O último dos roceiros
É um dos países com a população mais jovem do mundo, mas um dos problemas sociais mais preocupantes é a maneira como os mais velhos são tratados. Em São Tomé e Príncipe, as mulheres de cabelos brancos, chamadas “feiticeiras”, fogem do estigma e de maus tratos alimentados pelas dificuldades económicas e pela religiosidade. A pressão demográfica fomenta vários problemas sociais de difícil resolução. (...)

O último dos roceiros
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um dos países com a população mais jovem do mundo, mas um dos problemas sociais mais preocupantes é a maneira como os mais velhos são tratados. Em São Tomé e Príncipe, as mulheres de cabelos brancos, chamadas “feiticeiras”, fogem do estigma e de maus tratos alimentados pelas dificuldades económicas e pela religiosidade. A pressão demográfica fomenta vários problemas sociais de difícil resolução.
TEXTO: Até parece que se vestiu de propósito para contar de livro aberto o que sabe da terra com sabor a café e cacau. Camisola às riscas com as cores de São Tomé. Verde, vermelho, amarelo e preto. Vê-se à distância, a aproximar-se de passo ligeiro, assente nuns chinelos direitos com os dedos de fora. Chega preparado para contar a história dos seus 82 anos, vividos por inteiro naquela roça. Ali nasceu, ali trabalhou e ali vive, sem ter visto muito mundo além daqueles cerca de mil hectares da roça Monte Café, propriedade de portugueses até à independência de São Tomé, agora quase abandonada no trabalho mas habitada por centenas de são-tomenses, muitos deles desempregados. É isso que faz doer o coração ao Doutor Paulino, como lhe chamam os que ali vivem. É o mais velho dos ex-trabalhadores ainda do tempo dos colonos da roça de Monte Café, na província de Mé-Zóchi, entre o centro e o Norte da pequena ilha de são Tomé. “É pena, estava bonito isto. Agora está tudo estragado, pá”, lança. Com os olhos fixos no chão, não por estar triste — e até o está —, sim porque, apesar de conhecer os caminhos de terra batida desde que nasceu, vai atento aos buracos e pedras que lhe aparecem de surpresa, que, sem manutenção de uma rede viária que conta com apenas três estradas alcatroadas em toda a ilha, são cada vez mais. O caminho para chegar àquela que foi uma das maiores roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe é, como quase todos na ilha principal, esburacado, por entre vegetação que cresce da noite para o dia, num clima que pode chover numa hora e fazer sol na seguinte. Ao contrário de outras roças, a casa senhorial é mais discreta. A imagem de marca, fixada nas fotografias, mostra a entrada da roça e o local que Paulino melhor conhece: à primeira vista parece um armazém com duas partes distintas e uma guarita para o segurança, mas lá dentro espraiam-se os grandes secadores. “É para mexer o cacau, para a frente e para trás”, exemplifica com os poucos grãos podres que sobram para a demonstração numa estrutura de madeira que se estende como um longo tabuleiro, antes rodeada durante a jorna por dezenas de pessoas que repetiam o mesmo gesto. Para a frente e para trás. O carregamento do cacau e do café — sobretudo o arábica, porque este é terreno em altitude, propício a esta espécie — era feito por uns vagões que rolavam entre a plantação e ali entravam, naqueles longos armazéns, num complexo mundo de roldanas e carris. Depois voltavam a sair, com destino ao entreposto da cidade de Trindade. “O comboio chegava até lá acima para ir buscar o café. ” Agora, o traçado férreo dá para lado nenhum. Os carris que ainda sobrevivem entram na terra. A erva já tomou conta e escondeu-os. Resistem poucos centímetros fora das portas dos armazéns. Os restantes desapareceram ao longo dos anos, à semelhança do que aconteceu em toda a ilha, sobretudo na altura da independência. Foram sendo arrancados como símbolo do fim da colonização, vendidos para o exterior ou aproveitados para estruturas de casas. No tempo em que a exploração agrícola feita pelos colonos portugueses em São Tomé e Príncipe estava no auge, no século XIX, a rede ferroviária contava com mais de 200km de carris, numa ilha com cerca de 900km2 (mais pequena que a área da Grande Lisboa). Agora, é inexistente. Pontuam aqui e ali sinais de que passaram em tempos comboios, mas poucos são os que ainda têm memória de os usar. Como prova de tempos que já lá vão, existe a antiga garagem de comboios no centro da capital São Tomé. Foi desactivada e só voltou a abrir como Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias (CACAU) da ilha. Dos comboios restam apenas fotografias. O fim dos carris é apenas um dos sinais da decadência económica das roças são-tomenses. Votadas ao abandono agrícola, são, no entanto, habitadas por milhares de pessoas que ou trabalham na cidade mais próxima ou estão desempregadas. Os números do Governo dizem que São Tomé tem 12, 3% de taxa de desemprego, mas as estatísticas têm alguns problemas na identificação do trabalho formal e informal. Problemas nos dados sobre o país que começam logo no apuramento ao certo da população total. A nacionalização das roças foi, para Paulino, o símbolo da destruição daquela onde nasceu. Antes, tinha “ordem”, “agora não há ordem, cada qual faz o que quer”, diz. E a ordem de antigamente implicava também o trabalho de sol a sol, a distribuição de carne de 15 em 15 dias, o pagamento de salário que pouco mais dava do que para comprar vinho e a distribuição de açoites, dados com frequência pelos capatazes aos “malandros”. O homem que trabalhou para colonos, que prolongaram a escravatura, oficial e oficiosa, quase até à independência de 1975, e agora conta a história da roça a quem a visita, não tem esperança de que esta paisagem de abandono mude no futuro próximo. A cada 30 de Setembro, o país celebra o Dia da Reforma Agrária, antes denominado Dia da Nacionalização das Roças, sem orgulho naqueles espaços praticamente abandonados nos campos, em que os cacauzeiros e os pés de café que não são trabalhados se perdem na vegetação que vai crescendo e tomando conta do espaço. “Agora é gente que está a viver aqui”, conta Paulino. “Eu trabalhei muito… a carregar cacau, trabalhei na oficina e na administração”, vai dizendo, enquanto mostra os espaços que agora não têm a utilização para que foram construídos. “Aqui era a casa dos trabalhadores. O colono deixou isto. É pena, a criança que está a nascer agora não vai saber de nada”, diz, à medida que se encaminha para a antiga zona da administração e que é agora uma sala com algumas sacas de café. Há poucos dias chegou uma máquina nova para o secar. Uma associação está a tentar produzir e exportar café de alta qualidade, reactivando aos poucos uma roça que estava abandonada. A Cooperativa de Exportação de Café Biológico Cecafeb junta pequenos produtores de café daquela roça para melhorar a vida da comunidade e já consegue produzir diferentes tipos (arábica, robusta ou bourbon). Adiante desponta a antiga senzala, agora dividida em pequenas casas, se se pode chamar assim, onde é visível a roupa estendida e os panos a fazer de janelas e portas e muita, muita gente a deambular. Mais uns passos. “Aqui era o hospital”, onde nasceu Paulino e que na maior parte das roças de São Tomé era o edifício maior e com a localização mais imponente. Agora, tornou-se creche, por onde passam as muitas crianças que ali nascem todos os anos. Outro hospital, noutras roças como a de Agostinho Neto, a maior do país, está a ser pilhado — até os pilares, que são a única coisa que resta com as paredes, estão a ser retirados para serem vendidos —, foi tomado e divide-se em casas que desenrascam as inúmeras famílias que nascem ao sabor da acelerada natalidade do país. O Doutor Paulino, aos 82 anos, é um exemplo da explosão demográfica. Tem dez filhos e “sessenta e tal netos”. “Está a ver? Foi um bom trabalho”, diz, soltando no fim uma gargalhada. Para Paulino, ter muitos filhos é motivo de orgulho e gabarolice, ele que tem a sorte de ser bem tratado por todos e de servir de exemplo. Para São Tomé, mostra dois dramas cada vez maiores e entrelaçados entre si: a explosão da juventude e os maus tratos na velhice. Na televisão, aparece o primeiro-ministro, Patrice Trovoada, que voltou a vencer as eleições do último domingo, a inaugurar uma irrigação pública para agricultura no Norte do país. Com esta medida, muitas famílias, diz, podem ter água para as suas culturas. Mas o problema, à beira daquela obra, é o mesmo que se multiplica pelas ilhas do arquipélago: a falta de terras para grande parte da população e a falta de trabalho. Patrice Trovoada, que lidera o ADI (Acção Democrática Independente), partido que venceu sem maioria absoluta as eleições de 7 de Outubro, promete rever um dos principais problemas de São Tomé, que tem que ver com redistribuição de terras. O assunto é recorrente nos últimos anos e já deu origem a vários conflitos no país, como quando anteriores governos quiseram retirar o direito de exploração de terras a quem não as explora na verdade. O mapa da propriedade de São Tomé deixou de ser uma divisão por grandes parcelas (roças), propriedades dos colonos (estima-se que existiam 150 roças em São Tomé, a grande parte do território privado do país), para ser agora caracterizado pela existência de milhares de pequenos terrenos, sem escala, muitos deles propriedade do Estado explorados por particulares, e as poucas roças, abandonadas ou dadas à exploração por empresários. Esta nova divisão territorial resulta da nacionalização das roças e de um longo e demorado processo de distribuição de terrenos pelos são-tomenses, que se iniciou no final do século passado. A nova realidade do território, virada uma nova geração, cria problemas estruturais, como é com frequência referido por técnicos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Já foi dividido. Quem tem tem e eu não tenho”, lamenta Etson Van Dunem. O sobrenome que partilha com a ministra portuguesa da Justiça, diz que por causa de uma tetravó comum, de nada lhe vale. À beira da larga estrada de pedra, imagem de marca da famosa roça Agostinho Neto, antes Rio D’Ouro, vende artesanato e é com o dinheiro dos poucos turistas que ali vão e lhe compram uma ou outra peça que consegue sustentar o casal de filhos. Aos 35 anos, Etson tem poucos filhos, quando se compara o seu agregado familiar com o dos seus mais de mil vizinhos naquela roça. Etson está por aqui porque a Agostinho Neto foi a única roça que não viu os seus terrenos serem distribuídos pelos cidadãos. A terra é de todos e de ninguém. “Na altura da independência, podia ter ganho uma parcela e crescia uma banana e dava para sustentar. O pessoal mais velho diz que antes era melhor, mas agora também é bom porque temos liberdade. Eu sinto que está melhor, a única dificuldade tem que ver com a alimentação e com o emprego. Tudo isso vai levar tempo”, lamenta. Sem a fruta-pão, a matabala, a jaca e a banana saídas da terra e sem dinheiro para as comprar, aumenta a pobreza, sobretudo nas novas gerações. “Não morrem de fome [porque há fruta]? Vou semear onde? Tenho de ter terreno. Os lotes agora são privados, temos de os comprar” e não há dinheiro para isso. Os mais jovens queixam-se da dificuldade que têm em conseguir ter comida, porque, se não herdaram ou se já não vivem com os pais, não têm terras e grande parte deles também não tem emprego. Esta colisão entre interesses das várias gerações provoca alguns problemas sociais que se prolongam há décadas e que se acentuam com a pressão que o aumento demográfico faz aos recursos destas pequenas ilhas. Dados do Banco Mundial mostram que da década de 1960 para o ano de 2017 a população são-tomense mais do que triplicou, passando de 64. 200 pessoas em 1960 para 204 mil no ano passado. Neste crescimento, é preciso ter em conta os fluxos migratórios, mas grande parte da explosão demográfica explica-se pela redução da mortalidade infantil, pelo aumento da esperança média de vida e pela quantidade de filhos por família. A sociedade são-tomense mostra cada vez mais, dizem vários envolvidos em instituições sociais, graves sinais de deslaçamento entre as gerações, com frequência dentro da própria família, um problema para a coesão social e para o desenvolvimento. Parte desse deslaçamento é explicado por ser uma sociedade onde há uma grande poligamia (dos homens), cada um tem filhos de várias mulheres e estas, quando têm novo companheiro, são culturalmente impelidas a ter um filho nesse casamento para que possam ser consideradas mulheres do novo marido. Esta acaba por ser a explicação para uma grande quantidade de famílias desestruturadas, em que a mulher toma conta dos filhos e em que há uma falha na relação entre os homens e os descendentes. Mostra também um deslaçamento que tem raiz na história. Sem população nativa, as origens dos são-tomenses são variadas, por ter sido um importante entreposto do comércio de escravos durante séculos, mas também porque, para trabalhar nas roças no século XIX e XX, chegaram àquele país muitos trabalhadores vindo das então colónias portuguesas, o que separou muitas famílias. E provocou um problema que parece difícil de resolver: a maneira como se tratam as mulheres, sobretudo as mais velhas. Hermínia tem cinco filhos que sobreviveram aos dez partos que teve. “Os meus filhos são maus”, desabafa com desespero na voz. A conversa não é coerente, fica irritada a tentar contar a história de como foi abandonada pelos filhos, mas a desconexão do pensamento de Hermínia, de 65 anos, deixa apenas transparecer a tristeza que carrega por não ser visitada por nenhum dos descendentes, de quem cuidou sempre e que, quando o tabuleiro da vida deu a volta para ser ela a precisar de ser cuidada, a maltrataram e abandonaram. Chamaram-lhe “feiticeira”. Foi recolhida pelo lar Simoa Godinho, no bairro do Hospital na cidade de São Tomé, que há anos acolhe idosos abandonados, uma obra apoiada pela Cooperação Portuguesa da área do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Começou por ter 50 vagas e agora já vai em 90 utentes e uma lista de espera de outros tantos. Os números impressionam se se pensar que a população com mais de 65 anos não ultrapassa as 5900 pessoas em todo o arquipélago. De acordo com os dados do Banco Mundial, a população acima de 65 anos, que representa 2, 9% da população total do país, está a cair desde 2005, o que pode significar que houve uma mudança na qualidade de vida dos mais velhos e deixa também transparecer a necessidade de resolver os cuidados para esta franja da população. É para isto que alerta há anos Elsa Viana, directora do lar Simoa Godinho, onde está Hermínia. “Temos experiências de idosos que chegaram aqui porque vieram com uma perna partida, com um braço partido, porque a comunidade ou a família achou que era uma feiticeira”, conta a responsável pelo lar. As mulheres mais velhas são muitas vezes chamadas “feiticeiras”, basta alguém sonhar que estava a fazer mal aos filhos ou aos netos ou “assim que as mulheres têm cabelos brancos…”. No caso das mulheres, ficarem grisalhas pode ser um problema em algumas comunidades, sobretudo as urbanas e mais pobres. Este fenómeno não é recente, mas tem-se agravado junto daqueles que não têm recursos. Há uma franja muito pequena da população que tem direito a reforma, e esse valor, residual para os gastos do quotidiano, empurra muitos idosos para a mendicidade. “Na conjuntura actual, as pessoas têm tido dificuldades em poder manter o idoso e a única forma [que encontram] é expulsar, porque acham que é um fardo e é mais um que têm de sustentar”, acrescenta Elsa, que conta que é frequente encontrar idosos a pedir junto aos mercados na capital. São estes os mais vulneráveis aos maus tratos e às acusações de feitiçaria. Um cenário que condiz com uma das conclusões de um estudo sobre o tema, que deu origem ao livro Os Filhos não Ligam. Os Filhos não Visitam. O Abandono dos Idosos em São Tomé e Príncipe, de Cristina Rodrigues (ISCTE). “Aqueles que são conotados com práticas de feitiçaria são quase sempre idosos que pedem esmola em vários locais”, pode ler-se no estudo. Quando o P2 esteve em São Tomé e Príncipe, corria de boca em boca a história de uma mulher em Santo Amaro, vítima de maus tratos severos, que lhe provocaram a morte às mãos da violência de um sobrinho. O abandono, os maus tratos e a violência que por vezes termina da pior maneira — há descrições de rituais em que os idosos são envenenados — tem sido uma preocupação de várias organizações não-governamentais que estão no país há anos. “Não creio que seja por maldade, mas por falta de condições; aqui, uma pessoa quando é mais velha, como não rende, chamam-lhe feiticeira e já não é aceite no meio familiar como deveria ser. Alguns até são, mas depois há muitos que são atirados à sua sorte”, conta a irmã Lúcia, que lidera o Projecto de Desenvolvimento Integrado para o Distrito de Lembá, da Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, um projecto apoiado a 100% por Portugal, através da Cooperação Portuguesa. Apelidar alguém de feiticeiro é acreditar numa força superior, em poderes mágicos malévolos que se apoderam de alguns mais velhos e em que os próprios, muitas vezes, acabam por acreditar, sucumbindo ao fado que é ter sido escolhido para, sem saber como, praticar ou provocar o mal. O bispo Manuel dos Santos, que está em São Tomé há mais de dez anos, faz uma ligação directa a estas crenças com o facto de haver uma realidade social onde proliferam várias igrejas, vários credos e muito paganismo, apesar de os números oficiais continuarem a dar a Igreja Católica como dominante. Sendo um assunto amplamente debatido há largos anos, o bispo de São Tomé acredita que neste momento se verifica uma “involução”. “Eu diria que hoje no mundo voltaram a aparecer determinadas ideias algo esotéricas, mágicas, primitivistas. Essa cultura, algo primitivista, não ajuda a evoluir neste campo, bem pelo contrário. Quando se entra numa cultura dualista, de forças boas/forças más, de uma certa ideia pagã da vida, onde existem forças positivas e negativas, onde existem bons espíritos e maus espíritos, não ajuda a uma evolução”, refere em conversa com o P2. Esta relação com os idosos pode parecer, à primeira vista, uma especificidade de São Tomé e Príncipe, mas para o bispo tem uma raiz na cultura africana. “Estamos numa cultura típica de África em que a doença ou a morte têm de ter uma explicação. Alguém tem de ser culpado. Muitas vezes são os idosos que sofrem essas consequências. Às vezes, os próprios pensam que podem ser, porque ser feiticeiro não se escolhe, acontece. E então é o próprio idoso que acabava por aceitar a sua sorte e viver essa dificuldade na sua vida. ”Esta ligação aos costumes e à cultura, em que a religião tem papel central, é também uma das conclusões a que chega a investigadora Cristina Rodrigues, que revela que há uma “estreita ligação” entre “o abandono de idosos e os valores e crenças tradicionais, em oposição aos valores introduzidos pelos modelos ocidentais e pela educação formal”, concluindo que as acusações de feitiçaria são mais frequentes quando estão na base “elemento relativos à condição económica, encontrando-se estreitamente conotada com a miséria e a pobreza que a aparência dos idosos e os seus actos revelam”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Do ponto de vista político, assume-se que este é um problema, que só pode ser combatido com mais educação nas escolas. Mas mudar costumes é como remar contra uma maré de correntes de águas vivas. Com a “globalização cultural, muitas vezes os nossos jovens já não seguem esta tradição que seguíamos no passado” de cuidar da família e por isso, diz o ministro do Emprego e dos Assuntos Sociais de São Tomé, Emílio Lima, é “necessário, provavelmente mudarmos os aspectos que têm que ver com a educação e a preparação da nossa sociedade, para podermos integrar aqueles que cuidaram de nós no passado e que hoje precisam que sejamos nós a cuidar deles”, refere em conversa com o P2. Raras são as respostas que são dadas a estes problemas que assolam a sociedade de São Tomé — todos eles enraizados na pobreza do país —, que tem dificuldades em encontrar um caminho para um desenvolvimento económico que amenize o drama social que se acentua a cada ano que passa. O P2 viajou a convite do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social
REFERÊNCIAS:
Religiões Paganismo
São portugueses, são muçulmanos
É o segundo maior grupo religioso do mundo, com cerca de 1,6 mil milhões de seguidores estimados. Em Portugal, calcula-se que estejam uns 50 mil. Apesar de ainda ser uma religião minoritária, ser muçulmano não é sinónimo de imigrante. (...)

São portugueses, são muçulmanos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É o segundo maior grupo religioso do mundo, com cerca de 1,6 mil milhões de seguidores estimados. Em Portugal, calcula-se que estejam uns 50 mil. Apesar de ainda ser uma religião minoritária, ser muçulmano não é sinónimo de imigrante.
