liga naquela cumplicidade dos territórios do coração. A comer uma pizza na barragem Gariepdan, abro o seu último livro, "A Terceira Metade", e tropeço nisto: "enrolados para quem não pára porque não pode, não quer ou não sabe, tal como nós estamos todos desde há muito ao corrente são os caminhos das voltas que a vida dá, como são os que no sono levam sempre aos mesmos sonhos recorrentes. "Brancos contra brancos, e contra negrosPernoitamos em Vinburg. Uma cidadezinha de atmosfera "Twin Peaks" no interior do Free State onde os bóeres, brancos camponeses normalmente enormes, vivem e são senhores. O bóer é uma produção da África Austral, havemos de saber no curso da viagem. Na "guesthouse", um bancário bêbado pergunta-nos, meio em inglês, meio em afrikaans, crioulização da sua língua materna holandesa, se estamos a falar russo. Ao pequenoalmoço, a serviçal roliça diz que vai casar em Março e está muito feliz. "A minha mãe diz: 'Vai sempre atrás do teu marido'". E ela foi, e agora serve salsichas com ovos e carne agridoce a endinheirados rurais.
REFERÊNCIAS:
Étnia Africano
João Maria Tudela morreu hoje de manhã no hospital de Cascais
O cantor e apresentador de televisão João Maria Tudela morreu hoje de manhã, no hospital de Cascais, dois dias depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) “fulminante". (...)

João Maria Tudela morreu hoje de manhã no hospital de Cascais
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-04-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: O cantor e apresentador de televisão João Maria Tudela morreu hoje de manhã, no hospital de Cascais, dois dias depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) “fulminante".
TEXTO: A mulher de João Maria Tudela informou à agência Lusa que o AVC ocorreu na quarta-feira, tendo o artista entrado depois em “coma profundo”. Segundo informações do hospital, João Maria Tudela morreu às 9h30 desta manhã. João Maria Tudela nasceu em Moçambique em 1929 na antiga capital Lourenço Marques, actual Maputo, começando a actuar como solista no Liceu Salazar. Sem saber música, tocava vários instrumentos como piano, guitarra, viola e harmónica. Os seus estudos continuaram em Coimbra antes de voltar a Moçambique, onde trabalhou como comercial em empresas. Mas continuaria a cantar, sobretudo fado de Coimbra, começando também a ter sucesso na música africana. Em 1959 surge o primeiro e maior êxito da sua carreira, Kanimambo, que levou Tudela a Portugal, Estados Unidos e América do Sul. João Maria Tudela afirma-se depois no meio artístico português e soma vários prémios na televisão. Em 1968, depois de ter cantado “Ao Vento e às Andorinhas” no Festival nacional da Canção, Tudela interpretou um poema de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes intitulado “Cama 4, Sala 5” que foi censurado e o cantor foi proibido de voltar a trabalhar na RTP, decidindo terminar a sua carreira. Depois do 25 de Abril de 1974, Tudela voltou a participar em programas da RTP e em peças de teatro e noutros espectáculos. Entre os seus principais êxitos estão: Kanimambo, Hambanine, O Meu Chapéu, Diz que Gostas de Mim, Menina das Tranças, No País do Sol, Soldado Português, Moçambique, Liberdade, Fuzilaram um Homem num País Distante. Uma pessoa "muito dinâmica""Intérprete de inúmeros sucessos da música portuguesa, João Maria Tudela foi um cantor de projecção internacional que, pelo seu talento e pela cuidada selecção do seu repertório, conquistou a admiração e o respeito de várias gerações de portugueses", escreveu o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, numa mensagem enviada hoje à família do cantor. "A música portuguesa ficou hoje mais pobre", referiu Cavaco Silva. Contactado pela agência Lusa, o músico António Calvário lamentou a morte Tudela, que classificou como um artista dinâmico e pessoa com muito valor. “Somos amigos de sempre. Lamento imenso esta notícia. João Maria era uma pessoa muito dinâmica, culta e de muito valor”, afirmou, recordando que “foi na canção que Tudela se tornou conhecido”. Já o apresentador de televisão Júlio Isidro descreveu João Maria Tudela como “um bom artista e um artista bom”, lamentando as dificuldades que teve para encontrar trabalho na fase final da sua vida. “Tinha múltiplos talentos, como cantor e como músico. Era um entertainer, um homem que gostava muito de comunicar”, afirmou Júlio Isidro à agência Lusa. Classificou ainda o amigo como “um verdadeiro gentleman”, que “sempre cultivou o charme e a elegância”. “É mais um artista que desaparece, que é lembrado na hora da morte, mas que viveu esta fase final da vida com grande dificuldade para ter trabalho”, lamentou Júlio Isidro, lembrando, no entanto, que João Maria Tudela conseguiu recentemente ter um projecto na RTP Memória. Notícia actualizada às 16h15
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Palavras-chave morte mulher homem
Pergunta sobre dor e tsunami abrirá entrevista inédita do Papa Bento XVI à televisão
Com uma pergunta sobre o "sentido da dor" após a tragédia que se abateu sobre o Japão em Março, será aberta a primeira entrevista que o Papa Bento XVI dará à televisão italiana por ocasião da Sexta-feira Santa. (...)

Pergunta sobre dor e tsunami abrirá entrevista inédita do Papa Bento XVI à televisão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2011-04-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Com uma pergunta sobre o "sentido da dor" após a tragédia que se abateu sobre o Japão em Março, será aberta a primeira entrevista que o Papa Bento XVI dará à televisão italiana por ocasião da Sexta-feira Santa.
TEXTO: Pela primeira vez na história, um Papa responderá em um programa da televisão pública italiana (RAI), chamado "À Sua Imagem", às perguntas de um grupo de fiéis. Segundo a RAI, o programa durará uma hora e vinte minutos, foi gravado antecipadamente e será transmitido às 14h10, aproximadamente na mesma hora em que se acredita que Jesus tenha morrido. As respostas do Papa foram gravadas a 15 de Abril na biblioteca do palácio apostólico. Entre as sete pessoas escolhidas para fazer uma pergunta das mais de duas mil propostas à redacção, está a de Elena, uma menina ítalo-japonesa de sete anos, que presenciou a morte de outras crianças, sentiu a casa tremer e ficou traumatizada pelo terramoto seguido de tsunami que devastaram seu país em 11 de Março. O Papa, que inicialmente aceitou responder a apenas três perguntas relacionadas com a vida de Jesus, tema de seu último livro, resolveu aumentar o espaço, devido ao sucesso que a iniciativa suscitou. Bento XVI aceitou abordar todos os assuntos, entre eles o destino das pessoas em coma e as perseguições contra os cristãos por muçulmanos no Iraque. Um dos assuntos mais comoventes sobre o qual o pontífice deverá responder é sobre a alma de quem está em coma irreversível, feita por uma mãe italiana que acompanha o seu filho nesta situação dramática. O tema não foi escolhido ao acaso, já que se abriu na Itália um debate sobre a eutanásia, após o caso de Eluana, que passou 17 anos em coma até que a família obteve autorização para suspender sua alimentação. Segundo informações antecipadas pelo jornal “La Stampa”, o Papa explicará que a alma não deixa o corpo, mesmo se o indivíduo estiver inconsciente, e lembrará que as pessoas em coma precisam receber amor, afecto e cuidados. Uma mulher africana e muçulmana, proveniente da Costa do Marfim - país que acaba de passar por uma violenta crise após as eleições presidenciais -, e sete estudantes cristãos residentes no Iraque, sob ameaça permanente, também farão perguntas. O Papa falará de temas variados, muitos relacionados com a dor, por se tratar da Sexta-feira Santa, dia em que os católicos comemoram o calvário de Cristo. Em seis anos de pontificado, Bento XVI concedeu poucas entrevistas, a primeira à televisão polaca, após a morte de João Paulo II, em 2005, e outra em 2006, à emissora de TV alemã, seu país de nascimento. Notícia corrigida às 13h07Nesta ocasião, trata-se de perguntas feitas por particulares, não por jornalistas.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte filho mulher corpo marfim eutanásia
A unidade de elite que matou Bin Laden
É raro ouvirmos falar deles e nunca os ouviremos gabarem-se dos seus sucessos. Eficiência e segredo são as suas máximas. Ao todo, não há mais de 2500 SEAL, as forças especiais da Marinha norte-americana que tiveram a cargo a operação que terminou com a morte de Osama bin Laden. (...)

A unidade de elite que matou Bin Laden
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2011-05-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: É raro ouvirmos falar deles e nunca os ouviremos gabarem-se dos seus sucessos. Eficiência e segredo são as suas máximas. Ao todo, não há mais de 2500 SEAL, as forças especiais da Marinha norte-americana que tiveram a cargo a operação que terminou com a morte de Osama bin Laden.
