Islândia: Na ilha do peixe de Inverno
Se não fosse a obsessão portuguesa por bacalhau, provavelmente os islandeses pouco ouviriam falar deste distante país do Sul da Europa. Mas há muitas décadas que preparam para os portugueses um peixe que eles próprios não comem. “Para nós, a palavra Portugal significava prosperidade.” (...)

Islândia: Na ilha do peixe de Inverno
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se não fosse a obsessão portuguesa por bacalhau, provavelmente os islandeses pouco ouviriam falar deste distante país do Sul da Europa. Mas há muitas décadas que preparam para os portugueses um peixe que eles próprios não comem. “Para nós, a palavra Portugal significava prosperidade.”
TEXTO: Portugal? Ninguém sabia o que era. Para nós, era só uma palavra. ” O islandês Nils Gudmundsson nasceu em Grindavik, uma localidade a cerca de meia hora de Reiquiavique, a capital islandesa, e lembra-se bem da sua infância, há 40 anos. “Todas as famílias estavam envolvidas na indústria do bacalhau. O meu pai era pescador e a minha mãe, quando não estava a tomar conta dos filhos, trabalhava na fábrica do peixe. ” E aos fins-de-semana até as crianças vinham ajudar. “Às vezes, em dias de maior trabalho, chegavam a pedir à escola para dispensar os miúdos umas horas para eles poderem ajudar. ”O mar sempre foi a maior riqueza da Islândia. O peixe nunca falta. E a população nunca duvidou que aquele era a sua garantia de sobrevivência. Sabiam também que, lá no Sul da Europa, um país pequeno e com sol era habitado por inabaláveis comedores de bacalhau (o consumo actual é de sete quilos per capita por ano, o que se traduz em 30% do bacalhau que é pescado no mundo). Mas, por ironia do destino, esse país, que até tinha uma grande costa e muito peixe nas suas águas, não tinha bacalhau. Por isso, apesar de ser “só uma palavra”, Portugal foi sempre uma palavra boa. “As pessoas ficavam felizes, Portugal significava prosperidade. ” Ainda bem que esses estranhos portugueses gostavam tanto de bacalhau salgado — um peixe que, aliás, os islandeses não estavam autorizados a comer precisamente por ser a sua maior fonte de riqueza. Essa restrição só começou a ser levantada, gradualmente, a partir dos anos 60 do século XX. Na infância de Nils, já existiam fábricas e máquinas. “Em Grindavik, havia umas oito ou dez empresas a escalar e salgar o peixe”. Havia uma máquina para abrir o peixe, outra para lhe cortar a cabeça — como continua a fazer-se hoje. O trabalho mais duro, recorda Nils, era o da salga. “As pás eram pesadas e tínhamos de ser rápidos. ” Mas as tarefas mais árduas só duravam até final de Maio. “Depois, começava-se a preparar o empacotamento, em sacas de serapilheira, que se fazia durante o Verão. ” O peixe salgado ficava guardado em grandes armazéns e quando chegava o tempo quente era exportado para Portugal. “Os portugueses só gostam do peixe apanhado entre Janeiro e Maio, quando está grande e gordo. Chamam-lhe o peixe de Inverno. ”7Naquele tempo, mesmo entre os produtores, eram poucos os que conheciam Portugal, continua Nils. “Um dos meus familiares que era dono de uma empresa foi pela primeira vez a Portugal e ficou muito espantado por ver mulheres carregarem à cabeça sacas de 50 quilos. ” Mais tarde, o próprio Nils tornou-se negociante de bacalhau e passou muito tempo sentado à espera de papeladas na “reguladora”, como ele diz, carregando no erre. Era o tempo em que do lado islandês havia um monopólio na exportação do bacalhau (só acabou nos anos 90) e do lado português tudo tinha de passar pela Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau – a “rrreguladora”. No tempo livre, Nils passeava, subia ao Cristo-Rei, via Lisboa ao longe, encantava-se com o Tejo e, sobretudo, com os diferentes pratos de bacalhau que ia experimentando. Hoje, diz, tem como missão — que, admite, “não é fácil” — convencer os islandeses a comer mais bacalhau com a cura tradicional portuguesa. Como é natural, o tal peixe “proibido” nunca se tornou uma tradição no país dos fiordes, onde, quando muito, é consumido fresco, preparado pela nova geração de chefs. Mas Nils não desiste e sempre que visita Portugal regressa à Islândia com bacalhau debaixo do braço — o mesmo bacalhau que foi pescado no mar islandês, a dois passos da sua casa, mas que em Portugal passou um mínimo de seis meses no sal e foi seco de acordo com a tradição portuguesa, em que o nível de humidade tem que ser reduzido até aos 47%. O cenário da infância de Nils era em algumas coisas ainda muito semelhante e noutras já radicalmente diferente do que tinha sido Grindavik 50 anos antes. No início do século XX, a vida era ainda mais dura. Essa é uma história contada no Museu do Peixe Salgado de Grindavik, cujas paredes estão cobertas por enormes fotografias a preto e branco mostrando homens, mulheres e crianças a trabalhar ao ar livre, junto aos barcos, em precárias mesas de madeira, abrindo os peixes ao meio, escovando-os, salgando-os e empilhando-os. Nesses tempos, ainda se fazia na Islândia a secagem do peixe, por isso algumas imagens mostram um autêntico mar de peixes a secar e mulheres de lenços na cabeça e longas saias que, se não fossem as montanhas com neve ao fundo, poderiam ser da Nazaré. Mas desde o século XIX que a salga como modo de conservar foi gradualmente substituindo a secagem. O museu mostra, numa exposição com manequins, todo o processo: a mulher dobrada sobre uma mesa, escovando o bacalhau para o limpar e deixar o mais branco possível, depois a pô-lo a secar num estendal, a colocar-lhe o sal. E, no final, uma mercearia num país do Sul da Europa, igual às que encontramos em Portugal, com caixotes de madeira no exterior cheios de laranjas, tomates e cabeças de alho, e, ao lado, bacalhaus secos pendurados — um deles já na mão de uma cliente de vestido preto com pintinhas brancas e chapelinho na cabeça. Durante o século XIX, a Islândia exportava sobretudo para Espanha, em particular para a Catalunha e País Basco. Depois, outros mercados foram surgindo e ganhando importância: Itália, Portugal, Grécia. A relação com Portugal consolidou-se na década de 20. Não querendo ficar demasiado dependente do mercado espanhol, os islandeses começaram a estudar o português e a conclusão, lê-se num dos textos de apoio do museu, foi a de que Portugal “queria um peixe mais seco do que o dos espanhóis e italianos e não estava preparado para pagar por ele preços tão altos”. Em 2015, a ligação continua forte. “As relações comerciais entre Portugal e a Islândia são vitais para nós”, disse Sigurour Ingi Jóhannsson, ministro islandês das Pescas e da Agricultura, ao grupo de jornalistas portugueses que visitou o país. “O peixe é o nosso maior produto de exportação e gostaríamos de aumentar as exportações para Portugal. ” A indústria das pescas emprega 9 mil pessoas e representa 11% do PIB, mas o cluster do mar atinge os 25%, sendo o maior sector da economia, seguido pelo alumínio, 22%, e agora pelo turismo, que, com 12%, está a viver um boom em parte ajudado pela crise económica que tornou a Islândia um destino mais apetecível. E, no sector das pescas, a boa notícia é que nos últimos tempos os stocks de bacalhau, que são cuidadosamente acompanhados por cientistas, têm estado a aumentar. O ministro reconhece que a Noruega não só é um produtor maior, como tem uma estratégia de marketing mais agressiva, mas explica que o posicionamento da Islândia é outro. “Eles são um país com mais gente, que pesca mais, que tem uma boa economia de base. A nossa perspectiva é a de que temos de basear as exportações em qualidade e não em quantidade. Não penso que o preço seja um problema se nos concentrarmos na qualidade. ”Vamos sobrevoar o território deserto, coberto de belíssimas montanhas com neve, do centro da Islândia, até à costa Norte, mais precisamente à localidade de Húsavik, que os turistas conhecem pelas baleias, mas cuja população vive sobretudo da pesca. É aqui que está baseada a empresa GPG, propriedade de Gunnlaugur Karl Hreinsson, conhecido como Gulli, e que é uma das principais fornecedoras de bacalhau à portuguesa Riberalves. Viajamos com Ricardo e Bernardo Alves, os dois irmãos hoje à frente da Riberalves, criada há precisamente 30 anos pelo pai, João Alves, que começou a vida ajudando o pai dele a vender bacalhau de porta em porta na Baixa de Lisboa. Para Bernardo, que se ocupa mais da parte comercial da empresa, esta é a primeira viagem à Islândia, mas Ricardo vem aqui há 15 anos, conhece pessoalmente os produtores e preocupa-se em acompanhar directamente o processo. Desta vez vamos num dos barcos ver como se faz a pesca do bacalhau. Mas, antes disso, primeira paragem em Flatley, a maior da ilhas ocidentais da Islândia, praticamente desabitada durante o Inverno. “Estamos a norte do círculo polar árctico. Só existe uma ilha mais para norte”, diz Bjorgvin Gestsson, da empresa Finefish, intermediária entre a Riberalves e os produtores islandeses. 9Flatley é pequena, apenas dois quilómetros de comprimento e um de largura, algumas casas pintadas de cores vivas espalhadas, uma estrada de terra que parte do pequeno porto e, num ponto mais alto à direita, uma igreja cuja biblioteca albergou em tempos o Flatley Book, o maior dos manuscritos medievais islandeses com sagas dos vikings. Seguimos alguns metros pela estrada e os pássaros que sobrevoam a ilha agitam-se subitamente e lançam-se na nossa direcção, tentando bicar-nos as cabeças. São os kria, conhecidos pela agressividade, aparentemente para proteger os ninhos escondidos no chão numa ilha que não tem árvores. Também esta ilha, conta Bjorgvin, viveu no passado da indústria do peixe. “Durante dezenas de anos, as pessoas viviam aqui, sem electricidade, só para a pesca do bacalhau. Nas décadas de 50 e 60, saíram porque os invernos se tornaram demasiado rigorosos. Mas muitos bacalhaus foram produzidos nesta ilha, se calhar muitos deles para Portugal. ”Regressamos ao mar para ir até ao barco onde Thorbur Biggi, mais conhecido como “Doddi”, 43 anos, está à pesca há já algumas horas. De boné de xadrez na cabeça e camisola de lã com o padrão típico islandês, o pescador está a ter um dia tão calmo que confessa recear que os portugueses fiquem com a ideia de que a pesca na Islândia é uma coisa fácil. O facto é que, depois de um Inverno que todos descrevem como particularmente rigoroso, hoje está um dia de sol e um mar calmo. Além disso, como acontece no Verão, durante as férias escolares, “Doddi” tem a ajuda do filho mais velho. “No Inverno, venho sozinho e faço tudo sozinho”, conta. Não conseguimos imaginar como é que um homem só dá conta do recado, mas não há dúvida de que “Doddi”, filho, neto e bisneto de pescadores e que anda nesta vida desde os 16 anos, domina admiravelmente a técnica. Na pequena cabina mal cabem duas pessoas. Encaixada entre as janelas quadradas está uma antiga fotografia a preto e branco do avô. Abaixo das janelas, a mesa de madeira está toda ocupada: uma máquina para fazer café, um computador portátil e vários outros ecrãs que ajudam a navegação e indicam a “Doddi” os locais onde existe mais peixe no fundo do mar. A pesca neste barco é feita à linha, embora 46% do bacalhau capturado na Islândia seja com rede de arrasto e a linha de mão represente apenas 7%. Algumas horas antes o pescador sai para o mar para lançar a linha que, neste caso, tem 17 quilómetros de comprimento e 15 mil anzóis com isco. Depois é só vir buscar o peixe. Com a ajuda de uma roldana, a linha é recolhida e, se alguns anzóis vêm vazios, a maior parte traz pendurado um peixe, ainda a debater-se. A grande maioria são bacalhaus. “Doddi” tem apenas que, com um arpão e um gesto preciso, puxar o animal para dentro do barco (o que não é tão fácil quando os peixes são muito grandes e dão muita luta, o que geralmente não acontece com os bacalhaus). O filho trata da parte de o sangrar, o que deve ser feito logo no barco para que a carne fique branca e sem vestígios de sangue. Quando vem sozinho, “Doddi” apanha o peixe e sangra-o imediatamente, separando-os por espécies e por tamanhos. Os maiores, como o peixe-gato, debatem-se desesperadamente e tentam ainda morder os outros. Neste caso, é melhor esperar um pouco até o animal ficar cansado antes de se tentar pegar nele. O bacalhau da Islândia pescado à linha, como este, é o mais caro do mercado (cerca de 10% mais do que os outros), mas Ricardo Alves acredita que faz a diferença. “É o melhor, o mais bem tratado, com mais respeito”. Daí que, nos últimos cinco anos, a Riberalves tenha comprado 50% do bacalhau islandês que vai para Portugal, cerca de 4500 toneladas. Esta escolha, diz, justifica-se particularmente porque a empresa está a apostar cada vez mais no bacalhau demolhado ultracongelado e pronto a cozinhar, e as postas maiores, preferidas por restaurantes e consumidores, são as que vêm destes bacalhaus. “O bacalhau demolhado é o futuro”, garantem os dois irmãos. Desde que foi lançado, em 2003, não tem parado de crescer — neste momento, representa 30% das vendas em Portugal mas no Brasil já atinge os 40%. Trata-se de um bacalhau mais fácil, que poupa aos consumidores o trabalho da demolha em casa. Esta tendência para a simplificação vai continuar: o novo produto que a Riberalves está a desenvolver (a pensar sobretudo no mercado externo, Brasil, Estados Unidos, mas que será lançado também em Portugal) é o bacalhau sem pele e sem espinhas. Por isso, para acompanhar de perto o que se está a passar com a produção, é que Ricardo vem à Islândia com alguma frequência. Chegados à terra, com o peixe entregue, seguimos para a fábrica da GPG, que vende 35% da sua produção para Portugal. É aí que acontece o processo que no início do século era feito ao ar livre como mostravam as fotografias do museu de Grindavik. Hoje há máquinas para tudo, mas a mão-de-obra continua a ser essencial (e nas férias escolares são muitos os alunos que estão aqui a ajudar) para lidar com as 50 toneladas por dia que passam aqui na época alta. Cada animal é escalado, são tiradas as vísceras, a cabeça é cortada (servirá para fazer as caras de bacalhau, para Portugal) e é limpo à mão, com a ajuda de uma escova. De seguida é empilhado e salgado. Nesta fábrica são utilizados fosfatos (injectados no bacalhau tornam-no mais branco e contribuem para a retenção de água) mas não no peixe que vai para Portugal — depois de uma luta contra a legislação europeia que autoriza esta prática, Portugal conseguiu uma excepção para o bacalhau de cura tradicional portuguesa. “Os fosfatos alteram o sabor e a textura do peixe”, sublinha Ricardo Alves. “E a retenção de água dificulta muito a secagem. ” O peixe fica cerca de três semanas com sal, antes de ser colocado em contentores e enviado para Portugal. O que entrou na fábrica como um peixe inteiro perdeu entretanto 55% do seu peso. Mesmo assim, há um grande aproveitamento. Numa fábrica próxima, e com energia natural geotérmica (uma gigantesca vantagem em termos de custos), é feita a secagem de partes do peixe que são depois exportadas para a Nigéria. Bjorgvin e Gulli vão buscar alguns pedaços de peixe muito seco, já escuro, para mostrar. “As caras do bacalhau vão para Portugal, mas a parte de cima das cabeças, que lhes é retirada, é considerada uma especialidade na Nigéria, assim como a espinha e até as guelras, que eles usam nas sopas. ” Cada mercado tem as suas preferências — a Espanha prefere um bacalhau menos salgado e mais branco do que Portugal, enquanto a Itália e o Reino Unido estão a importar muitos filetes de bacalhau salgado verde (ou seja, sem a cura tradicional portuguesa). “O mercado exige cada vez mais peixe filetado e sem pele nem espinhas”, diz Gulli. Quanto a outros subprodutos do bacalhau, há empresas na Islândia que apostam na investigação para aproveitamento para cosmética ou suplementos alimentares. É o caso da Codland, uma startup cujo objectivo, explica o seu director Thomas Eiriksson, é “o aproveitamento total do bacalhau, chegando à utilização de 100% do peixe”, cuja pele é rica em colagénio e do qual podem também ser extraídas proteínas e óleo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E assim parece continuar a confirmar-se uma frase lapidar do escritor Halldór Laxness, Nobel da Literatura islandês, hoje célebre e usada pela promoção do país: “A vida é bacalhau. ” Este peixe é tão importante para a identidade islandesa que a partir do século XV e até ao XX chegou a figurar no brasão de armas do país — não com o seu aspecto de peixe completo (que muitos portugueses ignoram qual é) mas sim escalado e salgado, em triângulo, como é conhecido em Portugal. A única coisa que não acontece (ainda) ao bacalhau na Islândia é ser comido em grandes quantidades pelos locais. Mas, se depender da vontade de Nils Gudmundsson, o islandês que vem a Portugal comprar o bacalhau de cura tradicional, um dia destes isso poderá mudar.