TEXTO: Está sentada no banco à porta do espaço de oração reservado às mulheres na Mesquita de Lisboa, onde não é suposto os homens circularem. No interior, ouve-se o adhan, chamada para a oração. Hanifa, o seu nome de convertida, ficará de fora. Em 2008, numa conversa entre amigos muçulmanos, falou-se do profeta Maomé e Hanifa ficou fascinada sobre um tema que desconhecia. Não sabia nada sobre o islão, foi investigar. Mais tarde, numa viagem a Marrocos, em Tânger, ouviu o adhan e sentiu “qualquer coisa”. “Arrepiei-me e a primeira coisa que me veio à cabeça foi: ‘Tenho de ir à mesquita’. ”Mas não sabia rezar. Chegada a Lisboa, foi aprender árabe. O interesse pelo islão cresceu, até que em finais de 2009 se converteu. Hoje, aos 48 anos, diz que não teve de fazer grandes mudanças na sua vida. “Sempre fui cristã, mas havia algumas crenças que não faziam sentido para mim”, explica. Por exemplo, “Jesus ser filho de Deus: como é que o criador de tudo necessitava de um filho, humano?”O islão tornou-se, assim, o seu código de vida, a fé que “lhe serve”. Nasceu cristã, tornou-se muçulmana, “submissa à vontade de Deus em todas as situações”, com “capacidade de ver para além das evidências, aceitar o que nos surge na vida, o bom e o mau”. Usa o hijab (o lenço que cobre a cabeça) na mesquita, onde lecciona aulas de Português, mas também na rua — só que nem sempre. O hijab não pode ser uma peça de vestuário, um acessório, diz, é uma conduta que a mulher aceita e exterioriza. Quando anda na rua de hijab ouve, por vezes, piadas — miúdos que fingem falar árabe. Às vezes ignora, outras incomoda-se. “As pessoas ainda não se habituaram à ideia de que existem muçulmanos portugueses. Pensam que são todos estrangeiros. Muitos comentários que vejo na Internet sobre notícias como os atentados no Charlie Hebdo são: ‘Deviam ir para a terra deles. ’ Chocam-me pela ignorância. Até comentei: ‘Sou portuguesa, sou muçulmana, então para que terra é que eu vou?’ Os portugueses não se habituaram que o islão não é uma nacionalidade, é uma crença. Acham estranho como podemos ser muçulmanos num país maioritariamente católico. E desconhecem o islão: falam do Corão como um livro que incita à violência sem nunca terem lido. ”Calcula-se que existam 50 mil muçulmanos em Portugal. Há quem pense que o número tenha baixado por causa da crise, mas como não há dados oficiais não é possível saber com rigor. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa — Odivelas, Laranjeiro, Palmela, Barreiro… — mas há locais de culto no Porto e no Sul. O grosso é sunita (como no resto do mundo). 50 mil muçulmanos em Portugal. Há quem pense que o número tenha baixado por causa da crise, mas não há dados oficiais. A maioria é sunitaNo século XX, vieram primeiro nos anos 1950 e 1960, e eram moçambicanos de origem indiana. A seguir ao 25 de Abril, juntou-se outra vaga migratória vinda sobretudo da Guiné-Bissau, seguida, nas décadas seguintes, de muçulmanos originários do Bangladesh, Senegal ou Marrocos, mas em número muito menor. Abdool Magid Vakil diz que foi o segundo muçulmano a chegar a Portugal no século XX. É um dos fundadores da Comunidade Islâmica de Lisboa e um dos rostos muçulmanos portugueses mais conhecidos. Economista e gestor que exerceu cargos de chefia em vários bancos, entre eles o Banco de Portugal e mais tarde o Efisa, fez parte do pequeno grupo de estudantes universitários muçulmanos vindo de Moçambique para estudar para Portugal nos anos 1950 e 1960. Sentado no hall de um hotel lisboeta, lembra, porém, que “o fenómeno do islão é muito antigo em Portugal, já vem da Andaluzia — e depois a Inquisição fez com que parasse tudo”. Na fundação da comunidade entraram também ismailitas (uma das correntes do xiismo), pois Vakil “não fazia distinção”. Aliás, na universidade partilhava o quarto com um ismailita, “ele fazia a oração à maneira dele e eu fazia à minha”. Era uma época em que em Portugal não havia ideia do que significava ser muçulmano. “Ouviam falar dos árabes, dos sarracenos e mouros e outros nomes. Havia muita ignorância mas não havia maldade. Eu era um bicho raro. Não bebia, não comia carne…”Por outro lado, na sua família tinham medo que ele, ao vir para Portugal e ao casar-se com uma portuguesa, perdesse a prática da fé. A mulher acabaria, porém, por se converter. “Fui a primeira família muçulmana de origem indiana a estabelecer-se cá”, conta, lembrando a época em que não havia mesquita e se rezava em sua casa. Mais tarde, quando já havia uma comunidade, seria a cave da residência do embaixador do Egipto a servir de local de oração, depois fez-se uma mesquita provisória num edifício no Príncipe Real, até ser lançada a primeira pedra da Mesquita Central de Lisboa em 1979 (inaugurada em 1985). “Sou membro do European Muslim Network, um think tank baseado em Bruxelas, presidido pelo professor Tariq Ramadan. Uma vez numa reunião pública disse que em Portugal nunca houve problemas com os muçulmanos. Houve uma senhora que levantou o dedo e disse: ‘Parece que vive no paraíso. ’ E é. Somos muito permeáveis. Há curiosidade — as pessoas querem saber porque fazemos assim ou assado. Mas não são xenófobas. ”O recente episódio de vandalização da mesquita, em que alguém escreveu 1143 a graffiti a seguir aos atentados ao Charlie Hebdo, leu-o como “algo inofensivo”. Os jihadistas portugueses são “filhos de imigrantes” convertidos e “são uma excepção”: “A verdadeira jihad é dominar a minha alma tirando a maldade”, explica. Vakil não acha que os muçulmanos sejam invisíveis em Portugal, acha apenas que são discretos. Em 1991, a socióloga alemã Nina Clara Tiesler veio estudar minorias religiosas em Portugal — nessa altura, diziam-lhe que os muçulmanos eram um “não fenómeno”. Investigadora do Instituto de Ciências Sociais e docente na Universidade Leibniz de Hanôver (Alemanha), contextualiza: a elite muçulmana que veio das ex-colónias, sobretudo de Moçambique, nos anos 1950, à qual Vakil pertence, constituiu o tecido principal da primeira vaga de imigração muçulmana e continua a ter um papel-chave no destino da comunidade islâmica. São aquilo a que chama a intelligentsia da migração. “Estas figuras conseguiram um caminho muito suave do processo de integração dos muçulmanos”, diz ao telefone. Numa das suas teses, Muçulmanos na Margem: A Nova Presença Islâmica em Portugal (2000), defendeu que havia uma invisibilidade dos muçulmanos em Portugal, comparativamente ao resto da Europa. Depois disso, continuou a sua investigação em Portugal e continua a afirmar que, apesar de algumas coisas terem mudado, outras ficaram na mesma, mantendo-se alguma invisibilidade. “Na esfera pública portuguesa, não há muita discussão sobre pontos nevrálgicos que acontecem entre maiorias não-muçulmanas e minorias muçulmanas noutros países, como a educação islâmica ou a construção de minaretes, por exemplo. ”A socióloga explica-o com o facto de em Portugal a nova presença islâmica ser reduzida e com o facto de no quotidiano não ser muito fácil de identificar: não há o hábito de usar o hijab e as mulheres muçulmanas africanas, maioritariamente vindas da Guiné-Bissau, confundem-se com outras mulheres africanas. Para Nina, não há grandes diferenças, fenotipicamente, entre os muçulmanos de origem indiana e o povo português, “muito misturado”. Além disso, a questão da pobreza não está associada a minorias religiosas como em França e na Alemanha — em Portugal, apesar de afectar alguns muçulmanos, abrange outras fatias da população. Porém, “para quem tem os olhos abertos”, os muçulmanos já ganharam visibilidade, pois são “dedicados aos programas de ajuda humanitária”, como a recolha de sangue ou o banco alimentar, ou a sopa para todos na mesquita. “Quando o Governo oficialmente não podia receber o Dalai Lama, eles receberam — Dalai Lama foi à mesquita que se tornou um lugar de reunião dos presidentes de comunidades religiosas. Tanto os sunitas, como os ismailitas da Fundação Aga Khan (com o seu importante programa de ajuda social Capacidade) estão nestes terrenos que não são políticos, porque para a emancipação religiosa temos os protestantes — o que noutros países acontece com os muçulmanos. Então os muçulmanos ganham visibilidade com coisas positivas. Eles já eram portugueses antes de virem de Moçambique para Portugal, por exemplo, e quando voltaram eram retornados, não imigrantes. ”A geração seguinte integrou-se pacificamente — ou, se quisermos, invisivelmente. Nina Tiesler lembra um estudo que fez com dados até 2006 que concluiu não existirem diferenças notáveis relativamente aos hábitos e cultura do quotidiano entre jovens muçulmanos portugueses e jovens portugueses não muçulmanos com o mesmo background socioeconómico: “São até mais portugueses do que alguns portugueses. ”Vem da oração de sexta-feira na Mesquita Central de Lisboa, usa um chapéu e túnica brancos. Muhamad Traore, 26 anos, designa-se como “afro-português” — nasceu em Portugal, os pais são da Guiné. É futebolista em Oeiras, está a treinar para ser profissional. O sonho é “jogar no grande Sporting”. Sendo um dos cinco filhos de Fuad, assistente do xeque Munir, imã da mesquita, cresceu num ambiente religioso. A maior parte do seu tempo passa-o entre não muçulmanos: amigos de infância, amigos dos treinos. Se está com eles às horas de reza, num café, tem de se levantar e “correr para ir à mesquita”. Quando treina em horários incompatíveis com a oração, torna-se mais difícil cumprir. “Nem todos os jovens seguem a 100% . O meu irmão é professor no colégio de Palmela, o meu pai lá em casa aperta comigo, dá conselhos: ‘Não te esqueças de que és muçulmano, podes estar com os teus amigos, mas quando é para rezar não te esqueças, tenta dar bom exemplo aos teus amigos. ”Como muitos muçulmanos, Muhamad estudou no único colégio islâmico em Portugal, em Palmela (estava em época de exames e não tinha ninguém disponível para nos receber). Sente que a imagem do islão foi afectada com acontecimentos como o 11 de Setembro ou os ataques ao Charlie Hebdo. “As pessoas que me conhecem nunca me disseram nada, sempre me trataram bem, mas quem não é meu amigo, quando vê muçulmanos, tem aquela imagem negativa que vê na televisão. Digo sempre: ‘Não somos todos iguais, eles têm uma cultura diferente da nossa’. ”Odivelas é uma das áreas de Lisboa onde há mais muçulmanos, e mesmo ali é raro usar “esta roupa”. Repara que quando as mulheres que usam o hijab passam as pessoas olham duas vezes. Tenta não ligar. Quando aparece assim vestido, os amigos dizem a brincar: “Ah taliban. ” Mas é “tudo na base da brincadeira”, conta, a sorrir. Ele gosta de se vestir assim para se identificar como muçulmano. Mas gosta também de entrar nas igrejas e aprender sobre outras religiões. “Vivi cinco anos em Londres, lidei muito bem com judeus. A religião muçulmana é muito simples. Diz que o direito do homem é o mesmo que o direito da mulher. Até estava a comentar com um amigo que me perguntava porque é que na minha religião o homem era mais do que a mulher. Disse: ‘Não, o que um homem faz a mulher também’. ” A separação física entre homens e mulheres na mesquita não é discriminação, acontece e “ainda bem” porque o olhar humano “não tem educação”: “A hora da oração é sagrada e temos de estar concentrados. ”Em Londres, uma cidade “livre”, entra-se num banco e vê-se uma pessoa “vestida como eu” e “é o gerente de um banco” — como pode ter tatuagens e ter essa posição, lembra. “É um país onde respeitam muito as pessoas. Aqui nunca vi, não sei porquê, não sei se algum muçulmano chegou sequer a ir vestido assim a uma entrevista de emprego…” De vez em quando sai à noite, mas “ocasionalmente” — não beber álcool não lhe custa. A namorada não é muçulmana, mas ele gostaria que ela se convertesse — “vamos ver”, comenta, a sorrir. Mas já cozinha para ele de acordo com os preceitos muçulmanos: nada de carne de porco nem de carne que não é halal. O Talho Halal da Margem Sul, no Laranjeiro, fecha ao domingo e à segunda-feira, dia em que combinámos a entrevista. O dono, Adil Karim, abre-nos a porta. Passamos a montra frigorífica, em direcção à zona de pagamentos/escritório. Com chapéu branco e túnica acastanhada, Adil Karim convida-nos a sentar. Atrás de si está pendurado um quadro com um versículo do Corão, em árabe: “Ele é aquele que aceita o perdão por parte do seu servo e perdoa todos os pecados. ”Fornece outros talhos pequenos e tem clientes muçulmanos e não muçulmanos. Para os muçulmanos, a alimentação é muito importante, explica, e todos os aspectos que têm que ver com a carne, desde a pessoa que está à frente do negócio àquele que faz o abate, têm de ser respeitados. “Halal significa permitido. Como é que uma carne é considerada halal? A pessoa que vai fazer o abate tem de ser muçulmana, existe uma reza na altura da degola — não é permitido comer um animal sem levar o nome de Deus — e tem de saber como degolar para evitar a dor e o sofrimento. O objectivo da degola é que todo o sangue seja extraído do animal. Temos a crença de que se todo o sangue for retirado o animal fica apto a ser consumido e dificilmente haverá vestígios de doença. A própria carne é mais saudável. ”Adil Karim, 35 anos, veio de Moçambique com os pais para a zona do Laranjeiro, ainda criança. Já tinham alguma família e chegaram com a perspectiva de melhorar as condições de vida. Na escola achavam o seu nome diferente, mas não se sentiu discriminado apesar de ter ouvido algumas palavras mais incorrectas às quais nunca quis ligar — no geral, os portugueses são acolhedores, diz. Logo após o 11 de Setembro aconteceu andar na rua e ser chamado “taliban” ou “Bin Laden”, mas ele encarou-o “na desportiva”. “Se acontecesse numa instituição, por parte de alguém que ocupa um cargo importante, poderia considerá-lo discriminação. Na rua, acho que é mais ignorância. ”Fez o seu curso no colégio islâmico de Palmela e terminou-o em Inglaterra. “Na religião muçulmana, não há nenhum ser digno de ser adorado a não ser Deus e o profeta Maomé é servo e mensageiro de Deus — olhando para o exemplo de vida dele, tentamos seguir os seus passos a nível de vestuário, de conduta. ” Por isso acha importante vestir-se com a roupa tradicional. Se trabalhasse num banco, seria mais difícil. “Temos de respeitar a entidade empregadora, devemos seguir e cumprir com o que está estipulado. Viemos para cá, somos imigrantes, temos de nos adaptar às leis e regras do país. ”Comparando com comunidades muçulmanas noutros países, como em França, onde são “mais fogosas”, a portuguesa é discreta: “A maior parte vem com a raiz portuguesa e adaptou-se bem. ”O xeque David Munir não pára. Na manhã de uma quarta-feira recebe um grupo de pessoas nos seus 60-70 anos. Ainda não acabou o tour ao local de culto e já tem um grupo de crianças a querer entrar. Munir desdobra-se, desliga o telemóvel que toca e toca, responde às perguntas do grupo mais velho tentando separar o que são práticas que têm mais que ver com a cultura local do que com a religião. “Muita coisa que é feita no mundo islâmico não tem nada que ver com a religião. Por favor”, diz. “Se um muçulmano quiser deixar de ser muçulmano, ele deixa. Islão significa submissão voluntária a Deus. Há outro versículo que diz que não se pode obrigar ninguém a ser muçulmano. ” E continua: “Em alguns países árabes, se um muçulmano deixar de ser muçulmano, é complicado? É. Mas eu vivo em Portugal. Estamos a falar do islão. Por exemplo: mutilação genital feminina. Há quem associe ao islão. Não tem nada a ver. Suicidar, matar pessoas inocentes: é proibido”, enumera, com vigor. Os pilares do islão são cinco: declaração da crença num Deus único, as cinco orações diárias, o jejum no Ramadão, a caridade e a peregrinação a Meca pelo menos uma vez. A vida de xeque Munir passa-se neste espaço perto de Praça de Espanha, local de convergência das várias comunidades muçulmanas. A oração de sexta-feira é o resultado visual disso mesmo: mulheres com vestes coloridas e lenços sumptuosos contrastam com as mais discretas que usam o hijab em cores mais escuras. Vive no quarto andar da mesquita, onde é o imã há 30 anos. Vinha por seis meses, ficou até hoje. No escritório está uma bicicleta, na qual tenta andar sempre que possível, há livros e uma estante com aviões de miniatura pelos quais tem um fascínio. É fim do dia, e a sua mulher, com hijab, dá sinal discreto à porta, a filha entra para falar ao pai mas vai logo embora. “Beijinho”, pede Munir, perguntando se a escola correu bem. O xeque tem três filhas e um filho. Mas a vida privada é a vida privada. Começa a cair o sol, hora da penúltima oração do dia. “O islão é uma das religiões da Europa, não é só o judaísmo e o cristianismo. É muito importante os muçulmanos e não muçulmanos sentirem isto”, diz. “Para algumas pessoas em Portugal, o islão é a religião do imigrante — e não é. Nem o cristianismo, nem o judaísmo nasceram na Europa, vieram do Oriente, e o islão também. Claro que há muito mais cristãos do que muçulmanos na Europa. Mas ser muçulmano não significa que se é uma ameaça. Não podemos esquecer que os muçulmanos que vivem na Europa são europeus. ”No islão não há uma hierarquia mundial, como com os católicos. Cada país tem um líder e o xeque Munir é-o em Portugal. Acompanha de perto a comunidade há três décadas e caracteriza-a pela sua integração. “Os muçulmanos das ex-colónias podiam ter ido para um país islâmico mas vieram para Portugal porque já havia uma integração com os portugueses em Moçambique e na Guiné. As nossas equipas de futebol eram as do continente — Sporting, Benfica. ” Outra das características é existir uma interligação entre as cerca de 40 mesquitas e locais de culto espalhados pelo país, o que faz com que se conheçam bem. “Qualquer pessoa que solicite fazer um sermão eu certifico que não é um radical”, conta. Depois, se existe um problema que exige a comunidade falar, “tentamos ter uma só voz, em vez de cada um dar a sua opinião”. Compara-o ao conselho de ministros onde existe um porta-voz. “Somos poucos, conhecemo-nos uns aos outros, temos essa vantagem. No resto da Europa, há cidades em que cada mesquita começa o Ramadão em dias diferentes, aqui não. ”O impacto dos acontecimentos como o 11 de Setembro e os ataques ao Charlie Hebdo sente-se, é óbvio. “É muito complicado explicar que não tem nada que ver com o islão porque as pessoas ouvem que Alá foi vingado, etc. De um lado, tentamos esclarecer as pessoas sobre o islão, do outro condenar os atentados, uma das primeiras coisas que fizemos. Mas também tentamos reflectir na necessidade de a liberdade de expressão ter de ser respeitada. ”David Munir viu os lugares de culto espalharem-se em Portugal ao longo dos anos. Praticar o islão hoje é mais fácil para os seus seguidores. Nota também maior interesse. “Mesmo da parte dos muçulmanos há necessidade de aprofundar um pouco mais, há mais diálogo, mais debates. O que era longínquo tornou-se curto. ”Sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Arif Hossain, 28 anos, está atrás do balcão de uma das dezenas de mercearias que abriram recentemente perto do Martim Moniz e vendem de pão a especiarias. Vive em Portugal há um ano e seis meses. Natural do Bangladesh, esteve primeiro em Londres, em 2010, e depois Espanha. “O nosso país está cheio e tem alguns problemas políticos. O Governo não é bom. Não há liberdade. Não posso dizer o que é bom e o que é mau, como aqui. Eu gosto da lei e da liberdade europeias”, explica, num inglês não muito avançado. Sabe o básico de português, mas não o suficiente para manter uma conversa fluente. Mistura espanhol, português, inglês para elogiar Portugal. “Espanha e Portugal têm a mesma cultura. É bom. ”Há seis meses que trabalha nesta mercearia, cujo dono também é do Bangladesh. A família toda ficou lá. Entra um cliente e pede para pagar duas alfaces, ele responde em português. Muçulmano ou não, o que interessa é o coração das pessoas, diz-nos. Há bons e maus em todas as religiões. Hoje em dia é difícil rezar na mesquita porque trabalha o dia todo. As orações durante o dia podem ser compensadas depois, o islão permite-o. Mas seria fácil encontrar uma na zona, por exemplo, a uns 500 metros da sua loja, na Rua do Benformoso. É um espaço que, de fora, ninguém diria ser local de culto: a porta é como qualquer outra da rua. Na divisão da entrada, os homens lavam os pés, as mãos, a cara. Está, de resto, projectada a construção de uma nova mesquita nesta zona, ao abrigo de um protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e o Centro Islâmico do Bangladesh, dirigido por Rana Taslim Uddin (que estava ausente do país). O antropólogo José Mapril tem estudado os muçulmanos do Bangladesh e nota que esta comunidade sofreu uma grande transformação desde 2011. “Falamos de uma migração que chegou no final dos anos 1980, sedimentou-se ao longo dos 1990, constituíram família, investiram em negócios, na educação da família, e começaram a passar dificuldades. ”Vários têm imigrado para outros países europeus e neste momento estão “a assistir a uma reconfiguração total da população do Bangladesh”. “Muitos dos interlocutores que entrevistei e tenho acompanhado investiram numa visibilidade da sua muçulmanidade: construíram uma mesquita no Martim Moniz, organizaram orações na praça do Martim Moniz nas duas celebrações do calendário islâmico anual onde rezavam 3 mil a 4 mil pessoas. Nos últimos anos, este cenário de visibilidade deixou de ser prioridade — a questão de ser muçulmano continua a ser muito importante na transmissão para as gerações mais novas, mas não tem a expressão pública que teve no passado. ”De qualquer forma, analisa: “Os muçulmanos em Portugal sempre tiveram uma grande diversidade religiosa, de rituais, de classes — são de empresários a operários da construção civil. A migração do Bangladesh complexificou este quadro porque trouxe outras pessoas com outras origens e outras lógicas, que partilham uma espécie comum de muçulmanidade, mas têm os seus espaços autónomos. ”Namoraram seis meses até se casarem — e não foi bem namorar, explica Sara. “Conhecemo-nos primeiro. Tentamos perceber como é o rapaz, a família, depois é que começa uma aproximação maior. ” Shoeb já tinha reparado em Sara na mesquita e “chegou a ela” através do Facebook. “Falávamos pelo Facebook, uma relação mais distante”, completa ela. “Entretanto, falou com o meu primo para tentar conhecer e mostrar que era uma coisa séria. O meu primo falou com os meus pais e eu pensei melhor, vi que era uma pessoa séria. Aceitei conhecê-lo. ”A 7 de Outubro de 2011 casaram-se. Shoeb é comerciante, trabalha com artigos bordados que vende para outras lojas numa empresa da sua família, Sara cursou gestão no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, por enquanto está em casa até a filha ir para a escola. Gostaria de um dia exercer a profissão, até porque desde nova se habitou a ajudar na gestão dos lares de terceira idade do pai, moçambicano. Sara nasceu em Londres, Shoeb em Moçambique. “Rezo mais em casa, as mulheres não têm obrigação de ir à mesquita, os homens é que sim”, explica Sara, que chegou a estudar dois anos no colégio islâmico de Palmela, onde se aprende “tudo”, do Corão a História. Têm amigos que não são muçulmanos, a mistura é pacífica. Há mais