TEXTO: “Os tipos que se tornam membros dos SEAL têm uma visão especialmente apurada, inteligência acima da média, e uma constituição genética que lhes permite suportar muito fisicamente. Há tipos qualificados para entrarem mas os que sobrevivem até ao fim são os cavalos de corrida”, disse à BBC Don Shipley, da Virgínia, que foi membro dos SEAL durante 20 anos. Há um número que dá uma ideia do que Shipley quer dizer com cavalos de corrida: a média de desistências durante o treino dos SEAL está entre os 80 e os 85 por cento. A primeira semana, com treino 24 horas por dia, é conhecida como “Hell Week”. Depois do treino básico, há uns 200 candidatos de cada vez que chegam à escola. No fim do processo costumam sobreviver 30 a 35. O grupo que treina neste momento, descobriu a BBC, começou com 245 homens (não há mulheres nos SEAL) e já perdeu 190 recrutas nas primeiras três semanas. São um “grupo com muita testosterona”, descreveu ao “Washington Post” Alden Mills, que esteve nos SEAL entre 1991 e 1998. “O fracasso não é uma opção” ou “a dor é a fraqueza a deixar o corpo” são alguns dos seus slogans. Os SEAL – a sigla é composta pelas iniciais das palavras em inglês para mar e terra, pois querem-se prontos para agir em qualquer meio – surgiram durante a Segunda Guerra, quando os Estados Unidos precisaram de combatentes rápidos para invadir o Japão. Ainda não se chamavam assim, eram a Naval Combat Demolition Unit, que esteve envolvida na invasão do Norte de África em 1942. A criação dos SEAL como existem hoje foi tornada possível com um pacote de 100 milhões de dólares disponibilizado pelo Presidente John F. Kennedy para fortalecer a capacidade das forças especiais. Estiveram envolvidos no Vietname, em Granada e no Panamá. Nos últimos anos, os SEAL actuam essencialmente no Afeganistão e no Iraque, mas também têm sido chamados para missões no Iémen, na Somália ou no Paquistão, como esta a que se chamou “Geronimo”, como o guerreiro apache que liderou a resistência aos brancos e se tornou numa espécie de símbolo do “wild west”. A morte de Bin Laden foi comunicada ao Presidente Barack Obama com as palavras “Geronimo EKIA” – Enemy Killed in Action (inimigo morto em acção). A Equipa SeisNão houve exactamente um comunicado dos SEAL com pormenores da operação, mas sabe-se que a missão foi entregue à Equipa Seis (ou DEVGRU), uma unidade que trabalha tantas vezes com a CIA que é conhecido como a Guarda Pretoriana da agência. Sabe-se que a Equipa Seis, cujos membros são seleccionados a partir de todas as unidades entre os que contam com cinco anos de experiência, tem a sua base nos arredores de Virginia Beach. Sabe-se, mas não se tem a certeza. Quando o mayor de Virginia Beach soube que tinha sido uma unidade dos SEAL sedeada perto da sua cidade a matar Bin Laden quis homenageá-los, escreveu o “Washington Post”. Mas um primeiro problema colocou-se de imediato a Will Sessoms: como encontrá-los?“Esta comunidade está extremamente orgulhosa. Gostava de encontrar uma forma de a cidade festejar. Mas é um desafio”, explicou Sessoms. Se os SEAL são os melhores entre os melhores, a Equipa Seis, criada em 1980, depois da tentativa falhada de salvar os reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerão, é constituída pelos melhores de todos. Ryan Zinkie esteve cerca de uma década na equipa e contou à National Public Radio que passou parte desse tempo nos Balcãs, nos anos 1990, à procura de suspeitos criminosos de guerra. “A determinada altura a nossa missão era realmente capturar”, disse.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra escola comunidade espécie mulheres corpo morto
Seco que nem um carapau da Nazaré
Os peixes continuam a secar ao sol, indiferentes ao debate em torno deles. São um dos maiores bilhetes-postais da Nazaré, mas as mulheres que os vendem temem que "isto esteja a acabar". Há, contudo, uma nova geração que acredita neles: Inês tem 34 anos e voltou à Nazaré para trabalhar com a mãe na secagem do peixe. O irmão, Samuel, criou uma nova embalagem para explicar aos turistas o que isto é. E o projecto Endògenos está a reinventar o carapau seco nas cozinhas. São sete da tarde e o sol começa a pôr-se sobre a praia da Nazaré. Ana Palmira continua sentada por detrás da sua banca de peixe seco. Não tem grandes... (etc.)

Seco que nem um carapau da Nazaré
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.06
DATA: 2014-05-13 | Jornal Público
TEXTO: Os peixes continuam a secar ao sol, indiferentes ao debate em torno deles. São um dos maiores bilhetes-postais da Nazaré, mas as mulheres que os vendem temem que "isto esteja a acabar". Há, contudo, uma nova geração que acredita neles: Inês tem 34 anos e voltou à Nazaré para trabalhar com a mãe na secagem do peixe. O irmão, Samuel, criou uma nova embalagem para explicar aos turistas o que isto é. E o projecto Endògenos está a reinventar o carapau seco nas cozinhas. São sete da tarde e o sol começa a pôr-se sobre a praia da Nazaré. Ana Palmira continua sentada por detrás da sua banca de peixe seco. Não tem grandes esperanças de vender alguma coisa, mas vai ficando, sempre pode ser que ainda passe alguém que queira comprar. Passa um casal de jovens. Ele faz perguntas. Ela olha com um ar desconfiado para os peixes escalados e secos. Como é que se cozinha?, pergunta ele. Parece tentado a levar. Ana Palmira ganha algum alento com a perspectiva da venda e garante que é um petisco de primeira. A rapariga abana a cabeça. Acabam por agradecer e ir embora sem levar nada. "Isto está a acabar", lamenta-se a peixeira. "Isto" é a venda de peixe seco, uma tradição antiga e um dos bilhetes-postais da Nazaré. São sete da tarde e a banca continua cheia. De nada adianta estar a pé desde as quatro da manhã e já ter corrido a Nazaré, primeiro a comprar o peixe na lota, depois a vendê-lo ainda fresco e por fim a abrir o restante, a passá-lo na salmoura e a pô-lo ao sol. "A malta nova hoje não quer nada disto. Só os mais velhos é que compram, e esses estão a desaparecer. "Ana Palmira andou toda a vida a vender peixe, conseguiu pôr os filhos a estudar, hoje todos têm cursos superiores e até mestrados, mas, afinal, contra todas as suas expectativas, isso não lhes serviu de garantia de uma vida melhor. "Estão todos desempregados. " E é isso que lhe deixa "o coração tão negro" como o lenço que tem enrolado à cabeça, e que agora desenrola para nos mostrar a cor - é preto mesmo. "Isto hoje é só entrevistas", lança-lhe outra peixeira, também junto da sua banca de peixe seco. Na praia, por trás delas, ergue-se o "estindarte" que é como aqui chamam ao estendal, os rectângulos de madeira e rede, inclinados e virados para sul, onde o peixe é colocado para secar ao sol. A tradição começou, não se sabe exactamente quando, como forma de preservar o peixe em tempos de maior dificuldade e garantir que a comida chegava para os dias em que os homens não podiam ir ao mar. Embora o carapau seja o mais emblemático, secam-se diferentes peixes, do cação à petinga e à sardinha (estes peixes mais pequenos não são escalados), passando pelo polvo. As técnicas também diferem: um carapau seco deve ficar uns dois a três dias ao sol, dependendo das condições atmosféricas e da temperatura e pode ser comido cru e desfiado ou cozido e regado com azeite, vinagre ou sumo de limão e alho picado. O carapau a que chamam "enjoado" fica apenas um dia, ou algumas horas ao sol, passa por uma salmoura menor e é geralmente grelhado. Por força do hábito, os nazarenos ganharam gosto a este peixe assim seco e deliciam-se quando o comem. Mas e os outros? Bem, os outros - os não nazarenos, entenda-se - passam, olham, fazem perguntas. E não compram. É por isso e porque dantes o "estindarte" era muito maior e a praia estava cheia de mulheres a vender, que Ana Palmira não está optimista. No entanto, esta história pode ser diferente - e muito mais feliz. Se nesse dia Ana Palmira estava mais a dar entrevistas do que a vender peixe, era porque dali a pouco ia realizar-se um jantar dedicado precisamente ao carapau seco da Nazaré. O que está a acontecer aqui é uma coincidência de interesses que pode ajudar a virar o destino à tradição do carapau seco. O jantar está marcado para a Taberna do 8 ó 80, casa aberta há dois anos na marginal, por Abel Santos, filho da Adélia, da Taberna d"Adélia, famosa na Nazaré pelo seu peixe fresco. Foi o restaurante de Abel o local escolhido pelo projecto Endògenos - uma iniciativa do empresário Nuno Nobre, que, em colaboração com o chef António Alexandre, pretende recuperar vários produtos tradicionais portugueses, das algas ao capão, passando pelo ouriço-do-mar - para este jantar em torno do carapau seco. Quem forneceu o carapau esta noite foi a Maria da Nazaré. Por isso, é tempo de conhe-cermos os irmãos Samuel e Inês Fialho, ele com 28 anos, ela com 34, netos e filhos de mulheres que dedicaram a vida ao peixe seco da Nazaré e que acreditam que esta é uma tradição com futuro. Foi essa razão que os levou a criar a marca Maria da Nazaré -uma homenagem a essa avó, chamada Maria da Nazaré, hoje com 91 anos, que é para eles um exemplo. Inês fez o curso de Educadora de Infância, viveu em Lisboa, tem um marido ligado ao cinema e, há três anos, quando ficou grávida da filha, decidiu ir viver para a Nazaré. "Pela qualidade de vida", explica. O facto é que a carreira de educadora de infância foi substituída pela venda de peixe. Encontrámo-la, bem-disposta e sorridente, pelas nove da manhã, junto à mãe, Isaura, a amanhar o peixe numa banca do mercado municipal. No café do mercado, há grande animação, com as