REFERÊNCIAS:
Há novas regras para tentar salvar o mamífero mais traficado do mundo
O comércio de pangolins, cujas escamas são usadas na medicina tradicional chinesa, foi banido e foram aprovadas medidas coercivas para caçadores e traficantes. (...)

Há novas regras para tentar salvar o mamífero mais traficado do mundo
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 5 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 0.318
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: O comércio de pangolins, cujas escamas são usadas na medicina tradicional chinesa, foi banido e foram aprovadas medidas coercivas para caçadores e traficantes.
TEXTO: Estão longe de ser o animal mais bonito do mundo, mas diz-se que é, de longe, o mamífero mais traficado de todos. Os pangolins são um animal nocturno, com o corpo coberto de escamas, que se alimenta de formigas e vive em regiões tropicais em África e na Ásia. Além de a sua carne ser considerada uma iguaria em certas regiões da China, as escamas também são um ingrediente muito procurado na medicina tradicional chinesa. Isso ajuda a perceber porque é que estão à beira de desaparecer na China e porque é que são os alvos privilegiados de caçadores furtivos nas florestas da Indonésia e do Vietname. Apesar de serem um animal pouco conhecido, estima-se que os pangolins representem 20% de todo o tráfico ilegal de espécies selvagens e que na última década mais de um milhão tenha sido capturado, escreve a BBC. Entre Janeiro e Setembro deste ano, as autoridades capturaram mais de 18 mil toneladas de escamas destes animais ameaçados de extinção em cerca de 19 países, de acordo com um estudo do grupo de conservação da natureza Annamiticus. A maioria destas escamas era proveniente de animais africanos, oriundos dos Camarões, da Nigéria e do Gana. Segundo o especialistas, por cada quilograma de escamas é preciso matar três ou quatro animais. O facto de a procura por pangolins continuar a crescer levou a que recentemente a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (organização que junta governos de todo o mundo e é conhecida como CITES) tenha, no seu último encontro, em Joanesburgo, votado a proibição total do comércio de qualquer uma das oito espécies conhecidas (quatro vivem na Ásia e outras quatro em África). Além disso, a CITES aprovou uma série de medidas coercivas que os seus membros devem por em acção para combater o tráfico ilegal destes animais. Segundo dados publicados pelo Worldwatch Institute, a enorme procura por parte da China já levou ao “grande declínio” nas populações de pangolins de países como o Camboja, Vietname e Laos. Actualmente, são os pangolins provenientes da Indonésia e da Malásia que abastecem grande parte da procura, além daqueles que vêm de África. Ainda que a China seja membro da CITES, o país permite o consumo de pangolins, nomeadamente as escamas, por respeito às tradições médicas chinesas, lembra o Worldwatch Institute. E, por outro lado, embora vários países tenham proibido a caça furtiva e o comércio internacional instituindo penas pesadas, a verdade é que a sua eficácia é reduzida porque são poucos os que têm os meios humanos e financeiros necessários para uma fiscalização activa, nota a organização. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi em 2013 que um acidente de barco expôs, por acaso, a crua realidade do tráfico desta espécie ameaçada. Quando um barco de pesca chinês embateu contra um recife de coral ao largo das Filipinas e as autoridades subiram a bordo para o examinar, descobriram mais de 2000 pangolins mortos e acondicionados em 400 caixas. Foi precisamente um trabalho sobre a captura ilegal de pangolins que deu ao fotógrafo Paul Hilton o prémio Wildlife Photographer of the Year. O fotojornalista de Hong Kong chamou-lhe The pangolin pit (a fossa de pinguins). Nessa imagem, captada em Sumatra (Indonésia), podem ver-se os cadáveres de cerca de quatro mil pangolins, enrolados (tal como o ouriço-cacheiro, enrolam-se quando se sentem ameaçados), em processo de descongelação, momentos antes de serem incinerados pelas autoridades indonésias. Esta foi uma das maiores apreensões de pangolins de que há registo – cerca de cinco mil toneladas, segundo a BBC Earth. Além disso, foram encontrados 96 animais vivos devido ao seu tamanho. Explica a BBC que são alimentados à força, para crescerem e poderem ser vendidos por um preço melhor. "Os crimes contra as espécies selvagens são um grande negócio, mas só vão acabar, quando acabar a procura”, diz Hilton.
REFERÊNCIAS:
Está em curso a sexta extinção em massa na Terra e é mais grave do que se pensava
Um novo estudo concluiu que milhares de milhões de mamíferos, aves, répteis e anfíbios desapareceram em todo o mundo desde o início do século XX. "Uma aniquilação biológica", consideram os autores. E o tempo para a inverter é curto. (...)

Está em curso a sexta extinção em massa na Terra e é mais grave do que se pensava
MINORIA(S): Africanos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 7 | Sentimento 9.251
DATA: 2017-07-15 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um novo estudo concluiu que milhares de milhões de mamíferos, aves, répteis e anfíbios desapareceram em todo o mundo desde o início do século XX. "Uma aniquilação biológica", consideram os autores. E o tempo para a inverter é curto.
TEXTO: Um novo estudo chegou à conclusão de que milhares de milhões de mamíferos, aves, répteis e anfíbios desapareceram em todo o mundo, o que serve de fundamento aos investigadores para afirmar que está em curso a sexta extinção em massa e que está a ocorrer mais rapidamente do que o era pensado. Publicado no PNAS, o estudo foi conduzido pelo mexicano Gerardo Ceballos, Paul R. Ehrlich e Rodolfo Dirz. Os investigadores estudaram a redução das populações em espécies existentes, raras e comuns, em vez de analisarem o número de espécies extintas ou em perigo de extinção, processo normalmente utilizado para se perceber a magnitude do problema. Em concreto, verificaram a situação de 27. 600 espécies de vertebrados terrestres – entre aves, répteis, anfíbios e mamíferos – desde o ano 1900. Mas para se chegar a conclusões foi necessário contornar um obstáculo que se colocou perante a análise: o facto de não existirem registos fiáveis sobre algumas das espécies analisadas no início do século XX, nem mesmo actualmente. Assim, o método utilizado foi diferente e centrou-se na geografia. Isto é, qual era a distribuição geográfica de cada espécie em 1900 e qual é a actual. Desta forma, foi possível calcular a dimensão das respectivas populações. Os resultados, segundo os autores, são alarmantes: um terço das espécies (8851) já não está presente na maior parte do seu território original. Além disso, descobriu-se que muitas populações regionais e locais desapareceram completamente. Ou seja, quase todas as espécies estudadas perderam população ou extinguiram-se localmente. Existem dados mais fiáveis e detalhados sobre os mamíferos terrestres. Por isso foi possível detalhar que, neste caso, quase metade destes animais perderam cerca de 80% da sua área geográfica. “A aniquilação biológica resultante terá, obviamente, sérias consequências ecológicas, económicas e sociais. A humanidade acabará por pagar um preço muito alto pela diminuição do único conjunto de vida que conhecemos no Universo”, dizem os autores, utilizando expressões mais fortes do que é normal. “A situação tornou-se tão má que não seria ético não usar linguagem forte”, explica Gerardo Ceballos, citado pelo Guardian. “Todos os sinais apontam para agressões ainda mais poderosos à biodiversidade nas próximas duas décadas, criando uma perspectiva sombria para o futuro da vida, incluindo da vida humana”, dizem os autores. O estudo aponta como factor para esta situação “a sobrepopulação humana e o crescimento populacional contínuo e o superconsumo”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao diário britânico, Ehrlich diz que “o aviso sério” exposto no estudo “precisa de ser atendido porque a civilização depende completamente das plantas, animais e microorganismos da Terra que fornecem serviços de ecossistema essenciais desde a polinização e protecção até ao fornecimento de alimentos do mar e manutenção de um clima habitável”. No entanto, os autores admitem que ainda há tempo para inverter esta evolução. Mas “o tempo para agir é muito curto”, alerta Ehrlich. Para demonstrar a gravidade da situação é dado o exemplo do leão (Panthera leo) que nos últimos séculos estava presente numa vasta área do mundo, incluindo o Sul da Europa, Médio Oriente, Sul da Ásia e todo o continente africano. Neste momento, ocupa uma reserva na Índia e conta com cerca de sete mil espécimes em zonas separadas no deserto do Sara. A velocidade com que ocorreu este redução é ainda mais impressionante: desde 1993, a população de leões diminuiu 43%, cita o El País.
REFERÊNCIAS:
Um curto poema sobre a Índia ou as sete vidas de um fotógrafo
É um dos fotógrafos contemporâneos mais reconhecidos. Está em Lisboa para mostrar a sua Índia, um “curto poema” sobre o país onde já esteve mais de 80 vezes. É possivel que McCurry tenha no arquivo uma fotografia do templo em que este domingo morreram cem pessoas. (...)

Um curto poema sobre a Índia ou as sete vidas de um fotógrafo
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um dos fotógrafos contemporâneos mais reconhecidos. Está em Lisboa para mostrar a sua Índia, um “curto poema” sobre o país onde já esteve mais de 80 vezes. É possivel que McCurry tenha no arquivo uma fotografia do templo em que este domingo morreram cem pessoas.
TEXTO: Sabe-se quando se tem pela frente uma fotografia de Steve McCurry, sobretudo se o cenário for a Índia, onde diz ter aprendido a ver e saber esperar. Também nos faz esperar enquanto termina a entrevista anterior. Está sentado numa cadeira com vista para a rua, acena em cumprimento. Minutos mais tarde, apertamos-lhe a mão esquerda — a direita está incapacitada por um acidente em miúdo. É um homem que se demora no olhar. Pedimos ao fotógrafo norte-americano que faça uma visita guiada pelas vinte fotografias que traz a Lisboa (Barbado Gallery). Antes, pede um café, quer saber a marca, justifica-se por ser um forte bebedor. Acompanha com uma miniatura de pastel de nata. Segue o tour. Aponta as mulheres de costas, vestes vermelho-vivo abrigadas por um tronco de árvore numa tempestade de pó no Rajastão. Data: 1983. Dessa série há uma outra imagem que ele frequentemente diz ser a sua eleita. Mas não está nesta exposição. Conhecemo-la de livros. Pedimos que conte a história de uma outra fotografia, parede oposta. Uma criança de colo e a sua mãe, rostos colados ao vidro de um automóvel. Local e data: Bombaim, 1992. “Estava num táxi a caminho do hotel, parámos num semáforo. Era Agosto, época de monção. Eu ali no conforto de um ar condicionado e eles lá fora. Só meses mais tarde percebi que tinha ali uma fotografia. ”Voltamos à sala da entrada, vidraça para a rua Ferreira Borges, de entremeio, numa parede à direita, uma citação de Alberto Moravia em Uma ideia da Índia (edição portuguesa da Tinta-da-China). Steve McCurry está com 66 anos e como já disse por diversas vezes não se importará se as primeiras linhas no seu obituário forem sobre Sharbat Gula, a menina afegã que fotografou em 1984 e que no ano seguinte estava a comover o mundo na capa da National Geographic. Resume-se a vida de um fotógrafo da agência Magnum, premiado com Medalha de Ouro Robert Capa e várias do World Press Photo, a uma única imagem?McCurry acaba de chegar do Afeganistão, esteve lá três semanas em trabalho. Há trinta anos, foi o Afeganistão que o levou às páginas do New York Times, da Time, da National Geographic quando assistia à invasão soviética e disfarçava rolos de fotografia nas bainhas de um traje tribal para os fazer passar na fronteira com o Paquistão. Era então um jovem freelancer de 28 anos. Esteve nas guerras Irão-Iraque, nas guerras do Golfo, na ex-Jugoslávia — não se revê na descrição de repórter de guerra mas viveu embedded. Foi dado como morto, espancado, roubado, preso. Também lhe trouxe popularidade. O discurso deste homem relativamente baixo, que veste camisa de ganga sob um casaco de quadrados miudinhos e saca de um boné quando sai para a rua, é muito feito de frases soltas, algumas surpreendentemente sem remate. Dois dias depois da entrevista, mais de cem pessoas morreram num incêndio num templo do estado de Kerala, no sudoeste da Índia. A primeira vez que foi à Índia, estava com 27 anos, tinha sido fotógrafo do Daily Post, de Filadélfia, e lançava-se como freelancer. O que procurava, uma espécie de “educação em Humanidade”?Sim, é verdade. Tinha curiosidade sobre essa parte do planeta — já tinha viajado por África, pela América Central, pela Europa. Ia ficar por umas seis semanas. Foram dois anos. E comecei a descobrir sítios e pessoas, histórias às quais quereria voltar num futuro próximo. Voltou mais de 80 vezes. Que país tinha, ou tem, para revelar?Bem, o meu trabalho na Índia, as fotografias que se podem ver nesta exposição, são um poema curto sobre o país. Não contam toda a história, não é um trabalho feito para ser publicado numa revista, digamos que são sobretudo as minhas impressões, um olhar poético sobre sítios e tempos que me afectaram. É um país com uma grande profundidade cultural. Mas nesta Índia que mostra raramente vemos sinais de uma modernidade, quase como se tivesse a intenção de trazer para os nossos dias uma Índia milenar, que o é, mas também estagnada. A parte da Índia que a torna única, e é isso que me interessa, fala sobretudo de tradição, de uma qualidade antiga de um lugar. De facto, estou pouco interessado no investimento em programas espaciais [refere-se à Organização Indiana de Investigação Espacial, ISRO, na sigla em inglês] ou no avanço tecnológico. Preocupa-me mais um modo antigo de vida. É preciso estar muito tempo num sítio para o experienciar e à sua cultura?Tudo é válido. Tanto um fotógrafo como um escritor podem sentir-se validados logo nas primeiras impressões, como ficarem um ano e mesmo assim não entender o que os rodeia. Diria ainda que é comum que se consiga fotografar tanto melhor quanto se tiver conhecimento sobre o que fotografamos. Mas na verdade uma empatia na rua, olhares que se cruzam, pode originar um excelente retrato. Leu o mais recente artigo do fotógrafo e ensaísta Teju Cole, na revista do NYT?Sim. [De forma sucinta, escreve Cole que o mais recente conjunto de trabalhos do fotógrafo, India, reunido em livro pela Phaidon, é o essencial de McCurry. Mas é aborrecido. Popular mas aborrecido, por evocar clichés esquecendo que o garante do carácter único de qualquer país é a mistura do seu passado com o seu presente. ]Quer comentar?[aponta para a fotografia à entrada da galeria, que mostra táxis de tejadilho amarelo que se cruzam com transeuntes e vendedores de rua] Está a ver isto? Isto é Bombaim, anos 90. Para si, é só isso a Bombaim moderna?Também fotografei o programa espacial em Bangalore, onde faziam equipamento de satélites; fotografei fábricas de televisores; moda. Algumas foram publicadas no NYT, na National Geographic. Mas não são visualmente interessantes. Não me interessam laptops assentes no colo nem telemóveis. Aliás, a maioria do meu trabalho na Índia vem de muito antes desse avanço, foi feito entre os anos 80 e agora. Dou-lhe outro exemplo: fiz um trabalho sobre nómadas por ser um modo de vida em vias de extinção, por causa do crescimento urbano, da expansão da rede rodoviária, da explosão demográfica. É isto que me fascina. A sua família atribuiu-lhe a alcunha de Perpetual Motion (sempre em movimento). Hoje, podemos dizer que estavam certos. O que lhe chegou primeiro, a ideia da viagem ou a fotografia?A viagem. Quando tinha 19 anos já estava na Europa, trabalhei em restaurantes em Estocolmo e Amesterdão, fui até à Turquia, Israel. Voltei, continuei os estudos, empreguei-me como fotógrafo, isto até me aborrecer e querer voltar a viajar. Só se consegue fotografar quando se viaja? Podem estar a acontecer histórias no nosso bairro. Absolutamente. Depende sempre do que nos interessa e de como queremos viver a vida. Fotografar a família, o bairro, a cidade, as ruas, o metro, a paisagem. Ou o Tibete e a Síria. Ou tão somente fazer selfies. Tem sempre a ver com as mesmas questões muito primárias: como quero viver a vida? O que quero ler? Que música quero ouvir? Que alimentos quero consumir?Disse que gostaria de não ter a sua agenda ao serviço da notícia. Contudo, é como se tivesse passado a vida embedded na frente de várias guerras. É destemido?Ter medo é bom. Na semana passada voltei do Afeganistão, estive lá em trabalho três semanas. Aquele país é um perigo: há ataques suicidas, raptos, de tudo. Estamos sempre alerta. Prestamos atenção aos comandos que nos chegam do cérebro e é inevitável perguntarmo-nos: é sensato estar aqui, neste lugar onde explodem bombas?Mas se está a trabalhar tem tempo para fazer essa pergunta?Sem dúvida! Por que raio é que me pus nesta situação em que vou ser morto por causa de uma fotografia?! Inúmeras vezes. É um repórter de guerra?Não me revejo aí. Mas tive a experiência de ver crianças, mulheres, civis a perderem casas, famílias, tudo o que tinham, e é aí que os valores mais altos da vida se revelam e que agradecemos estar vivos. E é aí também que percebemos como uma fotografia e uma reportagem escrita podem ajudar, informar o mundo para que o mundo faça qualquer coisa com essa informação. Que balanço pode fazer entre fotografia documental e fotografia artística? Acho que mesmo nas vidas de Robert Capa, Henri Cartier-Bresson ou André Kertész aconteceu que uma fotografia se tornou dominante, universal, publicada e republicada, icónica. Pode até perder o propósito inicial, de contar uma certa história que estava a ser feita para uma revista. Bem, isso é falar de si próprio. Refere-se à fotografia da menina afegã, Sharbat Gula, que em 1985 fez a capa da National Geographic. Tem uma teoria sobre as razões que levaram a que essa fotografia tivesse a repercussão mundial que conhecemos?Tinha aqueles olhos hipnóticos e acho que na sua expressão se misturavam emoções várias, entre uma grande dignidade, uma ousadia de se sentir uma sobrevivente sabendo que era uma órfã, refugiada e a viver em condições miseráveis numa tenda. Mas orgulhosa na sua sobrevivência. Quando vemos arte, ou fotografia, muitas vezes atribuímos significados que dizem mais sobre nós do que sobre aquilo a que assistimos. Mas conhecendo um pouco o povo afegão sabemos o quão resiliente pode ser no meio da adversidade. De facto, podemos perguntar o que há de diferente naquela fotografia?! Autenticidade. Voltaram a encontrar-se 17 anos depois. Sim. Descobrimos que tinha um irmão, que se tinha casado, que tinha três filhos e vivia numa aldeia no Afeganistão, que o marido trabalhava numa padaria em Peshwar. O que aconteceu é que a pudemos ajudar com dinheiro, fomos benfeitores. Pode uma fotografia que alcança esta magnitude ser também um colete de força? Toldar a criatividade porque de alguma forma se está sempre a tentar voltar àquele ponto?Nunca o senti. Estou agradecido por ter tido a oportunidade de a fazer. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fotografar tornou-se uma prática mais democrática. O fotógrafo Don McCullin diz mesmo que a fotografia foi sequestrada pelo digital e pelo mundo da arte. É a evolução. A realidade é assim mesmo: vemos as pessoas a fotografarem o que estão a almoçar, os amigos, a si próprios. É verdade que todos temos máquinas fotográficas, ou usamos o telemóvel. Mas nesse telemóvel podemos também escrever um poema, um ensaio, uma peça de teatro, uma canção. Acho fantástico documentarmos as nossas vidas e daqui a vinte anos estarmos a ver a memória do que éramos. É um tesouro!Estava em Washington Square, no seu escritório, acabado de chegar de um mês num mosteiro no Tibete e viu as Torres Gémeas afundarem depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Duas experiências opostas numa vida bastante preenchida. O que lhe sobra fazer?Viajar, trabalhar, publicar livros — tenho dois na calha, um sobre leitura, melhor, situações de pessoas a ler; outro sobre o Afeganistão. Quem escolheria para o fotografar a si?Nunca pensei nisso (risos).