curiosidade, fazem-lhes perguntas para perceber o que é o islão e ficarem a saber que aquilo que aparece na televisão — os ataques terroristas — são feitos por um grupo, não por todos os muçulmanos. “Quando é um americano, por exemplo, que mata não sei quantas pessoas, diz-se que tinha problemas psicológicos. Como somos minoria, as pessoas acabam por culpar o grupo todo, e o verdadeiro islão não é isso, é paz”, comenta Shoeb. Em Portugal, os muçulmanos não sofrem tanto essa colagem, dizem, nem são vítimas da hostilidade que acontece em países como a Alemanha, onde há marchas contra muçulmanos. Os portugueses “são muito empáticos”, considera Sara, que lembra os tempos da escola em que tinha a chave de uma sala para poder fazer as orações. “Ser muçulmano é um modo de vida, é a minha identidade”, explica. Shoeb completa: “O islão ensina tudo, desde comer a ir à casa de banho, a vestir, a forma de beber água, a resolver problemas — se não for pelo Corão, é pelos ensinamentos do profeta. ”Mais tarde, Shoeb envia-nos uma mensagem onde acrescenta: “Existe um dito do profeta que diz que não é um bom muçulmano aquele que dorme de barriga cheia enquanto o seu vizinho passa fome. Este dito não especifica se o vizinho é muçulmano ou cristão ou judeu, apenas demonstra a importância da empatia e solidariedade. A nível financeiro, posso referir os juros: para um muçulmano, são proibidos. Infelizmente um muçulmano que vive fora de um país islâmico tem de se sujeitar a esses termos. Portugal vai pagar à troika mais 50% do valor devido em juros. Sendo a troika uma instituição de ajuda, a meu ver o valor que é cobrado a Portugal não é uma ajuda mas sim um negócio. ”Sara tem um lenço na cabeça, mas “ainda” não usa o hijab. Ainda, porque quer vir a usá-lo. É esse o objectivo. “No islão, a mulher é considerada preciosa. O cabelo é a beleza da mulher, por isso Deus diz para nos cobrirmos e proteger-nos a nós próprias. Sei que devia usar, mas ainda não uso. Usei durante um ano, quando estava no 11. º ano, mas ia começar a faculdade e fiquei com um bocadinho de medo. Não sei porque ainda não chegou o dia em que acordo e digo que vou passar a usar, mas quero chegar lá. ”Shoeb gostava que a mulher tivesse hijab porque faz parte da religião e é “uma forma de ela se cobrir mais”. A mãe de Sara, a sogra, a cunhada, a sobrinha “que é mais nova”, usam hijab e ela vê hoje mais gente na rua a ter essa prática. Dilsaz Ashraf Satar Kara, professora de Inglês há quase 20 anos num externato católico na zona de Olivais Norte, Lisboa, é uma das muçulmanas que passaram a usar hijab em Portugal. Veio de Inglaterra quando tinha 19 anos. Nasceu no Malawi, colónia britânica em África. A vida não era fácil no Malawi mas o seu pai sempre fez tudo para dar educação aos filhos, “seja rapariga, seja rapaz”. Casou com um muçulmano de Moçambique, de quem teve três filhas. Os familiares estão em Londres, incluindo mãe e irmãos, e o inglês é a língua na qual prefere expressar-se. Encontramo-la numa gelataria na zona da Expo. Dilsaz comenta, sobre Londres, que é um lugar “muito fácil porque a comunidade é grande, maior”. Vem com o hijab, mas nem sempre o usou. Só o faz desde o 11 de Setembro, depois do choque com a morte de um familiar em Londres. Pensava muitas vezes na forma como poderia mostrar que era muçulmana. No funeral, ao ver outras mulheres com um “vestuário mais sério”, pensou que se calhar isso mesmo lhe poderia servir como forma de expressar a sua identidade. Encontrou, de facto, a solução. Ainda estava em Londres quando, ao telefone, comunicou ao marido a decisão. “Ele disse que era uma responsabilidade mas se era o que queria estava à vontade. ” Quando chegou a Portugal, já trazia a cabeça tapada. As colegas tiveram um choque, mas depois de uma conversa com a directora do colégio, que aceitou pacificamente a sua opção, Dilsaz ficou descansada. “Tive muita sorte. Ter abertura no meu trabalho era muito importante. ”Diz-se curiosa, tendo estudado outras religiões. Acredita que o islão pode dar paz. “Há muitas pessoas que misturam a cultura com religião. Vêem uma senhora com o hijab e podem pensar que é fanática, do grupo da maldade. ” O hijab é algo que faz parte do islão e usá-lo é “um tipo de protecção de todas as maldades”, define. Sente-se mais segura ao andar na rua com ele. “Nunca ninguém me impôs o hijab. É um acto em que podemos dizer a nós próprios que queremos aproximar-nos de Deus. Dá muita tranquilidade. ” Dilsaz confessa que ficaria mais incomodada se a obrigassem a tirar o hijab do que se a obrigassem a tirar os sapatos. As três filhas usam hijab mas nunca as tentou convencer: foi decisão própria. Mariama é uma das filhas de Manso Baldé, presidente da Associação dos Muçulmanos guineenses há 16 anos. É na associação, uma cave perto da Almirante Reis que funciona também como lugar de culto, que os encontramos. Na sala de espera há revistas, como nos consultórios médicos. Há-de aparecer um irmão mais novo de seis anos que anda a aprender o Corão e árabe no colégio de Palmela, para onde vai de carrinha às 7h30. “Todo o muçulmano tem de saber de cor uma parte do Corão. ” Manso Baldé, 57 anos, é psicólogo e muçulmano há 22. Ajuda as famílias que têm problemas. “Refugiamo-nos mais no conselho do sábio do que mandar os problemas para o tribunal. ” Objectivo: que a família não se espalhe, que os filhos respeitem os pais. “A religião muçulmana é para aumentar, não é para baixar. Temos uns 4 mil e tal associados”, contextualiza Manso Baldé. “Toda a religião muçulmana é pacífica. É uma religião de paz, não quer confusões. As pessoas é que confundem a religião com a vida mundana do dia-a-dia. Não há nenhuma religião que incentive a fazer maldade. ”As relações entre as diversas comunidades muçulmanas é boa, descreve. “Ainda hoje na oração das 16h estávamos a comentar que graças a Deus estamos num país não muçulmano e fazemos a religião que queremos. ”Toda a religião muçulmana é pacífica. É uma religião de paz, não quer confusões. As pessoas é que confundem a religião com a vida mundana do dia-a-dia. Não há nenhuma religião que incentive a fazer maldade. ”Garante que a filha Aissatu usa o hijab por opção, não a obrigou. Mas nota, sim, que há mais mulheres a usá-lo em Portugal. Interpreta-o com a influência dos contactos nas redes sociais. “Não é por causa dos pais. ”Manso Baldé telefona a Aissatu, 17 anos, que aparece pouco depois. O lenço tem pequenos bordados e uma túnica igualmente bordada. Está muito bem maquilhada. Estuda no Liceu Camões e quer seguir Direito Islâmico. A sua mãe usa o hijab, ela sabia a partir de que altura deveria usar. “No Corão está explicado que nós, quando saímos de casa, devemos tapar os cabelos, o corpo, não colocar roupas transparentes ou apertadas. Usar hijab não é sinal de opressão ou prisão, quer dizer que a mulher pode ter um papel na sociedade e que usando o hijab eleva o seu estado moral: estando assim tapadas não somos alvo de símbolo sexual. ” Uma mulher andar na rua vestida de forma provocante é incorrecto? “Acho que se desvalorizam a elas próprias. Porque o corpo é nosso e não é preciso que todo o mundo o veja. O homem cobiça muito a mulher quando está menos vestida. Esses olhares estranhos são maldosos, e elas são olhadas com cobiça e desejo. Mas não julgo. ”E ela, por ser pouco comum usar hijab em Portugal, é olhada com estranheza? Ao princípio houve quem questionasse a opção, mas nunca se sentiu discriminada. Gostaria de ver mais mulheres com hijab em Portugal: basta ver o que se passa em Londres, que conhece bem, onde há uma comunidade enorme que mostra “com bastante força o islão”, e onde há também imensas lojas onde comprar roupa. “Usar o hijab é um sinal de crença e obediência a Deus. As pessoas quando olham para mim sabem logo que eu sou muçulmana e isso é importante porque como muçulmana devo mostrar o que sou e transmitir a verdadeira imagem da religião. Se andar com sapatos altos, minissaia, dou má imagem da religião. ”Apesar de dizer que é obrigatório, o Corão não impõe o uso do hijab. Cabe à mulher decidir fazê-lo. O mesmo se passa com a barba dos homens. Matéria de vastas discussões e controvérsia, é um símbolo que muda de acordo com o contexto — o uso do hijab numa faculdade em Paris por uma aluna que participa numa luta de afirmação (porque é proibido nos espaços institucionais) não tem o mesmo significado que o seu uso na Arábia Saudita, onde é imposto, nem o mesmo que em Portugal, onde é menos vulgar, ou em Londres, onde é comum. Se para alguns pode ser visto como opressão masculina, também há quem defenda que não o é menos do que usar roupas provocantes. A antropóloga ismailita Faranaz Keshavjee lembra um episódio recente nos transportes públicos de Londres, quando estava a observar umas jovens com o hijab: a forma como o usavam e como se maquilhavam estava longe de apresentar a discrição e recolhimentos usados como justificação para o seu uso. Para a antropóloga, não se trata de concordar ou de discordar do uso, mas nota dois problemas: “O primeiro é que o véu serve, entre muitas outras coisas, para a mulher se posicionar perante Deus e a sociedade de forma modesta, humilde e discreta. Não entendo como em muitos casos, salvo algumas excepções, estas mulheres usam lenços sofisticados e de grife (tipo Channel, Louis Vuitton, etc. ) e usam maquilhagem carregada onde a sua suposta invisibilidade se torna ainda mais visível comparativamente a outras mulheres que não usam o véu. Segundo, parece que existe uma sobreposição de valores reinventados de um islão imaginado e retirado, provavelmente à letra, do Corão, que se mistura com o de ser mulher no mundo moderno. ”Aos seus olhos, o uso do hijab aparece como uma espécie de revivalismo islâmico — e fenómenos idênticos acontecem no universo masculino (barbas, túnicas, boné). Isto é algo que tem notado nos últimos anos por causa de acontecimentos como o 11 de Setembro e que passa por “um vincar mais acentuado do que é ser-se muçulmano”. E ser muçulmano é, também, em Portugal muitas coisas. Ser ismailita é diferente de ser sunita. Como no resto do mundo, também em Portugal os ismailitas são uma minoria (cá serão cerca de oito mil). Os sunitas representam mais de 80% dos muçulmanos (designam Abu Bakr como o herdeiro de Maomé e primeiro califa). Porém, por ser uma minoria e ter um líder espiritual vivo, o príncipe Aga Khan IV, a comunidade ismailita “às vezes é vista por outras comunidades muçulmanas como não sendo muçulmana sequer”, diz Faranaz Keshavjee. Em Portugal, a convivência “é muito salutar, já vem assim de Moçambique”. “Portugal e os portugueses aceitaram muito bem a coexistência e isso facilita a convivência entre todas as comunidades, acabamos por estar mais perto da identidade nacional e depois temos uma fé que praticamos. ”8 mil ismailitas a viver em Portugal, uma minoria. Os sunitas representam mais de 80% dos muçulmanosNa mesquita, juntam-se, para a oração, sunitas e ismailitas, mas os sunitas ou não muçulmanos não podem estar no espaço de oração dos ismailitas, pois para isso é preciso “aceitar que Ali e o seu representante, o príncipe Aga Khan, são o imã do tempo e eles é que têm a autoridade máxima da adaptação do texto sagrado à sua realidade contemporânea”. Não o aceitando, “não é possível fazer oração em congregação”. Os ismailitas estão, no entanto, à vontade numa mesquita porque “o princípio de aceitar que Deus é um só, Maomé é o último dos profetas e que o Corão é o livro sagrado é a linha que nos une a todos”. A comunidade ismailita portuguesa é próspera, do ponto de vista demográfico é miscigenada, é organizada, “trabalha muito bem dentro das instituições internas e faz um trabalho notável de contributo para a sociedade portuguesa”, descreve. “Toda a cultura de diáspora é muito interiorizada, se for preciso, os ismailitas emigram em busca de melhores condições de vida. ”A geração que nasceu cá tem licenciaturas, muitos tiraram mestrados ou estão a fazer doutoramentos no estrangeiro, continua. “É uma população que investe muito na área da educação — estou a incluir as mulheres, porque o mesmo que se espera de um filho espera-se de uma filha. Aliás, coloca-se a ênfase na educação secular da mulher, fora do âmbito da cultura de casa, porque desde o tempo do avô do actual líder espiritual que existem missivas no sentido de que, se os pais tiverem poucas oportunidades de dar educação aos filhos e precisarem de escolher, optem por dar educação às raparigas porque são elas que vão ser os canais de transmissão dos valores e de tudo o que está associado à literacia. ”Faranaz Keshavjee tem, porém, críticas sobre o papel da mulher na comunidade, nomeadamente quanto à ausência nos papéis de liderança, mas também as tem sobre o contexto português em geral — “não vejo mulheres na política, em cargos de liderança e de topo”. “Ao mesmo tempo, este posicionamento acaba por ser legitimado pela sociedade em que vivemos: ‘É o que se passa lá fora, portanto não é preciso fazer ajustes’. ”E a invisibilidade continua a ser um traço da comunidade muçulmana portuguesa? Faranaz Keshavjee lembra que, por um lado, nos grandes momentos nacionais os representantes das comunidades muçulmanas estão presentes, portanto existe visibilidade; por outro, “quando falamos do grosso da população, não creio que saibam o que é o islão”. É verdade que há muitas visitas de escolas à mesquita central ou ao Centro Ismaili e à Sinagoga, mas ninguém ensina a filosofia dos muçulmanos e dos judeus, o seu contributo para a História: “Esta lacuna é grave; há 20 anos que falo desta necessidade. ”De qualquer forma, dentro do contexto europeu, Portugal “é um case study”. “É importante mostrar como somos um exemplo para o resto da Europa por causa dessa convivência harmoniosa das comunidades, aceitação da diferença, vontade de conhecer. Tudo o que acontece na Europa e no mundo acaba por nos afectar, e nesse sentido tenho visto islamofobia. Preocupa-me que se ponham todos no mesmo saco quando se fala de grupos totalitaristas e extremistas. Se não se criarem medidas na nossa sociedade para que possamos fazer valer esta convivência saudável e pacífica e cultivar a boa informação vamos começar a olhar para o vizinho do lado e pensar, como já vi escrito: ‘não sei se o meu vizinho do lado não traz uma bomba com ele’. ”Hasina Saiyad, 60 anos, é vice-presidente da Comunidade Islâmica há uns três ou quatro anos - não se lembra bem. A direcção pensou nela porque não havia mulheres naquele cargo e por conhecer o seu trabalho na comissão social da mesquita como sub-coordenadora do zakat, a esmola obrigatória para os muçulmanos (2, 5% do seu rendimento anual para ajudar os carenciados), conta. O trabalho na comissão social da mesquita é das coisas que mais gosta de fazer, “é muito gratificante sentir que se está a ajudar as pessoas”, diz-nos, entre um golo no chá na sala da sua casa em Oeiras, num prédio junto à marginal. Hasina saiu de Moçambique antes da independência, em Janeiro de 1975. Primeiro foi para a Índia, onde ficou três anos, com quatro dos 12 irmãos. Em 1978 vieram para Portugal, porque se sentiam portugueses: “Andei na Mocidade Portuguesa, os meus irmãos fizeram a tropa, era natural”, conta. Instalaram-se em Oeiras, no Alto da Barra. Hasina, então a estudar Matemática, acabaria por fazer um curso de análise e programação, algo raro na altura, ainda para mais sendo mulher, e fez depois o bacharelato de informática. É consultora numa multinacional da área de automóveis há 20 anos. “As pessoas ficavam a olhar para mim: ‘não comes carne de porco porquê?”Com familiares em Inglaterra, Hasina acha que os muçulmanos em Portugal estão mais bem integrados. “Lá vivem nos mesmos bairros, não se dão com ingleses. Aqui não: os amigos dos meus filhos são cristãos, a minha melhor amiga de infância é católica. O que caracteriza os muçulmanos portugueses é a sua integração e o viver em harmonia”. Nunca usou o hijab. “Não é tão importante assim. O comportamento, a caridade, a compaixão são muito mais importantes do que usar o hijab”. O comportamento, a caridade, a compaixão são muito mais importantes do que usar o hijab”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não acha, porém, que seja sinal de opressão sobre a mulher, nem que exista machismo, até porque a religião muçulmana trata os homens e mulheres de forma igual, defende. “A mulher teve sempre o direito ao voto e toda a liberdade. No Corão a mulher é igual ao homem. A primeira esposa do profeta Maomé era comerciante. Acho que as pessoas tendem a confundir cultura com religião. Os casos de machismo existem em qualquer cultura, porque se há-de falar da religião muçulmana?”Toda a gente que a conhece sabe que é muçulmana. Ela sente orgulho em sê-lo. Acha que essa, é, aliás, uma característica comum aos muçulmanos. “A religião muçulmana é uma coisa tão simples e natural… Se por acaso deixar de fazer as cinco orações do dia não deixo de ser muçulmana, não há ninguém que me excomungue, só se eu disser: já não sou muçulmana. ”De volta à Almirante Reis, Manso Baldé diz-nos algo parecido quando lhe perguntamos se deixar de acreditar em Deus, de ser muçulmano, seria possível para algum dos seus filhos. “Não, isso não. Um muçulmano sabe que Deus existe, um muçulmano não duvida. Há muçulmanos que podem beber álcool, ou isso — é um problema entre eles. Podem falhar, porque Deus criou o ser humano para falhar, podem pecar e pedir perdão. Mas é muito difícil um muçulmano deixar de ser muçulmano. Não conheço nenhum. ”
REFERÊNCIAS:
Portugal e cinco outros países acolhem os 141 imigrantes resgatados pelo Aquarius
Lisboa aceitou receber 30 pessoas, numa solução apoiada pela Comissão Europeia. Itália e Malta, os portos mais próximos, recusaram durante dias acolher a embarcação. Acordo inclui outros imigrantes que chegaram a Malta na segunda-feira. (...)

Portugal e cinco outros países acolhem os 141 imigrantes resgatados pelo Aquarius
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 Refugiados Pontuação: 5 | Sentimento -0.12
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Lisboa aceitou receber 30 pessoas, numa solução apoiada pela Comissão Europeia. Itália e Malta, os portos mais próximos, recusaram durante dias acolher a embarcação. Acordo inclui outros imigrantes que chegaram a Malta na segunda-feira.
TEXTO: Parado desde sexta-feira a cerca de 30 milhas das costas italiana e maltesa, no Mediterrâneo, na sequência da recusa de Itália e Malta em acolhê-lo nos seus portos, o navio Aquarius recebeu finalmente luz verde para transportar as 141 pessoas resgatadas ao largo da Líbia para um lugar seguro. Seis países da União Europeia, incluindo Portugal, alcançaram esta terça-feira um acordo para repartir os imigrantes entre cinco deles. O barco operado pelos Médicos Sem Fronteiras e pela SOS Méditerranée vai aportar em Malta, anunciou o Governo de La Valletta em comunicado. Mas nenhum imigrante ficará lá: serão depois distribuídos por Portugal, Espanha, França, Alemanha e Luxemburgo. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, revelou à Lusa que ao território português chegarão 30 pessoas, enquanto o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, anunciou no Twitter que acolherá 60 pessoas. Outros 60 imigrantes de um grupo de 114 que foi resgatado por Malta na segunda-feira serão distribuídos entre os Estados-membros da UE. Segundo o executivo liderado por Joseph Muscat, a solução encontrada conta com o apoio da Comissão Europeia. Eduardo Cabrita defendeu o acordo, mas insistiu na necessidade de uma solução alargada no quadro da UE: “Entendemos que deve haver uma posição estável de nível europeu envolvendo todos. Não podemos andar aqui de solução ad hoc em solução ad hoc sempre que um navio está à deriva no Mediterrâneo. ”Na mesma linha, o director de operações da SOS Méditerranée disse em conferência de imprensa que espera que esta solução ajude a convencer de uma vez por todas os chefes de governo europeus de que a “fronteira comum no Sul da Europa” é “um problema dos 28 Estados-membros”. “Não podemos fugir às nossas responsabilidades, temos de trabalhar em conjunto”, reforçou Frédéric Penard, citado pela Reuters. Durante os últimos dias, espanhóis e franceses hesitaram em receber o Aquarius, argumentando que, à luz do direito internacional, os imigrantes deveriam ser acolhidos pelos portos dos países mais próximos do local onde foram resgatados – Itália e Malta, no caso. A posição irredutível de Roma e de La Valletta – que na hora de aceitar o Aquarius insistiu “não ter qualquer obrigação legal” para o fazer – aliada à indeterminação de Madrid e Paris, fizeram crer que se poderia repetir o impasse registado em meados de Junho, envolvendo a mesma embarcação. Mais de 600 imigrantes tiveram de esperar nove dias até serem finalmente recebidos no porto espanhol de Valência. A bordo do Aquarius a situação era delicada. Mais de metade dos imigrantes resgatados, oriundos de África, são menores, e 67 viajam sem acompanhantes. E de acordo com os Médicos Sem Fronteiras a grande maioria sofre de subnutrição. “São pessoas muito vulneráveis. Muitos são demasiado jovens, rapazes e raparigas da Eritreia e da Somália”, descreveu Aloys Vimard, daquela organização não governamental, ao El País. Para além daqueles dois países africanos, os mais representados, contam-se ainda pessoas oriundas do Bangladesh, dos Camarões, da Costa do Marfim, do Egipto, do Gana, de Marrocos, da Nigéria e do Senegal. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O anúncio do acordo surgiu poucas horas depois de os representantes políticos da Catalunha (Espanha) e da Córsega (França) se terem disponibilizado para receber os imigrantes e um dia depois de o Governo de Gibraltar ter anunciado que vai retirar sua bandeira do Aquarius. Em comunicado, o enclave britânico em território espanhol revelou que pediu ao navio que “suspendesse suas operações como embarcação dedicada ao resgate e voltasse ao seu estado original de ‘navio oceanográfico’, tal como está registado”. O não-acatamento deste pedido levou à retirada da bandeira de Gibraltar da embarcação. Numa nota enviada à AFP, a SOS Méditerranée defendeu que o pedido das autoridades britânicas não tem “qualquer fundamento técnico” e argumentou que o Aquarius “sempre foi considerado apto para efectuar operações de resgate pelas autoridades competentes”.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
A música da Lisboa invisível tem milhões de cliques no YouTube
Fazem música à margem da indústria, mas não são underground. Têm milhares – ou milhões – de visualizações no YouTube, andam em concertos por vários países, mas nem uma biografia disponível na Internet. Percurso pelos subúrbios de Lisboa à procura dos (outros) grandes hits do momento. (...)

A música da Lisboa invisível tem milhões de cliques no YouTube
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Ciganos Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fazem música à margem da indústria, mas não são underground. Têm milhares – ou milhões – de visualizações no YouTube, andam em concertos por vários países, mas nem uma biografia disponível na Internet. Percurso pelos subúrbios de Lisboa à procura dos (outros) grandes hits do momento.