vendedoras da praça a beber café de saco e a comer pão com manteiga. Isaura e Inês já receberam os carapaus e os batuques (têm um vendedor que compra na lota e lhes vende no mercado) e vão passar algumas horas a abrir cada peixe, a tirar-lhe a tripa, a escalá-lo à mão, fazendo correr o dedo junto à espinha, sempre debaixo de água corrente e, por fim, a passá-lo por duas ou três salmouras. Muito importante, sublinha Inês, é tirar-lhe completamente o sangue, porque é este que atrai as moscas, um dos maiores perigos para este produto. Quando já têm vários alguidares cheios de peixes abertos, põem-nos num carrinho de mão e atravessam as ruas da Nazaré, vazias àquela hora, até ao estendal. Na praia, de manhã cedo, só as gaivotas, que enchem o areal na esperança de apanhar um peixe, ou pelo menos as tripas, que algumas peixeiras têm o hábito de lhes dar. Os paneiros (as tábuas com rede) têm diferentes cores para se saber a quem pertencem. As duas desembrulham os seus paneiros, protegidos por um plástico azul, e aparecem os primeiros, verde-claro, e os restantes, vermelhos. "O vermelho foi sempre a cor da minha mãe", diz Isaura. Pega num e segura-o ao alto para mostrar o M e o N, pintados a vermelho, com os quais a Maria da Nazaré - que começou neste trabalho em 1928, tinha apenas seis anos, e continuou até aos 87 - identificava as suas tábuas. Samuel agarra no tablet para mostrar o site da marca e o filmezinho que fizeram com a avó a mostrar como se cozinha o carapau seco - na realidade, um processo muito fácil, semelhante ao do bacalhau. "O que nós sentimos foi que muitas pessoas, nomeadamente os turistas, tinham curiosidade em saber o que era o peixe seco, mas nem sempre é fácil explicar. " Sobretudo para as peixeiras na praia, que não falam outras línguas e têm apenas os gestos para se fazer entender. Por isso, numa assumida estratégia de marketing - até porque Samuel tem uma starp-up dedicada a projectos digitais, entre os quais, os recentemente lançados áudio-guias Nazaré Museum, com informação para os visitantes sobre as diferentes rotas que podem fazer na Nazaré - a "Maria da Nazaré" criou uma embalagem em triângulo e colocou lá dentro um, apenas um, carapau. Isto permite que quem não conhece prove e satisfaça a curiosidade. "Os estrangeiros não vão comprar meia dúzia ou uma dúzia de carapaus, como as mulheres vendem na praia, mas são capazes de comprar um para saber como é. " E ainda para mais porque a embalagem conta a história desta tradição, em português, inglês e francês. A Nazaré sempre se encheu de gente para o Verão. E ainda hoje se vêem as mulheres nas ruas segurando placas anunciando quartos para alugar. Mas foram as ondas gigantes surfadas por Garrett McNamara que recentemente lhe deram fama mundial. "Aparecem muitos turistas a perguntar a que horas é a onda gigante", ri Samuel. "Temos de melhorar a informação que damos porque as pessoas têm a expectativa de ver ondas grandes todos os dias, e não é assim. "O facto é que aparecem muito mais estrangeiros e, em particular, muitos japoneses e coreanos, que ficam surpreendidos a olhar para o peixe a secar. Quem não fica nada surpreendido são os africanos - que usam muito peixe seco nos seus cozinhados e chegam a vir à Nazaré de propósito para o comprar. A ideia de Samuel e Inês de vender um carapau com explicação incluída é boa, mas não será certamente suficiente para salvar o carapau seco se nada mais acontecer. É aqui que entra a tal convergência de interesses. Acontece que o Endògenos se interessou pelo carapau seco - até porque foi um produto que o chef António Alexandre já trabalhou no passado - e que a Câmara da Nazaré, dirigida por Walter Chicharro, está também muito empenhada em não deixar morrer a tradição, que considera parte fundamental da identidade nazarena. "Estas mulheres, com o seu trabalho, preservam grande parte do património da Nazaré", diz o presidente da câmara. "Por isso, queremos melhorar as condições em que trabalham. " O projecto que a autarquia está a desenvolver prevê o reaproveitamento de uma área no interior do centro cultural, que funciona no edifício da antiga lota, precisamente em frente ao estendal. Aí, as peixeiras terão um espaço para amanhar o peixe e fazer a salmoura - algo que hoje a Maria da Nazaré, ou seja, a Inês e a mãe, faz no mercado municipal e as outras fazem na praia. O objectivo é também permitir que os turistas e outros visitantes assistam ao processo. Depois da salmoura, as mulheres poderão atravessar a rua e pôr o peixe a secar nos paneiros, numa zona que hoje está muito danificada (até por causa dos recentes temporais) e que será reabilitada com um projecto do arquitecto paisagista Álvaro Manso. "Queremos tornar a secagem num museu vivo", frisa Walter Chicharro. "E isso é uma prioridade para a Nazaré. "Para já, e enquanto este projecto não se concretiza, a câmara está a planear, para o Verão, a primeira Mostra do Carapau Seco, mais uma oportunidade para mostrar o que acreditam que é o potencial gastronómico deste produto. Potencial que, para já, foi explorado por António Alexandre em colaboração com Ana Pereira, da 8 ó 80, no jantar acompanhado por vinhos da Quinta do Gradil, do Cadaval. Houve carapau - neste caso, foi o "enjoado" o único utilizado - de várias formas. Para entrada, apareceu em patê, em patanisca e em pizza. Depois, num wrap tradicional e noutro com couve, acompanhado por amendoim e mel (dois outros produtos que o Endògenos está a tentar valorizar), seguido por uma sopa de peixe com um ravioli de camarão, carapau e algas. Houve ainda um muito bem conseguido arroz malandrinho com o carapau enjoado desfeito, dando uma textura e um sabor surpreendentes; e, como prato de carne, um mais arriscado frango recheado com morcela de arroz, espinafres e carapau sobre um puré de maçã, pêra e beringela. No final, como é tradição nos jantares do Endògenos, até a sobremesa teve carapau: maçã assada com carapau, nêsperas, mel caramelizado, pêra grelhada e gelado de amendoim e mel. Samuel Fialho tem uma ideia muito clara do que gostaria que fosse o futuro do carapau seco. "Era importante que este produto começasse a ser usado nos restaurantes da Nazaré, porque as pessoas vêem-no aqui à venda e não conseguem prová-lo nos restaurantes. Era bom tê-lo pelo menos nas entradas, num patê por exemplo. " Mas há um grande obstáculo, que Samuel explica, e que Abel, o dono da Taberna do 8 ó 80, confirma: a fiscalização. Enquanto não estiverem garantidas as condições de higiene e segurança alimentar que cumpram os requisitos da lei os restaurantes da Nazaré, não vão servir o peixe seco, mesmo que muitos nazarenos o comam diariamente nas suas casas. Ninguém quer correr o risco de ter o estabelecimento fechado por causa disso. Solução? Avançar com o processo de certificação, algo em que a câmara, em colaboração com a Maria da Nazaré, quer apostar. Inês, sentada à mesa da taberna, está entusiasmada com o que provou: "Achei fabulosa a nova dimensão que o carapau seco pode ter. Há pouca malta nova a pegar nas coisas. Na minha geração, ninguém quer estragar as unhas a arranjar peixe. Mas neste momento este é o meu projecto de vida, quero levar o nome da minha avó mais longe. " Em casa, com 91 anos, Maria da Nazaré ainda insiste em fiscalizar o peixe para ver se a filha e a neta estão a fazer tudo bem. Há uma fama a respeitar, uma tradição a manter. Raul Brandão escreveu que as peixeiras da Nazaré "são a vida desta terra". No livro Os Pescadores, escrito no início da década de 1920, fala delas assim: "Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre palha o cação, o polvo, o carapau, para a seca. " Também Alves Redol descreve a "lida sem fim" destas mulheres. Hoje já são poucas. São cada vez menos. "Só com a certificação podemos crescer", diz Inês, camisola e calças pretas, botas de borracha nos pés, o cabelo claro a vir-lhe para a cara, empurrado pelo vento da praia. Diz que gostava de usar um avental típico da Nazaré e que ainda vai pensar numa forma de também não deixar que estes desapareçam quando as mulheres que começam agora a montar à nossa volta os seus estendais um dia também desaparecerem. "Mas nós sozinhos, com a Maria da Nazaré, não vamos a lado nenhum", frisa Samuel. Este tem de ser um projecto comum às mulheres que toda a vida trabalharam na secagem do peixe, as mulheres, como Ana Palmira, que hoje têm medo que "isto esteja a acabar". Inês e Samuel vêm dizer precisamente o contrário: "Isto tem futuro. "
REFERÊNCIAS:
Na Guiné-Bissau, a mutilação genital passou à clandestinidade
Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. A par da legislação, uma mudança de mentalidades, sobretudo entre a comunidade muçulmana, e a acção no terreno de várias organizações da sociedade civil têm feito descer a percentagem de raparigas com menos de 15 anos excisadas (ainda assim, eram 30%, em 2014). Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas. Mas abandonaram mesmo? Uma viagem pelas regiões Norte, Centro e Leste da Guiné para tentar perceber o que mudou. (...)

Na Guiné-Bissau, a mutilação genital passou à clandestinidade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. A par da legislação, uma mudança de mentalidades, sobretudo entre a comunidade muçulmana, e a acção no terreno de várias organizações da sociedade civil têm feito descer a percentagem de raparigas com menos de 15 anos excisadas (ainda assim, eram 30%, em 2014). Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas. Mas abandonaram mesmo? Uma viagem pelas regiões Norte, Centro e Leste da Guiné para tentar perceber o que mudou.