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra cultura educação homem criança medo espécie mulheres extinção alimentos morto
Joana Marques, Cátia Domingues e Beatriz Gosta querem “escavacar estereótipos”
São humoristas que seguem um guião que elas próprias escreveram. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora. (...)

Joana Marques, Cátia Domingues e Beatriz Gosta querem “escavacar estereótipos”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 11 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: São humoristas que seguem um guião que elas próprias escreveram. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora.
TEXTO: Não há muitas como elas no universo da comédia. São humoristas que seguem um guião que elas próprias concebem. Nenhuma faz questão de empunhar a bandeira da luta de género, mas inevitavelmente a condição de mulheres é-lhes devolvida a toda a hora, sendo reflectida na forma como se posicionam e comunicam através da sua actividade. Joana Marques é guionista e humorista, tendo-se afirmado nas Produções Fictícias, ao mesmo tempo que é uma das caras do emblemático programa Altos & Baixos do Canal Q e tem hoje, segundo ela, “uma rubrica diária nas manhãs da Antena 3 que se chama Extremamente Desagradável, que é um dos [seus] principais traços de personalidade”. Da mesma geração, 36 anos, é Marta Bateira, mais conhecida por Beatriz Gosta, seja como humorista, ou ao lado da rapper Capicua, com quem partilha o palco nos concertos. “Estava exaurida no meu trabalho de designer de moda numa empresa e a Capicua, um dia, disse-me: ‘Tu és óptima contadora de histórias. ’ Então fui para o YouTube contar histórias e virei youtuber. ” É isso. O YouTube foi a sua porta de entrada no espaço do humor, mas hoje podemos vê-la e ouvi-la em todo o lado, da rádio à televisão. “Agora faço uma rubrica no 5 para a Meia-Noite, a avacalhar bonito, assim, e a despentear o povo”, afirma. Um pouco mais nova, 30 anos, é Cátia Domingues, publicitária, criadora do blogue e página do Facebook humorístico One Woman Show, que se apresenta como “argumentista” que faz “essencialmente sátira política”. Trabalha actualmente no Canal Q “onde tem algumas rubricas”, para além de ter o desejo de “salvar o mundo”. Brinca, claro. Mas, a sério, apanhou o ano passado um avião até à ilha grega de Chios, onde esteve como voluntária num campo de refugiados, cerca de 800 imigrantes à mercê da neve. Nela, o activismo rima com humor. Encontrámos as três, há dias, de manhã. E a conversa começou por aí. Culto – O mundo pode dividir-se entre homens e mulheres, mas também entre pessoas que gostam de acordar cedo e começar logo a trabalhar ou as que só conseguem fazê-lo à noite. Como é que é com vocês?Joana Marques (J. M. ) – Essa divisão faz até, em algumas áreas, mais sentido do que ser-se homem ou mulher. Uniram-nos aqui sob o pretexto de falar das mulheres no humor, mas faz mais sentido separar-nos assim. Felizmente – porque o meu trabalho na rádio é matinal – sempre funcionei muito melhor de manhã. Não me importo nada de acordar às seis da manhã. Às sete da tarde já ninguém pode quase falar comigo, porque estou pronta para ir dormir. Cátia Domingues (C. D. ) – É a mesma coisa. Gosto de trabalhar de manhã. Tenho um biorritmo de passarinho. Quando começa a escurecer, sou uma idosa e tenho vontade de dormir. Limita bastante a minha vida social. Gosto de trabalhar de manhã e pronto, à noite, não me chateiam. À noite, geralmente, é arranjar material. Como escrevo muito sobre a actualidade, à noite é lamber tudo o que se passa, para depois no dia a seguir, de manhã, acordar cedo e começar a escrever sobre isso. Beatriz Gosta (B. G. ) – Eu é à noite. Porquê? A culpa não é minha! São os concertos. Até faço um esforço para treinar logo às 9h da manhã, para começar o dia mesmo em bom. Mas nem sempre posso. Às vezes, estou sempre lá e cá [vive no Porto], tenho concertos em que me deito às 3h da manhã. Nunca tenho horários. À noite, até quando escrevia rap, baixa ali uma coisa criativa ou, pelo menos, estás contigo própria. Mas adoro a manhã e até uma certa idade conseguia conciliar deitar-me tarde e acordar de manhã, mas aos 36 anos já não é bem assim. Qual é o vosso primeiro gesto quando acordam? Lavam os dentes, vão para as redes sociais, vêem o email? O que fazem exactamente?C. D. – A primeira coisa: agarro no Twitter e vejo tudo o que se passa. Eu tenho aquela coisa, cenas modernas — o fomo (fear of missing out). Então a primeira coisa que faço é ir ao Twitter. J. M. – Ver se aconteceu alguma coisa enquanto estavas a dormir. C. D. – Exactamente! Se alguém já bateu em alguém. B. G. – Tu vais para o Twitter?J. M. – Sim, mas esqueço-me que tenho e só vou lá de mês a mês. As redes sociais são um bocadinho divididas por estilos de pessoas. No Twitter estão os mais ressabiados de todos. O Facebook é mais para toda a gente. Tenho lá a minha avó! O Twitter é mais de nichos. Tem gente muito recalcada. Há ali assim uns ódios muito viscerais. Não vou lá muito, mas tenho, infelizmente, o mesmo hábito da Cátia de estender logo a mão para o telefone, não [vou] ao Twitter, mas ao email. Queria erradicar isso, mas ainda estou longe de o conseguir. B. G. – Também tenho essa coisa de ir para as redes e ponho logo música. Mas faço um esforço para deixar o telemóvel na sala e ir tomar banho. É a primeira coisa que faço, mal possa é ir tomar banho senão fico logo preguicenta e fico no café e no telemóvel, então vou logo tomar banho e aí obrigo-me a começar o dia. C. D. – Isso é uma boa técnica. Vou tentar adoptar isso. B. G – Deixas o telefone na sala por causa da ansiedade, sabes? A minha cama já está com insónia. C. D. – Tu não levas o telefone para a casa de banho?J. M. – Muito raramente. C. D. – Ai, eu levo!B. G. – Eu levo com a coluna, para bombar no banho. E cantam no chuveiro?J. M. – Olha quem! Claro. B. G. – Canto e danço. Sinto-me muito assim no espelho. Não é todos os dias. Todos os dias ponho a coluna. Nos últimos meses, quando me sentia assim mais em baixo, tinha este vício. No chuveiro somos todos grandes cantores. O problema começa quando se sai do banho e nos confrontamos com os outros, como nas redes sociais. E como é no humor? Existe em Portugal essa ideia de que existem poucas humoristas, pelo menos que sejam também autoras, para além de intérpretes. É verdade?J. M. – Comecei a colaborar com as Produções Fictícias em 2006/2007 e tinha um bocadinho essa ideia, mas reparei que havia muitas mulheres como guionistas. A capacidade autoral sempre esteve muito presente. Muitos sketches que vimos do Herman José eram escritos por mulheres e nem o sabíamos, porque depois acabaram por não ser as pessoas que vieram a dar a cara, como o Ricardo Araújo Pereira. Muitos guionistas deram aquele passo em frente e apareceram. As mulheres não fizeram tanto isso. Mas já havia algumas e agora cada vez mais. Conseguem explicar isso?J. M. – Há menos mulheres no lado da performance, de subir ao palco e fazer, mas nunca reflecti muito sobre isso. B. G. – No rap é a mesma coisa. Não fui criada a ser incentivada. A ter essa confiança. C. D. – As mulheres sempre estiveram no público, não é? Historicamente o fenómeno de as mulheres estarem no palco é relativamente recente. A questão da exposição, com todo o contexto, e expectativa, tudo isso retrai um bocadinho as mulheres de se exporem tanto. J. M. – Até porque muitas vezes o olhar do outro é diferente para a mulher e para o homem. Numa mulher vão-se centrar mais rapidamente se está gorda, se está magra ou se está despenteada. B. G. – Fizeram várias vezes isso comigo!J. M. – No homem não vês muito esse tipo de comentário. Mesmo as pessoas que querem, por exemplo, criticar o Herman José, não vão dizer que está gordo — isso não interessa. Acham graça ou não. Nas mulheres observa-se isso muitas vezes. Não se liga tanto ao conteúdo, mas à forma. B. G. – É por ter o cabelo curto e chamarem-me fufa, como se fosse um insulto! Ou quando apresentei os prémios com o Fernando Alvim e eu “não estava bem naquele macacão, [tem]o rabo demasiado grande”! E o Alvim com uma barriga! Mas não! Ele estava imaculado e eu é que estava péssima!J. M. – Às vezes as próprias reacções de terem mais medo do ridículo, uma coisa que vem desde sempre, não é? Muitas vezes o palhaço da turma é mais o rapaz do que é a rapariga, não é? Acredito que já não seja bem assim. Se formos às escolas, já vemos miúdas que se destacam e que escolhem outras profissões que não são aquelas tão habituais. B. G. – Mas uma mulher para se rir dela própria tem de ser espontânea, só agora é que dão mais liberdade para tu não estares tão direitinha. A estares descabeladona. C. D. – É bom estares diferente. Sou ligeiramente mais nova, mas na minha altura tudo aquilo que era “fazer parte da matilha” não era grande coisa. Tu destacares-te e seres diferente é que era uma cena fixe. B. G. – Destacares-te por teres piada e não porque és a boazona da cena. J. M. – Da mesma forma que há profissões ao contrário. Não são tão faladas, mas vais a uma creche e quase todas as educadoras de infância são mulheres e as pessoas ficam espantadas quando há um homem e fazem muitas perguntas como nos fazem a nós. B. G. – Ficam preocupadíssimas quando têm lá um homem. J. M. – “O que é que este homem está aqui a fazer?”B. G. – Há preconceito. “Ai que ele pode abusar. ”J. M. – Tudo o que é diferente chama a atenção. Não é preciso querermos criar aqui a obrigação de que vai ter de ser igual. Acho que nunca vai ser 50/50. Nunca vai haver tantas humoristas mulheres como homens. Acho isso natural. Como nunca vai haver tantos educadores de infância masculinos como femininos – mas isso não é grave. B. G. – Não concordo. No humor? Acho que as mulheres têm um humor mesmo muito bom!J. M. – Têm, mas não vão ter naturalmente esse interesse profissional mais do que os homens. Nunca vai ser algo neutro. O humor, em termos do universo da comunicação, até poderia ser um espaço preferencial para as mulheres desconstruírem estereótipos. C. D. – Mas começam a fazer isso, não é? Parte do nosso trabalho é escavacar estereótipos e partir com isso tudo. Mas é todo um caminho. O facto de estarmos aqui três pessoas e, de repente, a maior parte das entrevistas que damos é sobre ser mulher no humor é significativo. É o que existe. A minha esperança é que com o tempo deixe de haver esta necessidade. B. G. – Quanto mais normal for, menos chama à atenção e menos se justifica. C. D. – Ou seja, a coisa já estará normalizada. Incomoda-vos quando sentem que poderão estar a representar uma ideia de colectivo, no caso as mulheres humoristas? É como se a vossa individualidade pudesse ser passada para segundo plano?J. M. – Não é estar farta. É uma discussão interessante de se fazer. Mas vejo-me como humorista, ponto final. Não por ser mulher ou homem. Identifico-me com outras mulheres humoristas como podia não me identificar nada com a Marta ou com a Cátia e identificar-me muito com o Bruno Nogueira ou com o Ricardo Araújo Pereira ou o Salvador Martinha. A mim, o que me interessa é produzir e não qual é a fonte. B. G. – Mas consideras importante incentivar outras mulheres. J. M. – Gosto de receber mensagens de miúdas mais novas a dizer: “Quero ser humorista. ” É engraçado que elas possam sentir que têm ali uma mulher como referência: “Se ela faz, eu também posso. ” Isso é óptimo. Agora sempre que me ligam, sei que a primeira coisa que me vão perguntar é: “Então e como é que é ser uma mulher no humor”?C. D. – E a segunda é: “Quais são os limites do humor?”B. G. – Sim! Mas tu já sentiste, por seres mulher, alguma insegurança quando começaste? Também começaste pelo jornalismo, não foi?J. M. – Não. Quer dizer, estudei Jornalismo, mas nunca exerci. Sempre fiz isto. Comecei como guionista a escrever para outros. B. G. – E nunca sentiste insegurança?J. M. – Por ser mulher, não. Sentia as inseguranças normais de quem faz uma coisa nova. C. D. – Mas há coisas que tu não sentes diferença por seres mulher?J. M. – Nunca senti isso e quando comecei a trabalhar já havia outras mulheres. Nunca fui a única num grupo de guionistas só de homens. E nunca fiz essa separação, nunca penso nas pessoas assim. B. G. – Também não me intimida estar no meio de homens. J. M. – Nunca me trataram de maneira diferente por ser mulher. Podemos sentir isso depois da parte do público, quando já estás a comunicar para muita gente. Se faço uma piada, por exemplo, sobre futebol, sei que mais tarde ou mais cedo vem o argumento de “As mulheres têm de estar na cozinha”. Ainda há pessoas que vivem numa fase mais primitiva, mas das minhas relações, com quem eu trabalho, nunca me trataram de forma diferente. C. D. – Há coisas que são inconscientes. Tu falas de futebol e é uma coisa mais masculinizada. Com a política é o mesmo. Não quero ser injusta, acredito que é de uma forma inconsciente, mas até nós podemos participar nisso de forma involuntária. No outro dia estava a escrever sobre isto que é: parece que só há lugar para uma. Tu competes com o teu género, não competes entre o género de humor. Dentro daquilo que eu faço existe o Ricardo Araújo Pereira a fazer. Mas não compito com ele, mas com o meu género, o que não tem absolutamente nada que ver. Mas, mesmo assim, a própria indústria, os teus pares fazem-te sentir como se só houvesse espaço para uma. E fazem-te competir. E isto vai contigo. Quando eu comecei. . . Tornas-te e parte disto e se aparecia uma miúda a fazer isto, tu ficavas tipo: “Oi?”J. M. – “Só há uma vaga e já está ocupada. ”C. D. – Para mim, isto foi muito poderoso. Quando tomas consciência disto, que não têm de competir umas com as outras, que há espaço para toda a gente. . . . O país sofre deste problema de escala. B. G. – Se há um leque de homens, porque é que não pode haver um leque de mulheres?!J. M. – Quando alguém está a organizar um festival e quer uma mulher, ligam-me, e por vezes não quero ou não posso, e nesses casos dizem-me logo: “Mas pode-me sugerir outra mulher?” Querem que vá lá um representante daquele género e não dizem: “Pode-me sugerir outro humorista que considere ter graça?”C. D. – Fazem isso de forma automática. Dei por mim a olhar por cima do ombro quando via uma miúda aparecer. E tomo consciência disso, percebo o quão injusto é, mesmo para mim. E, a partir daí, [é] conhecer as minhas colegas e ter um amor imenso e um apoio. Não sou nada sindicalista nesta coisa do género, mas acho que apercebermo-nos disto e unirmo-nos mais, ou pelo menos não termos este sentimento de competitividade umas com as outras, é libertador. J. M. – É uma ideia que se quer formar, mas depois, se formos analisar a realidade, todas trabalhamos em coisas diferentes e que não chocam umas com as outras. A vossa reflexão espelha que as identidades de género é qualquer coisa que