TEXTO: São jovens, vivem na periferia de Lisboa, fazem música praticamente sozinhos. Muitos começaram no computador, em casa. O circuito comercial oficial não os conhece. Não estão nos tops de vendas das grandes lojas de discos. Funcionam como uma espécie de mercado paralelo da música, mas poucos conseguem viver do que criam. Os seus hits têm milhares de visualizações – alguns chegam aos milhões. Actuam no bairro onde vivem, só que a dimensão da popularidade extrapola esse território: há quem faça concertos em França, Luxemburgo, Suíça, Espanha, Cabo Verde, Angola…Isto mesmo foi o que notou o investigador em Estudos Urbanos António Brito Guterres na sua Tedx Talk do ano passado, A cidade invisível de Lisboa – a TED é uma organização dedicada ao lema “ideias que merecem ser compartilhadas”, e a Tedx é um programa organizado localmente de forma independente com o mesmo espírito. Nesta intervenção que pode ser vista no YouTube, Brito Guterres passa em revista as mudanças da cidade-centro e a formação das periferias, marcadas pelas migrações internas e pelas imigrações. Conta a história de uma professora de um dos subúrbios que queria conhecer melhor os seus estudantes através da música, mas não conseguia encontrar o que ouviam em lado nenhum (justamente porque o que ouviam estava nos circuitos que ela desconhecia). Mostrando o top 10 da loja Fnac, o investigador escolheu seis dos singles dos artistas aí representados, como David Fonseca ou Ornatos Violeta (no YouTube há vários anos) para concluir que têm pouco mais de 100 mil visualizações. Comparou com os dados de alguns singles de rappers feitos nos subúrbios, gravados em armários de quarto, cantados em crioulo e com letras duras sobre a realidade, e chegou a números muitíssimo superiores: nenhum abaixo dos 500 mil, três a bater ou a superar o milhão. “Não conhecer a cidade toda é normal, agora não conhecer algo a esta escala…”, comentava. “Um artista que tem um milhão de visualizações é artista aqui, em Londres, em Nova Iorque…” – e em todo o lado. Afinal, quem são estes artistas que estão à margem da “cidade vigente”, têm milhares de fãs, mas nem uma biografia sobre eles está disponível na Internet? O que cantam que os torna tão populares? Como gerem essa popularidade desconhecida pela indústria formal? Visita guiada por vários territórios onde a música da “cidade invisível” se faz ouvir alto e bom som. Do bloco onde vivem os pais de Loreta miram-se o castelo e os prédios de Sintra – daí o nome dado a esta localidade, Mira-Sintra. Loreta, que canta sobretudo em crioulo, tem videoclips como Mata um genio, onde aparece de armas em punho, ao lado de uma mulher loira que carrega uma espingarda, ou outros, como Vida sta mariado, a partir de uma música de Orlando Pantera, num cenário mais descontraído e de lazer. Estava em casa a fazer beat, deu-me uma "nóia" e gravei. Fui-me deitar. Depois a música ficou quatro, cinco meses em casa a apanhar pó. E quando saiu foi o boom, explodiu!Com contas no Spotify e no iTunes, duas plataformas que colocam à disposição do utilizador um cardápio vastíssimo de música, tem uma legião de seguidores – no Facebook são mais de 17 mil fãs, no Instagram cerca de 12 mil, a página do seu colectivo KBA tem 26 mil likes e há vídeos com mais de meio milhão de visualizações no YouTube – um dos vídeos, Nha identidade, chegou a ter um milhão. O fundador dos KBA, 28 anos, dois filhos, mudou-se recentemente do apartamento dos pais, no Bairro Fundação D. Pedro IV, mas é lá que nos recebe, com a mãe a abrir a porta. A população é maioritariamente composta por pessoas realojadas no início de 2000, misturando raças e etnias – brancos, ciganos, negros, afro-descendentes. Loreta começou a tentar fazer música aos 11 anos, no bairro de lata onde vivia. Experimentava com cassetes, tentava repetir partes de músicas que ouvia. O pai toca acordeão e funaná. “Cresci a ouvir música. Lembro-me de ser pequeno e os meus irmãos porem música de Cabo Verde. "A partir dos 13, com um amigo cantavam em festas da comunidade. Começaram a ganhar gosto e a ser convidados para outras festas. Gravaram pela primeira vez com o estúdio móvel do produtor e músico Primero G, num mini-disc – tinham uns 15 ou 16 anos. Mais tarde organizou-se com outros amigos para “juntar as pontas”: um comprou o microfone, outro comprou uma torre, outro comprou um ecrã e montaram o home studio, que ia girando por casa uns dos outros. A primeira mixtape que criou, “para aí em 2007 ou 2008”, nem foi ele que a colocou na Internet. Eram cerca de 11 músicas e Loreta lembra-se de ter ficado surpreendido com os convites para tocar em outros bairros. “Começámos a acreditar: o people está a gostar disto, também gostamos, vamos continuar. ”As coisas mudaram quando conheceu o “Katana” das Katana Produções, que tinha um estúdio em Odivelas onde gravaram o primeiro álbum em 2013: Desde Sempre para Sempre. Depois veio Buling, e a seguir Loreta iniciou-se a solo com os álbuns DMT, Last Hope, e, agora, Santos e Pecadores. Loreta foi mobilizador comunitário, colaborou com a organização não-governamental Olho Vivo e com o programa Escolhas, do Alto Comissariado para as Migrações, trabalhou nas obras, mas neste momento está no desemprego. A música não chega para pagar as contas. “Tenho uma casa arrendada, só com a música é impossível viver. ”Numa loja tradicional não é possível comprar a música de Loreta. Antigamente, ia a uma fábrica, fazia uns 500 CD e em cada espectáculo vendia 20. “Não sinto que tenha uma obra digna de estar à venda num circuito mainstream, porque é preciso money, horas de estúdio, é mais a qualidade do produto final, ter qualidade suficiente para passar numa rádio. ”Foi só em 2014 que actuou pela primeira vez em Cabo Verde. Quando chegou à Cidade da Praia, tinha pessoas no aeroporto à espera, a tirarem fotos em cada passo; na rua era reconhecido, os miúdos abordavam-no em massa. Abriram o concerto de Anselmo Ralph, e foram actuar em mais um par de sítios na ilha de Santiago. “Sempre a abarrotar. No show do Tarrafal estivemos duas horas para sair do palco. ”Loreta tem mais de 200 músicas que nunca pôs na Internet, trabalha a “toda a hora”. Acha que é popular por ter conseguido dar uma versão “século XXI à cabo-verdianidade”, “fácil de perceber para quem é de Cabo Verde e para quem nasceu na Europa”. Filho de cabo-verdianos que nasceu em Portugal mas não tem nacionalidade portuguesa, sente que pertence a uma geração de “afro-tugas”, um “bocado sem terra”. Da música que faz diz que é um diário ou uma chamada de atenção, “o trabalho do jornalista”, coisas que observa e acha que estão erradas. “Não sigo uma linha. Faço intervenção, mas também vou falar sobre um dia espectacular que tive. ” Fala sobre realojamentos, injustiças, violência policial. “A violência e brutalidade policial são das coisas que mais me indignam. Isso significa pôr tudo no meu saco. Todos os dias brancos roubam, todos os dias pretos roubam. Não se vê o puto de mochila branco a ser encostado à parede e revistado, mas vês acontecer isso aos jovens africanos ou descendentes de africanos. " Disso trata A bófia apontou-me uma arma. Mas, diz, só “30% a 40%” das músicas falam de temas mais duros. “Quando somos músicos 100% de intervenção, não nos tornamos populares, e isso faz com que nem toda a gente consiga ouvir a nossa voz. Se conseguir tornar-me popular para que quando abrir a boca um milhão de pessoas me ouça, então consigo intervir. ”Vai cantar no Algarve, no Porto, em Lisboa, tem um público diverso, mas acha que “a grande força” são jovens como ele, “descendentes de cabo-verdianos”. A maioria dos likes na sua página do Facebook é de Lisboa; em segundo lugar vem Luanda, depois Paris, Cidade da Praia… Já foi cantar várias vezes ao Luxemburgo e a França, à Espanha, à Suíça, a Cabo Verde, com “casa sempre acima da média”. Há um lado nele que não tem a certeza de querer fazer parte da indústria. “O CD para vender a um público maior tem de fugir um bocado ao que tenho feito. Tinha de fazer mais músicas em português, que dessem para passar num clube, e com outros conteúdos, não tão crus. ” Mas não se importava de ter os seus discos em lojas como a Fnac, “claro!”. O que ganha com visualizações no YouTube “é mínimo”: "Menos de meio cêntimo por visualização…”Não sinto que tenha uma obra digna de estar à venda num circuito mainstreamO que era preciso para viver da música? Ter alguém que lhe agendasse dois concertos por mês, pelo menos. “Os organizadores de eventos ainda têm o pé atrás por o rap ser uma música de rua, de bandidagem, e ainda não perceberam que é um mercado novo por explorar e tem muitos seguidores. ”O segredo da sua popularidade é “bastante básico”: “A música quando é boa tem pernas próprias. Quando se ouve uma boa música, mostra-se ao amigo, que mostra ao amigo, e aquilo alastra-se. ”De Mira-Sintra ao Vale da Amoreira, na Moita, são quase 2h30 de caminho em transportes públicos, comboios. Atravessamos a ponte sobre o Tejo de carro, numa manhã de sol. Do centro de Lisboa não demora mais de 30 minutos. Passamos de uma localidade com uma população de pouco mais de cinco mil pessoas para outra com cerca de dez mil, segundo os dados oficiais. Aqui vivem maioritariamente portugueses. Há também população cigana e de origem cabo-verdiana, angolana, guineense. Deejay Telio, 19 anos, e o seu colectivo Somos a Família (SAF) são mesmo uma família – a entrevista será feita em grupo, num dos pátios dos prédios do bairro, com Deedz, Dino e Ericsson. O lema dos SAF é: “Pomos a lealdade acima de tudo. ”– É aquela história do pão, né?, diz Ericsson– Eh! Já esqueci!, comenta Telio. O pão é o essencial. Estava no Minipreço a comprar pão. Este estava a comprar o fiambre – aponta para Ericsson –, este o queijo, o outro manteiga, vai apontando para os outros membros do grupo– No meio disso a gente se encontrou na caixa e viu que dava para formar uma coisa, completa Ericsson, a rir. O single oficial de Deejay Telio e Deedz, Não atendo, tem quase cinco milhões de visualizações. Que safoda, só áudio, tem quase três milhões – a mesma música, noutro clip, chega quase aos 3, 5 milhões, ou seja, mais de seis milhões no total. “Muita gente pensa que gravei o Que safoda bêbado”, ri-se Telio, cinco mil amigos e 13 mil seguidores no Facebook, 44 mil no Instagram. “Estava em casa a fazer beat, deu-me uma ‘nóia’ e gravei. Fui-me deitar. Depois a música ficou quatro, cinco meses em casa a apanhar pó. E quando saiu foi o boom, explodiu!” O segredo do sucesso? “É mais pela palavra, que 'safoda', ‘não quero saber de nada’. "Começou a fazer música no dia em que o primo lhe disse que tinha descoberto o programa com que o rapper americano 50 Cent fazia os seus beats, conta a rir. Já dançava kuduro, tinha uns 11 ou 12 anos. “Fiquei duas semanas no PC, era escola-casa, escola-casa, faltava ao treino e tudo. " O computador era da escola, tinha “uns phones normais”. E sozinho pôs-se a fazer beats para kuduro. “Lembro-me da minha primeira batida. A primeira música completa foi em 2009. ”Telio saiu de Angola com uns quatro anos, cresceu na mesma casa do Vale da Amoreira em que vive, cresceu com o “povo PALOP”. A mistura no bairro, até mesmo dos calões angolano e cabo-verdiano, reflecte-se na música. No ano passado, lançou Karanganhada – um EP que não chegou a ir para as lojas de música, foi vendido online, e em cabeleireiros e outros estabelecimentos, num circuito informal; este ano sairá Karanganhada 2, uma palavra de origem cabo-verdiana que quer dizer “festa, curtição, ambiente de convívio”. Telio quer que o seu estilo seja identificado como “karanganhada”, embora as influências nos seus beats sejam várias: pode ter trap, bongos, trompete, funaná… Fala sobretudo de animação e festa. Não aborda problemas. “Para quê falar de problemas? Quando estou ao microfone, esqueço o que está lá fora. ”Os SAF estão mais próximos do circuito comercial oficial do que nunca. Os lucros já dão para pagar as contas dos quatro elementos. Vendem música mas também t-shirts, óculos, bonés… No dia em que os encontrámos, tinham acabado de chegar de um concerto em Paris, no Vila Moura Club. O seu público é muito variado. “Estava cheio, umas 1500 pessoas. E foi a segunda vez que fomos para essa discoteca. Já estamos na fase em que damos voltas a discotecas em que estivemos. " O mercado é sobretudo em Portugal, e tocam maioritariamente em discotecas. Mas já actuaram em Angola, França, Luxemburgo, Suíça, Inglaterra – e têm marcação para Cabo Verde no Verão. Neste momento, querem negociar com as grandes cadeias como a Fnac. O estúdio, porém, ainda é caseiro. Na Arrentela, Seixal, há quase 30 mil pessoas, segundo os dados oficiais. Subimos as escadas do prédio de Primero G que tem os corredores com ventilação natural. É aqui que tem o seu estúdio Ligação Directa, uma divisão do apartamento onde vive com a mulher e o filho há nove anos. É preciso subir mais escadas dentro de casa para ir até ao sótão onde estão o computador, o material de produção, e uma colecção de vinis que são usados para samplar, com Quim Barreiros, Roberto Carlos, o hino da Internacional Socialista e muitos outros. Há cadeiras e almofadas, mas o espaço é exíguo. Primero G é o produtor de muita malta nova, alguns estão a começar, outros não. Foi fundador dos TWA, participou em filmes como Outros Bairros, de Inês Gonçalves, Vasco Pimentel e Kiluanje Liberdade. O vídeo está natural e fez com que as pessoas comentassem: "já foste ver aquele cigano de pulseira a cantar?’’Com o estúdio consegue ir conhecendo (e influenciando) novos talentos. Serve-lhe também para ir ganhando algum dinheiro nos intervalos de outros trabalhos. Faz de “tudo” naquela divisão: álbuns, EP, batidas, misturas, design para os artistas, tudo como autodidacta. O do-it-yourself é regra neste percurso que fazemos por alguns dos territórios do rap. Primero G é do tempo em que não havia Internet. Lançou o seu primeiro CD sem essa alavanca. Neste momento trabalha com cerca de dez artistas, organizando-os e orientando-os. Muitos querem falar do que ele falava há 20 anos: vida de rua, fumar ganzas, revolta com a polícia, falta de oportunidades…Há uma faceta de líder em Primero G que está bem presente e que ele não esconde. Assume o papel de monitor social, ou melhor, de mentor, até no estúdio – uma pele que vestiu quando vivia na Pedreira dos Húngaros, o grande bairro de lata na zona de Algés/Miraflores, desmantelado no final dos anos 1990. Também ele trabalhou para vários projectos de intervenção territorial e de acção social. “Tive a sorte de ter várias direcções ao longo da minha vida, se não… Cedo aprendi a sair do bairro e a conhecer outras pessoas que não têm nada que ver comigo. " E fê-lo através da música, cantando em vários espaços, e depois convidando pessoas de Lisboa para irem cantar ao bairro. “O que a gente passa toda a gente sabe. O que fazia sentido era levar isso para fora do bairro. ” No bairro onde vive agora, a polícia não incomoda, é só “pais e avós”, não se passa nada; mas nos bairros sociais as coisas são um pouco diferentes, porque a polícia entra quando quer, desabafa. Muitos rappers apareceram no estúdio de Primero G com a cena do trap, um estilo americano que ele caracteriza como mais “básico” na construção – no rap é preciso saber samplar, no trap não. "Trap" quer dizer ratoeira. Mais músicos querem fazer trap, mas é uma música “muito dark”. “Os miúdos falam de coisas muito agressivas, porque passam por coisas muito agressivas. A gente tem de interpretar: aquilo é uma forma de promoção, de ganharem moral, ou de ‘venham ver’? Toda a gente quer uma vida bacana. ” Ele próprio quando era jovem fez músicas mais negras, mas hoje fica contente por não as ter gravado, não sentiria orgulho, se o filho as ouvisse. Primero G não consegue fazer contas exactas a quanto ganha com o estúdio – é sazonal e variável. Vive também de pequenos biscates. Sente que precisava de mais tempo e espaço para desenvolver de forma sustentável aquilo que faz. Ainda não vive da música. Mas espera um dia viver. Tem um disco no circuito comercial, um álbum que chegou à Fnac: Miraflor, de 2002, com Lord G e DJ Kronic. Foi criado numa altura que era importante mostrar que se podia fazer música em casa – o single é um clássico do rap crioulo, e fala da experiência de realojamento da Pedreira dos Húngaros. Tem mais material na gaveta, mas está à espera do momento certo para lançar. Na Internet e no YouTube tem “bué de coisas”. “Por exemplo, este ano estou em dez trabalhos, porque produzi, participei. ” Deu passos em momentos importantes, agora é preciso diversificar, defende. Quer escrever um livro. Qual o impacto da música que ele produz e cria? “Não se vê, mas é grande. Temos miúdos que estiveram connosco há não sei quantos anos e que hoje estão a rebentar – por exemplo, Vado do Bairro 6 de Maio, o Loreta… Quando eles brilham, a gente também está ali, fizemos parte desse processo. "Brilham não no circuito comercial, mas noutros lugares. “O que acontece é que eles não retiram da indústria o que ela consegue dar. A gente cresceu revoltados com a indústria. Hoje em dia olho para os rapazes do Rapública e não os vejo muito diferentes de nós. No entanto, expuseram-se. Olho para a indústria como autodestrutiva: dá bué dinheiro, mas também suga muito, põe-te lá em cima, mas também te tira. ”No Monte da Caparica há blocos de prédios que foram construídos em várias fases e que pertencem a cooperativas, são realojamentos, edifícios dos anos 1990, habitados por quem se mudou do interior do país e por imigrantes. Juana na Rap, nome artístico, 24 anos, cresceu a ouvir crioulo, algo que integrou de forma natural. “Aconteceu. Nasci e cresci nesse meio, é claro que me identifico com a cultura em si”, responde, admirada, quando lhe perguntamos sobre a sua relação com a cultura negra. Portuguesa, branca, sem ligação familiar a Cabo Verde, fala e canta na língua cabo-verdiana. “A ouvir aprende-se”, diz. “Desde a infância no bairro, de tanto ouvir percebe-se. " Mas claro que existiu um esforço, embora houvesse o convívio diário. “Sinto-me muito mais à vontade a divulgar o que tenho para dizer em crioulo do que em português. Em crioulo consigo explicar e especificar o assunto. ” Também tem temas (poucos) em português. Olho para a indústria como auto-destrutiva: dá bué dinheiro mas também suga muito, põe-te lá em cima, mas também te tiraDe vez em quando Juan na Rap vai trançar o seu cabelo louro e liso, mas hoje tem-no apenas apanhado em rabo-de-cavalo. Está vestida com roupa desportiva. Nos vídeos produzidos pela Ligação Directa de Primero G é assim que aparece. Muitos foram filmados na rua onde estamos agora para a conhecer. Rodeada de homens nesses vídeos, Juana na Rap canta a vida da “street”. Acabou de lançar o seu segundo álbum. Leva-nos para debaixo de umas arcadas onde foi filmado outro vídeo, e é lá que conta, sentada no muro, que viveu no Bairro do Beato, em Lisboa, na Charneca e agora no Monte da Caparica, onde está desde os 13 anos. Começou a fazer rimas na escola, “freestyle”, improvisava com amigos. Tinha uns 15 anos e alguma “vergonha”. Disseram-lhe que podia escrever letras e assim foi. Ela e outra rapariga eram as duas únicas no meio de rapazes. “Começávamos a improvisar na escola, vinham todos a correr a pensar que era porrada”, lembra, a rir. Juana na Rap escrevia músicas em que falava da escola ou de amizades, sem um “tema directo a alguma coisa”, como agora. Agora fala de injustiças, do Estado, do Governo, da polícia, do que vê no bairro e não acha correcto. Exemplo: “Estamos aqui, se passar um carro da polícia se calhar vai parar, quer revistar, e só porque não temos documentos quer-nos levar para a esquadra. "Também ela, actualmente desempregada, não consegue viver da música. Os seus CD, um lançado em 2013, Juana na Rap (“A falar mais de mim”), e outro no início de 2016, Tcheu Barreras, onde trata temas mais gerais, dão-lhe de lucro "zero" cêntimos. “Quem não gostava de viver da música?” Entrar na kizomba ou noutro estilo mais comercial não está nos seus planos: “Tenho o meu estilo, quero manter aquela inocência. "Passou uns anos sem conhecer ninguém que a produzisse, até que um amigo, Klicklau, a levou a Primero G. “Foi uma evolução rápida, porque não tinha tido oportunidade. Antes de ir ao Primero G gravei duas ou três vezes, mas não era o trabalho que tinha em mente fazer. ”Hoje, Juana na Rap inspira-se no que vê à sua volta, na vida de rua. Ser mulher num mundo essencialmente masculino não faz dela uma rapper diferente, diz. “O que se passa no dia-a-dia é mais ou menos o mesmo. O que interessa é o que se está a dizer, mas não sinto diferença. Eu estou na luta!”Talvez seja difícil uma mulher sobressair no mundo dominado por homens, reconhece sem querer desenvolver. “Sou uma rapariga que cresceu no meio dos rapazes, sempre joguei à bola, sempre fui maria-rapaz. Nunca senti aquela diferença e no rap também não sinto. ”É Primero G quem diz: “[Juana] é tropa, pensa como nós. ” O nós são os homens. “Não se nota essa sensibilidade, mas ela existe”, comenta. É preciso deixar passar o tempo. Mynda Guevara é o grito de guerra dela. Aliás, na sua página de Facebook tem como tagline “female power”. O apelido, inspirado em Che Guevara, apareceu porque ela quer fazer uma revolução no rap: não quer ser mais uma. “Quero levar o rap feminino o mais longe possível, quero revolucionar o rap feminino”, diz, com convicção. Sentada no Espaço Jovem da Associação Cultural Moinho da Juventude, o premiado projecto social da Cova da Moura, Mynda, 19 anos, estudante de Marketing e Comunicação e estagiária na Fnac, fala com assertividade de um percurso que começou aos 14 anos. É fim de tarde de Maio e há muitos jovens a entrar e sair do estúdio onde ela se iniciou na música: um dia estavam a precisar de uma voz feminina, e ela apareceu. Desde então começou a cantar com Ridell, Dani G e outros – há vídeos no YouTube onde Mynda aparece neste bairro da Amadora habitado maioritariamente por afro-descendentes, sobretudo de Cabo Verde, com uma população estimada em cinco mil pessoas. O facto de ali haver um estúdio de gravação ajudou muito, foram lá as suas primeiras experiências. Quero levar o rap feminino o mais longe possível, quero revolucionar o rap femininoMynda e Ridell fizeram uma dupla e há “dois/três anos” arriscou lançar-se sozinha com Mudjer na rap krioulo, primeiro som a solo. A música fala justamente do facto de ser mulher e cantar rap, da forma como teve de “marcar o terreno” e de se “impor”. “Queria que quando se falasse em rap não se lembrassem que existem só rapazes a cantar, ou que o rap tem género. O rap não tem género, é para quem quiser libertar o que sente através de rimas e melodias. ”O objectivo é conseguir que cada vez mais mulheres cantem rap, “provar que têm tanta ou mais ambição do que os homens”. Para Mynda Guevara o rap é a vida. “Não consigo passar um dia sem ouvir rap. Acordo, estou a ir para o estágio e a ouvir rap. ”Recebe mensagens de vários sítios, já teve convites para ir tocar a Cabo Verde, Luxemburgo e Londres. Tem cantado à noite em eventos de rap crioulo, onde habitualmente o cartaz é feito de homens. Por enquanto não sabe contabilizar visualizações – uma pesquisa rápida mostra que as suas músicas têm milhares. O seu grande hit a solo é Li sta mudjer, com mais de 19. 500 visualizações; Objectivos, parceria com Ridel, tem cerca de 220. 500. Defende que o rap tem como objectivo ensinar e tem uma vertente activista. “Eu escrevo para ensinar, não escrevo para desviar. "Quando acabar o curso, quer fazer algo “mais elaborado”, que vá além das sete faixas soltas que já tem. “Não quero que vão ao YouTube, escrevam o meu nome e apareçam só as participações. Quero um trabalho elaborado, uma mixtape ou um álbum. Isso ajuda. ” O seu sonho: cantar em Cabo Verde, de onde são os pais. Foi na sala de sua casa que Nininho Vaz Maia, 28 anos, gravou um vídeo que se tornou viral, Música linda cigana. Aparece sentado no sofá em tronco nu, com uma guitarra e um pormenor no tornozelo: uma pulseira electrónica. Atravessamos o pátio onde miúdos jogam à bola e subimos ao apartamento de Nininho, agora orgulho da família. Tinha ido ao ginásio de manhã. Vê-se que gosta de cuidar do corpo e há até um vídeo recente de um amigo na sua página do Facebook a brincar com isso. Não são raros os comentários femininos ao seu aspecto físico. A filha brinca com um iPad onde mostra vídeos do pai. Incrustado na parede está um ecrã plasma onde passam programas da tarde. Estamos no bairro que hoje ocupa a extinta Curraleira, em Lisboa, onde vive com dois filhos e a mulher. Foi a circunstância de estar em prisão domiciliária que fez Nininho começar a cantar. O primo gravou o vídeo, a prima colocou-o no YouTube em Outubro de 2013. E, de repente, tinha-se tornado num hit. Música linda cigana é uma canção de amor com dois minutos, 800 mil visualizações e quase 500 comentários. Hoje Nininho tem duas páginas no Facebook com milhares de seguidores: na sua página pessoal são cinco mil amigos e mais de oito mil seguidores, na página de artista tem quase 10 mil likes. A história do tal hit não tem nada de extraordinário: um dia ouviu o primo, que vive na casa ao lado, cantarolar uma música. Estava a escovar os dentes às 6h, desceu as escadas, e pôs-se a tocar aquilo que assim “saiu” naturalmente, conta. “Sei que não são modos para estar no vídeo, em calções. Mas tenho a noção que ajudou, o vídeo está natural e fez com que as pessoas comentassem: ‘Já foste ver aquele cigano de pulseira a cantar?'”Segundo conta, esteve preso porque foi sair à noite, um amigo começou “à porrada” e ele acabou apanhado pela polícia. Em casa passou “muitas horas sozinho”, durante um ano e 15 dias. Descobriu que sabia compor e que “o ser humano acaba por se adaptar a tudo”. Em tempos um monitor que orientava jovens nos trabalhos de casa, num projecto social do bairro, Nininho sente que continua a ser um bom exemplo, apesar de ter estado preso. “Agora ainda sou mais. "O que se passa no dia-a-dia é mais ou menos o mesmo [que no mundo masculino]. O que interessa é o que se está a dizer. Eu estou na luta!Na Curraleira, um bairro maioritariamente de habitação social, vive a “família toda”. Da parte do pai, de etnia cigana, são uns 50 primos. A família da mãe, não cigana, também é enorme. Desde muito pequeno que canta em festas. Depois do tal vídeo, fez outro, e a seguir outro – até ser convidado para cantar ao vivo no ano passado. Hoje “está cada vez mais sério”. Já vive da música, mas também de um negócio de venda de carros que tem com o primo. “O que me alegra é estar a alegrar outras pessoas. Tirar milhares de fotografias, ser conhecido em todo o lado: isso já cansa!”Quando o vídeo foi para o YouTube, achava que ia ter um par de visualizações no bairro. Logo no primeiro dia teve mil, ficou “cheio de vergonha”. “Nunca imaginei que ia ter centenas de pessoas a pagar para me ir ver, pessoas em filas, a chover, à espera. ”Músicas suas tem umas “dez ou 11”. Mas não canta muito do repertório pessoal – canta mais covers de kizomba e outros géneros de música, algumas que adapta “para cigano”, muitas nem sabe de que autores são. “Tanto canto cigano como canto à senhor, como dizemos. Misturo. E isso vende. ” Também é criticado por não cantar só “à cigano”, ou só “à senhor”. Seja como for, já notou que há uma mudança: as pessoas estão a procurar mais música cigana. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Alentejo é a região que o mais convida para cantar em discotecas e em festas. “Digo muito que o Alentejo ficou a minha segunda casa. ” Dá concertos todas as semanas para um público vasto, diz que é “ouvido por toda a gente: brancos, ciganos, africanos”. E por todas as classes sociais: por exemplo, foi à Feira da Golegã actuar para uma plateia muito diversa com umas 800 pessoas. Não é assim tão diferente a escala de muitos destes músicos e a de alguns artistas agenciados, com empresas discográficas e marketing a trabalhar para eles. O que é diferente é a legitimação que alguns conseguem ou não atingir do circuito mainstream – um carimbo que nem todos procuram necessariamente, mas que acaba por funcionar como bitola. É através da Internet, do Facebook ou do YouTube que chegam aos fãs e aos outros músicos. O mercado paralelo da música acontece aqui – mas será que é mesmo paralelo?
REFERÊNCIAS:
Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar os outros
Em Portugal chamaram-lhes “retornados”, o que significava que tinham supostamente voltado ao ponto de onde tinham partido. A viver em Angola, há quem sinta que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi. (...)

Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar os outros
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Portugal chamaram-lhes “retornados”, o que significava que tinham supostamente voltado ao ponto de onde tinham partido. A viver em Angola, há quem sinta que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi.