TEXTO: Quem acompanha o fenómeno da mutilação genital feminina, tem consciência da lentidão da mudança rumo à sua erradicação. Portanto, não é de estranhar que, em países onde essa mudança está em curso, surjam denúncias, aqui e ali, que apontam para a persistência desta prática. Como é o caso da Guiné-Bissau. Porém, desde que o país adoptou uma lei que proíbe a excisão das mulheres, em 2011, a prática desapareceu do espaço público. As meninas e raparigas já não são mutiladas, pelo menos à vista de toda a gente. Já em sigilo, em espaços recatados, desconfia-se de que haja quem ainda o faça. E até em bebés, para não dar tanto nas vistas. Ciente da “crescente dimensão social da excisão”, o Estado da Guiné-Bissau adoptou a Lei n. º 14/2011, que pune o crime de excisão feminina, “nas suas variadas formas”, com pena de prisão de dois a seis anos. No prefácio do Guia dos Direitos Humanos e Género dedicado à lei, assinado pelo Ministério da Justiça da Guiné-Bissau e pelas Nações Unidas, recorda-se que a lei é o culminar de um “longo” e “árduo” processo de sensibilização, ao longo de duas décadas, que “contou com a participação de vários actores”. As organizações da sociedade civil, apoiadas pela comunidade internacional, podem, justamente, reclamar vitória. O mesmo não se pode dizer dos políticos nacionais, avessos a tecerem considerações sobre um tema que lhes pode custar votos. A lei impõe a obrigatoriedade de denúncia, mas as autoridades locais policiais e judiciais temem represálias das comunidades onde vivem e trabalham. Mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado a prática e fizeram-no em declarações públicas, com pompa e circunstância. Mas abandonaram mesmo? Com uma abordagem de duplo olhar — mulher portuguesa e homem guineense —, percorremos as cidades e as tabancas de Norte, Centro e Leste do país, num total de 800 quilómetros, para tentarmos perceber se a lei está a ser cumprida. A viagem começa no Leste da Guiné-Bissau, zona com maior prevalência de mutilação genital feminina, dada a presença das etnias mais praticantes, como fulas, mandingas, biafadas, saracolés. Estradas mais ou menos esburacadas, a cultura milenar do arroz espraiada por vastos terrenos pantanosos e férteis, a ponte sobre o rio salgado de Geba, abutres, que ali se chamam djugudés, e esvoaçam à passagem dos carros, um cartaz onde se lê que o “fanado di mindjer” não faz parte dos cinco pilares do islão (ao contrário da circuncisão masculina). Fanado é o nome crioulo para o ritual secular que, a pretexto de iniciar as meninas na idade adulta, inclui a ablação parcial dos seus órgãos genitais. No escritório da Plan International, saúde, saneamento básico e educação, nomeadamente a escolarização das meninas, são referidas como as principais preocupações da população da região de Bafatá. Ninguém duvida do “grande impacto” da lei, mas alertam para as resistências que persistem. Um funcionário judicial que trabalha para a comunidade internacional, e que não pode ser identificado, confirma que já não se realizam rituais públicos, mas isso não quer dizer que a prática tenha desaparecido. Duvida da aplicação prática da lei e da genuinidade das muitas declarações públicas em que, com pompa e circunstância, as tabancas assumem o compromisso de abandonar a prática. Os dois casos de prática posterior à criminalização julgados em Bafatá foram acompanhados com “revolta” pela população local, deixando claras as “bolsas de resistência” que consideram a lei de 2011 uma interferência do Estado na vida privada das famílias e comunidades guineenses. Poucos dias após a publicação da lei no Boletim Oficial (equivalente ao Diário da República), quatro fanatecas (excisadoras) de Bafatá submeteram à excisão outras tantas crianças, entre os dois e os quatro anos. O crime foi denunciado e a polícia de Bafatá agiu, perante a forte pressão de activistas locais, liderada pela presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau, Fatumata Djau Baldé, já munida com a força da lei. As quatro fanatecas — duas alegadamente familiares de um respeitado chefe local — foram detidas, mas, devido à pressão de líderes religiosos, acabaram por ser libertadas dias depois. Literalmente com o Boletim Oficial na mão, que ia mostrando a quem lhe cruzasse o caminho, Fatumata Baldé mudou-se de Bissau para Bafatá “para melhor pressionar a polícia e a justiça” a aplicarem a lei. Nos primeiros momentos após a criminalização da prática, até os jornalistas tinham medo de noticiar as denúncias dos activistas. Apenas a agência Lusa acompanhou os casos de perto e no terreno. Após vários dias de reuniões intermináveis com o governo local e elementos do poder judicial, as quatro fanatecas acabaram por ser novamente detidas e julgadas pelo tribunal regional de Bafatá, naquele que foi o primeiro julgamento desta natureza na Guiné-Bissau, uma “primeira vitória contra um crime antigo”, nas palavras de Fatumata Baldé. Condenadas a três anos, com penas suspensas, as mulheres de idade avançada viram as penas revertidas em multas, que, segundo fontes judiciais, foram pagas por familiares. O mesmo não aconteceu com outro caso, em Fevereiro de 2013, quando um guineense a viver em Portugal voltou à sua aldeia natal, na região de Gabú, e mandou excisar quatro crianças da sua família. O homem foi detido pela polícia, mas apenas por algumas horas, sendo posto em liberdade por alegada ordem do governador de Gabú. Sob a pressão do Comité Contra as Práticas Nefastas, a justiça convocou o suspeito, mas este, avisado por alguém, desapareceu da Guiné-Bissau antes disso, tal como as duas fanatecas autoras materiais do crime. As suspeitas são muitas: há fanatecas ambulantes, que extravasam fronteiras, a prática é agora executada em crianças, que não podem reclamar, as meninas são introduzidas, às escondidas, no fanado dos rapazes, que continua a realizar-se. Não tem provas, nem testemunhou directamente casos, mas Adamaia Gavancho admite essas hipóteses. É activista da René-Renté, uma das organizações que integrou o Projeto Djinopi, que, durante cinco anos, combateu a mutilação genital feminina na Guiné em dois eixos: reconversão profissional das excisadoras e campanhas de sensibilização para cada público-alvo. O delegado de saúde de Bafatá também não tem dúvidas de que “continuam a fazer a prática de uma forma clandestina, escondida” e que até “simulam que a criança furou uma orelha e que chora por isso”. Julião Mandim defende que a mutilação genital “deve ser banida”, porque “tem muitas consequências no momento do parto”. Braima Embaló, sociólogo, activista e agente de ligação do Comité Contra as Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, conduz-nos a uma tabanca em chão dominado pela etnia fula. Agachada sobre um banco tradicional de madeira está Umo Baldé, mas depressa surgem cadeiras de plástico de todos os lados para sentar os convidados. Umo era a chefe das fanatecas do reino de Cossará e garante que a mutilação genital feminina já não se faz. “É como quem bebia álcool, nunca mais volta aos locais da má vida”, compara. As fanatecas são mulheres matronas, geralmente também parteiras ou curandeiras tradicionais, a quem é reconhecido um prestigiado estatuto social para executar o corte dos órgãos genitais. Agora viúva, Umo admite estar preocupada com o sustento das “muitas bocas” que tem para alimentar, no conceito africano de família alargada. Já sem arcaboiço para trabalhar no campo, vende tabaco, aos molhos. Enquanto fanateca, tinha melhor vida. Mas o Estado disse para parar e o Estado não se contesta — se é lei, é para obedecer. Vamos ouvir esta frase vezes sem conta ao longo da viagem. Braima Embaló conta 25 fanatecas que, no sector de Bafatá, estão agora a sensibilizar as comunidades para abandonarem a prática. Ainda há “resistência”, mais nas tabancas do que na cidade, garante o activista, que trabalha com 20 comunidades que garantem ser contra a prática. Mas ele sabe que esta ainda não acabou. “Fazem a bebés, no sigilo”, denuncia, recordando “a tragédia” que afectou uma menina, sujeita a um “corte demais”, numa aldeia vizinha. Além disso, relata, “as fanatecas são móveis”, circulam entre tabancas e até saem da Guiné-Bissau para os países vizinhos - Senegal e Guiné-Conacri, ambos com leis que proíbem a prática, mas igualmente listados pela comunidade internacional como países praticantes (no segundo caso, com um dos mais elevados índices de vítimas). Também saem para a Europa, incluindo Portugal, garante Braima, embora nunca tenha conseguido apanhar ninguém em flagrante. A denúncia às autoridades esbarra com a proximidade entre estas e as próprias comunidades. Também por isso — assinala o activista — os políticos não se destacam na oposição à prática, porque isso lhes pode custar votos entre as etnias islamizadas (convertidas ao islão e não muçulmanas de origem), que, no caso da Guiné-Bissau, são as únicas que praticam a excisão. O ritual do fanado, que era publicamente anunciado à comunidade, já não se faz— e isso é um princípio. A estrada de terra vermelha e vegetação verde desemboca na mais antiga aldeia mandinga, onde provavelmente terá sido construída a primeira mesquita da Guiné. O comité de Bidjine está reunido e fala a uma só voz. Chefes de tabanca e líderes religiosos, uma cúpula de homens no posto da idade, garantem que nunca mais ouviram falar de nenhum caso desde que a lei contra a mutilação foi aprovada. Não foi fácil convencerem a comunidade a abandonar uma prática que consideram “nociva e proibida”, mas levaram a sensibilização porta a porta e, a 16 de Fevereiro de 2016, fizeram uma declaração pública de erradicação da excisão feminina. Não pararam por aí. Um grupo de participação infantil, com crianças e jovens dos 10 aos 17 anos, raparigas e rapazes, continua a “vigiar as práticas nefastas”. Por exemplo, o casamento forçado ou a desigualdade do sexo feminino na escolarização. “Há mais meninas do que meninos nas escolas daqui”, dizem, orgulhosos, os líderes da comunidade. “A olho nu não se vê” a mutilação genital feminina na região de Gabú, provavelmente a mais arreigada à prática, até pela fronteira com a Guiné-Conacri, país onde, apesar de a lei o proibir, praticamente todas as mulheres são sujeitas à excisão. “Dentro do perímetro urbano, esta situação já não se verifica” e as pessoas estão demasiado “entrelaçadas” para conseguirem ocultar a prática da comunidade, garante o governador regional de Gabú, atribuindo mérito à lei, mas, sobretudo, às “tantas sensibilizações” que levaram as famílias a “compreender o risco” da excisão. “Nenhum líder religioso muçulmano pode dar justificativo a esta prática”, frisa