acaba por estar presente no vosso humor. B. G. – Reflecte-se e muito. Como o meu conteúdo é hardcore, assim para o espontâneo, fico muito espantada, porque não levo com muito ódio. Falo de temas bastante polémicos, sem tabus, sem filtros, e achava que ia ter muito mais hate do que acontece realmente. E eles são uns doces. Só tive duas ou três mensagens de ódio. J. M. – Que sorte!B. G. – Agora, o meu público é muito mais mulheres e LGBT total. Os homens só curtiram o [vídeo] da papaia ou o coelhinho. Os homens sentem-se postos em causa pelo tipo de humor?B. G. – Sim, é aquele abanão. “Tu falas mal dos homens”, dizem-me. Eu não! Amo homens! Eu é que me ponho a jeito de me ridicularizarem. Acham que a feminista quer os homens na fogueira. Nada disso. Só estou a contar uma história, em que estou ridícula, e está tudo bem. Têm áreas de interesse preferenciais em termos temáticos ou são mais de abordar a notícia ou a polémica de determinada ocasião?C. D. – Sou específica. Seja a actualidade política, nacional ou internacional. Se aparecer alguma coisa de “assunto do momento”, depende. As touradas, por exemplo?C. D. – Para mim, é político. Agora, se for tipo a Maria Leal, que apareceu e que roubou um miúdo… não me interessa. Se for um tema que possa ter um ângulo fixe, eu faço. Nunca faço alvo com o humor, partindo do pressuposto que existe sempre um alvo, a vítima. É sempre o agressor que me interessa. É natural. E nunca é com algo que uma pessoa não escolheu. É sempre com algo que uma pessoa escolheu fazer. Há coisas que já sei que não vou fazer. Quando comecei, foi importante perceber primeiro o que não queria fazer, mais até do que encontrares a tua voz. “O que é que eu não quero fazer mesmo?”J. M. – Foi algo natural. Como na escola não terias vontade de gozar com o miúdo que já está no chão, não é?C. D. – Claro. Tudo isto começou com uma página que eu tenho que se chama One Woman Show, mas se tu tirares a palavra woman da minha página, tu não consegues perceber se é um homem ou se é uma mulher a fazer aquilo, ou seja, tudo o que sejam temas de género “Então e os homens que não sabem baixar a tampa?” — sem desprimor, mas eu não faço, não é isso que me interessa. B. G. – Concordo com a Cátia. Quando queremos ridicularizar alguém, o alvo de qualquer piada deve ser pelo que a pessoa está a fazer e não pelo que é. É a diferença entre ser e fazer. É o que ela escolhe fazer. C. D. – Sim, posso falar do Cláudio Ramos, não por ele poder ser homossexual, mas porque teve um problema com o ar condicionado. É um bocado isto. J. M. – Como faço uma rubrica diária na rádio, ando sempre à volta da actualidade. E pode ser tudo. Não é só a actualidade política. É qualquer área que me interesse e que para a qual encontro um ângulo diferente do que já foi dito – o que é difícil. Hoje nas redes sociais temos milhares de humoristas a competir uns com os outros. E temos de fazer algo diferente sobre esses temas que o dia-a-dia nos traz. Desde a reportagem sobre a golpada da Maria Leal até às horas e horas de directos de Bruno de Carvalho sem se passar nada. Tento encontrar o que é que me indigna em cada questão. É essa a minha escolha. Não estou centrada em nenhum tema específico e também não sinto que seja uma coisa marcadamente feminina. Não acho que tenha um traço muito feminino naquilo que faço. B. G. – A mim marca mais. Se fosse um homem a falar o que eu falo, não chocaria. Têm uma identidade muito definida o que é óptimo, claro, mas também se pode ficar dependente ou preso nessa mesma identidade. B. G. – Beatriz Gosta é uma personagem. Não quer dizer que a Marta não tenha nada que ver, mas sempre senti a necessidade de abordar esses temas. A minha preocupação principal é fazer rir. Independentemente se estou a mandar a dica de que alguém está a queimar a ficha de outrem. Quero é ter graça. Se uma história tem graça, eu pego e conto. O que acabo por abordar são questões que sempre me incomodaram desde nova. Estar num grupo de rapazes e ter de me destacar pela beleza ou por ser toda boa e não poder ter conversas de igual para igual. Eu esforçava-me para estar gata, assim com 14 anos, e depois cruzei-me com a Capicua e, de repente, coisas que não questionava, comecei a ganhar consciência delas e a ter voz. Em Beatriz Gosta as histórias são engraçadas, acabo por abordar várias coisas que mexem com homens e mulheres. A mulher de 2018 tem mais camadas de cinzento. Não é só a mulher pronta para se casar. Há quem defenda que através das redes sociais as mulheres têm mais possibilidades de se auto-representarem, no sentido em que escolhem o que mostrar, estando menos dependentes do olhar, da aprovação ou dos arquétipos projectados pelos homens. C. D. – Isso é muito fruto desta época. Na altura do Picasso as representações femininas proliferavam. As mulheres não tinham a sua própria voz e de repente no humor tens isso e é incrível. Poderes fazer a tua própria representação. J. M. – Isto entretanto já deu a volta, porque, quando falamos daquelas influencers e bloggers, já temos algumas que escravizam namorados e maridos, não sei se já viram, sendo eles os fotógrafos. Eles são os empregados delas. Elas estão impecáveis a posar na praia, com aquelas marcas patrocinadas. E lá vai o pobre coitado atrás para fotografar. B. G. – Eu estive agora na gala dos Blogues do Ano e eles tiram cursos de fotografia só para irem para o mar, com ela na rocha!C. D. – Temos as mulheres a contarem as suas próprias histórias e a auto-representarem-se, mas sinto que, às vezes, o mundo à volta não está ainda preparado para isso. Aquilo que faço, ao contrário da Marta, que é uma coisa que eu sei que tenho de equilibrar, é ter uma mensagem. B. G. – A minha mensagem, a chapada na cara, passa de outra maneira. C. D. – Eu faço alguma pedagogia, tens de equilibrar as palmas e o riso. “Tudo aquilo que tu escreves é para quê?” “É para teres palmas no final ou para teres risos no final?” E este equilíbrio para quem faz sátira política é lixado. Aquela é sempre a minha verdade, o meu ângulo. B. G. – E não podes correr o risco de ser só palmas, senão aquilo parece um comício. C. D. – Exactamente. Eu tenho dado alguns comícios! Estou na profissão errada. Há uns tempos, numa entrevista com um cientista, este dizia-me que não era tanto o resultado final das suas experiências que o entusiasmavam, mas o processo. Com vocês acontece o mesmo?C. D. – Não tenho controlo sobre a mensagem (a interpretação), mas enquanto o Ricardo Araújo Pereira diz que o humor não é uma arma e é para fazer rir, eu acho que o humor é uma arma. O humor tem um papel. Não é uma arma de destruição maciça, mas aleija um bocadinho. E só o aleijar faz dele uma arma. Aleija, tem um efeito e um resultado. No dia em que deixar de acreditar nisso, deixo de fazer isto. Imagina, o cidadão comum vê os debates do Orçamento do Estado, e diz: “Não percebo um cu e sei que me vão lixar no final. ” E depois vêm os comentadores e também não percebem nada. O que faço é descomplicar o Orçamento do Estado de uma forma que as pessoas queiram consumir, aprendendo alguma coisa. Acredito que a informação é poder. J. M. – Por isso é que disseste no início que queres mudar o mundo. B. G. – Também acredito nisso. Há sempre intervenção e no rap, volto a dizer, está sempre tudo ligado. C. D. – Claro. O rap pode ser de intervenção, como o humor também pode ser. B. G. – O rap não começou como intervenção. O rap começou em festa com o DJ que depois chamou o MC, ou declamador. E foi aí que a voz das desigualdades se fez ouvir. J. M. – Em relação ao Ricardo Araújo Pereira, o ideal seria um misto das duas coisas. Ele tem essa noção. Ele insiste muito na ideia de que “é só para fazer rir”, mas sabe que, quando pôs aquele cartaz a criticar o PNR no Marquês de Pombal, aquilo tem algum efeito. Obviamente, não acabou com o PNR, mas gerou qualquer coisa. Tanto que eles ficaram enfurecidos com aquilo. Ele percebe isso, mas põe em primeiro lugar o fazer rir e com isso concordo. Essa tem de ser a intenção. Se pelo caminho conseguimos passar a mensagem e fazer a pessoa pensar um bocadinho naquilo, mesmo que no fim não mude de ideias, tanto melhor. Por exemplo, quando falo das touradas, recebo muitos insultos. Sei que é uma batalha perdida. Eles não vão ouvir aquilo e dizer: “Olha, isto foi muito engraçado e afinal já não gosto de ver os touros ali a serem espetados”, mas trago aquilo para o debate. Mas o meu objectivo final é sempre ter graça. Não consigo ter graça a defender uma tourada, porque é completamente diferente daquilo que eu penso, isso não consigo fazer. Há humoristas que têm quase uma personagem. Não é o meu caso. A mim dá-me mais gozo tentar ter graça e no tal processo estar a divertir-me, acreditando que os outros se divertem com aquilo também. Se estou a analisar um programa da SIC em que eles se casam com pessoas que nunca viram antes, pode haver ali uma crítica do género “isto parece uma coisa muito moderna, mas já era usada há montes de anos, quando havia casamentos combinados, e agora parece aqui com ar de modernidade”. Depois o que quero é pegar naquelas pessoas e brincar com aquilo que elas dizem. Não quero que aquilo no fim tenha moral, enquanto outros temas poderão ter. Vou mais para o lado do entretenimento. A diversão pela diversão, mas gosto de fazer as duas coisas. Quando é, por exemplo, as praxes, que é uma das questões que suscitam mais ódio: sou completamente contra e dá-me gozo sempre que volta a época das praxes tentar dissecar aqueles discursos e porque é que estamos sempre nisto e nada muda. Isso diverte-me, mas se no outro dia for uma coisa mais fútil, digamos assim, diverte-me na mesma. O meu objectivo, no fim do dia, é que tenha graça. E depois, o resto, logo se vê. Falam muito nessa ideia de o objectivo ser fazer rir. Mas isso não é, evidentemente, controlável. Não sabem, à partida, o que vai acontecer. Agora, deve haver algumas coisas que fazem que percebem que podem gerar um efeito qualquer. J. M. – É a tal história de que falavas há pouco do cientista: o processo. Se no processo me divertir muito, tenho quase a certeza que a coisa funciona. Tenho a vantagem da rádio e o impacto nos meus colegas do lado. São uma pequena amostra. E na maioria das vezes não me engano muito. Quando estou em casa a fazer aquilo e me estou a rir, é porque à partida vai correr bem. B. G. – Mas às vezes achas que tem muita graça, e divertes-te muito com aquilo e depois o feedback é uma coisa que até nem curtes muito. J. M. – Isso nota-se mais em espectáculos. Há uma frase e achas que vai ter efeito e não tem efeito nenhum e outra que para ti nem era uma piada, era só uma passagem para outra coisa, e as pessoas riem-se. Como é que se lida com a ausência do riso?J. M. – Lida-se bem, se não assumires aquilo como um fracasso terrível. Só funciona para quem também não assume o riso como uma vitória incrível. É um bocadinho como as críticas de Facebook. Para não ligares àquelas muito más, também não podes ser o tipo de pessoa que liga às muito boas. Quando alguém diz aquelas coisas: “Genial” ou “És a maior”, não ligo. Do género, obrigada, são simpáticos mas não fico “ah, realmente sou”. Nada. E é isso que depois permite que outras não me deitem abaixo e que eu não saia mais de casa, porque este senhor disse que eu sou isto e aquilo. B. G. – Mas a primeira vez que tu leste um ódio… Acho que a cara ficou vermelha e fiquei quente. J. M. – Ah, péssimo. Com o coração a bater. B. G. – A primeira vez, nunca mais me esqueço. Mas lido bem com o ódio. J. M. – Também tens pouco. Vamos começar a mandar-te mais. B. G. – É pouco ódio, mas também não me deslumbro com os elogios. É tipo normal. Não me conhecem. C. D. – No início recebi muito ódio. E ainda recebo algum. Menos. As pessoas também incomodam-se com tudo, não é? Se tomas alguma posição sobre alguma coisa, há sempre pessoas que se vão indignar. Ao início, recebia muito mais, é curioso. Quando era mais desconhecida, recebia mais ódio e ameaças de processos. Mais do que hoje em dia. O tipo de pessoas que ameaçava é aquele tipo de gente que quer assustar, do género “só para ver se te calas”, mas depois perceberam: “Ela não vai sair daqui, mais vale deixar ficar. ”J. M. – Os meus níveis de ódio têm-se mantido mais ou menos constantes. B. G. – São temas específicos, não é?J. M. – Às vezes espanta-me quando é um ódio de que não estou à espera, ou seja, há temas que quando nos vamos meter neles, como o futebol, as touradas, as praxes, a religião, etc. , tu já sabes o que aí vem. É muito mais giro quando é uma coisa que eu acho completamente inócua, como a sátira aos youtubers. Abordei o que era ser youtuber com exemplos dos youtubers mais famosos em Portugal e satirizei cada um deles. A reacção foi também uma coisa geracional?J. M. – Senti-me velha nessa altura. Fui ver as pessoas que me insultavam, com coisas bastante violentas e muitos tinham oito ou nove anos. Sabiam insultos que, na idade deles, me eram desconhecidos. Até ameaças de morte de miúdos de nove anos recebi, com a fotografia de perfil deles com os pais, num passeio, com a família. E penso: os pais, para já, não fazem ideia de que eles andam a contactar com adultos e a insultá-los nas redes sociais. Que tipo de críticas é que fizeram detonar essas reacções?J. M. – Analisava os oito ou nove youtubers mais famosos em Portugal. Quis tentar perceber o fenómeno, mas obviamente é o meu olhar, é o olhar da nossa idade, de quem nós somos. Critiquei um bocadinho aquele universo. E não pensei que fosse a reacção mais violenta de todas. Sentiram-se muito indignados por tudo. O que fiz foi expor ao ridículo aquilo que eu considerava caricato e eles acham isso impensável. É uma afronta terrível. Sentem que são os melhores amigos deles que estão a ser postos em causa. Um sobrinho de um amigo meu não me queria falar cara a cara. Tinha gozado com os amigos dele e o argumento dele era mesmo esse. E provavelmente nem o poderemos criticar a partir dessa situação, porque muitos de nós com nove anos seríamos iguais. Só que não tínhamos esta ferramenta chamada Internet à disposição. B. G. – Não sentem que por serem humoristas as pessoas acham que são mais íntimas?J. M. – Sim, sim!B. G. – Na rua sentem que são minhas íntimas, que me conhecem de outra vida. Vão sem filtro. Chegam, abraçam, até me filmam sem pedir autorização, é uma coisa assim, sabes?Como é que se lida com isso?B. G. – Há dias em que eu estou triste como a noite e que não me apetece mesmo tirar fotos, nem conversas. No outro dia estava no metro, a chorar, com um desgosto. E de repente apercebo-me que alguém estava a tentar aproximar-se há imenso tempo. Eu na minha dor, a tentar não chorar em público e ela: “Podemos tirar uma selfie?” Eu desgraçada, disse: “Olha, hoje não dá mesmo. Um dia a gente cruza-se ou até