TEXTO: Vivem em lusomódulos estes operários portugueses. É o nome da marca desses pequenos cubículos pré-fabricados com ar condicionado acoplado. Estaleiros como este incluem uma miniclínica, com enfermeiro e médico portugueses, uma cantina com cozinheiro português para que não se ressintam com a diferença de alimentação. De dia trabalham, nas horas vagas podem jogar dentro daquele recinto entaipado, matraquilhos, snooker, pingue-pongue, têm acesso à Internet. Chamam-se “base de vida” a estaleiros de construção civil como este do Grupo Lena Angola, que está instalado no meio do mato, na aldeia do Luvuei, província do Moxico (Leste de Angola). É assim chamado porque é suposto conter tudo o que necessitam para ali viver, sem precisarem do mundo exterior. Assim, a ganhar dinheiro sem terem grande sítio onde o gastar, até terem férias e poderem regressar a Portugal. João Duarte, engenheiro civil de 32 anos que trabalha há dois anos em Angola, é por isso que anseia, pelas férias. Angola é recurso, Angola é ponto de passagem. Tem a família, a mulher e a filha de três anos na Golegã. Veio para Angola adivinhando um fim que não foi surpresa para nenhum dos que trabalhavam na sua empresa. Ele antecipou-se e quando a Asibel Construções, na Batalha, anunciou insolvência já se tinha vindo embora. Em Angola, veio trabalhar para uma empresa portuguesa de construção, mas agora já passou para uma israelita. Mudou porque a remuneração não é só o ordenado e nesta empresa, além de ganhar melhor, passou de 22 para 54 dias de férias, tinha direito a ir três vezes por ano a Portugal, agora são quatro. E é isso que ele quer, juntar o máximo de dinheiro e ir o máximo de vezes ter com a família. Se a Asibel continuasse de portas abertas, ele estaria em Portugal. Júlio Almeida está hoje sentado numa esplanada próximo da marginal de Luanda, na cervejaria Rialto. Está sozinho, numa pose de observador. É o que tem feitos nos últimos anos, estudá-los, a estes portugueses “que chegam às malgas” empurrados pela crise, que chegam e vão, às temporadas. “Nos últimos sete anos, todos os dias chegam. ” Ao falar desses portugueses é como se houvesse entre ele e eles um fosso que os separa, um “eu” e “os outros”. É verdade que ele só voltou definitivamente “a África” na década de 1990, mas, no seu caso, é como se nunca de cá tivesse saído. Em Portugal, chamavam-lhes em tempos “retornados” — “não brinques com eles que são retornados”, ouviu Júlio na escola — porque supostamente tinham voltado ao ponto de onde todos tinham partido. A viver em Luanda, ele sente que agora é que retornou ao sítio de onde sempre foi. Não está sequer a falar de Angola. A sua infância nos tempos em que Portugal “ia do Minho a Timor” foi em Moçambique, mas lá ou em Angola, é como se tudo fosse uma continuação. Fala de “África” como se fosse um país. Nasceu em 1968 em Moçambique, a sua foi a última família portuguesa a sair de Vila Pery, agora chamada Chimoio. Com o 25 de Abril e a chegada da independência do país, em sua casa foram ficando estacionados vários carros, cerca de 15. Pertenciam às famílias que não puderam fugir a conduzir para Portugal, pessoas desesperadas que tentaram transformar tudo o que possuíam em dinheiro. O avô de Júlio foi-lhes comprando estes carros que não podiam levar com eles, por ser “bom samaritano” e porque estava convencido de que ele próprio nunca ia fugir, como esses portugueses que lhe pediam ajuda. A família de Júlio Almeida, portugueses radicados em Moçambique há três gerações, foi, de facto, ficando. Com os carros dos outros a apanhar pó, sem nunca lhes ligarem o motor. Ficaram mesmo quando viam passar “camionetas com pessoas estropiadas” a serem levadas para o hospital, mesmo quando na escola ficava triste porque havia colegas que deixaram de o chamar Júlio para se passarem a dirigir a ele como “o branco”, mesmo quando havia tiros na rua e as janelas de casa passaram a estar forradas a colchões, mesmo quando já não havia petróleo para comprar, nem sabão, nem massa, nem arroz. O avô e o pai teimavam em ficar, “isto ainda há-de ser terra para todos”. Até que a matriarca, avó Maria Ernestina, a independência tinha sido declarada há cinco anos, corria já 1980, disse: “Se vocês quiserem ficar ficam, eu pego nos miúdos e levo-os. ” Júlio tinha sete anos. E os homens da família acabaram por aceitar o inevitável. Passaram os últimos dias em Moçambique a comer lagosta e camarão, a gastar o dinheiro que em Portugal não ia valer nada. Os carros lá permaneceram, estacionados. Espinho. 1980. “O frio. . . . Senhoras de lenços na cabeça. ” Quando Júlio Almeida chegou a Portugal: “Pensei que aquilo era o inferno. ” Ao avô e ao pai pareceu-lhes o mesmo. O avô morreu três anos depois de terem voltado para Portugal, e o pai, cinco anos. Acha que foi da amargura: “Definharam e morreram. Vi-os morrer de tristeza. ” A avó ainda insistia com o avô, para ver se ele saía de casa e se animava — “vai lá fora, vai ao café”, e ele respondia-lhe “e vou conversar o quê com esta gente?”. “Com esta gente. ” Era a completa falta de identificação. Júlio não deixou que isso lhe acontecesse. Tirou o curso na Escola de Hotelaria do Porto e voltou. Primeiro para Moçambique, depois para Angola. Para África. Voltou uma vez a Vila Pery, com 22 anos. Não é de nostalgias mas teve necessidade de ir visitar a povoação onde foi feliz na infância, para ver se ainda existia a casa onde viveu. Foi só essa vez, garante. Está transformada em edifício do Governo e nada mais quer dizer sobre o assunto. “Foi o que foi. Do passado vivem os museus. ”Ele não voltou para o passado que deixou, com saudosismo do império português. Nada de material ficou desse tempo e o desapossamento na sua infância, o virem de mãos a abanar, talvez tenha ficado naquilo em quem ele se transformou. “Não tenho nada meu. A casa onde vivo é arrendada, nem o candeeiro da mesinha de cabeceira é meu. ” Voltou para uma forma de vida, a que associa a liberdade com que viveu a sua infância, de quando era pequenino e roubava mangas das árvores e brincava nas linhas de caminho-de-ferro de Vila Pery. “Recuso a limitação. Tu podes, assim tu queiras”, dizia-lhe o avô que morreu de tristeza. Quando mandou um currículo para vir trabalhar para Angola “calhou na guerra”. Foi trabalhar para uma empresa do grupo Espírito Santo, a OPCA, Obras Públicas de Cimento Armado. Ele era o responsável de “bases de vida”, tratava do alojamento e do transporte de comida de locais onde tinham de ser criadas condições de vida para “os poucos brancos que tinham ficado”, normalmente engenheiros. E parece que a guerra condizia com ele. “Adoro o caos. ” As oportunidades, os improvisos, a desorganização. O seu trabalho vivia disso. “Numa cidade inteira sem água, imagine que conhece um gajo com um camião-cisterna?” Numa cidade sem fornecedores de alimentação, “comprava-se aos putos que roubavam dos contentores do porto. Isto é Fellini”. Conta tudo isto de camisa de alças e chinelos, a comer frango de churrasco com jindungo [malagueta]. A guerra civil angolana acabou em 2002, ele hoje é director de alimentação e bebidas da multinacional sul-africana Shoprite, um grande grupo de retalho africano. “É miraculoso o que se passou aqui em dez anos. Não havia restaurantes, estar aqui a comer frango no churrasco…” Agora, faz-se uma viagem Luanda-Lobito em cinco horas, mas durante a guerra levava cinco dias, até porque não se podia guiar à noite — parava-se o carro ao lusco-fusco, cobria-se com uma rede verde do exército e camuflava-se com ramos cortados até nascer o sol, lembra. Fala como se tivesse saudade do tempo da guerra e do caos, e é como se os outros, os que chegaram há pouco só para ganhar dinheiro, não compreendessem Angola, porque não sabem o que é querer mesmo viver no país, sem as facilidades que há hoje, por mais que se fale das oscilações do preço do petróleo, de alguma insegurança, do preço alto do custo de vida, das dificuldades em mandar dinheiro. Júlio Almeida faz parte de um pequeno grupo de portugueses que sempre quiseram ficar. E quando retornaram tiveram mesmo de querer ficar. “Esta é a minha terra. ”Ele sabe que nunca mais voltará a viver em Portugal mas que “na vida não há cesto cheio”. Tem três filhas no Porto, a mais velha tem 25 anos, a mais nova 18. “Ficarei sempre em África. Sou um híbrido, o branco mais preto de Angola. ” Ouve com bonomia quando nas notícias angolanas às vezes se diz, por tudo e por nada, que o que corre mal na Angola de agora é “culpa do colono”. Está convencido de que é por falta de alternância política que se escolhe esse bode expiatório: não podendo dizer que o culpado é o outro partido, diz-se que é culpa do colonizador. Desvaloriza. Sorri. Sei que não é o maior país do mundo, mas fico chateado quando alguém vem para cá criticar. O trânsito é o grande problema da nossa cidade, isso e a falta de sinais, de passeios”Em 1975, quando Angola se tornou independente, Mário Pires tinha três anos. Não é por se lembrar mas por ouvir contar que sabe das dificuldades por que passaram os poucos portugueses que insistiram em ficar. De acordo com a História de Angola (de Douglas Wheeler e René Pélissier, Tinta da China Edições), dos 330 mil portugueses residentes em Angola em Abril de 1974, apenas 30 a 40 mil permaneciam no território em Março de 1976. A família de Mário faz parte deste número. No apartamento da família, em Luanda, contam-lhe que chegou a haver destroços de morteiros e que houve um vizinho que um dia os protegeu, que mentiu por eles. Estavam em casa, e ele disse a um grupo de homens que um dia chegaram, muito provavelmente para a saquear, “a casa está vazia”. Eram os tempos da ponte aérea, em que milhares de portugueses radicados em Angola fugiam em pânico para Portugal. Os pais não a apanharam, ficaram e, nessa altura, era mesmo preciso querer ficar. “Na fuga, prevaleceu o medo de morrer. Os meus pais também tinham medo de morrer”, mas ficaram. “Estavam bem misturados. ” Mário lembra-se de ter conhecido Agostinho Neto, o primeiro Presidente angolano. Tinha oito anos quando tiveram de dar o braço a torcer. Em 1981, o pai decidiu “que queria outra estabilidade”. Mas só aguentaram quatro anos em Portugal. Em 1985, estavam de volta, tinha Mário 12 anos. “Não aguentaram Portugal. Nunca se conseguiram adaptar ao modo de vida português. ”Naquele tempo, para voltar a Angola, também era mesmo preciso querer regressar, diz Mário Pires, engenheiro electrotécnico de 41 anos e proprietário de uma empresa de projectos e fiscalização (de electricidade). A mãe também vive em Luanda, o pai morreu no ano passado, “se fosse vivo, faria 60 anos de Angola” — não conta com a interrupção de quatro anos em Portugal. Os seus avós chegaram a Angola na década de 1940. Da guerra civil angolana, que começou logo em 1975, ficaram aquelas histórias que, com o tempo, perderam o dramatismo e entraram no anedotário de família: como quando ele, quando era pequeno, e não percebia que havia uma guerra a correr, aprendeu a adorar pão sem fermento, como se aquele fosse o verdadeiro pão. Não percebia que o pão diferente não era uma iguaria mas uma consequência das dificuldades de acesso a alguns bens alimentares, não se conseguia comprar pão nem fermento para o fazer em casa. Eram tempos em que a mãe tinha de ir para a fila do pão ou da farinha. Não diz que passaram fome, fala de tempos em que tinha de haver “gestão da alimentação”. Era o tempo em que valia a troca directa, grades de cervejas, por exemplo, eram uma valiosa moeda, conta, até podiam dar para comprar um bilhete de avião. Os pais mandaram-no estudar para Portugal em 1992, foi em Lisboa que tirou o curso de Engenharia e onde conheceu a mulher, que agora vive com ele em Luanda. Para casar com Mário, tinha de querer vir para Angola porque ele não se imagina a viver noutro sítio do mundo. Não é qualquer pessoa, e é como se essa adaptabilidade, “quando voltámos estava tudo revirado, em obras”, fizesse parte do encanto da mulher com quem se casou e com quem teve duas filhas. Quando voltou definitivamente, homem casado, em 2005, Luanda não vivia os mesmos problemas de quando ele era pequeno e havia a guerra, mas ainda encontraram muitas limitações. Por exemplo, não podiam habituar as filhas, hoje com 6 e 11 anos, a uma determinada marca de papa ou de iogurtes porque de uma semana para a outra podia já não haver à venda. Dois pacotes de papas podiam chegar a custar 100 dólares. Havia muita imprevisibilidade. Os que, como ele e a família, têm uma ligação afectiva com Angola são uma minoria de portugueses que se distinguem bem porque voltaram muito antes da crise. Mário assistiu, nos últimos anos, à chegada de centenas de portugueses. O sociólogo Rui Pena Pires, coordenador científico do Observatório da Emigração, estima que “actualmente, se quisermos falar só de emigrantes portugueses (o que significa que os nascidos em Angola que aí viviam antes da independência e que ficaram não contam, mesmo tendo conservado a nacionalidade portuguesa), teremos sempre menos de cem mil pessoas (nascidos em Portugal e residentes em Angola). Mais provavelmente cerca de 60 mil”. “Existem pessoas da geração do meu pai que guardam rancor. Houve muita gente no pós-independência que tentou recuperar património em Angola, os que conseguiram alguma coisa foram muito poucos”, diz Mário Pires. O primo, licenciado em Gestão de Empresas, está há sete anos na mesma Luanda que Mário, mas por razões pragmáticas. Porque nasceu cá ainda conseguiu aproveitar uma janela de oportunidade, conseguiu em 2005 adquirir a nacionalidade angolana. Mas é franco, veio porque em Portugal não conseguia arranjar emprego. Prevalecem os portugueses que, como Bruno, vêm por quatro ou cinco anos para ganhar dinheiro. Se lhe saísse o Euromilhões, Bruno não ficava por cá, voltava para Portugal; se calhasse a Mário, este aproveitava para melhorar o seu negócio. “Eu sou angolano, dou muito valor a ser angolano. Daqui não saio. ”Mário Pires não tem nada contra os recém-chegados. Há entre os que chegam nos últimos anos “pessoas que se entusiasmam com o país e outras que têm medo e não atravessam a rua”. O que não aprecia é a atitude dos que só dizem mal do país, da cidade. Só lhe apontam a insegurança, a sujidade. “Sei que não é o maior país do mundo, mas fico chateado quando alguém vem para cá criticar. O trânsito é o grande problema da nossa cidade, isso e a falta de sinais, de passeios. ”O primo Bruno foi assaltado, à mão armada, dentro de casa, roubaram-lhe computador, PlayStation, documentação, telemóveis relógios, perfumes, conta. Mário Pires tenta arranjar atenuantes para aquele assalto, e ao fazê-lo está a defender Angola, “a minha terra”. Ninguém lhe tira da cabeça que foi alguém que conhecia o primo e que teve com ele um desentendimento ou que houve imprudência por parte do primo, todos os dias com o portátil às costas. Estudaram-lhe as rotinas, há que ter cautelas. Mário Pires faz jogging na marginal de Luanda e nunca teve problemas. Quanto ao clima político, diz que começa a haver abertura, há manifestações, há a TV Zimbo, que já é mais crítica. Só que, na altura de voltar, a mulher não quis vir com ele. “Não volto para Angola, aquilo cheira mal”, disse-lhe. Referia-se talvez aos esgotos do prédio onde viviam, mas na verdade estava a falar do país. Ora para Sérgio “Angola cheira bem, cheira bem demais”. Mas um casal para quem o país cheira bem a um e a outro cheira mal não pode ficar junto, sobretudo se a pessoa a quem cheira bem não consegue viver noutro sítio. Foi essa a razão de as vidas se terem separado. Sérgio escolheu Angola. “Fugi de Portugal. “Em Angola, no regresso, senti-me amado. ” Quando voltou, diz, “éramos poucos”. Foi em 1981, “não gostava de guerra, mas vivia na guerra”. No restaurante português onde hoje encontramos Sérgio Figueiredo, a marisqueira Brito, nos arredores de Luanda, está a comer cozido à portuguesa. Em som de fundo ouve-se o fado As canoas do Tejo — “Quando há norte pela proa/ Quantas docas tem Lisboa/ E as muralhas que ela tem” — cantado com sotaque angolano pelo cantor de karaoke de serviço. Vítor Brito, o filho do proprietário, diz que fideliza os seus clientes com pratos certos, leitão à Bairrada, cozido à portuguesa. A televisão está ligada num canal português que mostra notícias de um afogamento na Ericeira. Sérgio Figueiredo vem cá regularmente. Este engenheiro civil, que trabalha desde que se lembra na construtora Mota Engil, diz que tem as coisas bem definidas. Quando há braços-de-ferro políticos entre Angola e Portugal, torce por Angola, diz que chegou a ser militante do MPLA, “vivi intensamente a libertação do fascismo, era contra o Salazar”; quando é futebol, “sou por Portugal”, quando toca a comida, “só portuguesa”. Nada de funge (papa de farinha de mandioca muito comum na cozinha angolana). Esta é a Angola que eu amo, é a Angola em que eu vivo”Sérgio diz que não tem saudades do passado, da Angola portuguesa. “Esta é a Angola que eu amo, é a Angola em que eu vivo. ” Teve um AVC há um ano. Não volta a Portugal há quatro. Decidiu que nunca mais volta. Tem medo de morrer lá, ou no avião, “mesmo que me enterrem cá não é a mesma coisa”. Ele não arrisca. Está convencido de que o risco de os aviões caírem aumentou com a crise económica, que ajudou à deterioração das condições dos pilotos, a menos cuidados com a manutenção dos aviões. Vive entre dois mundos. Fala todas as semanas com a mulher portuguesa que nunca quis vir com ele no regresso à sua Angola, mas que ele continua a sustentar à distância, porque, diz, “não acredito no divórcio”. À mesa da marisqueira Brito está sentado com ele uma criança, o Paulinho. O menino mulato grita “quero massa, quero massa”, embora Sérgio insista em tentar dar-lhe cozido à portuguesa, “come a carninha”. É seu filho, tem sete anos. Fê-lo com uma mulher angolana. “Eu gosto da minha mulher, é uma pessoa séria. Damo-nos bem ao telefone. O facto de ter outras mulheres não quer dizer que desgostei. Um homem pode ter filhos até morrer e continuar a gostar da mulher. É saudável, é normal. ”Quis muito ter este filho, mesmo admitindo que é pai-avô. Chama-lhe “um clone do Paulo”. Paulo era o nome de um outro filho com o mesmo nome que lhe morreu com 28 meses, em 1972, em plena guerra colonial, era Angola portuguesa. Morreu de paludismo, “houve ignorância do médico militar português”. “Sempre quis ter um filho como aquele. ”Dá a este o que nunca pôde dar ao outro, deixa-o fazer de tudo. Diz que é “um menino livre, um guerrilheiro” – “pôs o telemóvel no microondas, o cão na máquina de lavar louça. Dei-lhe quatro iPad, partiu-os todos. Comprei-lhe mais dois. ”Sérgio nunca quis ter nada seu quando regressou a Angola, mas mudou de ideias por causa daquele seu filho novo, que tem a nacionalidade angolana e portuguesa. Anda há uns meses a construir uma vivenda próximo de Luanda para lhe deixar. Faltam uns meses para estar terminada. Sobre Portugal, fala das “péssimas condições criadas pelo excelente Governo que temos, que faz com que as pessoas queiram sair, como os nossos antepassados emigrantes”, como o seu pai, que chegou a Angola na década de 1950, como trolha. Diz que Angola guarda oportunidades para quem tem de sair. Foi isso que disse à sua filha mais velha que vivia em Portugal e não arranjava emprego, tinha o curso de Topografia e ele conseguiu trazê-la para Angola, e cá “estava lançada”. Colocaram-na na cidade do Soio, tinha 34 anos. Morreu com paludismo, que não foi logo diagnosticado. Sérgio continua a aconselhar os portugueses a virem para Angola. “Só lhes peço para terem cuidado com o paludismo. ”Sérgio pensa que a sua mulher portuguesa culpa-o até hoje pela morte desta filha, culpa até hoje Angola pela morte dos seus dois filhos portugueses. Até isso o separou de Portugal, o facto de agora já não ter lá nenhum filho. “Cá em Angola, tenho dois filhos vivos e dois filhos mortos. ” Além de Paulinho tem a Rosete, uma outra filha, de 28 anos, que teve com outra mulher angolana, é licenciada em Economia numa faculdade angolana, diz com orgulho. Este ano, Sérgio vai mandar o filho pela primeira vez a Portugal mas não o vai acompanhar, manda a filha mais velha. Quer que ele conheça os seus irmãos, quer que o filho conheça o sítio onde o pai nasceu, mas aonde não torna porque tem medo de morrer em Portugal. Na Luanda do presente, as ruas têm nomes como Avenida Ho chi Minh ou Avenida 4 de Fevereiro. Mas ainda se vêem, perdidas, placas a que ninguém liga mas que ninguém se deu ao trabalho de retirar, como a Rua Oliveira Martins. Houve um tempo em que todos aqueles objectos ocupavam o espaço público angolano, depois foram substituídos para serem colocados ali, para serem vistos como relíquias do passado. Maria Ribeiro, casada com um português que quase não saiu de Angola a não ser para estudar e para a conhecer, veio mostrar a uma amiga espanhola o antigo forte de Luanda, que hoje se chama Museu Nacional de História Militar. “Neste museu nos é revelada a história de todas as guerras do heróico povo angolano”, lê-se numa placa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As figuras de pedra estão dispostas ao lado da Renault 6 “utilizado pelo camarada presidente António Agostinho Neto”. porque são apenas um capítulo da história de Angola. A entrada para o forte tem uma primeira entrada que antecede a oficial, entra-se através de uma enorme estrela do MPLA com homens negros agrilhoados que se soltam e empunham arcos e setas e catanas. À entrada, a estátua mais gigantesca de todas — Afonso Henriques, a maior das figuras portuguesas, fica-lhe abaixo da anca — é Ginga, a rainha africana que ousou enfrentar os portugueses, tem um machado na mão. “Isto é história, agora é uma Angola nova”, diz Maria Ribeiro, de 50 anos, apontando para as estátuas de Portugal. É preciso perceber que esse capítulo encerrou para se viver bem em Angola. Olhando do forte de Luanda, contam-se hoje 18 gruas a girar no horizonte, estão a acrescentar arranha-céus à paisagem, uma é da construtora portuguesa Soares da Costa, os sons de rebarbadora e martelos pneumáticos abafam os sons dos apitos dos carros que circulam na marginal.
REFERÊNCIAS:
Mentira, fascismo e Bolsonaro: assim se votou em Lisboa
Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde os brasileiros votaram, alguém escreveu "fascismo sempre" numa mesa. E pôs o nome de Assunção Cristas numa lista de políticos anti-imigração. Apoiantes de Bolsonaro negam posições fascistas de candidato. (...)

Mentira, fascismo e Bolsonaro: assim se votou em Lisboa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde os brasileiros votaram, alguém escreveu "fascismo sempre" numa mesa. E pôs o nome de Assunção Cristas numa lista de políticos anti-imigração. Apoiantes de Bolsonaro negam posições fascistas de candidato.
TEXTO: “Não deixe seu celular virar seu inimigo, fuja das fake news. ” A frase está em cartazes pendurados na entrada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde funcionou neste domingo uma das secções de voto em Portugal para as eleições presidenciais brasileiras. Mas a mensagem não chegou a tempo para alguns dos que se deslocaram à Faculdade – onde estão registados mais de metade (são 21 mil) de todos os eleitores brasileiros (um total de quase 40 mil) em Portugal, num universo de quase 85. 500 cidadãos a viver no país. Bolsonaro ganhou aqui com 64, 4% dos quase sete mil votos válidos, ultrapassando a votação que tinha tido em Lisboa na primeira volta. Diane Almeida, 29 anos, está com a filha ao colo e não tem problemas em revelar que irá votar no candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro, porque tem “a esperança que faça a diferença” e porque o Partido do Trabalhadores (PT, esquerda, cujo candidato é Fernando Haddad) é “uma corja de corrupção”. Mais difícil é admitir que subscreve as ideias do candidato que disse abertamente ser a favor da tortura e da ditadura militar, que proferiu discursos de ódio homofóbico e racista e que não tem pudor em defender posições machistas nem afirmar que irá banir os opositores. Estão disponíveis na Internet, em vários vídeos no YouTube, as imagens do próprio Bolsonaro a dizer: “Sou favorável à tortura”, “fecharia o Congresso nacional”, “durante a ditadura militar só desapareceram assaltantes e marginais”, “ter filho gay é falta de porrada”, “os afrodescendentes dos quilombos não servem nem para procriar” ou “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre". Diane Almeida afirma, com segurança, que todas essas ideias “são invenção da media”. “Nunca ouvi ele a dizer nada disso. É tudo mentira o que a media fala. Se ele fosse racista não teria negros trabalhando com ele, se ele fosse machista não teria mulheres [na equipa]. ” O marido subscreve e Diane Almeida, há 12 anos a viver em Portugal, afirma imediatamente, em tom de confronto: “Se você está a fazer essas perguntas [sobre Bolsonaro] é porque é PT. ”Empregada de mesa, é através do Facebook e das redes sociais que se informa. A negação sobre as ideias de Bolsonaro é, aliás, comum a vários dos apoiantes com quem o PÚBLICO falou. A engenheira civil Imaculada Moreira, 58 anos, dá respostas semelhantes. Está com o seu iPhone a fotografar o momento. Não quer dizer explicitamente em quem vota, mas fica claro que será em Jair Bolsonaro. “No PT não votarei nunca na minha vida”, afirma. “Com certeza quero votar pela mudança. Aí você já vê em quem vou votar. ”Com uma empresa no Brasil, vive parte do ano em Portugal e parte no Brasil. Quando lhe perguntamos se não teme o regresso da ditadura militar responde: “Ele não é um ditador, ele não tem soldados ao lado dele, tem técnicos. Não vai existir ditadura. ”Ideias de extrema-direita ninguém tem coragem de defender abertamente, mas houve quem escrevesse numa mesa do restaurante da Faculdade de Direito, no andar de baixo do local onde as pessoas votam, "fascismo sempre", ao lado das palavras “Montijo”, “#assunção, #orban, #salvini” – referência a Assunção Cristas, líder do CDS que disse preferir não votar em nenhum dos candidatos, e a dois políticos anti-imigração, Viktor Órban, primeiro-ministro húngaro, e Matteo Salvini, ministro do Interior italiano. Na mesa pode ainda ler-se: “Quem se sentar aqui é merdas (e gay). ”A ocasião serve também para encontros. Há grupos a conversar aqui e ali. Edylamar Sousa, governanta doméstica num lar, está a ser fotografada pela amiga na escadaria da entrada da Faculdade de Direito. “A violência não se combate com violência”, diz. "Sou 13” – o que quer dizer que apoia Fernando Haddad. Há filas de carros e filas de gente à porta das urnas. José Roberto Pinto, cônsul do Brasil, afirma que está “tudo correndo bem” e tranquilamente, sem desacatos ou tensão. Na primeira volta, a 7 de Outubro, houve problemas provocados por apoiantes de Bolsonaro. “Aparentemente”, há uma “óptima afluência”. Aqui, a primeira volta teve 35% de participação e deu a vitória a Jair Bolsonaro com 56% dos votos. Uns levam a bandeira do Brasil pelas costas mas muitas pessoas vestiram T-shirts mostrando de que lado estão da barricada. Umas mais explícitas, com a cara de Bolsonaro, outras com frases completas. Maria Elisa Oliveira tem estampada na T-shirt branca: “Covarde é quem joga fogo no circo e foge. ” É um “recado para quem está botando fogo no Brasil e vem para Portugal”, é para quem “enfiar a carapuça”, explica esta reformada de 61 anos que lamenta a “desinformação que faz com que essa gente vote Bolsonaro”. “Não é preciso muito, não: se for ao Google vai ver as coisas da boca dele”, diz. Mas “Deus está no comando”. Embora ainda esteja indecisa a minutos de votar, Linda Sales diz que não escolhe “nenhum dos dois; são dois extremos”. Professora do secundário reformada, há 31 anos em Portugal, Linda e a filha Juliana, de 41 anos e publicitária, irão provavelmente votar em branco: “É uma eleição de valores. De um lado, um partido que roubou e, do outro, um cara que não tem formação, não tem um plano definido. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi Gisele Fernandes, do colectivo Andorinha – Frente Democrática de Lisboa, quem chamou a atenção para a propaganda fascista. Conta que a mesa do restaurante onde estavam aquelas palavras chegou a ser vista limpa por pessoas que estavam no seu grupo, apoiante do PT - ou seja, alguém escreveu aquilo este domingo. “Já há indícios de uma onda fascista na Europa e aquela mensagem mostra que Portugal também corre o risco de abrir uma tendência fascistóide. Quando um político português se posiciona como neutro face a um candidato no Brasil com características fascistas a gente preocupa-se. É sintomático o nome dela [Assunção Cristas] estar naquela lista. ”Gisele Fernandes e os amigos tentaram apagar, não conseguiram. Mas inclinaram as cadeiras para que as pessoas não se sentassem. O objectivo era que não fossem influenciadas por “propaganda fascista em pleno acto eleitoral”. “Foi um acto de repúdio”, comentou.