o governador, também ele muçulmano. “Estamos mesmo na rota de uma separação de vez com este acto, que (. . . ) é deveras humilhante para quem é muçulmano”, considera Abdu Sambu. Atrás do palácio do governador, edifício colonial com varanda privilegiada sobre a cidade, Gibril Bodjam lidera o Conselho da Juventude de Gabú para debater os problemas que afectam os jovens. “Mesmo com a lei, há pessoas que estão a resistir, que estão a desafiar o Estado. Mudar a mentalidade das pessoas não é nada fácil”, reflecte, acusando a comunidade de não colaborar, com denúncias, por “medo”. À sala pequena chega, entretanto, o imame (sacerdote islâmico) de um dos bairros de Gabú, Ibrahima Baldé. Há muito tempo que não vê nem presencia a prática. “Não posso dizer que acabou”, esclarece, contando, porém, que costumava ser chamado pelos chefes de família para testemunhar o fanado e tal deixou de acontecer. Enquanto professor corânico, era comum ser informado pelas famílias sobre a ausência das meninas, quando estas eram submetidas ao fanado, e há muito que ninguém o faz. Apesar dos relatos pontuais sobre este ou aquele imame que se recusa a respeitar a lei, Ibrahima Baldé frisa que os líderes religiosos não podem ceder à pressão da comunidade e têm de cumprir o decreto. O imame deixa a sala e abre-se espaço para iniciar conversa com uma jovem mulher, membro do Conselho da Juventude de Gabú, a prova de que o tema já não é tabu. Cadidjatu Candé, de 23 anos, não se coíbe de dar o seu ponto de vista sobre o tema. Antes da lei, era muito mais difícil convencer uma mulher a falar. “Fui submetida à mutilação e sei muitíssimo bem qual é a consequência”, diz. “São vastas. Explicá-las é difícil”, refugia-se. Sobre a tradicional passagem do ritual de geração em geração, a animadora cultural garante que a sua filha de dois anos não será excisada. “A minha mãe cuida de mim, a mãe do meu marido cuida do meu marido, mas eu e o meu marido é que cuidamos da nossa filha”, distingue. “Convencer o meu marido não seria uma coisa difícil. É só mostrar qual é a consequência. Não é falar, é mostrar. Ver uma vez é melhor do que ouvir dez vezes”, acredita. Já adulta, Cadidjatu Candé apontou o dedo à mãe por a ter submetido ao ritual, mas recebeu um pedido de desculpas. “O que é feito já é feito, não pode ser retirado. Mas ela também me prometeu que sobre as minhas filhas sou eu que vou decidir e que ela vai apoiar-me. ”Os mais velhos, sobretudo homens, são os que oferecem mais resistência ao fim da excisão. “Dizem que é cultura, que não pode acabar, que uma mulher não mutilada é impura, não pode cozinhar para o marido, não pode ir à mesquita, não se pode misturar com as mulheres mutiladas. ” Mas, desde que há uma lei e que os líderes religiosos muçulmanos têm mais conhecimento sobre o que diz o livro sagrado Alcorão, a prática “está a diminuir”. Umo Embaló já foi a Meca, onde ficou a saber que muitas mulheres muçulmanas não são mutiladas. “Pedi perdão a Deus pelos pecados que cometi enquanto fanateca, agora sei que não o devia ter feito”, lamenta. “Além de Deus, acima dos homens está o Estado. Se o Estado ditar uma ordem, ninguém deve desobedecer. A partir do momento em que fomos informadas da lei, tivemos de parar, até porque vimos com os nossos olhos as consequências da prática. Faz tempo que abandonámos a prática nesta zona”, relata a ex-fanateca de Gabú. Nenegale, Otcha e Sumae são todas mulheres de idade avançada e, em comum, têm a herança das facas na linhagem familiar. Enquanto o quotidiano do bairro onde vivem acontece — as crianças brincam, os animais circulam devagar, ao calor, as mulheres estendem roupa e preparam a comida —, todas garantem ter baixado as lâminas. Perderam dinheiro, mas ganharam descanso. Não conhecem fanatecas ainda em funções, nem ouviram falar das tais excisadoras ambulantes. Tradicionalmente, o fanado é anunciado aos vizinhos, é uma prática de exposição pública na comunidade — de modo que, para elas, não faz sentido falar em clandestinidade ou encobrimento. No Hospital Regional de Gabú, o director clínico acha que “a prática está a diminuir, porque as fanatecas têm medo da lei”, mas Flávio Nhaga acha que as mulheres ainda não tomaram consciência dos problemas que a excisão traz para a saúde, até porque só contactam com as unidades de saúde quando têm um problema e não para observação regular. “Podem sangrar até morrer”, frisa, explicando que, na região, há um grave problema com fístulas — nos últimos anos operaram 46 mulheres, mas há muitas que ainda esperam essa oportunidade. Flávio Nhaga está em Gabú apenas há dois anos, mas, no posto anterior, lembra-se de suspeitar de um caso, em 2013, quando viu uma criança de quatro meses com sangramento vaginal. A criança foi trazida por uma mulher mais velha, que, quando ele a abordou, desapareceu e deixou-o com a criança nos braços. Se isso lhe voltar a acontecer, garante que fará denúncia. Na zona rural de Gã-Mamudo, a resistência está na cara enfadada do imame Lamini Turé, sentado sobre um tronco comprido de madeira, com o Alcorão entre as mãos. Faz parte do comité de homens grandis (mais velhos e experientes). “Estando de acordo ou não, o Estado é o Estado e todos estamos debaixo da lei”, limita-se a dizer, sem grande convicção. A conversa é suspensa por momentos, para deixar passar a algazarra da comitiva que segue o cancuran, figura mítica do ritual de passagem, coberta de um tecido vermelho, que vai desfiando a espada no ar. “É o fanado dos rapazes”, dizem e repetem, para garantir que percebemos. O das raparigas “ka tem mas” (já não faz mais) e nem sequer há fanatecas vivas para o fazerem, garantem, acolhendo com um esgar a ideia de que meninas e meninos se possam misturar num ritual que sempre se fez em separado. Sob o alpendre, o imame de Cutia pincela uma tábua de madeira inscrita com versículos do Alcorão. Ao seu lado, nesta zona do Centro do país, estão quatro mulheres grandis, que, quando foram submetidas ao fanado, não conheciam as consequências da prática. São agora vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, uma espécie de polícia secreta que reporta eventuais casos de mutilação, ou outras práticas nocivas, para que o processo criminal possa ser desencadeado. Binta Seidi apressa-se a mostrar o telemóvel que guarda numa bolsa salmão de trazer à cintura. Foi o comité que lhe deu o aparelho, mas já não tem saldo para cumprir a função de reportar. Contas à parte, a organização liderada por Fatumata Baldé tem uma impressionante rede de vigilantes no terreno. “O combate leva algum tempo, mas não há nada que se faça sem que a população saiba”, assevera Binta Seidi, que vai tentando enganar mulheres da comunidade com falsos incentivos ao fanado, para confirmar se o fazem às escondidas. Sem sucesso, ninguém contesta a lei. O imame Bubacar Seidi ri-se das especulações sobre meninas pequenas e excisadoras ambulantes, que considera descabidas. “O Estado disse para parar e a tabanca parou”, garante. O fanado é uma cerimónia sagrada, que implica toda a comunidade e, por isso, fazer às escondidas não faz sentido. As matronas têm de estar presentes a participar e presenciar, para “correr bem”, explica Binta Seidi. Enquanto a conversa segue, um grupo de meninas dirige-se para a escola, onde se ensinam “direitos e deveres iguais” para todas as crianças. “São quase iguais. Dantes havia separação, os rapazes iam, elas não. Mas agora vão todos. Aprendem juntos, as turmas são mistas. Há raparigas que têm melhores notas do que os rapazes. Estudam mais porque querem atingir o nível deles”, diz o director da escola básica local, Iaia Sow. Apesar de, em 23 professores, ainda só quatro serem mulheres, a associação dos alunos da escola é presidida por uma rapariga. O problema é quando as meninas vão à escola e aparecem grávidas por obra e graça de professores ou alunos, denuncia a comunidade, lamentando que o castigo recaia apenas sobre a menina, que, com a gravidez não planeada, abandonará a escola, mas nada aconteça ao pai da criança. Aua Nanqui, representante das mulheres locais, conta que, na tabanca de Mandingará, elas foram pioneiras a rejeitar o fanado, por causa das consequências no parto — e os homens acompanharam a sua decisão. “Aqui as mulheres decidiram abandonar primeiro e antes de o Estado impor”, recorda. “O mais importante para uma mulher é gerar filhos, ir ou não ir ao fanado é irrelevante, desde que consiga procriar”, valoriza. Ninguém quer ir para a prisão, por isso cumpre-se a lei. Mas já antes os agentes de saúde comunitários tinham sido convincentes sobre os riscos da prática para a saúde. Como em muitos outros locais, já se fizeram mangadel (muitos) seminários e conferências sobre mutilação genital feminina. “As coisas mudaram, a educação é diferente, os tempos são outros”, observa. Duas dezenas de mulheres - grandis, badjudas e mininas, mais velhas, jovens e crianças — suspendem o quotidiano na tabanca de Linjana para exprimirem a sua opinião sobre o combate à mutilação genital. Os panos coloridos que cobrem as cabeças e os corpos contrastam com os rostos fechados. O assunto é sério e até há pouco tempo nem falar sobre ele era possível. Agora, as antenas humanas do Comité Contra as Práticas Nefastas estão espalhadas por ali, os médicos estão mais atentos e, nas mesquitas, os imames apoiam o Estado neste combate. O fim da prática não prejudicou os casamentos — os homens de agora aceitam mulheres não excisadas. Todos garantem que nenhuma das meninas ainda bebés que andam pelos colos das mulheres ali concentradas será excisada. “É crime”, assinalam. “Temos medo da lei do Estado, a lei do Estado é perigosa”, diz Ké Messén Seidi, comité de tabanca (figura escolhida pela aldeia para a gerir). Bubacar Djaló é a autoridade máxima entre os muçulmanos da Guiné-Bissau. “Nunca o islão recomenda desafiar a autoridade”, destaca. “A autoridade estatal e a autoridade religiosa coabitam. A religião está sob a autoridade do Estado, desde que este não tome decisões contrárias à religião”, realça. Ora, o fanado remete para “os usos e costumes dos povos” e não decorre de “decretos religiosos”, está “mais ligado à cultura africana do que à cultura islâmica”, distingue. O islão não recomenda a prática e todos os sábios muçulmanos sabem disso — mas isso não impede que alguns líderes religiosos atribuam “um cunho islâmico” ao ritual, admite o presidente da União Nacional dos Imames da Guiné-Bissau. “Quem infringir a lei será castigado. Não há divergência de pontos de vista, há convergência de posições”, sublinha. Há relatos de imames que aderiram ao combate à prática, mas depois recuaram, e de outros que usam as kutba (equivalentes às homilias) para a defenderem. “O imame não pode ser factor de divisão”, recomenda. “Quem pode falar do corpo humano é um médico. Um ignorante em medicina não pode prescrever nada a um doente. Quando o assunto é algo ligado à lei, é preciso ouvir quem tem formação nessa matéria”, insiste. Um grupo de rapazes banha-se no rio Mansoa, atravessado pela ponte Amílcar Cabral, nome do líder da luta pela independência da Guiné-Bissau, assassinado em 1973. Rumo a norte, passa-se um posto de controlo com a indicação de “Gabarito”, que aqui remete para mercadorias de grande envergadura e pelo qual passam enormes camiões provenientes do Senegal, demasiado pesados para as estradas existentes. O cenário muda, agora alimentado por água e um horizonte a perder de vista, pontuado por palmeiras e pirogas de madeira. A conversa é, na essência, a mesma: a mutilação genital feminina já não se pratica. Idrissa Dafé, sobrinho do chefe da tabanca Tarero, conta que, há dois anos, uma fanateca foi apanhada em flagrante numa aldeia próxima em quilómetros, mas muito distante em acesso. A mãe queria submeter a filha ao fanado, mas o pai chamou a polícia de Ingoré. Souberam do caso através da equipa de vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, mais uma vez. Há ainda outro caso a ser analisado, no tribunal regional de Bissorá: uma avó levou as duas netas ao fanado, na tabanca de Tabato, arredores de Bigene, território guineense a escassos quilómetros do Senegal. Na tabanca Boavista, as mulheres estão todas nas bolanhas. As meninas já tomaram consciência e não aceitam a prática — e também só casam quando querem. As fanatecas já morreram e não tiveram sucessoras. Ouve-se o chamamento para a oração e com ele a garantia de que os líderes islâmicos apoiam o fim da prática, que nada tem que ver com o islão. No final da oração, o imame Mamadu Djau junta-se à conversa. É jovem e esclarecido, mas diz que não compete aos líderes islâmicos denunciarem as pessoas da comunidade. Porém, garante, fazem-no ao comité de tabanca, que, por sua vez, pode comunicar com as autoridades civis competentes. A mutilação “é um prejuízo para a saúde pública” e, por isso, o imame considera que as crianças devem ser mais bem seguidas nos hospitais. A maior prova de que “o tema deixou de ser tabu” está na abordagem que ele fez junto da própria mãe, “conservadora”, mas que “confirmou as graves consequências e até falou de casos de morte”. Em 2013, foi anunciada uma fatwa (decreto islâmico) contra a prática, mas os imames guineenses ainda têm muita falta de formação teológica, avalia o líder religioso. Recordando um episódio em que foi abordado por um rapaz que questionou o seu respeito ao islão, por se opor à prática, o imame garante que não cederá a pressões da comunidade. Um quilómetro mato adentro e desemboca-se numa clareira, com um jardim infantil por estrear, à espera de um Estado que falha muitas vezes. É ali que funciona a Rádio Balafon, que tem um programa de saúde semanal. O jornalista César Cumuca acredita nas suspeitas de que a mutilação se pratica em bebés e nas fanatecas não declaradas nos bairros e desvaloriza a autenticidade das declarações públicas de erradicação da prática. “A única forma de saber é através dos agentes de saúde, reforçando vigilância nos hospitais e referenciando crianças”, defende. O bairro de Santa Clara fica nos confins dos arrabaldes da capital guineense. “De início, a comunidade sentiu-se ofendida com o Estado, foi complicado, houve uma reacção agressiva, ofensas mesmo”, relata Adama Buaro. Líder de uma manjoandade (grupo de mulheres), ela acredita que “o Estado nunca adopta leis contra o povo”, por isso a decisão de pousar as facas foi fácil. O que a preocupa actualmente são as dificuldades para as mulheres e deixa um apelo à necessidade de melhorar as suas vidas. “Há muitas mulheres que não sabem ler nem escrever”, explica. “Se uma mulher tiver conhecimento, escola, se souber ler e escrever, vai saber gerir melhor a sua vida e da sua família”, acredita. Nas entranhas profundas de Bissau fica o bairro Plack 1, onde o imame chama para a oração. Sabado Seidi tem três filhas e nenhuma delas foi ao fanado. “A princípio, não foi fácil convencer os mais velhos. ”Sueila Biai, de 25 anos, reconhece que “há divergências entre novas e velhas”. Na Guiné, 75% da população tem menos de 25 anos e o índice de crescimento populacional é dos mais altos do mundo. À entrada do Bairro Militar, um cartaz explica, recorrendo a um imame desenhado, que o fanado não é um dos cinco pilares do islão. A activista comunitária Adama Baldé aplaude o Estado por ter adoptado uma lei. “Inicialmente houve vozes contra, acusaram-nos de injúrias, humilhações e de nos vendermos à comunidade internacional. ” Tem um discurso assertivo, de mulher capacitada, que quer “acabar com tudo o que é nefasto na cultura”. Reclama vitória para os activistas, mas promete manter a vigilância. “Estamos conscientes de que continua, não pode acabar de um dia para o outro, é um processo. ”O advogado Jorge Gomes, autor das acusações de alguns dos casos de mutilação levados a tribunal, admite que a aplicação da lei seja “para inglês ver”. Os autores dos crimes “foram apanhados em flagrante e confessaram, mas não houve punição severa”, lamenta, sublinhando que o desconhecimento não isenta de responsabilidade, para mais quando foram feitas várias campanhas de sensibilização. “Onde está o efeito dissuasor?”, questiona, atribuindo aos magistrados a principal “culpa” pela não aplicação efectiva da lei. “Dantes fazia-se de forma aberta, hoje as pessoas continuam a fazer, mas de forma oculta, nos esconderijos. Fazem em bebés, muitas vezes descobre-se nos hospitais. Mas abrandou, são situações isoladas”, refere. Porém, isso deve conduzir a uma investigação “cautelosa”. A organização não governamental alemã Target foca a sua intervenção, em exclusivo, em “descolar a prática da religião islâmica”. Neste momento, trabalha com 11 imames e, entre os mais de mil que existem, sinaliza 450 “não resistentes”. Esta intervenção — explica Fernanda Machado — surge no encalço da intervenção do projecto Djinopi, coordenado por Paula da Costa, portuguesa que há décadas combate a excisão na Guiné-Bissau. “Agora só estamos a trabalhar os resistentes”, refere, distinguindo “resistência receptiva” e “resistência activa”, que encontram mais na zona Leste, “mais radical”. A dada altura, na zona de Tantan Cossé, foram recebidos com agressividade e ameaças, mas, em geral, conseguem entrar e conversar nas tabancas. A Liga Guineense para os Direitos Humanos duvida da veracidade das declarações de abandono da prática que têm proliferado desde a adopção da lei. Assinalando que o cumprimento da lei tem enfrentado muitas dificuldades, reconhece que houve evolução. Um estudo lançado em Fevereiro revelava que a prática continua e que há descoordenação no combate — entre uma grande determinação das organizações da sociedade civil, com apoio da comunidade internacional, e uma falta de correspondência das autoridades nacionais, sejam judiciais, policiais e políticas. “Não se pode acabar com uma prática secular neste período de tempo; temos a noção de que há pessoas que estão a fazer às escondidas”, admite a presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau. “Mas quem faz uma coisa às escondidas é porque sabe que o que faz não é correcto e um dia há-de cansar-se de se esconder e irá simplesmente abandonar a prática”, acredita Fatumata Djau Baldé, o principal rosto do combate à mutilação genital feminina na Guiné-Bissau. “O mais importante é que hoje já têm consciência e, em qualquer canto da Guiné, todo o mundo sabe que a mutilação é má e é crime. Hoje, mesmo os resistentes já aceitam abordar a questão. O tabu quebrou-se e todo o mundo fala”, descreve. A intervenção do comité já chegou a 786 comunidades (num horizonte de cinco mil), onde, após dois anos de trabalho, promotores locais ficam habilitados a reproduzir a acção, num eficiente esquema multiplicador em rede. Das 786 comunidades, mais de 400 já declararam ter abandonado a prática. Desde 2011, o comité registou dez julgamentos, cinco com sentença (dois em Bafatá, dois em Bissau e um em Gabú), num máximo de três anos de prisão. “A justiça não está a fazer o seu trabalho”, denuncia Fatumata Baldé, acrescentando uma suspeita ao rol: crianças da Guiné-Conacri residentes na Guiné-Bissau são levadas para a terra natal para serem excisadas lá e depois voltam. “A maioria dos imames está do nosso lado, mas existem alguns focos de resistência”, reconhece. Nas zonas com maior prevalência da prática, Bafatá e Gabú, os polícias locais têm medo de aplicar a lei, diz. Já o pessoal médico diz não ter recebido instruções oficiais para reportar casos. “Os médicos têm obrigação de respeitar a lei e deviam referenciar as meninas e mulheres sujeitas à mutilação”, sustenta, anunciando que o comité vai afixar um cartaz em todas as unidades de saúde sobre o dever de denúncia. Neste momento, o comité está em mais de 200 comunidades resistentes. “Cada zona tem o seu poço de resistência”, diz a dirigente do comité, parceiro da organização portuguesa P&D Factor, que coordena o único projecto de combate à mutilação genital financiado pelo Governo português na Guiné-Bissau. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo dados oficiais, 39% das crianças com menos de 15 anos tinham sido excisadas em 2010, percentagem que desceu para 30% em 2014, redução acompanhada por uma mudança de mentalidade. Por isso, Fatumata Baldé estima que a taxa desça outros 10% neste ano e, a manter-se a tendência, que a prática seja erradicada em 2030. Ainda falta uma orientação oficial dos responsáveis políticos do país e um posicionamento público comum dos imames, mas Fatumata Baldé está optimista. “Vamos conseguir lá chegar”, acredita esta mulher, que, nas acções de sensibilização, faz questão de usar imagens das marcas da mutilação no seu corpo. * Esta reportagem foi feita ao abrigo das Bolsas de Criação Jornalística, atribuídas pela Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), em parceria com o CESA, da Universidade de Lisboa, o CEIS XX, da Universidade de Coimbra e a associação Coolpolitics, e financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian
REFERÊNCIAS:
Imigração: A Alemanha não quer mais "tolerados"
O Bundestag aprovou este mês uma lei que abre novas condições de integração aos imigrantes “tolerados” no território mas que também aponta a prisão a quem chega à Alemanha vindo de outro Estado-membro ou pelo tráfico do Mediterrâneo. “Pensava que a Europa era um lugar onde estaríamos seguros". (...)