combina, mas hoje não vai dar. ” E ele. “Anda lá. ” E lá tirei assim com as lágrimas, triste como a noite. Às vezes não apetece e eu digo que não, mas é raro. É chato para quem está comigo. O meu pai, os meus amigos, é chato. Eles até dizem: “Vamos dar-te umas perucas. ” Mas é chato, chato, chato. J. M. – É que a abordagem é logo com muita confiança. E há muito essa coisa do: “Tu é que tens de ir ter com eles. ”B. G. – “Andas cá tu e é se queres tirar uma foto. ” Na noite, bêbados. E académicos? Capas pretas, eu fujo. É muito abraço, muito agressivo. Aí a abordagem para mim é tudo. “Vem com calma. ”Há pouco falavam das gerações mais novas. E como é que é em relação às gerações mais velhas do humor? Sentem que há algum tipo de herança? Como é a essa ligação?J. M. – Tive sorte de escrever para o Herman José, que era uma coisa que eu pensava que nunca iria acontecer e foi muito emocionante. Lembro-me de ter sete ou oito anos e ver o Herman Enciclopédia e, de repente, alguns anos depois poder escrever e contactar com ele. Foi óptimo. Gostei muito. O Herman sempre procurou ter autores mais novos e vemos agora até pela actuação dele nas redes sociais que tenta sempre inovar. Não ficar congelado na sua posição. Gosta de ouvir as pessoas, tem uma curiosidade genuína e as pessoas gostam muito de o ouvir. Tem histórias inacreditáveis, parece que foram noutra vida. E todo os outros com quem tenho contactado e trabalhado é o mesmo. Aliás, eu e a Cátia, daqui a um mês, vamos integrar a equipa do novo programa do Ricardo Araújo Pereira. É uma honra. De todos os humoristas é o que está um passo acima de todos. Está noutro nível. B. G. – Sou megafã. J. M. – Para nós é uma oportunidade excelente. Daquilo que já contactámos com ele percebemos que tem muito interesse e é curioso. Vai muitas vezes sem avisar ninguém a um bar qualquer onde sabe que vai haver stand up comedy. Anda sempre à procura de talento e quer saber mais do que se passa na comédia em Portugal. E existe muita coisa: há os mais visíveis, mas fenómenos mais pequeninos também há muitos. E agora com a Internet, muito mais. Às vezes até convida alguém para ir jantar a casa dele, porque quer saber mais sobre aquele humorista. Acho isso fascinante, porque há sempre o perigo de chegar a um certo patamar – ele está no mais alto de todos nesta área – e esquecer o que está lá em baixo. Ele não tem isso. Tem uma curiosidade, quase infantil, de saber tudo o que se passa e está sempre motivado para fazer coisas novas. E isso, para nós, é muito entusiasmante, porque vemos que ele tem a mesma emoção que tinha quando estava na SIC Radical pela primeira vez a fazer os Gato Fedorento. É quase comovente e espero conseguir manter sempre esse entusiasmo depois de já ter feito tanta coisa como ele. Há muitos humoristas que nunca aprenderam a vertente mais performativa da actividade, o ser actor. No vosso caso, como foi esse desenvolvimento? Como é que se desenrolou essa procura?B. G. – Sofro muito sempre que filmo. Sofro muito até ao momento em que me dizem: “Avança, está fixe. ” Penso sempre que “não estou boa”. Mas tenho sempre uma equipa, ou a Capicua está lá, e é um filtro bacano. Ou então também trabalho com amigos e, se eles dizem que está bom, então está bom. Mas sou muito free style. Se me divirto, a coisa sai bem. Se estou tensa e stressada, vai correr mal. J. M. – Não é bem assim. Tenho de dizer que estive na primeira vez que a Marta actuou ao vivo, com uma plateia de centenas de pessoas. Antes estava quase a morrer e dizia: “Como é que eu vou falar meia hora?” E depois só saiu de lá ao fim de uma hora e tal. B. G. – É verdade. Mas é muito raro. Não acredito em mim, tenho dificuldade. Sou bué insegura. Não parece, mas sou. E, então, sou free style. Levo os temas trabalhados e para onde quero ir, mas às vezes quando me perco é quando tem mais graça. Às vezes estou a descrever a cortina e lembro-me ali de uma coisa qualquer e começo a avacalhar. Por isso é que o trabalho de edição é muito importante. Gosto mesmo de me perder e é aí que tenho mais graça quase sempre. E é isso. Sou muito emotiva, muito intensa, mas sou do free style. Quando as coisas saem direitinhas, escritas e não sei quê, quase de certeza que não vai sair nada com muita graça. J. M. – Não tenho jeito para o humor físico. Não sou muito expansiva e expressiva. O Daniel, que faz comigo o espectáculo Altos e Baixos, é o oposto. É muito mais de humor físico do que eu. Às tantas estou a vê-lo de fora, porque sei que sou a pessoa mais racional e que vai dizer tudo como tínhamos combinado e escrito. Funciona por esse contraponto. Estou sempre a tentar puxá-lo de volta quando ele já está a improvisar tipo a Marta. Aí esse complemento funciona bem. Eu sozinha é uma coisa que acontece menos vezes, pontualmente até para coisas de empresas. E aí tenho mais dificuldade. Sinto que vou ser exactamente eu. Mas muitas vezes as pessoas ouvem-me na rádio, onde tenho este registo, e acabam por não ter a expectativa que eu entre com plumas e que seja uma coisa diferente. O meu registo é o de uma conversa normal de café. Nunca encarei a coisa como uma performance, nunca treinei para isso. B. G. – Eu exagero. A Beatriz já é assim mais bicha. C. D. – Eu sou mais aquilo que sou cá dentro. Sempre fui muito Mafaldinha, digo imensos palavrões, sou muito emotiva e falo do coração. As coisas que já fiz ao vivo é do coração, porque faço aquilo mesmo em que acredito. Sou muito apaixonada por isto. Então, como acaba por ter sempre alguma mensagem, adapto aquela coisa quase de comício. J. M. – Mas vais com texto preparado?C. D. – Na maior parte das vezes não vou. Tenho dois ou três tópicos e falo. J. M. – Eu escrevo tudo mesmo que depois não diga. B. G. – Para interiorizar. C. D. – Tornas aquilo tão natural e vais sentindo o público. A coisa vai e eles vão contigo. Falo sempre de coração, ou seja, tenho muita paixão pelo que faço. Sou muito mais Mafaldinha, muito mais reivindicativa. J. M. – A mim aborrece-me de morte. A história do Altos e Baixos, combinámos fazer apenas Lisboa e Porto. E depois acabámos por fazer 16 datas. Existe o efeito de repetição. Já odeio, porque escrevi e já me ri quando escrevi. Fazer a primeira vez já me chateia um bocadinho, porque sinto que é repetir. Fazer mais de uma dúzia de vezes é um martírio. O Daniel diverte-se imenso, porque para ele é sempre diferente. Eu estou mais ligada àquilo que fiz e que preparei e não me divirto muito. Há sempre reacções diferentes das pessoas, mas não é a parte que me diverte. Divirto-me é em casa, de pijama, a escrever. Para mim esse é que é o momento. Quando descubro aquela piada e “isto funciona” e “isto faz sentido” – isso para mim são os momentos felizes. B. G. – Não te fascina o contacto com as pessoas?J. M. – Se pudesse não contactar com pessoas, estava bem. Queriam ser o quê antes de começarem a fazer humor?B. G. – Nem me considero humorista. Só queria contar histórias. Sempre tive pânico a vida toda, porque nunca tive um dom evidente. E até hoje não sei o que é. J. M. – É porque tens jeito para muitas coisas e isso é dramático. B. G. – Não acho que seja isso. Não tenho jeitinho para nada. Não sou boa em nada e não sei para que é que nasci. Mas sou comunicativa e gosto de dar love também. São duas coisas em que não sou assim tão chunga. C. D. – Quando era pequena, gostava de ser arqueóloga, mas acabei em publicidade — muito fascinante, não é? Mas sempre gostei de escrever e então publicidade foi aquilo que me pareceu melhor. Pensei: “Onde é que eu posso escrever e me pagam?” Na publicidade. E é engraçado que tens muitos humoristas que saíram da publicidade — porque te dá aquela liberdade de te extravasares e de escreveres. Trabalhava em agência e escrevia o que me apetecia nas minhas horas de almoço. Então houve uma altura em que comecei a pensar: “O que é que eu quero mais? Ser mais uma precária, mas fazer o que gosto, ou ganhar dinheiro e ser extremamente infeliz?”B. G. – Eu também passei pelo mesmo. C. D. – Então a escolha, na altura, tinha 20 e tal anos, pareceu-me clara. Para os meus pais foi terrível. “De repente vais ficar precária por opção. ”B. G. – Mas estás arrependida?C. D. – Nada. Agora faço ao contrário. Sou freelancer em publicidade e faço isto a tempo inteiro. Continuo a ter de pagar contas. B. G. – Eu também estava muito infeliz a trabalhar como designer de moda numa fábrica. Sempre trabalhei em agências de moda e nunca numa fábrica e é mesmo duro. Pica-se o ponto, ouve-se a sirene, as costureiras saem de lá com o ordenado mínimo e em condições mínimas. Eu tinha mais privilégios, mas aquilo foi um choque. Conversar com elas e perceber aquelas vidas. Eu chorava para ir trabalhar, sou sincera. Acordava às 6h da manhã e ia para Paredes de comboio às 7h para estar lá e entrar às 8h30. Foi muito duro e o pessoal: “Ai Marta, sai dessa. ” Esperei o tempo certo e estava muito forçada nessa altura e foi quando a Capicua disse: “Tu és uma óptima contadora de histórias, liga aí essa câmara e vamos ver. ” Não tinha intenção. “És uma óptima contadora de histórias, ninguém adormece quando contas uma história. ” E pronto. J. M. – Isso para crianças é péssimo. Não podes fazer isso com crianças. Nós contamos histórias às crianças para elas adormecerem. Tu estragavas isso. B. G. – Aconteceu assim naturalmente, nem me considero humorista. Tudo bem, não é que eu não tenha uma mensagem. Preocupo-me que tenha graça e que passe uma mensagem, claro. Mas quero é que tenha graça, porque, se não tiver, morri. J. M. – A minha mãe conta que eu queria ser pintora, mas devo ter percebido que não tinha jeito. Quando aprendi a escrever, comecei a dizer que queria ser escritora. E os meus pais começaram a dizer: “Eh pá, isso é capaz de ser complicado. ” Gostei sempre de escrever, adorava as aulas de Português. Foi uma ferramenta que arranjei e gostava muito. E a Marta estava a falar de nunca saber bem o que é que havia de escolher. Eu tinha o problema contrário. Fui fazer aqueles testes psicotécnicos que dizem qual é a área para a qual deves ir e a mim dava-me 98% ou 99% de humanidades e letras. Não tenho jeito nenhum para o resto. Matemática, zero. Mesmo para línguas, francês e inglês, nada. Foquei-me no português e, quando chegou a altura de escolher – não havia nenhum curso superior para ser guionista –, fui para Jornalismo, mas rapidamente percebi que também não era por aí. Vejo agora alguns colegas de turma na CMTV a fazer reportagens, coitados, e penso: “Ainda bem que saí disso a tempo. Não é para mim, ia ser infeliz. Nem gosto muito de contactar com pessoas. Então imagina andar atrás de gente com um microfone. ” Felizmente, na mesma altura, surgiu um curso de Escrita de Argumento em que pude começar a escrever num tom mais humorístico. Depois convidaram-me para começar a trabalhar e tive a sorte de nunca ter tido um trabalho que detestasse. Respeito muito quando amigos me dizem que têm trabalhos de que não gostam. Deve ser terrível e considero-me sortuda. Obviamente que temos sempre de responder perante alguém que pode dizer: “Olha, isto não presta, faz outra vez. ” Mas é mais leve do que ter um qualquer patrão ditador. Além de humoristas, são também figuras públicas, sendo solicitadas para as mais diversas coisas, algumas com propósitos que pouco ou nada terão que ver com a vossa actividade. Como gerem isso?J. M. – É bom aprender a dizer não. Ao início queres fazer tudo. Tudo é novo e vais experimentar, porque não? Os anos vão-te fazendo ser mais selectivo por todos os motivos. Tenho feito esse exercício. Claro que ainda hoje há coisas que me entusiasmam menos. Na época do Natal, as empresas dão festas, por exemplo. Nunca sei bem ao que vou e gosto dessa parte do desafio. Mas ainda no outro dia estive na festa de Natal de uma empresa em que estava já tudo bêbado, quando estávamos a entrar. Até fiz sinal ao Daniel a dizer “Vamos tentar ser rápidos”, porque não nos estão a ouvir. Ou seja, é um bocadinho desperdício e isso é chato e é incontrolável. Mas a verdade é que tem um lado financeiro bom para depois às vezes fazeres coisas que não dão dinheiro nenhum – ou seja, tem de haver este equilíbrio, mas, hoje em dia, não faço nada (já aconteceu fazer trabalhos penosos) se sinto que está a ser penoso. Isso já não vale a pena, porque depois é prejudicial. Tento fazer sobretudo coisas em que tenho mais controlo. Isso é bom. Se escrevo uma rubrica de rádio, faço-o para mim. Se correr mal, é culpa minha. Não há aquela coisa de: “Vou entregar um texto a outra pessoa que vai apagar tudo e fazer de novo e vou-me irritar. ” Claro que continuo a gostar de escrever para outros. Esta oportunidade de escrever para o Ricardo Araújo Pereira. . . estou feliz. Sei que ele vem também desse lugar do texto e respeita-o. Não é daquelas pessoas para quem escreves um texto, deita fora e faz ele. “Para que é que estive a perder cinco horas em casa”? À medida que vamos crescendo e fazendo mais coisas, também aprendemos a escolher e a perceber esse equilíbrio que não é fácil. De repente, pode-nos aparecer alguém com muito dinheiro, mas é uma coisa que sabes que vais odiar. Tens de dizer que não e pensar que vai aparecer outra coisa. C. D. – Eu sou das que sofrem menos assédio de marcas. Claramente. Sou pouco atractiva para marcas e ainda bem. O modelo de negócio das marcas é uma coisa que me interessa e portanto chumbam-me todas. O assédio que sofro é de colectivos e outras organizações, e aí penso se faz sentido ou não. De repente, têm uma pessoa que consegue engajar o público que é deles e consegue transmitir mensagens da forma que as pessoas querem consumir. É fixe ter uma pessoa assim no nosso lado e eu tento gerir bem isso. Faço o que para mim faz sentido e não tenho qualquer associação a partidos. Em escrita de humor faço o que quero e para pagar contas faço copy em publicidade e campanhas, porque é extremamente difícil para mim fazer, dentro desta área, uma coisa de que não goste. B. G. – Eu também tenho esse filtro bem marcado. Abri uma excepção no outro dia. Sempre disse “não, não, não” e abri uma excepção por ser a Soares dos Reis, uma escola do Porto muito querida. Os meus amigos saíram de lá e pronto, não me arrependo, porque foi mesmo incrível. Adorei aquele pessoal. Muito mais à frente do que nas faculdades. Nas tunas estão sempre bêbados e embebedam-me e eu saio de lá descabeladona. Os académicos têm uma forma com que não me identifico muito. Mas depende. Vou lá, cheiro de perto, gosto de ver como é que aquilo está. Às vezes fico surpreendida e também deixo lá a minha semente. Acho que consigo matar sem o pessoal me levar a mal, não sei porquê. C. D. – O ódio que recebo ultimamente é mais selecto. São pessoas que estão firmadas na sociedade e que ficam lixadas se tu as pões em causa. E eu sinto que é por ser mulher. Esta é