REFERÊNCIAS:
A geração da Net está sem rede
Os adolescentes de 12 a 15 anos têm uma experiência diferente da Internet. Estão dentro dela, todo o tempo, não distinguem o real do virtual. Que oportunidades e perigos os esperam? (...)

A geração da Net está sem rede
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os adolescentes de 12 a 15 anos têm uma experiência diferente da Internet. Estão dentro dela, todo o tempo, não distinguem o real do virtual. Que oportunidades e perigos os esperam?
TEXTO: Marta Gonzaga, 14 anos, 9. º ano, Funchal. Nem precisa de sair da cama. Basta estender um braço para enviar à melhor amiga, por Snapchat, uma imagem sua a acordar, mas só por um segundo, talvez dois, para que a amiga não se fixe nos pormenores. Pode ver um vídeo de cinco segundos de alguém conhecido a lavar os dentes, actualizar fotos de alguns desconhecidos que adicionou no Instagram, congelar num screenshot um momento banal registado do outro lado do mundo. Selfies no Instagram, acha feio. E chat no Facebook é pouco autêntico. “Já ninguém usa o Facebook. Há um ano, sim, mas agora…” A competição pelo número de “likes” é uma infantilidade do passado. Uma obsessão inútil por “ser ou não ser muito popular”. Que importância tem isso? “Tudo é falso no Facebook. Os verdadeiros amigos estão no Twitter. É um ambiente diferente. ”Tudo o que escreve no Twitter tem destinatário: os elementos da banda One Direction. Nunca responderam, mas “só de escrever as frases uma pessoa já se sente melhor”. Tal como formular desejos na Fandom da banda ou despejar milhares de caracteres de histórias inventadas com o One Direction Harry contracenando com outras celebridades, no site para jovens escritores Wattpad. As fics (fanfiction) de Marta são de leitura proibida a amigos e família, fintados com nicknames e passwords, embora já tenham ultrapassado as 27. 840 visualizações, todas de leitores desconhecidos. Cada um dos 1700 seguidores recebe uma notificação sempre que Marta “lança ao mundo” um novo capítulo, tal como ela (e outros mil milhões de seguidores) foi notificada de cada um dos 300 capítulos da série After, que a americana Anna Todd foi publicando na Biblioteca Virtual, antes de os ler na íntegra no ecrã do telemóvel. E de ter respondido com comentários, sugestões e desabafos, no Wattpad, Fandom, WhatsApp, Instagram, Snapchat ou Twitter, em forma de emojis, abreviaturas ou onomatopaicos, sobre a vida social ou íntima dos One Direction, das amigas ou de si própria. “Vou de férias mpts (meus putos)” e “Naqueles momentos em que a mãe grita contigo e tu finges que não ouves” são exemplos das frases que Marta lança no Twitter, para depois contar os retweets que provoca, as reacções do género “ahahah”, ou :) (smile), ou mesmo as reaction picture (selfies que as amigas fizeram com a cara com que reagiram ao tweet). Tudo isto sem sair da cama, no seu quarto, onde é notório que a secretária nunca é usada, enquanto André Nunes, 12 anos, 7. º ano, Parede, Cascais, faz vigílias madrugada fora com dois monitores abertos ao mesmo tempo, um com o jogo multiplayer online League of Legends, ou Minecraft, ou Watchdog, outro com o Skype dividido em cinco chamadas simultâneas onde vai comentando o jogo com os amigos, e talvez ainda um vídeo no YouTube com explicações sobre o jogo, além do Facebook, as sms do telemóvel e provavelmente a PlayStation. Por vezes fica online seis ou sete horas seguidas, com a mãe no quarto ao lado a ameaçar desligar o router e a irmã a queixar-se da sobrecarga da rede que a torna lenta quando ela quer ver um filme no Wareztuga. pt, falar com as amigas no Facebook e constituir família no jogo Sims. Mafalda Nunes, 13 anos, 8. º ano. Todas as suas conversas importantes decorrem online. Tem uma amiga com quem fala todos os dias no Facebook. Foi ela que colocou na rede social fotografias dos cadernos e dos apontamentos, quando Mafalda faltou às aulas por ter estado doente. Não há nada que não possa ser feito online, excepto ler livros, que Mafalda prefere em papel. Em tudo o resto, a Net é preferível à realidade. Nem a praia consegue competir. Não há tanta vontade de sair, ou de namorar, como, com a mesma idade, acontecia com a geração anterior. Comprar roupas de marca também já não é importante. Ter um iPhone, sim. Não é o mesmo que usar um qualquer smartphone de marca branca. Desculpa: a velocidade. Mafalda vem à porta do quarto. “Quem está a usar a Net? Está tão lenta. O pior que há é a lentidão. ” A mãe manda André para a cama. Desculpa dele: “É frustrante sair a meio de um jogo. Porque tem de se recomeçar. Nos jogos online os jogadores têm penalizações se interromperem a partida a meio. Podem ficar impedidos de jogar por uma semana. ”Sofia prefere viajar. Sofia Lucas, 12 anos, 7. º ano, Braga. O Google Earth é o seu site favorito. Foi lá que conheceu Paris, Nova Iorque, Roma, Washington, Londres, lugares que quer visitar na realidade. Também gosta de jogos, e conversa com as amigas no Facebook, onde também começou a namorar. Foi um caso que começou e acabou por via digital. O primeiro contacto aconteceu na realidade, mas aí o rapaz não se declarou. Admitiu mais tarde: “No primeiro dia em que te vi, achei que irias ser minha namorada. ” Mas guardou a conjectura para si. Só no Facebook a inclinação ganhou realidade. Foi lá que se declarou, no Dia dos Namorados, e foi por sms que pôs termo a uma relação de 111 dias e mais de 5 mil mensagens (uma média de 50 por dia). Fê-lo movido pelo pragmatismo, quando Sofia mudou de escola: “Não te vou ligar mais, arranjei outra. ”A 400 quilómetros de distância, Duarte podia ter assistido a tudo isto, se usasse as suas técnicas hackerianas preferidas de Man in the Middle. Mas ele prefere usar as suas armas para o Bem. Duarte Marques, 14 anos, 9. º ano, Carnaxide, Oeiras. Aprendeu muito cedo a usar computadores, porque o pai tinha uma empresa de informática. Começou por um Magalhães, que lhe foi atribuído na escola. Um “Gamalhães”, diz ele, com que conseguia “gamar” música, software, ou tudo o que quisesse. Agora, sente que sabe mais do que a maioria, o que é uma forma de poder e uma responsabilidade. É contra a pirataria, mas a favor da total liberdade na Web. É Anonymous. Tem a máscara de Guy Fawkes, que encomendou pela Net, em três versões — normal, dourada e prateada. Tenciona usar a Internet para mudar o mundo, que vê dominado pela corrupção, o crime e a injustiça. “O que pretendo é mudar o sistema político, do mundo em geral. ” Através de sites de hactivismo, e da rede do Anonymous, imagina-se a praticar acções de rebeldia com consequências significativas, embora planeie vir a trabalhar numa grande empresa, como consultor de segurança informática. “Leio muitos artigos sobre Internet e informática. O conhecimento é gratuito e é poder. Quanto mais conhecimento reunirmos, mais poder temos. ”Ainda não lançou nenhum grande ataque, e nunca o fará de forma gratuita. Apenas umas habilidades, para treinar. “Com o Skype, consigo desligar o router de outra pessoa”, diz Duarte. “E posso interceptar comunicações no Skype, que não são encriptadas. ” E inserir intempestivos scripts ou pop-ups quando as pessoas estão a navegar por um site qualquer. E aquelas imagens esquisitas, por exemplo um cavalo a galopar só com duas pernas, que apareceram no meio da projecção powerpoint da professora? Foi ele, confessa. “Tive pena. Por vezes as professoras querem o nosso bem, não são demoníacas. ” É alterar as notas ou as faltas, que a professora introduz no portal da escola? “Esses sistemas são muito vulneráveis. Era muito mais difícil dantes ver o caderno onde os professores registavam as notas. Os professores ainda guardam algumas notas num caderno. Essas são as mais difíceis de ver. ” Entrar no site para mudar uma nota ou uma falta é portanto fácil. Se Duarte o fez ou não, é informação secreta. Que o pode fazer, isso sim, gosta que se saiba. Um dos objectivos de todas as acções dos Anonymous “é serem levados a sério”. Não cometem “actos ilegais que não façam sentido”, mas acham importante fazer sentir o seu poder. “Anonymous é uma comunidade. Não é um grupo para onde se entre ou a que se pertença. Quem quiser ser Anonymous é. Basta ter esta atitude, de resistir contra o sistema. Estamos atentos ao que acontece. Vemos tudo. Estamos em todo o lado. Somos o teu vizinho, o teu amigo, o teu professor. ”Atirar sites abaixo pode ser um aviso, uma demonstração de poder e revolta. Quanto mais importantes e mais supostamente invulneráveis forem os sites, melhor. O do PÚBLICO, por exemplo. Duarte pode fazê-lo colapsar, se quiser. “Fácil. Basta um telemóvel e a ajuda de uns tantos amigos. Posso experimentar? Só como teste, para ver até que ponto o site é vulnerável ou não? Mas depois pode levar semanas até que se consiga trazê-lo de novo à vida. ” No dia da publicação da reportagem, hoje, domingo, 5 de Abril, o PÚBLICO sofreria um eclipse. Ficou no ar a possibilidade. Não serias capaz de o fazer, Duarte!A Internet tem mais de 20 anos, mas nos últimos cinco transformou-se qualitativamente. Não só multiplicou as possibilidades, com aplicações que permitem fazer quase tudo de forma virtual, mas também se tornou ubíqua. Até há pouco tempo, ia-se à, ou usava-se a Internet. Agora estamos na Net em permanência, através dos portáteis ou dos smartphones, por redes wifi ou 4G. Já se tinha identificado uma geração de “nativos digitais”, ou de “millennials”, mas só muito recentemente surgiram entre nós os primeiros seres totalmente conectados de nascença. Há quem lhes chame “hyperconnected” ou “cyberkids”, mas a verdade é que ainda não há nome para a nova espécie, e pouco se sabe sobre o que são ou virão a ser. Para eles, escrever à mão num papel é uma actividade arcaica apenas obrigatória pela teimosia jarreta de alguns professores ou pais. Comunicar é algo natural, que não implica deslocações nem gastos, o conhecimento está disponível em quantidades ilimitadas, a informação brota de todo o lado, sem filtros nem critérios de validação, não há distâncias nem obstáculos, o consumo de arte e cultura é fácil e gratuito para todos, e a sua produção também, o que é real e virtual confundem-se, a liberdade é uma evidência e uma vertigem, a privacidade uma noção cada vez mais longínqua. Que oportunidades e que perigos esperam os jovens que têm agora 12, 13 ou 14 anos? Serão donos de poderes nunca vistos ou estarão a posicionar-se para serem escravos? Servirá a sua fabulosa vida online apenas para os colocar à mercê de eventuais ditaduras do futuro?Muitos dos perigos da vida online têm sido estudados e objecto de campanhas de informação dirigidas aos adolescentes e aos pais, hoje conscientes dos riscos relacionados com a pedofilia e vários tipos de crimes. Cuidados como o de não colocar fotografias de menores nas redes sociais, não divulgar moradas ou números de telefone, não aceitar desconhecidos como “amigos” são já mais ou menos habituais, segundo os conselhos divulgados pela polícia nas escolas. As práticas de cyberbullying, ostracismo ou violência também têm sido alvo de alguma atenção. O mesmo com o vício e uso excessivo da Internet, e com os problemas da imagem e da reputação, sob o ponto de vista da aceitação social e da obtenção e manutenção de emprego. Mas ninguém está a informar os jovens sobre a vulnerabilidade global e irreversível que vem com a imersão no mundo digital. Todos os nossos gestos digitais deixam uma pegada e podem ser gravados, descodificados, processados. Sabe-se que empresas usam dados fornecidos por redes sociais para conhecer os padrões de consumo dos utilizadores e orientarem as suas campanhas de vendas. Sabe-se também que agências de informação de governos acedem aos nossos telefonemas, mensagens, emails, conversas no Facebook, Twitter ou Skype, além de registos de despesas com cartões de crédito, levantamentos multibanco, sinais de localização de redes móveis e de GPS, imagens de câmaras de vigilância, etc. Quanto maior for a porção da nossa vida que decorre nos dispositivos digitais, maior é a nossa exposição. Em breve não será possível dar um passo sem ser controlado por alguém. Há inegáveis vantagens nesta realidade e podemos optar por aceitá-la. Mas será possível a opção contrária? Ou estabelecer limites?Para Teresa Paula Marques, psicóloga e directora clínica da Academia de Psicologia da Criança e da Família, a concluir uma tese de doutoramento sobre Facebook, Riscos e Oportunidades, uma das noções a ter em conta é que já não há distinção entre mundo real e mundo virtual. Para os jovens, é o mesmo ter falado com um amigo pessoalmente ou através do Facebook. “São duas faces da mesma realidade. ” Por isso, é de esperar comportamentos idênticos. “Os adolescentes gostam de ser vistos por todos, admirados pelos seus pares. As meninas pela beleza, os rapazes pelas façanhas. São muito populares o desafio da canela (em que se ingere canela até ao vómito), o desafio do desmaio, as fotografias em locais arriscados. No Facebook, o efeito que temos nos outros é mensurável imediatamente pela quantidade de ‘likes’. Estes têm um grande impacto na auto-estima. Se forem poucos, a tendência será para acentuar as acções. No caso das meninas, para usar biquínis mais ousados, no dos rapazes para fazerem coisas mais perigosas. É por isso que o comportamento no Facebook tende a ser excessivo. ”Pelo mesmo motivo, são geralmente mais intensas, nas redes sociais, as manifestações tanto de afecto como de agressividade. “Há páginas de ódio e perseguição, e é difícil descobrir quem está por trás. Há casos de assédio online, são enormes os riscos de cyberbullying e de sexting, em que os namorados divulgam na Net, após terminada a relação, as fotografias íntimas que a rapariga lhe enviou. Mas por outro lado é muito fácil ‘desamigar’ alguém. Mais do que na vida real. E os estudos mostram que ser ‘desamigado’ tem um impacto negativo fortíssimo nos jovens. ”Uma das consequências inevitáveis da vida na Net é a confusão entre os níveis de privacidade e de intimidade. Entre estes e o nível do que é público, os jovens são capazes de distinguir. Mas o que é íntimo passa facilmente para a esfera do que é meramente privado, explica Teresa Marques. “As pessoas expõem facilmente a sua orientação sexual, ou outras informações íntimas, o que as torna particularmente vulneráveis. ” Fazem-no porque não têm a consciência da verdadeira dimensão das audiências que podem atingir, nem do carácter indelével das informações disponibilizadas nas redes sociais. “Tudo o que está no Facebook é eterno e pode vir a ser perigoso mais tarde. ” Quanto à noção da existência de poderes superiores, de alguma entidade que venha a pretender ter poder sobre nós e de quem nos deveríamos proteger, os jovens não a conhecem. Não identificam ninguém que devessem temer ou de quem fosse prudente esconder alguma informação íntima ou confidencial. Apenas um ser representa para eles uma autoridade simbólica, uma entidade com quem há que ter mil cuidados, a quem não se pode mostrar tudo. Não, não é a NSA, nem a Administração americana, o Estado Islâmico, as grandes empresas multinacionais ou o Clube de Bilderberg. É a avó. Por ela se pratica a autocensura e se faz uma criteriosa regulação dos botões de privacidade do Facebook. “O que não gostarias que a tua avó visse” — este parece ser o único limite à liberdade dos jovens na Internet. A avó é a última fronteira. Ana Jorge, investigadora da Universidade Nova de Lisboa, a realizar um pós-doutoramento sobre Culturas dos Media e Consumos Infanto-Juvenis, cita a investigadora americana de redes sociais Danah Boyd para explicar o conceito de “colapso dos contextos”. Os jovens “perderam a capacidade de seleccionar discursos diferentes para audiências diferentes. Não têm consciência de que o que dizem estará disponível para vários tipos de públicos”. E, se as campanhas educativas têm sido bem sucedidas no que respeita às práticas de prevenção da criminalidade através da Internet, falta toda uma educação para a cidadania no que respeita ao uso consciente da Rede. Por exemplo no que respeita à partilha de informação e ao uso de dados. “As redes sociais não são de graça. No Facebook estão a gerar valor para os anunciantes. Nós somos audiência. ” Para Ana Jorge, é arriscado falar de características próprias de gerações, porque não se pode generalizar excessivamente. Os estudos mostram que há muitas diferenças e muitos ritmos no seio de uma mesma geração, clivada por grupos sociais, culturais ou regionais. As camadas mais pobres, por exemplo, são mais vulneráveis aos riscos da Internet. Numa família onde os pais não dominam as tecnologias, é menos provável que os filhos lhes contem os problemas que encontram ou aceitem os seus conselhos. Não reconhecem autoridade a quem não domina os gadgets ou a terminologia que lhes está associada. Também as raparigas são mais vulneráveis do que os rapazes, e os jovens de alguns países mais do que os de outros. Entre os países da União Europeia, Portugal é um dos que apresentam um hiato maior entre a literacia digital de pais e filhos. Há toda uma geração iniciada nos computadores com a campanha dos Magalhães nas escolas. Foi um factor de unificação dos jovens, mas não dos pais. “Devido ao Magalhães em 2008 e ao projecto E-Escola, Portugal é um dos países europeus onde é maior o número de famílias onde são os filhos que sabem mexer nos computadores”, diz Ana Jorge. Em parte por este motivo, Portugal é também um dos países onde os jovens acedem mais à Internet sozinhos a partir do seu quarto. Os pais associam o uso dos computadores à realização dos trabalhos escolares, pelo que abdicam de vigiar as actividades dos filhos na Internet. Neste sentido, os adolescentes portugueses, em particular os provenientes de famílias com níveis educacionais mais baixos, são particularmente vulneráveis aos perigos do mundo digital. Se surgem problemas, a mãe sabe que ajudar a filha passa por dominar os mesmos meios. Uma vez, uma amiga de Sofia começou a ter um comportamento reprovável. Enviou mensagens e fez comentários sobre ela com outras amigas, mexeu nas suas coisas no cacifo da escola. Vânia pediu-lhe amizade no Facebook. Quando ela aceitou, fê-la explicar o que se passava, a responsabilizar-se e a corrigir o comportamento. “Se eu tivesse ido falar com a mãe dela, não teria resultado. O Facebook foi a solução. ”Os pais de Mafalda e André sabem da sua vida escolar através da plataforma Inovar, onde os professores registam as notas, faltas, sumários e outras observações, além das despesas do cartão de refeições. Sofia Martins, a mãe, dá grande liberdade aos filhos nos contactos com amigos nas redes sociais, porque viveram oito anos em Oleiros, uma aldeia da região de Castelo Branco, e perderam o contacto com os colegas. Agora vivem na Parede mas falam com eles todos os dias. A mudança não foi tão traumática graças à Internet. “Falo sempre com a minha melhor amiga, que será sempre a minha melhor amiga”, diz Mafalda. Sem a Net, a vida seria muito diferente. Uma vez, lembram-se de que a electricidade falhou. “Estivemos assim cinco horas, não sabíamos o que fazer”, diz André. “Foi dramático. ” Mafalda acrescenta: “Foi o fim do mundo. ”Marta mostra mensagens que trocou com o suposto primo. “Diz qualquer coisa sobre ti”, perguntou ela. A resposta: “” (gosto de pés). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O star system na Net é muito próximo da loucura. Há ídolos que nasceram no YouTube e nunca fizeram nada na vida real, os fandoms de bandas como os One Direction reúnem milhões de fãs que escrevem e lêem histórias inventadas, virtuais, sobre os rapazes da banda e se automutilam realmente quando um deles, Zayn Malik, abandona o grupo. “Eu sei que a música deles não é muito boa”, diz Marta. “Eu dantes gostava de Grunge, dos Red Hot Chilli Peppers, e não é a mesma coisa. Mas os One Direction são o meu guilty pleasure. ” Apesar de toda a sua vida online, Marta gosta de ler livros em papel. E de capa dura. Anda a ler vários clássicos. Anna Karenina, Jane Eyre, todo sublinhado. Orgulho e Preconceito em inglês. Sabe passagens de cor. Diz sem hesitar: “If your feelings are still what they were last April, please tell me so at once…”A mãe de Duarte, Ana Bastos, não lhe paga a Internet no telefone, mas ele “rouba” o sinal das redes que apanha por todo o lado. Conhecimento é poder. E a única saída para quem vai viver num mundo dominado pelo digital. “Hoje, os mais jovens são mais responsáveis”, diz ele. Porque já sentem na pele o que lhes vai acontecer. Duarte vê o futuro com preocupação. “A tecnologia muda a personalidade das pessoas. A maioria vai ser como robôs. Mas alguns vão ser mais livres. Your ignorance is their power. Wake up!” Duarte imagina no futuro uma espécie de regresso da Idade Média. “Na época feudal, o povo era escravo, mas isso soava-lhes normal. A mente deles estava fechada. Não tinham capacidade para se revoltarem. Agora parece-me que essa realidade está a voltar. Na sua maioria, as pessoas são simples. Não vão reparar que estão a ser usadas. ” Quem quiser resistir tem de fazê-lo dentro da Internet. De certa maneira, “a terceira guerra mundial já começou, é a guerra digital”. No futuro, Duarte imagina-se, se necessário, a ter duas vidas, uma normal, no emprego, seguindo as regras, outra como Anonymous. “A Internet não pode ser controlada. A Internet não é um país. ”
REFERÊNCIAS:
Edouard Louis: da bandeira arco-íris ao colete amarelo
Jovem autor de sucesso com Acabar com Eddy Bellegueule, atravessa polémicas violentas e tempestades mediáticas para defender sem descanso a causa homossexual tal como a da gente pobre esquecida. Entre livros chocantes muito pessoais, conferências em todas as partes do mundo, activismo e manifestações dos Coletes Amarelos, retrato daquele que tenta o traço de união, a convergência das lutas. (...)