Imigração: A Alemanha não quer mais "tolerados"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Bundestag aprovou este mês uma lei que abre novas condições de integração aos imigrantes “tolerados” no território mas que também aponta a prisão a quem chega à Alemanha vindo de outro Estado-membro ou pelo tráfico do Mediterrâneo. “Pensava que a Europa era um lugar onde estaríamos seguros".
TEXTO: Stephan Blay tenta fazer-nos entrar sem que estranhemos os preparos à casa. Não costuma receber visitas. Deixou de saber confiar. Assim que ouve o trinco da porta destravar-se, volta o corpo de braços abertos e declama: “Welcome to my prison [Bem-vindos à minha prisão]. ” Entramos. O chá fica a fazer. Ao lado estão malas afogadas em fita-cola, uma torre de livros e cadernos, dossiers, meias dobradas ao jeito de avó, chinelos, mantas, um Pai Natal que abana o braço como um gato da sorte, carregadores de telemóvel, champôs, um cinzeiro, uma ventoinha, uma televisão e um saco de maçãs (Stephan só come fruta). As paredes são como um diário. A verde, desenhou os irmãos como bonecos de escola primária: corpos de palito e cabeças desproporcionais com riscos de cabelo. Junto ao interruptor, lê-se o diálogo que lhe anda a “perturbar a cabeça”:— Sabes de onde vens?— Não é da tua conta. — Quem és tu?— Eu venho de onde venho. Sou quem sou. O músico e dançarino costa-marfinense vive nos arredores de Hamburgo há um ano e a polícia faz-lhe perguntas todas as semanas, “por estar na rua, por não estar, de dia, de noite, não interessa a fazer o quê”. Pedem-lhe os documentos, vasculham-lhe o passado com frequência. Numa daquelas manhãs em que acordou sem fôlego — porque “a vida torna-se demasiado louca quando a cabeça funciona 24 horas por dia” —, Stephan pegou na bicicleta e foi para a Holanda, “que é já ali”, aponta através da janela. Não sabia como, mas queria escapar ao estado de intermitência a que, na Alemanha, chamam Duldung (ou “Aussetzung der Abschiebung”, isto é, suspensão de deportação). Trata-se de um certificado de “tolerância” atribuído pelas autoridades em resposta a um segundo pedido de protecção internacional dentro da União Europeia (UE). Pode balançar-se para o lado da deportação ou para mais uns meses em terras germânicas e resulta da inoperância do actual sistema de asilo europeu, baseado no regulamento de Dublin III. Na tentativa de melhor definir a política de asilo nacional, o parlamento federal alemão aprovou este mês a revisão da lei de residência, alargando condições para a permanência de estrangeiros que já habitam no país, por um lado, e impondo restrições à entrada de novos migrantes. “Já tentaram prender-me dez ou 20 vezes. Há uns meses, vieram buscar-me porque um vizinho se queixou de que eu fazia barulho. Eu sou músico, preciso de cantar. Para mim, música não é barulho. Expliquei-lhes. ” Stephan estudou Música na Libéria, o país onde cresceu entre os estilhaços de 11 anos de guerra civil e de onde fugiu, em 2006, com três irmãos. “No meu país, quem não obedece às regras do chefe tem de sair, senão, matam-te durante a noite”, explica. O chefe, neste caso, era o pai, a quem Stephan rejeitou seguir os passos no islão. A primeira língua de terra que conheceu na Europa foi Lampedusa, há oito anos. Naquela noite, era uma espécie de “terra prometida”, avistada a bordo de um barco como um enxame de luzes. “Só queríamos segui-las; tudo o resto deixou de existir. ” O resto era um grande bloco aquático, sem pontos cardeais nem certezas, para quem viajava no acaso. “Quando estamos no mar, não sabemos para onde vamos. Estamos simplesmente ali e há um homem que nos leva. Se o barco encontra o lugar certo, sobrevivemos, mas se falha a direcção e não há mais comida, percebemos que a vida chegou ao fim”, relata Stephan, de pernas cruzadas sobre o chão. A história é como muitas outras — só no barco em que chegou este costa-marfinense iam mais 340 migrantes —, mas sempre diferente porque, em vez de contar números, conta pessoas. Continua na vida em Harsefeld, uma pacata vila montada numa planície verde, a 25 quilómetros de Hamburgo, onde partilha o apartamento de três quartos com cinco africanos de países diferentes. “O único problema é que não nos entendemos, porque eles falam árabe e eu inglês”, observa. Quando Stephan chegou a Itália, os irmãos propuseram-lhe que seguisse viagem com eles, para os Estados Unidos. Até que se compreendesse por que recusou, a história avançou muitas páginas, para no fim se tornar simples. “Não fui capaz, não sei nadar. E a viagem no Mediterrâneo bastou-me. ” Antes do mar temperado, haviam-lhe custado a terra da Libéria, da Costa do Marfim e do Burkina Faso e as areias do Mali, da Argélia e de Marrocos. Foram seis meses de travessia. “Fizemos [Stephan e três irmãos] algumas partes a pé, outras de carro. Havia carros da AMI e pessoas que fomos encontrando pelo caminho. Paguei 300 dólares para que me levassem do Mali para a Argélia. Dali até Marrocos, caminhámos durante a noite. Foi quando um de nós morreu no deserto. Não comíamos há sete dias e não tínhamos água para beber. Ele [um dos irmãos] não aguentou. ”Stephan sobreviveu porque a cabeça fê-lo cortar o braço com uma lâmina, e então bebeu o próprio sangue. Fê-lo durante três dias. “Já não tinha outros líquidos no corpo. Não transpirava e não urinava há dias. Sabia que se bebesse podia morrer, mas, se não bebesse, morria de certeza. ” Enquanto desfia a história, vai viajando pelas marcas que tem no corpo. A do braço está lá. A do rosto foi-lhe desenhada à nascença. Perguntamos se sentiu medo nesses seis meses em que se separava de África e, porque a pergunta lhe parece europeia, ri. “Sei que toda a gente morre. Se morremos novos, é porque se calhar era a altura. Voltar para um país em guerra é que não é opção. Lá, sim, morrer é certo. ”Em Marrocos, onde passou três semanas numa cave com os irmãos, a guerra foi outra. “Todas as noites a polícia aparecia. Chegava, batia-nos e ia-se embora. ” Os dias passavam lentos, mortos, sem comida, na espera de que o vento e o mar acalmassem para que os barcos não se fizessem náufragos. No último areal africano, os marroquinos vêem nos negros sinais de perigo, bocas vindas para lhes comer a terra, mãos prontas a causar estragos. Ao fim de alguns dias, Stephan soube que “se não se apanhasse um barco, ali não haveria nada”. Assim que o mar virou prata, cada um dos irmãos (não conseguiram ir juntos na mesma embarcação) pagou 1000 dólares como ingresso e 500 para o “agente”. Quando a Europa passou a ser terra debaixo dos pés, conduziram Stephan até Bolonha, o lugar “onde as pessoas são boas mas não há emprego”, descreve. Em Itália chamavam-lhe “problema político”. Nem no mercado negro havia trabalho, e também não era isso que lhe interessava — afinal de contas, Stephan quer ser professor de dança. Um dia, olhou para o visto de residência emitido pelas autoridades italianas e partiu rumo ao Norte da Alemanha. “Sempre pensei que, estando na União Europeia, o que era válido num país fosse válido noutro. ” Mas a lei não funciona assim. Daí o traço vermelho sobre o novo documento de identificação e o baptismo de Duldung, o “tolerado”. , que oferece a possibilidade de permanecer no país por um período limitado de tempo (definido pelas autoridades, segundo cada caso) a quem ainda não tenha pedido asilo ou tenha visto o seu pedido negado. É, portanto, uma suspensão do processo de deportação, que obriga à reavaliação periódica do estatuto do estrangeiro junto dos gabinetes de imigração. Alguns acusam as autoridades italianas de lhes terem oferecido 500 euros para que abandonassem o país. Outros simplesmente alegam desconhecer o regulamento de Dublin III, que desautoriza um segundo pedido de asilo dentro da União Europeia. “O problema é que não nos vêem como seres humanos”, analisa Gafar, porta-voz do grupo e a viver na Alemanha desde 2000, altura em que “todos, sem excepção, dormiam na rua”. O activista togolês levou dez anos a legalizar-se. Ainda assim, considera-se com sorte. “Sou dos poucos que se podem dizer integrados”, reconhece. Mas se a actual legislação já estivesse em vigor quando Gafar chegou à Europa, talvez os caminhos que tomou tivessem sido menos penosos. Aprovada a 2 de Julho pelo Bundestag, a revisão da lei de residência (a Aufenthaltsgesetz) tenta resolver a ineficácia do regulamento de Dublin, cuja “ideia original era que não existissem, de todo, requerentes de asilo na Alemanha, já que eles ficariam no primeiro país da UE que os recebesse e, caso cá chegassem, seriam enviados de volta”, enquadra Maximilian Popp, editor da secção Alemanha na revista Der Spiegel, numa conversa telefónica com a Revista 2. No ano passado, recorda o jornalista, “apenas 10% das pessoas que pediram asilo foram mandadas para trás”. Primeiro, porque antes desse envio as autoridades alemãs devem comunicar com as do primeiro país receptor e aguardar uma resposta, “que muitas vezes não chega”, esclarece Maximilian. Segundo, porque, não raras vezes, os tribunais locais e regionais tomam decisões distintas quanto ao destino de cada refugiado. E, finalmente, porque “o país tem seis meses para poder ‘devolver’ o estrangeiro ao país ao qual ele pediu asilo”, período durante o qual é possível escapar às autoridades recorrendo, por exemplo, ao princípio de caridade das igrejas alemãs. Somando todas as equações, a Alemanha acabou por tornar-se o maior receptor de refugiados da União Europeia — segundo o relatório do Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo (divulgado a 8 de Julho), em 2014, o país recebeu 202. 