a minha sensibilidade. Sinto que se fosse um gajo, se fosse um humorista qualquer homem a dizer aquela graça, passava. Agora, como é mulher, sentem uma humilhação diferente. B. G. – Concordo. E ainda dizem mais: que és uma ressabiada, de mal com a vida e tal, mal fodida mesmo. C. D. – Mas o que é que estas pessoas sabem da minha vida?B. G. – É porque estás a tocar na ferida. C. D. – “Como é que esta pessoa ousa estar a pôr-me em causa”, parecem dizer. Quem me conhece sabe bem que aquela máxima do “respeitinho é muito bonito” não é para mim. Nunca. E não era agora com 30 anos que a vou perceber. Sempre gostei de me meter com os mais crescidos, os “lá de cima”. Os problemas por norma estão lá em cima. Então, nós temos de olhar um bocadinho para cima, pelo menos é o que eu faço. Começámos a conversa pelo despertar. E qual é a última coisa que fazem antes de se irem deitar?B. G. – Depende de onde venha. Há alturas que chego a casa, tiro a roupa e meto-me na cama. Fica ali pelo chão e piscininha na cama. Por vezes vejo filmes ou séries tipo viciada. E a novela da SIC Segundo Sol. Dou uma puxada. Ou então, como dá muito tarde, à meia-noite menos cinco, colo na novela e depois vou dormir sem ir ao telemóvel, que é para não dar insónia. C. D. – Sem querer parecer uma Twitter junkie, vou ao Twitter, perceber se o mundo está bem, se a vigilante pode ir dormir. Isto afecta mesmo a minha vida. E ler um livro. Às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Antes tinha o hábito de ler muito e agora sinto que está cada vez pior. J. M. – Ganhei o hábito de ir espreitar o meu filho, ver se está a dormir em alguma posição estranha, acho querido. E percebi que é um bom calmante. Passamos o dia em Twitters e Facebooks e, de repente, uma pessoa vê aquilo e pronto. É o mais engraçado lá de casa e dorme em posições cómicas. Depois vou dormir e já não tenho aquela tensão do dia. Às vezes ia ver coisas estúpidas na Net e chegava a sonhar com coisas que via. Sinto que aquilo é um bom calmante natural, é ainda melhor do que Valdispert. Por outro lado, isto não é tão idílico como parece, porque, ao fim de algum tempo, ele acorda e tenho de ir lá. Ele acordar já não tem graça nenhuma e a minha noite é muito acordar e adormecer. B. G. – Vocês aterram logo ou ainda ficam a matutar no trabalho?J. M. – Caio na cama, logo. B. G. – Fogo, tenho uma inveja desse povo. Eu tenho muita insónia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Produção: Marta Lobo Fotografia: Miguel Manso Maquilhagem: Elodie Fiuza Cabelos: Mafalda Belo Assistente de realização: Madalena VilarJ. M. – Às vezes sonho com coisas que podiam ser úteis e depois esqueço-me. É isso. O PÚBLICO agradece à Livraria Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa pela cedência das suas instalações para fazer a entrevista.
REFERÊNCIAS:
A Eurovisão como jogo político, em directo e na TV
Para lá das canções, o Festival Eurovisão da Canção é um teste às relações entre os países que participam no concurso. Será a música mais forte do que a política? (...)

A Eurovisão como jogo político, em directo e na TV
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento -0.08
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para lá das canções, o Festival Eurovisão da Canção é um teste às relações entre os países que participam no concurso. Será a música mais forte do que a política?
TEXTO: No ano passado em Kiev, Ucrânia, Salvador Sobral recebeu um “puxão de orelhas” da organização do festival da Eurovisão. Nos bastidores, o músico tinha vestida uma camisola preta com a mensagem “SOS Refugees” (SOS Refugiados), algo que para a União Europeia de Radiodifusão (EBU) é visto como uma mensagem política, uma atitude banida pelo regulamento do concurso. Salvador defendeu-se dizendo que aquela camisola tinha uma “mensagem humanitária”, mas a organização não se mostrou permissiva, numa edição que tinha como assinatura “Celebrate Diversity” (Celebrar a diversidade). Numa Europa de várias sensibilidades, a única forma de chegar a todos sem gerar problemas é garantindo (ou pelo menos tentando) que o concurso fica à parte das mensagens políticas e comerciais, seja nas canções ou fora delas. Mas fugir ao regulamento pode dar a um artista ou a um país a capacidade de passar uma mensagem para um universo de mais de 200 milhões de espectadores. A história do concurso mostra que houve vários participantes a afrontar as regras, com mais ou menos sucesso. Rita Pereira, com 23 anos, é aluna de mestrado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e está a preparar uma tese de mestrado sobre o facto de o regulamento da Eurovisão dizer que este é um “concurso apolítico”. Rita acompanha o festival desde a edição de 2005, também na Ucrânia: “Encanta-me a combinação da música com a multiculturalidade. ” Não se considera uma enciclopédia do festival, mas diz de cor intérpretes e anos em escassos instantes. “A Eurovisão é relativamente pouco estudada”, desabafa, por isso o tema da tese acabou por ser uma “escolha natural”. A primeira questão que põe em cima da mesa equivale à abertura de uma caixa de Pandora: “O que faz com que uma canção seja considerada política?” Rita assegura que “a política existe sempre na Eurovisão”, mesmo que “existam regulamentos que digam o contrário”. “Há um concurso com canções de vários países — uma expressão artística — e sobre o que é que as pessoas falam? Falam dos contextos sociais onde vivem. Isso também não é político?”Portugal acaba por ser um “exemplo paradigmático” em várias canções que levou à Eurovisão com mensagens políticas, desde aquelas que tinham a intenção de ser entendidas “por cá”, como as críticas ao Estado Novo em Tourada de Fernando Tordo (1973) ou até à tentativa dos Homens da Luta de passar uma mensagem contra a austeridade a nível europeu (2011). Apesar dessas demonstrações mais politicamente activas ou conotadas, nunca existiu um problema em relação às participações portuguesas no concurso. “Quando as canções são políticas, mas que não criam pontos de tensão entre países, a organização não diz nada”, até porque “muitas vezes o festival não percebe os significados”. Apesar disso, Rita faz questão de dizer que, para ela, “o festival não é um concurso de canções”, mas sim “um espectáculo audiovisual” e por isso a “mensagem também se pode passar “nessa vertente visual”. Exemplo disso foi quando em 2015, na Áustria, várias bandeiras LGBT foram erguidas aquando da actuação da representante russa. Este gesto levou a que no ano seguinte fosse introduzida uma “política de utilização das bandeiras” que proibia a utilização da “bandeira arco-íris” de “forma política” durante a actuação da Rússia. A organização justificava a sua decisão dizendo que estas bandeiras “não podiam ser usadas como uma ferramenta política”. Para existir uma canção banida por razões políticas, temos de recuar a 2009. We Don’t Wanna Put In do grupo pop Stephane & 3G foi escolhido pela Geórgia para ir ao festival que se realizava em Moscovo, na Rússia. As duas palavras do título da canção faziam lembrar o nome do Presidente russo, Vladimir Putin, que combinado com “We Don’t Wanna” (nós não queremos) levou a que os intérpretes nunca chegassem a pisar o palco do Estádio Olímpico de Moscovo. A organização considerou que a canção continha uma mensagem política evidente e, para evitar um conflito com o país organizador, baniu a canção. A ex-república soviética tinha cortado as relações diplomáticas com a Rússia um ano antes, o difícil relacionamento entre as duas nações acabou por ditar o abandono da Geórgia dessa edição do festival. O (ainda instável) Leste europeu tem levado à existência de situações complicadas no festival. Lisboa recebe nesta quinta-feira a actuação da cantora russa Julia Samoylova conhecida por ter sido banida do festival que se realizou na Ucrânia o ano passado. Samoylova tinha ido em 2014 à Crimeia quando esta já se encontrava anexada pela Rússia e foi por isso impedida de ir a Kiev pelas autoridades ucranianas. Em protesto pela organização não ter resolvido o diferendo, o canal estatal da Rússia recusou-se a participar na edição do ano passado. Este ano, a canção Mercy, apresentada pela França, fala sobre refugiados. “A Eurovisão ainda não disse nada, mas isso não é político?”, questiona Rita Pereira. “Há coisas que não dá para contornar”, por isso “não é mesmo possível excluir tudo o que é político”, defende. Questionada se é mais importante a canção do que o país que a apresenta, Rita defende que “o mais importante é mesmo a canção e a actuação” e prova esse argumento dando o exemplo da participação de Salvador Sobral em Amar pelos Dois, que, no ano passado, venceu não só na classificação dos vários painéis de jurados, mas também no televoto. Rita sempre ouviu que Portugal “não podia ganhar a Eurovisão porque não tinha vizinhos”, mas a realidade mostrou o contrário. Certo é que nas votações há muito de político, e as históricas amizades entre nações revelam-se no televoto (e em certos casos nos próprios jurados). Por esse motivo quando a votação dos telespectadores era determinante para escolher o vencedor do festival (1997-2008), os países de Leste acabavam por conseguir reunir mais vitórias do que os países do Ocidente. Havia uma espécie de política de voto em bloco pelos Balcãs, que se acentua pela imigração de Leste na Europa ocidental. O que demonstra que na Eurovisão, às vezes, é preciso “ter uma boa vizinhança”. Tiago Batista, 24 anos, é o autor da tese de mestrado “A Geopolítica e a votação no Festival Eurovisão da Canção”. Na tese que realizou no ISCTE, em 2016, Tiago analisou o impacto da introdução, em 2009, do modelo misto de votação, que dava igual poder aos painéis de jurados e ao televoto dos espectadores. Antes, o festival tinha passado por um período de controvérsia em relação aos resultados apurados por televoto. Em 2007, por causa deste sistema, nenhum país ocidental que tivesse participado na semifinal se qualificou para a final, “o que obrigou a mudar o sistema”. A Áustria boicotou o festival em 2008, “diziam que assim o que estava a valer era o nome do país e não a canção”. Batista garante que “com o modelo misto o voto não é tão político”. Situações como a da primeira participação da Albânia, em 2004, deixaram de ter relevo. Nesse festival, à excepção de Sérvia, Eslovénia e Macedónia que deram os 12 pontos (a pontuação máxima) à Albânia “mais ninguém achou piada à música”. “Mas é engraçado como os vizinhos gostaram todos. ” Um dos casos de “resistência” em relação àquilo que “ainda continua a ser um voto declaradamente político” é o caso de Chipre e da Grécia. São poucas as vezes na história da Eurovisão que o país do mediterrâneo não deu a pontuação máxima à ilha vizinha, que mantém uma disputa de décadas entre a população de ascendência grega e de ascendência turca (parte norte da ilha). “É normal votarmos em países com os quais temos afinidade”, diz Tiago Batista. Por isso “é claro que Portugal vote mais em Espanha do que noutro país qualquer com o qual não tem afinidade”. Tiago Batista considera que “o Leste ainda politiza muito o festival”, e dá um exemplo relacionado com esta edição: “O Presidente da Bielorrússia disse esperar que o país recebesse os 12 pontos da Rússia e da Ucrânia. ” “Na Europa de Leste as coisas são levadas muito a sério”, de tal forma que em 2013 o Governo do Azerbaijão teve de pedir desculpa à Rússia por não lhe ter dado pontos no festival. Caso extremo foi o do Azerbaijão em 2009, quando o Governo pediu à empresa de telecomunicações do país que lhe desse o nome de todas as pessoas que votaram na canção da Arménia. Esse fãs seriam depois investigados, já que tinham revelado uma “atitude antipatriota”. Foram 43 os azeris chamados a justificarem-se. Há também registo de picardias entre os dois países no próprio espectáculo televisivo. Nesse ano, no momento de votação da Arménia, a porta-voz mostrou uma imagem de um monumento da região de Nagorno-Karabakh, que está em disputa com o Azerbaijão. “Os países usam o festival porque é muito mais fácil e mais barato do que fazer guerra”, diz o investigador. A participação da Macedónia também é um problema para a Grécia, de tal forma que quando a ex-república jugoslava aparece no festival tem de vir com o nome “F. Y. R. Macedonia”. Esta situação acabou por ser levada ao extremo quando, em 2006, o festival se realizou em Atenas e o grafismo contou com o nome do país escrito de forma integral “Former Yugoslav Republic of Macedonia” (Antiga República Jugoslava da Macedónia). Este conflito tem origem no nome em disputa entre os dois territórios e que tem condicionado a participação do país na Eurovisão. Também este litígio tem levado ao atraso na integração europeia da Macedónia, por influência da Grécia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar das apostas, ao contrário de uma grande competição desportiva onde o leque de possíveis vencedores é reduzido à partida aos ditos “favoritos”, na Eurovisão a inexistência de um padrão comum de vencedores leva a que não haja um vencedor antecipado (e já foram 27 os países a ganhar pelo menos uma edição do festival). “Não existe um modelo eurovisivo”, e “Salvador Sobral é a prova disso”, defende Tiago. O investigador também tem “dúvidas” de que a RTP tivesse querido verdadeiramente ganhar o festival até ao ano passado. Antes da vitória de Salvador Sobral, “íamos só marcar presença” e por isso “não éramos levados a sério”. O autor de A Festa da Vida (1972), Carlos Mendes, chegou a dizer que o operador público o “proibiu de promover o festival a nível europeu, porque Portugal não podia albergar o festival”. A “semana Eurovisão” está a começar agora. Não haverá cartazes políticos, porque esses são proibidos no recinto do festival. O que já não é garantido é que as mensagens políticas não possam passar de formas mais criativas ou menos explícitas. O que parece mais certo são os 12 pontos “políticos” que Chipre dará à Grécia.
REFERÊNCIAS:
Étnia Azeris
Um ano de crises nos três pilares que sustentam a Europa – não se prevêem melhorias
Macron está em queda, mesmo que não seja fatal. É sempre difícil substituir a actriz principal. O Brexit e Trump são duas faces da mesma moeda. 2018 foi também (ou principalmente) a crise dos três grandes pilares da União Europeia. Não se prevêem melhorias. (...)

Um ano de crises nos três pilares que sustentam a Europa – não se prevêem melhorias
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Migrantes Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Macron está em queda, mesmo que não seja fatal. É sempre difícil substituir a actriz principal. O Brexit e Trump são duas faces da mesma moeda. 2018 foi também (ou principalmente) a crise dos três grandes pilares da União Europeia. Não se prevêem melhorias.