Edouard Louis: da bandeira arco-íris ao colete amarelo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Jovem autor de sucesso com Acabar com Eddy Bellegueule, atravessa polémicas violentas e tempestades mediáticas para defender sem descanso a causa homossexual tal como a da gente pobre esquecida. Entre livros chocantes muito pessoais, conferências em todas as partes do mundo, activismo e manifestações dos Coletes Amarelos, retrato daquele que tenta o traço de união, a convergência das lutas.
TEXTO: Conhecemo-lo cerca de um ano antes da publicação do seu primeiro livro. Um ano antes do tumulto que passou a acompanhá-lo para onde quer que fosse, cada vez que publicasse, falasse, ou mesmo quando não dissesse nada. Era um homem muito novo, alto, esguio e louro, doce, cortês e desconhecido. De facto, começava-se a falar bastante disso, em Paris, mas em alguns círculos, mais em pequenos círculos literários e homo. A tranquilidade e a segurança educada de Edouard Louis – então com 21 anos, nascido na Picardia, uma das regiões mais pobres de França – traduziam já a força inabalável das suas convicções, certezas insolentes próprias da sua idade juvenil, considerava-se, mas que não se alterariam nem numa vírgula posteriormente, e que na nossa conversa acendiam de vez em quando uma centelha febril nos seus olhos azuis. Ele tinha, por exemplo, embirrações muito claras em relação a certos barões esquerdizantes frequentemente homo, de uma certa imprensa agressiva e avançada, que cerrava fileiras na defesa dos seus lugares, postos, visibilidade mediática; e privilégio, oh quão sagrado, de distinguir o que era bem, bom e bonito. Uma casta arrogante, é certo, bastante detestável, sem dúvida, para quem não fizesse parte do grupo. Edouard Louis não hesitava em exprimir a sua aversão a essa dúzia de personagens, que lha retribuíram bem, tanto quanto puderam, agredindo-o nos seus artigos ou nas redes sociais, antes de desaparecerem quase todos, varridos pelo passar da moda, pela lassitude do público e pelas falências dos seus meios de comunicação. E era precisa muita coragem para enfrentar, tão só e tão jovem, aquelas divindades poderosas e estabelecidas. Peixe no restaurante? Ah, não, obrigado. Havia comido que chegasse para toda a vida, porque o pai pescava disso todos os dias e tivera de o comer todos os dias. Foi preciso coragem também para se extirpar do seu meio, da sua terra da Picardia, forçar o destino, trabalhar muito para se sentar também ele nos bancos das mais exclusivas faculdades de Paris, observar, aprender, infiltrar-se naqueles salões intimidantes, naqueles círculos da juventude dourada, sobreeducada, nos edifícios imponentes, até apagar completamente a sua pronúncia da Picardia tão troçada em França, e que é imitada para parodiar os proletários, os campónios, os pedintes desdentados. Quando lhe perguntámos se ainda conseguia falar com aquela pronúncia da Picardia, foi incapaz, bloqueou, de tanto que tinha treinado com uma amiga estudante o modo de falar típico da “alta”, dos aristocratas com muitos estudos. Quando lhe fazíamos notar que se tinha saído muito bem, ele, a elevar a sua condição e a sair da lama, retorquia sem pestanejar que era precisamente por tê-lo conseguido que sabia a que ponto era impossível. Os seus cavalos de batalha, seria muita ousadia falar de obsessões, eram primeiro a chaga social que é a reprodução das elites, a endogamia, os ricos poderosos e as elites intelectuais que se multiplicam entre si, batendo com a porta às massas populares cada vez mais ignorantes e esquecidas; em seguida, a homossexualidade, que ele embandeirava em arco. Uma homossexualidade que tinham querido fazê-lo pagar, engolir, apagar a murro, à pedrada, com crachás e humilhações. Desprezava as personalidades cuja homossexualidade era conhecida de todos em Paris e que se obstinavam em escondê-la e até em mentir, fingindo-se hetero: traidores à causa. Uma homossexualidade que era impossível viver tranquilamente no meio de onde ele vinha. Edouard Louis contou a sua assustadora juventude no seu primeiro romance: Acabar com Eddy Bellegueule. Está tudo ali, desde o primeiro livro: a criança inteligente já destinada a fugir um dia desse meio proletário e pesado, pegajoso como barro; a criança homossexual a enfrentar a hostilidade e a violência em toda a parte, sobretudo na sua própria casa; a miséria que fez dos seus o que serão para sempre; a violência que assenta arraiais na ignorância e na coerção social; a revolta como o sistema que cristaliza as classes sociais e fecha as portas. Acabar com Eddy Bellegueule teve um sucesso estrondoso em França e no mundo, com vendas estratosféricas, artigos e traduções no mundo inteiro, conferências, autógrafos em dezenas de livrarias; uma mediatização do autor de causar vertigens aos escritores de sucesso mais experientes. Com tudo isto, as primeiras polémicas e uma histerização da pessoa de Edouard Louis. Tinha então 22 anos. Centenas de milhares de leitores reconhecem-se na escrita fluida e seca que ele utiliza para contar o que todos os jovens homo de província viveram mais ou menos. Os jornalistas são ditirâmbicos, mas bem depressa as primeiras salvas vêm de uma franja de críticos e de observadores autorizados, que julgam com desconfiança a chegada tonitruante deste desconhecido que não pertence a nenhuma capela respeitável da edição parisiense, ousando fazer cócegas aos prescritores de tendências, metendo-lhes debaixo do nariz uma homossexualidade que não seja nem glamour, nem brilhante, nem flamejante. Tudo se precipita, vão fazer perguntas na sua aldeia, passam a pente fino os seus diplomas, há jornais que contam escândalos que os seus próximos teriam feito, mesmo a sua mãe, que irrompeu por uma conferência adentro para vituperar o seu filho por tê-los arrastado daquela maneira pela lama. Espera-se com avidez a queda do jovem prodígio, o burn-out, a negação; nunca chegarão. O jovem Edouard Louis parece alimentar-se dessas polémicas, tira proveito de cada golpe de vento da tempestade para se firmar e se afirmar. Como se aguenta, como não cai para o lado com um esgotamento? Mistério. Talvez comparado com o que um jovem homossexual tem de passar num meio hostil, este ruído mediático não seja mais do que uma ligeira brisa?Todos esperam que Edouard Louis faça uma viragem quando publica, em 2016, a sua segunda obra, a qual trata, sempre em tom autobiográfico, de um tema altamente inflamável: Histoire de la violence [História da violência]. Numa noite de Natal, Edouard convida para sua casa um homem para fazer amor. A meio da noite, o homem tem um ataque de fúria, ameaça-o, bate-lhe, violenta-o e viola-o. Chama-se Reda, é um jovem magrebino da Argélia. Esta agressão serve de base de reflexão ao autor para tentar actualizar as fontes da violência. Fiel à sua escola de pensamento que aponta, como fermento da violência psíquica, a violência exercida pelas elites sobre as classes populares, ele prossegue juntando à sua reflexão as pragas do racismo, do colonialismo, do desenraizamento. Compreende-se nas entrelinhas que Edouard Louis encontra, pelo menos, circunstâncias atenuantes, ou mesmo desculpas, para o acto odioso de Reda. Novo cisma, nova polémica violenta, um ano depois dos atentados islamistas do Charlie Hebdo e do Bataclan, as feridas ainda estão abertas, as reacções são indignadas. Poucas pessoas estão dispostas a encontrar agora desculpas para alguém que se pareça de perto ou de longe com um árabe violento. Outros acusam com irritação Edouard Louis de reproduzir, por sua vez, o cliché detestável, banal e racista do “maricas branco parisiense” que explora sexualmente magrebinos, limitando-os a um papel de “máquina de beijar”, viril, inquietante, dominadora e sem outra função que não seja a de satisfazer as depravações burguesas. Por fim, e é aí que entra em cena a máquina judiciária, Reda reconhece-se no livro e, em Paris, amigos gays de Reda ofendem-se com o retrato feito por Edouard Louis, que é escandalosamente mentiroso. Reda apresenta queixa. Edouard Louis é defendido por Emmanuel Pierrat, um advogado célebre, abertamente homossexual, franco-maçon, coleccionador entendido de arte, defensor da imagem de numerosas figuras públicas. A panela de ferro contra a panela de barro. Incómodo. A imprensa e as redes sociais atiram-se ao folhetim judiciário, literário e, agora, people. No presente, o caso continua a correr na justiça. O advogado Emmanuel Pierrat explica-nos: “Esperamos o despacho de pronúncia do juiz de instrução. O meu cliente e eu aprovamos totalmente as alegações do Ministério Público que visam levar a julgamento Reda [pseudónimo do arguido no livro], sem aumentar este duplo drama humano: violação e roubo por um lado para Edouard Louis [tendo o cuidado de considerar a presunção de inocência], destino trágico do indiciado, pelo outro lado. Chega finalmente o último romance de Edouard Louis, Qui a tué mon père [Quem matou o meu pai], que se poderia considerar uma tentativa de síntese, uma redenção, um traço de união entre as origens familiares, a homofobia, a violência, relatadas com traços vigorosos no primeiro romance, e a expressão de um perdão, de uma reconciliação, da vontade de ser o porta-voz desse povo mudo e martirizado que, por sua vez, martiriza porque é esse o seu destino. Edouard Louis foi visto como um jovem ambicioso, vítima e carrasco de um proletariado homofóbico? É porque se enganaram, porque eis chegado o tempo da defesa desse povo e da acusação dos mecanismos, das políticas e até das figuras políticas, que ele nomeia, uma por uma, como verdadeiros responsáveis do seu atraso. “Tu pertences àquela categoria de humanos aos quais a política reserva uma morte precoce” (em Qui a tué mon père, éditions Seuil). Qui a tué mon père regressa às humilhações dolorosas, infligidas por esse pai obcecado por manter a sua atitude viril, enquanto perde o pé socialmente, em álcool, dificuldades no trabalho, diminuição física, conflitos com a mulher e os filhos, vergonha de ter de assumir um filho efeminado, grácil, muito inteligente e não suficientemente vigoroso. E, contrapondo-se a ele, o jovem Edouard, desejando a todo o custo ser “visto” pelo pai, ser amado, admirado por ele, como, por exemplo, naquele dia em que se travestiu de menina, num espectáculo que organizou de improviso e em que dançou, rodopiou, tentou em vão atrair o olhar do pai, desesperadamente e sem êxito… O livro está, no entanto, semeado de episódios felizes, momentos secretos, íntimos e alegres, risos por vezes partilhados com o pai tão distante. Edouard Louis deixa uma mensagem de amor tremendamente comovente e sensível, tal como pode sê-lo a de um filho que continua a sentir o ardor causado por não ser um rapaz como os outros, para um pai que não soube como fazer para o amar. A seguir, ele vira-se para os políticos e os seus pacotes de medidas antipobres, que fizeram curvar-se as costas do pai, que o embruteceram de fadiga e ressentimento, que o reduziram a nada. Estas passagens não brilham pelos matizes, mas o objectivo não é, claramente, a temperança em ciência económica: ser muito à esquerda ou não ser…A revolta dos Coletes Amarelos calhou na hora certa, esse “roncar” dos pobres, como começaram por qualificá-lo certos jornalistas, como se o Zé Povinho emitisse roncos à maneira dos porcos. Edouard Louis foi visto a encabeçar uma marcha em Paris de Coletes Amarelos, fotografias logo divulgadas pela imprensa. Ele publicou nas redes sociais discursos inflamados e petições. Que quer ele dizer-nos? Vejamos, Edouard Louis não é um trânsfuga de classe; e se, um dia, ele decidiu perder a pronúncia da Picardia, foi para melhor falar em nome dos seus. Sempre lhe correu nas veias a insurreição e a febre de acção de rua. E, se é um homossexual famoso, é para melhor erguer o estandarte dos pequenos sem voz. Convergência das lutas. "Os coletes amarelos falam de fome; de precariedade, de vida e de morte. Os 'políticos' e uma parte dos jornalistas respondem: “símbolos da nossa república foram destruídos. ” Mas de que fala essa gente? Como se atrevem? De onde vêm??" (Excerto de um post do Facebook de Edouard Louis, 4 de Dezembro 2018). Quando o seu rosto ainda era desconhecido, tínhamo-lo reconhecido numa cadeia de televisão de informação, na altura da batalha pelo casamento gay, diante da Assembleia Nacional, a vociferar com um pequeno grupo de activistas gays contra uma figura homofóbica caída depois no esquecimento: “Bruxa! Bruxa!”, berrava, fora de si. Talvez ele também irrite por causa disso: ele não é senão palavras, frases, livros e conferências; é também um homem jovem que desce à rua. Talvez ele irrite porque foi o primeiro a colocar sob os projectores a questão homossexual ao nível da endogamia, traço de união inesperado, ainda que o seu mentor Didier Eribon, célebre universitário, sociólogo e escritor, tivesse publicado, anos antes dele, Retour à Reims, romance autobiográfico gémeo de Acabar com Eddy Bellegueule. Também a história de um jovem homossexual da província que…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Edouard Louis é objecto de fascínio-repulsa. Diz-se tudo e mais alguma coisa acerca dele, como, por exemplo, que exigiria não ser fotografado pela imprensa senão de um ângulo que o favorecia ou que aquela seria "a Capa", ou nada feito. Ele nega por vezes com um tweet estas afirmações, outras vezes nem isso. Mantém-se fiel, haja o que houver, às suas amizades, às suas teses originais e às embirrações. Os media que traíram as suas causas, nem lhes fala. As redes sociais lançam-se sobre o seu caso na justiça. Durante esse tempo, ele faz conferências, encontra-se com os leitores, percorre o globo conforme as traduções dos seus livros, apresenta-se nos países reaccionários e homofóbicos (a Polónia, recentemente), nos países resistentes às teses de extrema-esquerda (a Suíça há bem pouco tempo). É raríssimo aparecer na televisão, praticamente inacessível, não tem tempo, tem 26 anos, quer salvar o mundo. Tradução de Rita Veiga
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte escola humanos violência filho ataque mulher fome homem racismo social violação criança casamento homossexual gay racista vergonha homofobia coerção
Somos loucos por arroz
Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios. (...)

Somos loucos por arroz
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 9 | Sentimento -0.6
DATA: 2010-06-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios.
TEXTO: Há um pequeno atraso, é mesmo assim. A avioneta deveria ter chegado há meia hora, mas deve estar a dar conta de outro serviço nas redondezas. Laurinda e Lurdes estão de olhos postos no céu, mãos atrás das costas, ouvidos atentos. Já passa das nove da manhã e nada. Nem um motor. A não ser, claro, os dos carros que passam na estrada ali ao lado, que em poucos minutos nos põem em Benavente. Não fosse isso, e só se ouviriam pássaros. Cheira a terra húmida, cheira à chuva que vem e vai. Está tudo cinzento, céu e terra em conspiração. Os arrozais são espelhos de água do tamanho de campos de futebol, com nuvens estampadas em cima. Outros já estão com as plantas a despontar, mantos verdes onde as garças pousam e se alimentam. Ou ainda castanhos, à espera que a planta rebente. Todos parecem em suspenso, quilómetros e quilómetros sem ninguém. As aparências iludem. "Todos os dias há trabalho", dizem as duas mulheres, a perscrutar as nuvens de chumbo. "Primeiro arranjar as terras, depois mondar [arrancar as ervas daninhas], curar [tirar os bichos] e a seguir a colheita. " Parece simples, dito assim de uma assentada, mas são meses de dedicação. Dá para ver a chuva a aproximar-se com toda a definição: está a cinco metros, está a quatro, a três, dois, um, "fujam que vem aí uma barroa". Já aqui está, mas ficará por pouco tempo, deixa o cheiro a água e vai-se embora. Todos os dias há trabalho, diziam. E Lurdes explica: "Em Abril arranjam-se as lagoeiras - as terras, na nossa linguagem do campo. Até ao fim de Maio fica tudo semeado. Em Junho é a monda. A partir de Julho não é conveniente andar lá dentro para não tombar a panícula [inflorescência]. Julho e Agosto, a panícula está formada e oito dias depois é a floração. Depois é a fase láctea, o bago enche-se de líquido, líquido mesmo como leite, e começa a enrijar. Vem a fase córnea, em fins de Agosto, quando o bago está mesmo rijo. Entra na maturação em Setembro, quando está pronto a ser colhido. " A seguir elas perdem-no de vista. O grão vai ainda com casca para a fábrica. E, no Inverno, Laurinda está no laboratório, "a fazer análises de rendimento". É ela quem diz: "O arroz gosta de calor na rama e água na raiz. Este ano não está muito bom. " Água há, houve muita, o Inverno todo, o pior é o resto. Depois da chuva, ouve-se coaxar. "São os sapinhos a pedir água. Assim que sentem as costas molhadas, começam a pedir mais. " Mas não são eles o perigo dos arrozais. Há os lagostins, que "fazem buracos e furam de um canteiro para o outro e a água foge". Ouve-se a avioneta. Vem atrasada uma hora. O ciclo da vida do arroz está agora prestes a começar, nestes campos alagados. Alguém dirá "arroz não é arroz" e por isso está na altura de esclarecer: aqui, no Paul de Magos, produzem-se as variedades Ariete e Albatroz. Liderança do agulhaAtravessa-se a vala real - um caminho de água vinda do Tejo com carpas, pimpões, tainhas - que separa os canteiros. Os bandeirolas já estão a postos, walkie-talkies na mão, de bandeira branca e verde para mostrar à avioneta os limites do terreno, o ponto a partir do qual deve sobrevoar. Um, dois, três, e é agora. Cai nova chuva, desta vez de semente. "É uma barroa amarela", riem Laurinda e Lurdes. A avioneta espalha os grãos, que caem pesados na água, numa tempestade dourada. Vai e vem, dando meias voltas no céu, semeando os grãos do carolino ("é o melhor", dizem as duas). Serão 1350 quilos de sementes largadas do ar para a água (também poderia ser em terra seca, que depois é inundada). Os bandeirolas baixam os braços para um intervalo de reabastecimento. Dali a nada estarão outra vez a indicar ao piloto o local onde deve fazer a descarga, em que parte do campo - ou da "folha", como se diz aqui - os grãos ainda não caíram. As nuvens entram na competição. "A chuva está a engrossar, comprimento já ela tem", repetem as agricultoras, chapéu de palha na cabeça, galochas nos pés. Não sabemos se esta manhã alguma delas olhou para o céu para ler a meteorologia na "vaca esfolada", as nuvens avermelhadas que se juntam ao sol: "Vaca esfolada ao nascer, vai chover, vaca esfolada ao pôr, vai estar calor. "Entre uma largada e outra vinda das alturas, ficamos a saber: Lurdes "já não pode ver arroz à frente", e o que tem ao lume, à espera do meio-dia, é uma sopa-guisado com batata. Mas Laurinda come com regalo: "Adoro arroz, doce então ainda melhor. " Contribui para as estatísticas que apontam os portugueses como os maiores consumidores de arroz per capita na União Europeia: à volta de 17, 5 quilos por ano (ou seja, 175 mil toneladas), mais do dobro que os espanhóis, que vêm em segundo lugar, com sete quilos, e quatro vezes a média europeia. "Somos os asiáticos da Europa", diz Pedro Monteiro, director-geral da Associação Nacional dos Industriais de Arroz (ANIA). Não andamos a comer nem mais nem menos que antes: o consumo está estabilizado, "é um mercado maduro", liderado pelo agulha. Hoje foi uma avioneta, mas noutros casos são os tractores que semeiam os grãos. Já não é de agora, os pés das mulheres descalças a arrastarem-se pela água, como fazia a Laurinda quando era nova - agora tem 44 anos, os suficientes para filhos e netos. "Até a água cortava as pernas. E estava fria nestes dias. " Sorri outra vez. E noutros tempos também o trabalho era feito por ranchos, grupos de mulheres que plantavam o arroz (quando é plantado dá mais produção, explica), a trabalhar por ali fora, do nascer ao pôr do Sol. "A gente aqui começa cedo. Já pouca gente quer o campo. Eu já trabalhei em fábricas e antes prefiro o campo. É outra liberdade", diz. Mas não é isso que se sonha para os filhos, nem é isso que eles querem fazer. Entre os de Lurdes, 61 anos, e os de Laurinda, nenhum é agricultor, e não é só pelo trabalho que dá. "As pessoas da cidade pensam que somos estúpidos. Não queremos que os nossos filhos se sintam assim. " Estúpidos? Lurdes, sempre ao lado e sempre mais calada, desta vez tem resposta: "Eles na cidade sabem o que comem mas não sabem como é criado. " Elas poderiam explicar. São ambas de Marinhais, a poucos quilómetros deste campo de Paul de Magos, em Salvaterra de Magos, que pertence à COTArroz (Centro Operativo e Tecnológico do Arroz). Ambas têm a sua própria terra, onde cultivam batatas, cenouras, couves. . . "Saímos daqui às cinco [entram às oito da manhã] e ainda vamos para a fazenda. E depois há a lida da casa. " Não é queixume, é só para falar da vida. Agora diz a Lurdes: "Fomos criadas assim e assim nos sentimos bem. "A semente caiu na folha e daqui a oito dias começará a criar raiz. Nessa altura tira-se a água. Toda a cara morena de Laurinda sorri, boca e olhos, quando aponta em frente a lembrar como é a terra quando as nuvens não tapam o céu. "Aquela encosta, quando está sol, fica a verdejar e é linda. Para mim, é. Vale tudo para mim. " Os campos estão agora sem vivalma. Para já, o que havia a fazer foi feito. Melhorar o carolinoEntre-se numa cozinha portuguesa e o mais provável é encontrar-se no tacho arroz agulha ou carolino. Mas a história está muito longe de se resumir a isto, e se quiséssemos traçar uma árvore genealógica, a raiz teria dez mil anos e seria, pensa-se, encontrada nos Himalaias. Sabe-se que três mil anos a. C. já era cultivado na China. Agora, é o cereal mais comido no mundo inteiro, apesar de em produção estar em terceiro lugar, depois do milho e do trigo. Há dois tipos de arroz com caminhos separados, o O. sativa (asiático, mas cultivado em todo o mundo) e o O. glaberrima (africano, cultivado em pequena escala na África Ocidental). Dentro do O. sativa, há duas subespécies: o japonica e o indica. E tudo o que se dirá daqui para a frente só se refere a estas duas. A começar por isto: o famoso agulha, que começou a monopolizar os pratos portugueses, tem sangue híbrido de japonica com indica, que é cultivado em zonas mais quentes, diz a investigadora Margarida Oliveira, do Instituto de Biologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa. Por isso, em Portugal cultiva-se pouco. Cresce mais na zona do Sado. "É mais comprido, mas não absorve tanto o sabor dos alimentos como o carolino, que tem mais goma", como bom japonica que é, continua. Também é mais produtivo: 10 toneladas por ano por hectare, contra 6/7 do carolino. Mas, diz quem sabe, o que os verdadeiros apreciadores gostam mesmo é do carolino da variedade Allorio, vencedor de provas cegas. Como não é muito produtivo, os agricultores semeiam sobretudo para consumo próprio, diz a bióloga. Nos supermercados, e entre os carolinos, talvez seja mais fácil encontrar o Ariete. Quanto ao agulha, a esmagadora maioria importado, a variedade Thaibonnet é a mais usada pelos agricultores e, por ser mais barato, a que mais provavelmente virá a acompanhar o seu bife nos restaurantes (as hipóteses são muitas: o grande banco mundial de arroz, nas Filipinas, armazena cerca de 200 mil variedades). Seja como for, quase sempre as sementes usadas pelos agricultores portugueses são estrangeiras: vêm de Itália, o principal produtor da União Europeia, responsável por metade do arroz ali cultivado, com um milhão e seiscentas mil toneladas por ano, predominantemente japonica (a China é o número um mundial, com 182 milhões de toneladas). Portugal é o campeão do consumo europeu, já se sabe, mas não dá resposta às suas necessidades. Os arrozais - concentrados nos vales do Sado, Mondego, Tejo e Sorraia - ocupam mais de 26. 800 hectares (apesar de a UE só autorizar 24. 