645 requerimentos de protecção internacional, cerca de um terço do total de pedidos dirigidos à Europa. Mas talvez a recente alteração da lei — que a torna “ambivalente”, na opinião de Maximilian Pichl, jurista da Pro Asyl — traga mudanças ao trajecto ascendente do número de refugiados no país. Sobre a parte que se refere ao direito de permanência, a legislação abre as portas aos estrangeiros que vivam em território alemão há pelo menos oito anos (seis, caso existam menores na família; ou quatro, para menores de 21 anos que tenham frequentado o sistema de ensino nacional); que pratiquem um nível básico da língua alemã; que possuam um documento de identidade (ou possam, de alguma forma, prová-la); e que sejam economicamente independentes. O Governo anunciou a legislação como um passo em frente na integração de estrangeiros no sistema nacional, mas a principal queixa entre os requerentes de asilo político assenta precisamente no facto de não conseguirem independência económica, ou seja, emprego. Apesar de estarem autorizados a integrar o mercado de trabalho três meses após entrarem no país, o tempo investido em burocracias desde que se candidatam a uma oferta é muitas vezes suficiente para que ela se perca pelo caminho. Por outro lado, “a prioridade é dada aos alemães e imigrantes económicos”, argumenta o jornalista da revista Der Spiegel, que se questiona, por isso, sobre “quantas pessoas irão realmente beneficiar da nova lei”. Um grupo que não será certamente abrangido pela actual legislação, de acordo com Maximilian Pichl, são os maiores de 17 anos (não acompanhados por adultos) sem contacto com o ensino alemão. “Eles nunca terão acesso à autorização de permanência, uma vez que ela apenas se destina aos jovens até 21 anos que tenham frequentado a escola e que vivam cá há pelo menos quatro anos”, pormenoriza. Mas este não é o capítulo mais contestado da actual legislação. A crítica tem sido particularmente dura quanto aos critérios para a emissão dos términos de residência. Na prática, “a nova regulamentação significa que qualquer refugiado pode ser preso”, resume Pichl, uma vez que permite deter e expulsar (quase de imediato) estrangeiros que tentem esconder a sua identidade, que tenham pago a contrabandistas do Mediterrâneo para chegar à UE ou que tenham “abandonado um Estado-membro antes da conclusão do processo de análise do pedido de protecção internacional desenvolvido pelas autoridades”, como sustenta o diploma. Para Pichl, esta é “uma forte regressão na política de asilo alemã”, para além de “violar o regulamento de Dublin III, segundo o qual um refugiado não pode ser preso simplesmente por estar a decorrer o seu processo de pedido de asilo”, acusa a Pro Asyl. Também Maximilian Popp, o jornalista que tem acompanhado os desenvolvimentos desde a Primavera de 2014, altura em que o projecto de lei começou a ser discutido, a mudança no sistema legislativo é “inacreditável” e só pode servir “para assustar quem planeia vir para a Alemanha”, porque, na verdade, “não há espaço suficiente nas prisões para tanta gente”. A revolta de Edriçe é maior do que a vontade de se sentar. Quando aqui chegou, rejeitou o Duldung sugerido pelas autoridades. “É contra a lei dos direitos humanos e meio caminho para nos mandarem embora”, afirma. Ao lado, sobre caixotes transformados em sofá, os colegas encorajam-no a prosseguir. “Na Itália, deram-me documentos para poder viver e trabalhar, e todos nós pensámos que esses papéis eram válidos em toda a Europa. Só quando cheguei cá é que me explicaram que apenas valiam em Itália. Por causa disso, ainda não arranjei trabalho, como do lixo, vivo na rua. ”Como se sobrevive, então, neste regime de “tolerância”? “Há pessoas que estão aqui há mais de 20 anos sem papéis. Vivem com a ajuda da Igreja e de organizações [de solidariedade social] ou entram no mercado negro. Outras não sobrevivem, morrem nas ruas, ou enlouquecem”, responde Gafar. Mas além do que indica o imigrante do Togo, está também estabelecido pelo Governo que cada requerente de asilo tem direito a uma mensalidade de cerca de 350 euros e a um local para dormir, o que provoca contestação entre alguns alemães. “As pessoas acham que não queremos trabalhar porque recebemos um subsídio, mas eu gosto e preciso de trabalhar. Quero dar o meu contributo”, sustenta Jerry, de 30 anos, natural do Burundi. O problema, segundo Gafar, é que “aqui trabalha-se para que a Europa cresça, nunca para nós mesmos”. A conversa acende os ânimos. “Nós não precisamos da Europa para nada. Só viemos para cá por causa da guerra, que é uma guerra dos ocidentais, não nossa!”, lança Edriçe, enquanto Jerry aguarda o momento para a sua deixa: “Eu vim porque pensava que a Europa era um lugar onde estaria finalmente seguro, mas o que sinto aqui é pior. ” Mesmo se o olhar devolvido para trás mostra imagens de perseguição e de guerra, são muitos os viandantes de África e do Médio Oriente que, afinal, não querem ficar por terras frias. “Se perguntarem a dez pretos se eles querem ficar na Europa, vão responder que não. Aqui não há vida nem futuro para nós. Morremos”, teme Gafar. Tem sido contra essa impotência que se batem os membros do grupo Lampedusa in Hamburg. Em 2013, os primeiros cartazes gritavam: “We didn’t survive NATO war in Libya to die in the streets of Europe [Não sobrevivemos à guerra na Líbia para morrer nas ruas da Europa]. ” Em 2015, continuam a chegar diariamente fugitivos à tenda de Gafar, à procura de soluções, de respostas. Sentam-se sobre os edredões coloridos para ouvir como é a vida na Europa, como são os dias no país que a lidera. “Assim que lhes explicamos, muitos pegam nas malas e voltam para trás”, realça o porta-voz do grupo. Jerry aproxima-se para ampliar os testemunhos. Começa por falar da casa, chega ao supermercado. Dorme no mesmo quarto com quatro pessoas, num prédio de Wolfsburg onde vivem cerca de 150 imigrantes em situações semelhantes à sua. É também no quarto que cozinha. A conversa, agora apaziguada, parece retirar-lhe a expressão que carregava no rosto. “O final de cada dia é um alívio. É sinal de que o dia passou. ” Diz que o olham de lado, sente-se discriminado “a toda a hora, no supermercado, no autocarro, no médico, na rua”, e essas são as horas que mais custam a passar. Hamburgo não tem sido notada pelos meios de comunicação como uma cidade agreste no acolhimento de estrangeiros, mas no Leste alemão, demonstrações como as do grupo PEGIDA, contra a chamada “islamização da Europa”, são frequentes. No início deste ano, as ruas de Dresden foram semanalmente invadidas por manifestantes que se opunham à entrada de migrantes no país. Mas do acontecimento levantou-se quase em instantâneo o protesto de 35 mil pessoas contra a xenofobia e a favor de uma política mais inclusiva da parte de Berlim. Gafar admite que também em Hamburgo o apoio da população segue um movimento crescente. “Esquecemos os media, porque sempre que lhes explicamos o que se passa, saem daqui e dizem outra coisa; são manipulados pelo Governo. A partir daí, passámos a contar a nossa situação às pessoas, às escolas, a organizações humanitárias. Nas manifestações, elas juntam-se a nós. É também por isso que conseguimos manter-nos aqui. ”O Café Exil é um entre muitos pontos de encontro e de esclarecimento criados por activistas que oferecem consultoria e apoio em diferentes áreas, desde a jurídica à educacional. Funciona desde 1995, como resposta a um outro episódio marcante da legislação alemã sobre o asilo político: o de 26 de Maio de 1993, quando o Parlamento aprovou por grande maioria a reformulação do artigo 16 da Lei Fundamental, restringindo o direito ao asilo. A solução, recorda a Deutsche Welle, foi marcada por intensos debates e defendida pela União Democrata Cristã (CDU), então no Governo, que via na limitação do número de refugiados vindos da guerra na Jugoslávia a garantia da estabilidade social do país. Como atesta um dos voluntários do café, “embora as pessoas se esqueçam, a imigração em massa não é uma coisa dos últimos anos”. Nenhum deles quer nomes. “Referir o Café Exil basta. Aqui estamos todos ao mesmo nível”, consideram. A partir desta sala onde o chá e o café são à discrição e os biscoitos estão sobre as mesas, são criadas pontes com advogados e tradutores especializados, ajuda-se a preencher formulários e candidaturas, “entende-se o trabalho como um apoio político num sistema de racismo institucionalizado”, acusa a organização. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Maximilian Pichl não é tão extremista quando analisa o quadro global. Apesar da crítica persistente, o jurista da Pro Asyl reconhece que, “quanto à permissão de residência, as novas regras são progressivas e um passo na direcção certa” para o sistema alemão.
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