TEXTO: Talvez tenha sido esta a marca mais relevante do ano europeu que agora chega ao fim: a instabilidade, para dizer o mínimo, que vivem os países da União Europeia habitualmente designados por “três grandes”, aqueles que, por força da sua dimensão, da sua economia ou da sua influência política, têm um peso quase sempre determinante no destino da Europa. É quase desnecessário designá-los: Alemanha, França e Reino Unido. Os dois últimos são duas velhas nações que já foram impérios, habituados a exercer no mundo uma influência que vêem como indo além do seu peso relativo, que ocupam dois dos cinco lugares permanentes no Conselho de Segurança e que possuem uma capacidade militar ainda hoje relevante. A Alemanha ainda é um caso à parte. O seu poder vem-lhe dos 83 milhões de habitantes, mas sobretudo do peso da sua economia, a quarta do mundo, atrás dos EUA, da China e do Japão, e o pilar fundamental da moeda única europeia. A crise financeira, que rapidamente se transformou numa crise do euro, aumentou ainda mais esse poder, permitindo-lhe ditar as condições da sua resolução e as regras do seu funcionamento futuro. Continua, no entanto, a ser uma potência relutante graças à sua história recente. É uma nação mais jovem, imperial na Europa mas não fora dela. Ocupa o centro da integração europeia, no sentido em que nada se pode fazer contra a sua vontade, mesmo que alguma coisa se possa fazer sem ela. Quer liderar a Europa mas (ainda) não quer pagar os custos inerentes a quem lidera. Não é uma potência clássica, como os seus dois grandes parceiros europeus, mas evoluiu durante a crise e, sobretudo, quando se viu confrontada com a chegada à Casa Branca de um Presidente nacionalista que rasgou a política que os EUA definiram para a sua relação com a Europa desde a II Guerra e que fez precisamente da Alemanha o seu “principal inimigo”. Esta evolução é recente. Basta lembrar que, quando Paris decidiu intervir no Mali (2014), Berlim comentou, ainda que em voz baixa, que não tencionava pagar as guerras da França. Hoje dá apoio às forças francesas no Sahel para conter a expansão do fundamentalismo islâmico. A grande viragem da política externa alemã deu-se, no entanto, em 2014 quando a Rússia invadiu o Leste da Ucrânia e anexou a Crimeia. O reforço da capacidade militar europeia, a começar pela própria, passou a figurar no topo da sua agenda política, acentuado pelas inúmeras declarações do Presidente americano sobre a irrelevância da NATO. “Os Estados Unidos pagam pela protecção da Europa e perdem biliões no comércio. [Os aliados] têm de gastar imediatamente 2% do PIB na defesa e não em 2025” – o “grito de guerra” de Trump na primeira cimeira da NATO, dirigido em primeiro lugar a Berlim. “Quando ele fala dos aliados, quer dizer Alemanha. Quando fala da União Europeia, quer dizer Alemanha”, diz o antigo embaixador americano na NATO, Ivo Daalder, citado pela New Yorker. A Alemanha deixou de poder não ouvir. Uma forte aliança com os Estados Unidos e uma sólida relação com a França foram os dois pilares da política externa alemã desde a fundação da República Federal. O primeiro pilar está posto em causa pela actual Administração americana. A adaptação não é fácil. “É como se os nossos pais nos dissessem, depois de muitos anos, que afinal nunca gostaram de nós”, diz um diplomata alemão citado pela New Yorker (How Trump Made War on Merkel and Europe, de Susan B. Glasser). Internamente, a Alemanha também está em profunda mudança, o que acaba por ter um forte impacte na União. Estabilidade era o nome do sistema político alemão. Deixou de ser. O velho sistema de três partidos, com os liberais a fazerem de charneira deu lugar a um sistema de seis, incluindo dois que defendem soluções extremistas – sobretudo à direita, com a AfD, mas também à esquerda, com o Die Linke. Ao mesmo tempo, o declínio dos dois grandes partidos centrais, a CDU e o SPD, foi pondo em causa a anterior estabilidade política, forçando Angela Merkel em três dos seus quatro mandatos a ter de governar com uma “grande coligação”. A chave para explicar o que aconteceu é, em primeiro lugar, a unificação alemã no início dos anos 1990 do século passado. A crise do euro, a crise da imigração, a própria crise europeia concluíram a fragmentação política, afectando também, de uma forma ou de outra, a própria natureza dos partidos. O desenlace mais negativo deu-se nas últimas eleições, em Setembro de 2017, quando a AfD conseguiu eleger 94 deputados para o Bundestag, adquirindo o estatuto de líder da oposição. A abertura aos refugiados da guerra na Síria em 2015 abriu feridas antigas, num país que só recentemente alterou a lei da nacionalidade no sentido de atribui-la a quem não tenha sangue alemão. A extrema-direita cavalgou os efeitos da imigração, que substituiu o euro como o tema central da política alemã. As duas crises somadas – do euro e dos refugiados – acabaram por criar novas tensões na relação entre a Alemanha e a União Europeia, acentuando uma tendência “unilateralista” que alimentou velhos e novos anticorpos nos seus parceiros europeus. A construção do Nord Stream 2, para trazer directamente o gás russo para a Alemanha (está prevista a sua conclusão em 2019), contornando a Ucrânia, a Polónia e os Bálticos, continua a incomodar muitos parceiros europeus e a própria Comissão. Berlim sente o incómodo mas lembra que a Rússia depende muito mais das divisas estrangeiras do que a Alemanha depende do seu gás. A confiança e a admiração que a chanceler conseguir conquistar atenuam alguns receios. Mas Merkel, caminha rapidamente para o seu ocaso, fazendo temer um vazio de liderança, mesmo que transitório, no coração da Europa. A chanceler abandonou em Dezembro a liderança da CDU, fazendo-se substituir por Annegret Kramp-Karrenbauer, a herdeira que ela própria escolheu, e tencionando cumprir até ao fim o seu mandato, que termina no Outono de 2021. Mas quando se ocupa o centro do palco durante tantos anos, nunca é fácil substituir a actriz principal. Do outro lado do Reno, a eleição de Emmanuel Macron em Junho de 2017 foi olhada simultaneamente como um alívio e uma lufada de ar fresco. As credenciais europeístas e reformistas do Presidente francês pareciam ser um bom sinal para o reforço do eixo Paris-Berlim mas também para uma nova ambição da Europa, num mundo que lhe é cada vez mais adverso e que, por isso, lhe exige cada vez mais. Macron operou uma revolução no sistema partidário francês, criando do zero um grande partido de centro radical, a República em Marcha, destruindo pelo caminho o velho sistema partidário assente no Partido Socialista e nos Republicanos, e contendo a progressão constante da Frente Nacional (hoje União Nacional) de Marine Le Pen. Queria “refundar” a Europa a partir do reforço político do núcleo central dos países do euro e de uma geometria variável em que os restantes avançariam ao seu próprio ritmo. Durante um ano, esperou por uma resposta consistente de Berlim às suas ideias. Merkel deu algumas entrevistas respondendo com demasiada prudência ao desafio de Macron, mas a sua resposta à questão central da reforma da zona euro ficou muito aquém das propostas do Presidente francês. Não saindo da sua posição inicial, Berlim quer partilhar regras e responsabilidades, mas não os riscos inerentes. A explosão social dos “gillets jaunes” foi um golpe duro no poder e no prestígio de Macron e pode vir afectar o seu ambicioso programa de reformas, revelando um mal-estar social profundo de um país que perdeu competitividade com a globalização mas que se mantém fiel a uma cultura de igualdade, sustentada por um modelo social que, também ele, está em forte tensão. Macron desceu à Terra a uma velocidade meteórica, o que não quer dizer que não possa ainda recuperar. As sondagens indicam que nenhum partido está a colher os frutos da sua queda, a não ser Marine Le Pen. Nem a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon, que se colou aos protestos, nem o centro-direita, cada vez mais de direita, de Laurent Wauquiez, nem os socialistas em vias de extinção de Olivier Faure. As eleições europeias serão um teste à volatilidade da paisagem política francesa. A ideia de um grande partido europeu constituído em torno do programa do Em Marcha deixou de parecer realista. O eventual sucesso de Le Pen nas europeias, que não é difícil em eleições em que o Governo não está em causa, será mais um aviso aos parceiros europeus. Tal como a Alemanha, ainda que por razões diferentes, a França está no centro da integração europeia e funciona como o país charneira entre o Norte e o Sul. Em Maio de 2017, a elite politica alemã, depois de um momento de pânico com a possibilidade da eleição de Le Pen, saudou um Presidente reformista. No dia seguinte, regressou tranquilamente ao “business as usual”. Macron fez as reformas que prometeu mas que vão levar tempo a produzir efeitos. O risco de paralisação da França devia voltar a preocupar Berlim. Resta a outra “potência” europeia que, como a França, já foi o centro de um império. Está de partida e, o que é pior, ainda não se sabe como. Em Junho de 2016, o primeiro-ministro conservador David Cameron lembrou-se de sujeitar a referendo a permanência do seu país na União Europeia, convencido que o resultado só poderia ser um. Convocou-o para resolver as eternas divisões que minavam (e minam) os conservadores em torno da questão europeia. Jogou o destino do seu país com o desfecho conhecido. Desde então, o “Brexit” transformou-se num factor de profunda divisão no Reino Unido, abrindo feridas antigas e dilacerando os dois grandes partidos em que assenta o sistema politico – o Labour e os Conservadores. As promessas dos defensores da saída revelaram-se espúrias. As negociações foram penosas. O resultado obtido pelo Governo de Theresa May parece não agradar a ninguém. A sua aprovação em Westminster está longe de estar garantida, abrindo as portas à possibilidade de um saída sem acordo que seria catastrófica para a economia britânica e provocaria um enorme choque na economia europeia. O futuro das ilhas britânicas, cuja história está intimamente ligada à do velho continente, não podia ser mais incerto. O efeito de uma saída, seja ela ordenada ou caótica, sobre o xadrez político europeu é inquestionável. Dois pilares não são o mesmo que três. Durante décadas, um entendimento entre os “três grandes” foi condição essencial para que os outros se pudessem reconhecer nas decisões europeias mais importantes. Em matéria de economia ou em matéria de segurança e defesa ou de política externa. O Reino Unido (com o apoio alemão) foi o país que mais se bateu pelo alargamento a Leste, abdicando desde o primeiro dia do período de transição estipulado nos tratados de adesão para a livre circulação dos novos cidadãos europeus (só a Irlanda e a Suécia seguiram o mesmo caminho). Hoje, fechar as portas à imigração, incluindo a europeia, parece ser a primeira das motivações para a saída. Tal como em Berlim, também em Londres ninguém previu a chegada à Casa Branca de um Presidente disposto a destruir a ordem liberal construída pelos EUA depois da II Guerra. A “relação especial” com os EUA está posta em causa, precisamente quando o Reino Unido mais precisa dela. “O Presidente americano está a ajudar a criar um mundo onde as velhas regras não se aplicam e aquilo que era dado como adquirido, como a reivindicação britânica da ‘relação especial’ com Washington passou a ser um anacronismo embaraçoso”, escreve Simon Tisdall no The Guardian. “Fora da UE o Reino Unido enfrenta um futuro sombrio no mundo de Trump. ”Um Labour cuja liderança, ao contrário das anteriores, não rejeita a saída da Europa, para dizer o mínimo, é outra inesperada coincidência. Em Bruxelas, traçam-se planos de contingência para uma saída desordenada. Como se fosse um pequeno percalço. Em Londres, ninguém parece dar-se conta (à excepção talvez de Theresa May) de que se está a caminhar para o abismo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar da salvação in extremis do euro e da recuperação económica, os sinais de desunião e de fragmentação da Europa são evidentes. Os nacionalismos crescem. Na Itália, que durante décadas desempenhou o papel de bom europeu, o sistema partidário implodiu há muito, dando origem a um governo assente em dois partidos, um populista e outro de extrema-direita, cujo amor pela União Europeia é muito relativo. Os países mais ricos do Norte tiraram apenas uma conclusão da crise: não pagar nem um cêntimo para ajudar à convergência económica dos seus parceiros do Sul e do Leste. Justamente uma condição indispensável para a sustentabilidade do euro e para a coesão política da própria União. Órfã da América, com a crescente pressão militar da Rússia junto à sua fronteira Leste e a capacidade de desestabilização de Moscovo em demasiados países, sem uma liderança forte e uma visão estratégica, a Europa continuará no próximo ano vulnerável aos ventos internacionais e às debilidades das suas democracias.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Campeão das alterações ao Orçamento: PCP viu aprovadas 44 medidas, BE 39
O PSD só conseguiu 13 aprovações (as mesmas do que o PEV) e o CDS 11 (tal como o PAN) (...)