667). São produzidas 165 mil toneladas com casca, resultando em 100 mil em película, aquele que será consumido. É o terceiro produtor da UE, mas não chega senão para 60 por cento do que é preciso para satisfazer as exigências dos portugueses. Os outros 40 por cento têm de ser importados. Suriname, Tailândia, Itália. . . Já houve tempos em que a produção interna chegava e bastava. Em 1937, a colheita ultrapassou o consumo, e a criação da Estação Agronómica Nacional, em 1941, viria a trazer ainda melhores resultados, depois do melhoramento de algumas variedades. Portugal pôde até exportar algum do seu arroz. A tradição servia o carolino à mesa. Mas o arroz agulha impôs-se sobretudo pelo impacto de uma campanha publicitária, há cerca de 15, 20 anos, continua Margarida Oliveira. Agora, há que defender as variedades portuguesas de carolino, cujo consumo é o único que está a decrescer. É essa a sua "missão": melhorar o arroz, "com ferramentas comummente aceites", para não espantar os agricultores com inovações da engenharia genética. E por melhorar quer dizer-se torná-lo mais produtivo e resistente a doenças. É que tanto o Allorio como o Strella - na base das investigações da sua equipa - são plantas demasiado altas (logo, mais facilmente danificadas), com pouca produtividade e sensíveis a doenças, sobretudo ao fungo periculária. O que se pretende é que aquelas variedades ganhem o tipo de características pretendido, sem perder as outras que as tornam singulares. Cozer, insuflar, moerIntrometemo-nos na estreita cozinha de Fausto Airoldi no Spot São Luiz, em Lisboa. Antes de mais, veste a jaleca preta, que ali não se entra de qualquer maneira. Azeite no fundo de uma frigideira e alho picado. O chefe abriu o seu Risottoria del Mundo, no Funchal, onde só serve arroz, e está em posição de explicar: "É um meio para trabalhar muito bom. Dá para insuflar, moer, tudo e mais alguma coisa. "Meia dúzia de cogumelos laminados grosseiramente atirados para o azeite quente, seguidos de vinho branco e pimenta preta. Há alguma coisa que não combine com o arroz? "Que eu saiba não. " A ideia do seu restaurante na Madeira é "pegar nos arrozes do mundo com sabores do mundo". E o mundo está mesmo ao lado de papas de sarrabulho com arroz (triturado), em vez de farinha de milho. Devemos olhar para ele "como olhamos para as massas, que ligam bem com tudo. Mas cada tipo de arroz tem as suas características e nesse aspecto é mais rico". Dirá alguém que "arroz não é arroz", repetimos, e por isso na ementa pode ler-se "Arroz Vialone" por baixo de "Risotto de azeitonas com bacalhau meia cura confitado, molho de foie gras". Ou "Arroz carolino" depois de "Maçã assada recheada com espuma de arroz". Agora estamos em Lisboa, e o "ouro branco" vem mesmo já preparado do frigorífico, numa caixa de plástico. "Para um arroz mais solto, uso basmati, se for molhado malandrinho, uso carolino. O carolino como tem um grão pequeno e gomoso absorve muito bem os líquidos. Vai ficar mais saboroso. " Airoldi (mãe portuguesa, pai italiano) solta o arroz com as mãos - basmati, "cozido com alho, louro e água, sem gordura" - e pica uma mão cheia de manjericão, que junta aos cogumelos depois de duas colheres de caldo de legumes. "O arroz é como os azeites. Temos de escolher o que vai bem com as coisas, o arroz para a sua função. Temos de respeitar as suas utilizações. "O carolino já não é o que mais se consome em Portugal, mas é "um arroz muito nosso. E o que está esquecido não é o tipo de arroz, é a cozinha portuguesa". Nem todos os arrozes são iguais, até porque há aqueles "que dão mais luta, como os glutinosos. Têm de se testar bem, por causa da goma. Ficam mais empapados, têm de ser [usados] para arrozes mais moles". E é só este o mistério: "Conhecer bem o arroz e saber de quanta água precisa. O segredo está no caldo, porque o arroz agarra esse sabor todo. " Há outros factores a ter em conta, como qualquer um saberá se já tiver tentado: "O ponto de cozedura. Um risotto passado de mais é papa. "Explicações para a dianteira nas estatísticas do consumo, ele não tem - e, de resto, serão muito difíceis de encontrar. Mas o chefe avança que "temos muito receituário. Somos os únicos no mundo que comem arroz com batata frita!"Mistura-se o arroz na frigideira, lume bem alto. E poucos minutos (dois, três?) passaram desde que tudo começou nesta cozinha, sem pressas mas depressa. Excepto a viagem da frigideira ao prato, serena. "Al-roz", "orz", "orysa"Foram os mouros que trouxeram o arroz para a Península Ibérica, nos séculos VII e VIII - e isso poderia até ajudar a explicar a criação do hábito, não fossem alguns obstáculos, como o facto de a expansão da cultura só se dar no início do século XX. Mas se não dá uma pista para o vício, pelo menos aponta para a origem do nome. Arroz vem do árabe al roz, que por sua vez virá do persa orz. No Almanaque do Arroz 2010, brasileiro, podemos ler que gregos e romanos chamavam-no orysa - daí a palavra orizicultura, que hoje usamos. E que orysa tanto poderia vir do tamil (Sri Lanka) arisi, como de Orissa, a cidade indiana onde o arroz se cultivava em grandes quantidades (já o termo "carolino" virá do facto de se tratar de uma variedade semelhante à cultivada nas regiões da Carolina, nos Estados Unidos). No mesmo almanaque ficamos a saber que "houve um tempo em que partiam caravanas levando sacos de arroz ao longo das planícies centrais indianas, dos planaltos afegãos e persas até à Mesopotâmia e, de lá, até o Mediterrâneo oriental". Foi preciso esperar pelo reinado de D. Dinis (1279-1325) para que aparecessem as primeiras referências escritas à orizicultura. E, nessa altura, o arroz só era servido à mesa dos ricos. O cultivo foi incentivado no século XVIII, em terrenos pantanosos, mas à volta das suas "águas paradas" multiplicavam-se os insectos e as queixas das populações. "Em meados do século XVIII, houve um decreto-lei a proibir o cultivo do arroz por causa dos mosquitos", que causariam malária, diz a bióloga Sónia Negrão, da equipa de Margarida Oliveira. "Mas o cultivo nunca parou e com mão-de-obra escrava continuou a produzir-se, à revelia da lei. . . A produção aumentou muito a seguir à I Guerra, com a introdução de maquinaria. "A criação de regras para a preparação de terrenos destinados à orizicultura, em 1909, terá sido o tiro de partida. E é a partir daqui também que o arroz ganha um papel particularmente importante nos hábitos alimentares dos portugueses, sobretudo no Norte do país. "Como os portugueses têm uma gastronomia muito variada, aprenderam a comer arroz com tudo, como prato principal e como acompanhamento", avança Pedro Monteiro. "Fazem de mil e uma maneiras, como o bacalhau. . . Foi tão bem trabalhado que ficámos fãs do arroz. "É como o vinhoCampos de um lado, campos do outro, no meio estradas, às vezes canais que levam as águas do rio ou das barragens para as folhas. São traçados geométricos de cores alternadas. Mais verdes, mais castanhos, mais da cor do céu, é assim a lezíria ribatejana. O carro avança, arrozais a perder de vista. Mais uma vez não há trabalhadores, há garças, elegantes e brancas, há gaivotas, apesar de o mar estar longe daqui. A água chega das barragens de Montargil e Maranhão para regar a maior mancha de cultivo de arroz do país, diz António Madaleno. "São 12. 500 hectares. " Agricultor de camisa aos quadrados, sim, mas óculos escuros YSL e um Audi nas mãos. A estrada divide arrozais e leva-nos à fábrica da Orivárzea, perto de Salvaterra de Magos. António Madaleno, o seu presidente, também é empresário e explica por que deve ser mesmo assim: "Os agricultores portugueses ainda não perceberam que não basta mandar a semente à terra. Tem de haver dinâmica em termos comerciais. " A Orivárzea juntou 41 produtores, e dos seus 4500 hectares saem anualmente 30 mil toneladas: 80 por cento carolino, "porque somos teimosos", e o resto agulha. Batas, toucas, que o processo não se quer contaminado. Um enorme monte de arroz ainda com casca está encostado a uma parede, quase como uma instalação. A luz entra pelo tecto da fábrica e o arroz parece transformado em ouro. Mas o que está ali é precisamente aquele que não serve. Tiraram-se as impurezas, fez-se a calibração (o arroz é separado em função das suas dimensões) e este não passou na triagem. Ao lado, tratam-se toneladas de grão. Retira-se uma vez a casca, retira-se duas e três. O grão que entrou castanho sai agora branco transparente - o engessado, branco branco, pertence a outras qualidades, como o Arborio para o risotto, e desse não se faz aqui. Numa hora, são cinco toneladas de arroz que por aqui passam, cumprindo todo o seu percurso: chegaram dos campos e vão para as embalagens, que depois estarão à venda nos supermercados. "Vamos da semente à prateleira", exclama, juntando ao orgulho o facto de a empresa ser a única no país a fazê-lo. "Arroz não é arroz. " É António Madaleno quem o afirma. E com isto quer dizer que o arroz não é todo igual e é preciso aprender a distingui-lo. "É um produto com características próprias. Não fazemos misturas de variedades. O arroz é como o vinho, uma casta do Alentejo não é igual à do Douro. "Precisamente porque há distinções a fazer, a Orivárzea procura vários nichos: produz a semente do Ariete, em vez de a mandar vir de Itália. "É a que melhor se adapta ao clima e que se adequa à nossa gastronomia", justifica. Esta dá, assim, o arroz carolino de Indicação Geográfica Protegida, o equivalente à região demarcada dos vinhos - um campo onde não entra outro grão que não uma variedade muito específica, e portuguesa. "Estas sementes não vêm de Itália", como a maioria das que se semeiam em Portugal. E o arroz é vendido em saquinhos de meio quilo e encaminhado para mercearias chiques. Outra "jóia" da marca Bom Sucesso é o arroz perfumado - "somos os únicos a produzir arroz perfumado em Portugal" - da variedade Giano. Neste "caminho da diferenciação" como lhe chama Madaleno, também se produz arroz integral carolino, e um arroz especial para bebés, sem químicos e à venda nas farmácias numa embalagem que mais parece a de um xarope. "É este o caminho para salvar a agricultura portuguesa: grupos de agricultores para maximizar a economia, reduzir os custos, concentrar as vendas. " De resto, o arroz também já foi mais valorizado, queixa-se. "Um quilo de arroz custa o mesmo que um café. É degradante. "De olhos na panelaNão sabemos quanto João McDonald estaria disposto a pagar pelo seu vício. Mas sabemos que é mesmo uma coisa de que não abre mão. Nem o apelido (herdado de ascendentes escoceses) o empurra para os hambúrgueres com batata frita, é o próprio que graceja. Arroz é que é, e com tudo. Seria difícil saber quantos quilos este técnico de electrónica já comeu em 62 anos de vida e quantos já cozinhou. Mas será certamente um dos que engrossam largamente as estatísticas. "Sempre gostei muito. Tinha de fazer parte do dia-a-dia. Se pudesse ser às duas refeições, tanto melhor. " Pequeno-almoço é que não. Azeite no tacho e duas cebolas pequenas para um estrugido, que no Porto, onde vive, não se diz refogado. Não precisa de alho. Aprendeu tudo com a mãe. "Antigamente era muito lavado, passado por coador para tirar o pó. " Agora já não é preciso, mas nada de pressas. "O meu arroz tem de ser acompanhado, visualmente falando. "Não se medem os grãos com chávena, antes de os deitar no tacho com a cebola frita. Vai a olho, mas por agora é só um bocadinho. Já em miúdo era ele quem fazia para os amigos quando iam acampar, ou para os irmãos mais novos. A mulher queixa-se, "outra vez arroz!", mas a vida é mesmo assim. O bocadinho que pôs no tacho está a fritar e é agora novamente regado com azeite, tudo a mexer "para evitar que isto queime muito". O branco já foi translúcido, passou a branco outra vez e está agora acastanhado, "visualmente falando", lá está. "Deita-se o resto do arroz cá para dentro. " Mexe-se. Não procura receitas, é tudo uma questão de inventar, com poucos limites, a não ser um: incluir arroz. "A minha mulher diz que quando venho para a cozinha deixo tudo de pantanas. " Deita a água, mexe novamente. "Tenho de estar constantemente a observar se há água ou não, e enquanto não estiver cozido não se pára de deitar. Abafo um bocadinho [coloca a tampa] e conforme a água vai baixando ao nível do arroz vou juntando mais. " A água está a sumir-se do tacho para o bago - "agora poderia juntar bacon" - e está na hora de pôr o sal. Mexer. Abafar. A partir daqui pouco se toca no tacho. "Quando quero um arroz bem feito, tem de ser assim. " Estamos a falar com um especialista. Porque o come todos os dias, sabe bem o que diz. Nunca viveu na China, ri, mas isto vem de família. Na casa de tios e primos, como na dele, nunca faltava. A água vai-se sumindo novamente. Junta-se mais, quase com carícias da colher de pau. "Já está com um aspecto mais grosso. Tenho de provar para ver se não está cru. . . Já não sabe mal. "Só agora vai baixar o lume, para esperar que esteja no ponto. E quando esse momento chegar, acaba-se com o fogo e pega-se num jornal para embrulhar o tacho, depois num pano da cozinha para aconchegar, e será uma "sesta" de 20 minutos. Já lá vão uns bons 40, é fazer as contas. "Quantas vezes já aumentou ele de tamanho? Rende muito. " Não gosta de arroz agulha, gosta é de carolino. Aqui não tem os números do seu lado. Em Portugal, come-se mais agulha (48 por cento contra 41 do carolino), e está a aumentar o consumo de vaporizado (7 por cento) e basmati (dois por cento). João McDonald gosta de o cozinhar em parceria, ou a acompanhar quase qualquer coisa. "Arroz com bacalhau cozido é uma maravilha. Tudo regado com azeite. . . Massa não liga nada, já experimentei. Mas sou capaz de comer pizza com arroz, com peixe cozido, sardinhas assadas - vamos nisso, não há problema nenhum!"
REFERÊNCIAS:
Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005. (...)

Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.3
DATA: 2015-10-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005.
TEXTO: O título não deixa grandes dúvidas. Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, que estreia nas salas, é um documentário que faz a defesa do desenho humorístico como uma expressão da liberdade de opinião e, por consequência, da democracia. As suas personagens sãs os cartoonistas, doze ao todo, e vêm dos EUA, França, Tunísia, Costa do Marfim, Argélia, Israel, Palestina, Rússia ou China. Um retrato global desenhado a partir de diferentes geografias, contextos culturais e históricos e que Plantu (Jean Plantureux), cartoonista do Le Monde inaugura com uma sucessão de frases: “Uma escuridão instala-se sobre o mundo e o desenho é uma boa forma de lhe escapar. A democracia é uma luta que se trava todos os dias. Nunca está ganha”. Ao telefone, de Paris, a realizadora Stéphanie Valloatto anui com um entusiasmo urgente, antes de revelar a génese do documentário. “Começou com a sugestão de um amigo, o Radu Mihaileanu. Falou-me da criação do Cartooning for Peace [associação internacional criada em 2006 por Plantu] e desafiou-me e pensar num documentário sobre o trabalho dos desenhadores humorísticos. Achei uma ideia muito bonita e avançámos”. A escolha dos autores e as filmagens não se realizariam sem obstáculos e dúvidas, apesar da ajuda preciosa da associação e de Plantu. “Demorámos a chegar aos artistas africanos, mas conseguirmos”, conta a realizadora. “Muito mais complicado foi encontrar um artista asiático. O primeiro cartoonista chinês em que pensámos não quis falar. Temia ser preso. Tivemos a sorte de encontrar o Pi San”. É por intermédio de Pi San, conhecido pelos seus desenhos animados controversos, que o artista plástico Ai Weiwei faz uma curta e inesperada aparição. Weiwei não é cartoonista, mas a repressão de que foi alvo (está proibido pelas autoridades de sair da China) não é estranha à venezuelana Rayma Suprani, ao russo Mikhail Zlatkovsky ou ao argelino Slim (Menouar Merabtene). Há nos gestos destes a apreensão das pessoas acossadas, uma resignação dolorosa, embora não deixam de falar, de mostrar os seus desenhos, de fitar a câmara. “Achei importante mostrar os seus rostos, as suas casas, os ateliês onde trabalham, a sua intimidade. Quis tirá-los das sombras, onde costumam ficar, mas eles também quiseram sair. Iluminei-os um pouco e curiosamente disseram-me que agora, sob a luz, se sentem mais protegidos”. Escrevia-se que os cartoonistas são as personagens do documentário. Acrescente-se outra. Invisível, “abstracta”, a democracia moderna vive nos desejos e na angústia dos retratados. “Sim, concordo. Quis mostrar o grau da democracia no mundo a partir dos cartoonistas, quis mostrar as dificuldades que eles enfrentam nas suas actividades. Por serem mulheres, como a Rayna ou Nadia [Khiari, criadora do gato irónico, Willis from Tunis], por causa da ascensão do fundamentalismo religioso ou da pressão dos políticos que o Plantu descreve. Creio que a actividade dos cartoonistas pode servir como barómetro da democracia, eles antecipam ameaças, assinalam sintomas”. Canários numa mina de carvãoPara Stéphanie Valloat, a metáfora bélica do título de documentário assenta bem aos cartoonistas. Estão na frente, antes dos jornalistas e outros formadores de opinião. São os primeiros a sofrer ataques e retaliações, como testemunham Slim e Baha Boukhari. O primeiro na Argélia, o segundo na Palestina, satirizaram, respectivamente o governo argelino pós-independência, e o líder do Hamas, Ismaïl Haniyeh. O desfecho? A economia dos seus desenhos foi inversamente proporcional à violência da reação do poder político: foram ameaçados e censurados. Porquê? O que torna os cartoonistas tão expostos à violência?“Nas sociedades modernas, eles acabaram por se transformar em expoentes das fronteiras da liberdade de expressão”, diz o historiador de arte dinamarquês Matthias Wivel. “São mais visíveis do que qualquer outro grupo, em parte porque a sua arte cristaliza, com uma eficácia invulgar, as questões associadas a esse tema. São como canários numa mina de carvão”. Especialista em arte do Renascimento, banda desenhada e desenho humorístico, Wivel faz no entanto uma ressalva importante. “Não acho que o cartoon seja uma arte da democracia moderna. É uma forma de sintetizar a escrita e o desenho, de tipificar a realidade. Pode ser usado com vários propósitos, inclusive anti-democráticos. Um dos exemplos mais infames desse uso esteve, por exemplo, nos cartoons anti-semitas do Der Stürmer [semanário oficial do regime nazi] ”. Mas não pode a vitalidade do cartoon andar a compasso do vigor da democracia? “Sim, admito que sim. A qualidade de uma democracia pode ser medida pela capacidade que tem em acomodar diferentes pontos de vista, incluindo os anti-democráticos”. No documentário, há um ponto de vista e pertence à sociedade dessa democracia. É ela que olha para aos cartoonistas, sem juízos prévios ou analogias forçadas. Pelas palavras e memórias dos intervenientes, o espectador sabe que se confronta com contextos e histórias distintas. “A democracia tem graus diferentes na China, na Venezuela e no Burkina-Faso. Quando falamos de democracia na da Rússia, não estamos a falar da democracia nos Estados Unidos ou em França. Cada cartoonista fala da sua sociedade, da sua cultura”, sublinha a realizadora. Essa consciência manifesta-se nas desilusões expressas por Nadia Khiria, que, depois da Revolução de Jasmim, na Tunísia, nunca imaginou usar tanto o vermelho nos seus desenhos ou na prudência corajosa de Pi Sang, que reconhece a existências de linhas que não devem ser ultrapassadas. Satirizar Vladimir Putin é, na Rússia, uma dessas linhas, como é na Venezuela caricaturar Nicolás Maduro. Quando ultrapassadas, as consequências são descritas no documentário: perseguição, proibição de desenhar, despedimentos sumários. Insultos e ameaças. A repressão é tão forte que as canetas e os lápis se tapam, nem que seja temporariamente, como conta Slim traumatizado com a violência da Guerra Civil da Argélia (1992-2002). Nas democracias ocidentais também existem limites, mas tendem a ser definidas pelas regras do próprio sistema democrático. “Nas leis que proíbem que se ridicularize o chefe de estado ou que proíbem a blasfémia, por exemplo, na Inglaterra, em relação à região anglicana, encontramos linhas vermelhas”, exemplifica João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política da Universidade do Minho. Já nos Estados Unidos, legislação semelhante dá lugar a pressões de caracter social, das comunidades, das associações”. “Os jornais americanos não publicaram as caricaturas de Maomé”, lembra. “E não o fizeram por causa da pressão social, porque existe um cuidado especial quando se trata de religiões. Não é propriamente uma linha vermelha legal, mas social e política. E isso existe em qualquer democracia. A democracia é feita de instuitições e de comunidades. Resta ao cartoonista adaptar-se aos contextos, caso contrário, corre o risco de não ser compreendido, de não encontrar o seu púbico. Não há liberdade absoluta, mesmo nas democracias”. Uma arte num mundo globalizadoNuma das cenas do documentário, o cartoonista americano Jeff Danziger revê um dos seus mais polémicos desenhos (Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA, é um dos visados) e deixa escapar que não o assinou. Medo de represálias, pressões? “Ele de facto sentiu-me incomodado com esse desenho [risos]”, revela Stéphanie Valloato. “Os Estados Unidos não são uma ditadura, mas também aí existem linhas vermelhas. Evita-se escrever sobre sexo, sobre os pobres e os ricos, sobre as minorias, sobre o poder financeiro”. Por vezes, a autocensura é um dos meios que os cartoonistas encontram de fazer à frente às pressões, de sobreviver. Retraem-se conscientes de que o estão a fazer. Ora, para Michel Kichka, cartoonista belga-israelita, descendente de sobreviventes do Holocausto, quem receia magoar os outros com o seu desenho deve procurar outra profissão. A sátira magoa e não é compatível com o politicamente correcto. “Essa é uma tendência que vai dominando na Europa e nos EUA”, acrescenta a realizadora. “A dada altura não podemos falar, não podemos ter uma opinião. Temos todos que pensar com a mesma cabeça. De tanto se defender a diferença, ataca-se a diferença de opinião. Simplesmente, não podemos dizer aquilo que pensamos. ”A outra ameaça que no filme paira sobre muitos dos cartoonistas é a do fundamentalismo religioso islâmico. Em segundo ou em primeiro plano, dito ou não dito, faz sentir a sua presença nos depoimentos dos entrevistados ou em imagens de arquivo. “É por causa das caricaturas de Maomé publicadas em 2005 num jornal dinamarquês que andamos a falar tanto de cartoonistas. Tudo começou aí”, afirma João Cardoso Rosas. “Há um contexto específico muito importante, que é o regresso da questão religiosa à Europa e a oposição entre a liberdade de expressão e uma ortodoxia religiosa. E os cartoonistas, com a sátira e a blasfémia estão no centro dessa oposição. Através do seu trabalho entram em conflito com uma sensibilidade religiosa que é a dos muçulmanos”. Stéphanie Valloato estava ciente da tensão criada por tal oposição, mas não anteviu a tragédia do dia 7 de Janeiro. “No que respeito ao massacre do Charlie Hebdo, há claramente um antes e depois. Sabíamos que os cartoonistas eram perseguidos e assassinados noutros países, mas não imaginámos que isso pudesse acontecer em Paris, no século XXI. Isso não imaginávamos, confesso” Para Matthias Wivel acresce outro factor que vem ampliar a ressonância desse conflito. É, aliás, o mesmo que permitiu o nascimento do documentário. “Vivemos num mundo globalizado em que a informação e a desinformação são transmitidas instantaneamente pelo mundo inteiro para serem interpretadas em contextos muito diversos. Isto criou uma nova situação para os cartoons satíricos que historicamente sempre foram muito dependentes de contextos locais. Veja o Charlie-Hebdo ou Jylands-Posten [o jornal dinamarquês que publicou as caricaturas de Maomé]. Não pensaram, creio eu, que os seus desenhos viessem a provocar este impacto. Os cartoonistas tornaram-se símbolos de algo que não previram e que está relacionado com a circulação rápida e livre da informação”. Sem menosprezar os efeitos da globalização, vale a pena constatar a adaptação do desenho, satírico enquanto arte e técnica, ao mundo criado pelas tecnologias de informação. A actividade de Nadia Khiaria é nesse aspecto exemplar. Foi nas redes socias que esta artista criou e divulgou Willis From Tunis, série de cartoons que acompanharam, na forma de comentários irónicos, os avanços e recuos da Revolução de Jasmin. “O desenho humorístico é muito claro, tem pouco texto. Adapta-se a todos suportes, sejam digitais ou analógicos”, diz Wivel. “Parafraseando Art Spiegelman [o autor de Maus] por vezes é mais difícil não conseguir ler um cartoon, do que lê-lo”. E ler um cartoon pode ter um efeito terapêutico, como lembram (quase) todos os retratados. Rir pode ser, no filme, um antídoto contra o absurdo, a violência, a guerra, a estupidez. Protege-nos do poder e da vaidade. É na sua expressão que os cartoons prosperam. O que poderiam fazer diante do muro da Cisjordânia, da prepotência de Putin ou de Maduro, da ambição de Zarkozy, do fanatismo religioso, senão fazer rir? “Sem o humor, o mundo tornar-se-ia insuportável. Um sítio inabitável”, conclui Stéphanie Valloato.
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