Campeão das alterações ao Orçamento: PCP viu aprovadas 44 medidas, BE 39
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O PSD só conseguiu 13 aprovações (as mesmas do que o PEV) e o CDS 11 (tal como o PAN)
TEXTO: Excluindo o PS da contagem, quem lidera a lista das propostas de alteração ao Orçamento do Estado para 2019 (OE2019), que foram aprovadas, é o PCP. Os comunistas conseguiram incluir 44 medidas, segue-se o BE, com 39. As propostas de alteração apresentadas pela esquerda ao OE2019 ultrapassam, claro, largamente as da direita: o PSD só conseguiu 13 aprovações (as mesmas do que o PEV) e o CDS 11 (tal como o PAN). As conquistas alcançadas dizem respeito, em diferentes temas, a propostas que, embora sobre o mesmo assunto, foram apresentadas por vários partidos. O PCP, por exemplo, numa longa lista, salienta as seguintes medidas: a não actualização das subvenções parlamentares aos partidos; o reforço do apoio do Estado Português à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no valor de 100 mil euros; ou a criação de novo escalão no Adicional do IMI. O Bloco de Esquerda, por exemplo, salienta ainda a actualização das bolsas de investigação; a realização de um concurso extraordinário para ingresso no internato médico; e a contratação de oficiais de justiça. O PSD também conseguiu inscrever a realização de uma auditoria às Parceiras Público-Privadas municipais; a eliminação do aumento da taxa dos de sacos plásticos leves; ou a eliminação da proibição do tiro às aves. O CDS, por exemplo, também destaca esta eliminação, bem como a actualização das bolsas de investigação. Mas referem também a melhoria das condições do empréstimo do Programa de Assistência Económica e Financeira à Região Autónoma da Madeira. Entre outras medidas, o PEV viu aprovado o apoio à esterilização de animais; mais salas para a educação pré-escolar; e a necessidade de se tomar medidas em relação à eliminação de barreiras arquitectónicas que afectam os cidadãos com mobilidade reduzida. O PAN bateu-se pela contratação de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa para o Serviço Nacional de Saúde; por uma campanha nacional de esterilização de animais; e por um Programa de Apoio e Acompanhamento ao Estudante com Necessidades Especiais. Mas não só. Veja aqui a lista completa dos tópicos respeitantes a propostas de alteração que foram aprovadas, por partido. Propostas de alteração ao OE2019 aprovadasPCP – 44BE – 39PSD e PEV – 13PAN e CDS – 11PCP1. Alargamento do regime de aposentação antecipada aos trabalhadores das minas, das lavarias do minério e da extracção e transformação da pedra2. Regime de aposentação para todos os trabalhadores dos matadouros da Região Autónoma dos Açores3. Criação de novo escalão no Adicional do IMI4. Não actualização das subvenções parlamentares aos partidos5. Actualização automática, por efeito da sentença, das prestações de alimentos devidos a menores a cargo do Fundo de Garantia6. Reforço do apoio do Estado Português à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no valor de 100 mil euros. Uma contribuição solidária para a acção desta agência no apoio aos refugiados palestinos7. O pagamento a tempo inteiro aos presidentes de Junta passa a ser pago pela Direcção-Geral das Autarquias Locais a pagar8. Subsídio à pequena pesca artesanal e costeira e à pequena aquicultura9. Majoração dos subsídios relativos à utilização de gasóleo colorido e marcado10. Criação da Rede Nacional de Monitorização de Pragas na Floresta Portuguesa11. Eliminação do aumento de tributação autónoma sobre viaturas de empresários em nome individual12. Eliminação do agravamento de tributação autónoma sobre viaturas de micro, pequenas e médias empresas13. Fim do Pagamento Especial por Conta com dispensa de declaração14. Alargamento do prazo de entrega do modelo 10 em sede de IRS para 10 de Fevereiro15. Redução dos custos dos transportes públicos16. Fim da isenção do IMT a fundos imobiliários17. Reforço do Plano Nacional de Vacinação18. Equipas Comunitárias de Cuidados Paliativos19. Aumento para 30% da quota dos medicamentos genéricos em valor20 – Redução do número de alunos por turma21. Manutenção do referente do valor da propina cobrada no ano lectivo 2018/2019 para efeito de cálculo de atribuição das bolsas de estudo a estudantes do Ensino Superior22. Aumento do Complemento de Alojamento23. Redução do IVA da Cultura para 6%24. Carta de Risco e intervenções de salvaguarda e valorização do Património Cultural25. Plano de revitalização da Cinemateca, I. P. e do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento26. Reactivação do Programa de Apoio a Museus da Rede Portuguesa de Museus – ProMuseus27. Alargamento do apoio à criação literária28. Suspensão do valor das custas processuais29. Maior abrangência da celebração de acordos de regularização de dívidas às empresas intermunicipais e no sector dos resíduos urbanos30. Redução do IVA de mel de cana tradicional para 6%31. Regime de tributação mais favorável para a produção de sidra32. Prosseguir o processo de negociação previsto na lei quanto à definição do prazo e do modo relativos à valorização remuneratória resultante da contagem integral do tempo de serviço das carreiras, cargos ou categorias integradas em corpos especiais, tal como estabelecido pelo artigo 19. º da Orçamento do Estado para 201833. A eliminação do factor de sustentabilidade nas longas carreiras contributivas é alargada aos beneficiários da Caixa Geral de Aposentações34. Reforço do apoio aos Cuidadores Informais35. Alargamento da Prestação Social para a Inclusão36. Alargamento do abono de família pré-natal37. Apoio aos desempregados de longa duração38. Alargamento dos critérios para a atribuição do complemento por dependência39. Elaboração pelo Governo de um programa no sentido de dar concretização ao objectivo de substituir a subcontratação de empresas pela contratação de profissionais de saúde para o Serviço Nacional de Saúde40. Combater a situação financeira insustentável do Museu Nacional Ferroviário, considerando a respectiva fundação nos mesmos termos em que são tratadas outras fundações cujo interesse público é reconhecido41. Abertura de procedimentos concursais para acesso às categorias de adjunto e de admissão para ingresso dos oficiais de justiça que se revelem indispensáveis ao funcionamento dos tribunais42. Na Administração Local, o despacho de autorização relativo à determinação do posicionamento remuneratório em procedimento concursal é da responsabilidade do respectivo órgão executivo43. O Governo assegura apoio financeiro à construção, fiscalização da empreitada e aquisição de equipamento médico e hospitalar do futuro Hospital Central da Madeira, de acordo com a programação financeira e a já aprovada candidatura PIC (Projeto de Interesse Comum) em cooperação com os órgãos de governo próprio da Região Autónoma da Madeira. 44. Eliminação de restrições à autonomia regional relativos ao Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) da Região Autónoma da MadeiraBE1. Contratação de 25 vigilantes para a natureza2. Actualização das bolsas de investigação da responsabilidade da Fundação para a Ciência e Tecnologia com base no i´ndice de preços ao consumidor que se vier a verificar em 20183. Carreira contributiva da Caixa Geral de Aposentações: No regime de flexibilização da idade de acesso à pensão foi acrescentado que “o novo regime é aplicável aos beneficiários que tenham iniciado a sua carreira contributiva no Regime Geral de Segurança Social ou na Caixa Geral de Aposentações, sendo avaliada a sua compatibilização com regimes específicos de acesso às pensões"4. O Museu Nacional Ferroviário foi acrescentado para financiamento. 5. Subsídio de insularidade para funcionários do ensino superior da Madeira e Açores. 6. Novo Regime de Segurança Social, Reinserção Profissional e Seguro de Acidentes de trabalho para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado. 7. Contratados mais trabalhadores não policiais para o Serviços de Estrangeiros e Fronteiras. 8. Abertura de um concurso de contratação para inspectores da Polícia Judiciária. 9. Concurso extraordinário para ingresso no internato médico10. Aprovado o levantamento dos recursos e necessidades de equipamento da rede consular. 11. Plano de Revitalização Económica da Ilha Terceira: A responsabilidade pela contaminação da Ilha Terceira através da Base das Lajes deve ser imputada também aos EUA12. Reforço de vagas para fixação de médicos em zonas carenciadas de trabalhadores médicos13. Contratação de oficiais de justiça14. Contratação profissionais para o INEM15. A construção e aquisição de equipamento para o Hospital Central da Madeira será comparticipada em 50% do seu valor16. Reforço da verba para o Tribunal Constitucional: Aprovada a verba necessária para a entidade das contas fazer o seu trabalho de fiscalização dos partidos políticos17. As despesas com pessoal no âmbito do Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Florestais são liquidadas, a partir de 2019, por transferência bancária directa para os bombeiros beneficiários18. Agravamento do IRS sobre mais-valias imobiliárias de offshores: agravamento de 28% para 35% das mais-valias imobiliárias obtidas por sociedades registadas em offshores18. A administração do Hospital de São João fica autorizada a iniciar o processo de construção, utilizando as verbas já transferidas19. Em 2019 arrancam os procedimentos para a construção dos novos hospitais de Barcelos, Póvoa de Varzim e Algarve, bem como a ampliação do hospital José Joaquim Fernandes, em Beja. Será também concretizada a actual fase do novo edifício do Centro Hospitalar de Gaia e Espinho e lançada a fase seguinte20. Convergência dos valores pagos a atletas olímpicos e paralímpicos21. Programa de renovação ferroviária e investimento na Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário22. Redução do número de alunos por turma23. Apoio à utilização de bicicletas eléctricas24. Reactivação do programa ProMuseus25. Criação de projectos-piloto de saúde mental na comunidade26. Alargamento do programa nacional de vacinação27. Combate à toxicodependência: Financiamento a 100 por cento dos projectos de redução de riscos e minimização de danos e possibilidade de duração dos projectos superior a 24 meses. 28. Abertura de concursos para o preenchimento de vagas de técnicos de reinserção social e reeducação no sistema prisional e no sistema tutelar educativo, no âmbito da estratégia plurianual de requalificação e modernização do sistema de execução de penas e medidas tutelares educativas29. Redução do IVA para a cultura já em Janeiro30. Redução do IVA do mel de cana para 6%31. Obrigatoriedade de o Banco de Portugal enviar informação passada sobre transferências para offshores para a Autoridade Tributária32. A informação sobre os RERT (Regimes Excepcionais de Regularização Tributaria) será entregue ao fisco33. Eliminação da Taxa de Protecção Civil34. Alteração ao sistema de atribuição de apoios a pessoas com deficiência e incapacidade temporária35. Medidas de apoio às vítimas dos incêndios florestais36. Aplicar o mesmo regime de reforma aos trabalhadores das pedreiras que é aplicado aos da indústria de extracção das minas;37. Programa especial de apoio a Ilha Terceira cessa apenas a 1 de Janeiro de 202038. Aplicar o mesmo regime de reforma aos trabalhadores que fazem a transformação da pedra ao que é aplicado aos da extracção39. Os trabalhadores das câmaras municipais, uma vez integrados nas empresas municipais (quando existem fusões, extinções e estes são transferidos), mantêm os direitos de antiguidade e posições remuneratóriasPSD1. Realização de uma auditoria às PPP municipais?2. Eliminação do aumento da taxa dos de sacos plásticos leves?3. Fundo de Financiamento da Descentralização: obrigar a que os reforços do fundo sejam efectuados por proposta de lei4. Correcção de omissão no regime de segurança social dos trabalhadores das pedreiras5. IVA reduzido dos espectáculos culturais, incluindo tauromaquia, espectáculos ao ar livre, cinema6. IVA dos artistas tauromáquicos: manutenção da isenção7. Manutenção da isenção de IVA na venda de bilhetes de espectáculos tauromáquicos8. Obrigação de envio trimestral à Assembleia da República de listagem dos projectos beneficiários de garantias concedidas pelo Estado9. Não actualização do valor das custas processuais10. Eliminação da autorização legislativa para criação da contribuição municipal de protecção civil11. Programa de Assistência Económica e Financeira à Madeira: eliminação da norma que dispunha que a redução dos encargos com juros ficasse afecta à amortização do capital em dívida do empréstimo12. Eliminação da proibição do tiro às aves13. Tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias: contagem do tempo de serviço dos professoresPEV1. Remuneração da mobilidade: Na Administração autónoma e local, através da emissão de despacho favorável do seu dirigente ou órgão máximo de serviço e desde que garanta as condições financeiras favoráveis e fundamente o interesse público, o trabalhador é remunerado pela posição imediatamente seguinte à que se encontra posicionado2. Apoio à esterilização de animais3. Reforço de meios humanos para a conservação da natureza e da biodiversidade: mais 25 vigilantes da natureza4. Salas de educação pré-escolar: pelo menos mais 100 salas a partir dos 3 anos5. Redução do número de alunos por turma6. Em 2019, o Governo, em função das conclusões do relatório da situação das acessibilidades a nível nacional, toma medidas para que seja cumprida a legislação sobre acessibilidades, para que sejam progressivamente eliminadas as barreiras arquitectónicas e efectuadas as adaptações necessárias para garantir o acesso aos cidadãos com mobilidade reduzida7. Disponibilização do medicamento para a Atrofia Muscular Espinhal em todas as unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde8. Estudo de viabilidade para o Ramal na Linha do Leste9. Electrificação da linha ferroviária entre Casa Branca e Beja10. Incentivo à introdução no consumo de veículos de baixas emissões (bicicletas): o incentivo é ainda extensível, em 2019, às bicicletas eléctricas11. Livros, jornais, revistas de informação geral e outras publicações periódicas que se ocupem predominantemente de matérias de carácter científico, educativo, literário, artístico, cultural, recreativo ou desportivo, em todos os suportes físicos ou por via electrónica são taxados a 6% no IVA12. Alterações no acesso às pensões de invalidez e de velhice dos trabalhadores do interior das minas e dos trabalhadores da indústria de extracção13. Reforço da verba da DGArtes para apoio às artesCDS1. Eliminação da contribuição municipal de protecção civil2. Reforço dos apoios ao Cuidador Informal3. Transferência de verbas para a Fundação Museu Nacional Ferroviário4. Mecanismo electrónico que evite, na mesma penhora, penhoras simultâneas de várias contas bancárias do executado5. Maior protecção do contribuinte, com prazos mais alargados para reclamar, no âmbito do IMI6. Actualização do valor das bolsas de investigação7. Eliminação da proibição do tiro ao voo8. Reabertura das negociações para contagem do tempo congelado das carreiras especiais da função pública9. Melhoria das condições do empréstimo, no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira à Região Autónoma da Madeira10. Travão ao agravamento de impostos sobre as viaturas ligeiras compradas pelas empresas11. Alteração ao Código do IVAPAN1. Mais meios para o combate ao tráfico de seres humanos2. Contratação de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa para o Serviço Nacional de Saúde3. Apoio aos municípios para a construção e modernização dos Centros Recolha Oficial de Animais4. Campanha nacional de esterilização de animais5. Actualização automática da unidade de conta6. Programa de Apoio e Acompanhamento ao Estudante com Necessidades Especiais7. Equiparação entre atletas olímpicos e paralímpicos8. Reforço de meios humanos nos Centros de Procriação Medicamente AssistidaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. 9. Relatório anual relativo à evolução da admissão de pessoas com deficiência na Administração Pública10. Disposições transitórias em matéria de imposto sobre veículos: Inclusão das Organizações Não Governamentais de Ambiente na Comissão de Acompanhamento do Imposto sobre Veículos11. Abolição de taxa paga por advogados no serviço de estrangeiros e fronteiras no aeroporto
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PAN PSD LIVRE PCP BE PEV
“As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa. O planeta não aguenta”
Obrigou a demolir mais de duas mil casas clandestinas, foi decisivo para o chumbo duplo do projecto nuclear em Portugal e durante anos foi o relator do clima do Parlamento Europeu, tudo isto nos anos de 1980 e 90. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania”, diz o antigo secretário de Estado do Ambiente. (...)

“As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa. O planeta não aguenta”
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Obrigou a demolir mais de duas mil casas clandestinas, foi decisivo para o chumbo duplo do projecto nuclear em Portugal e durante anos foi o relator do clima do Parlamento Europeu, tudo isto nos anos de 1980 e 90. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania”, diz o antigo secretário de Estado do Ambiente.
TEXTO: As reportagens e imagens de bulldozers a demolirem casas clandestinas no Portinho da Arrábida, na ria Formosa, na lagoa de Albufeira e na Fonte da Telha, entre Outubro de 1986 e a Páscoa de 1987, anunciaram o fim da apatia do Estado sobre o domínio público marítimo e as áreas protegidas. O rosto de uma nova “ideia de natureza e de património paisagístico” até então estranha a um país “onde faltavam esgotos, lixeiras de tratamento de resíduos e saneamento básico, casas também”, é Carlos Pimenta, o secretário de Estado do Ambiente que ocupava a pasta pela segunda vez. Tinha montada a operação de “limpeza”, como lhe chamou, para erradicar das zonas ambientalmente sensíveis e do domínio público mais de duas mil casas ilegais, quase todas de segunda habitação. Eram de autarcas, embaixadores, altas patentes militares, empresários, mas também de classes baixas. “Havia de tudo”. Mandara fazer levantamentos da situação do domínio público marítimo e das áreas protegidas na sua primeira passagem pelo Governo, ao qual chegou com apenas 28 anos. Como o tempo de instabilidade política ditava executivos de curta duração — esteve na pasta entre Junho de 83 e Junho de 84 — não chegou a concluir toda a identificação. As demolições tiveram de esperar até Outubro de 1986. As medidas exemplares visavam sobretudo quem tinha responsabilidades políticas: na ria Formosa as primeiras casas a irem abaixo foram de autarcas. “Foram ao meu gabinete enquanto comissão de moradores, um era presidente da Câmara de Tavira, os outros eram presidentes de junta de freguesia e de uma assembleia municipal”, conta Carlos Pimenta. A primeira a ser mesmo demolida foi a do autarca de Tavira, a quem acusou de “roubo”, porque “os terrenos pertenciam a 10 milhões de pessoas e aos seus sucessores”. Nesses anos 80, o poder do Estado era desafiado às claras. Para controlar o processo das demolições, recorria a levantamentos fotográficos. “No ano de 1986, entre Maio e Setembro, foram construídas 300 casas novas e isto já com todos os media a dizer que as casas iam abaixo. As pessoas não acreditavam. ” Lembra-se especialmente de ver “um engarrafamento de carrinhas de caixa aberta cheias de tijolos e andaimes”, à saída de uma reunião de trabalho com responsáveis da Marinha no Forte de Santa Maria da Arrábida. “O pessoal ia continuar a construir, apesar de estarem lá as autoridades. ”Contra o que seria expectável, os responsáveis das câmaras abrangidas pela limpeza apoiaram a operação, à excepção do Algarve, de onde diz que vieram as únicas pressões. “Havia muita gente local. Como eram habitantes locais, achavam que tinham o direito a ter uma casa de férias nas ilhas-barreira da ria Formosa”. Gonçalo Ribeiro Telles tinha sido o inspirador, no início dessa década, da criação do Ministério da Qualidade de Vida (embora não fosse o seu primeiro ocupante) e da Secretaria de Estado do Ambiente. Foi assim que a porta da política teve de se abrir ao ambiente. Carlos Pimenta não chegou a cruzar-se no Governo com Ribeiro Telles, mas diz ter “um grande respeito” pelo trabalho deste arquitecto paisagista pioneiro desde as cheias de 67. Levava a sua tese à prática. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania. Não concebo o ser humano desligado do equilíbrio e harmonia com a natureza e o planeta em que vive”, declara, com a certeza de que “o ambiente urbano é o que dá mais trabalho, mais guerras, porque é a matriz da vida e é insustentável na forma como está organizado”. Em miúdo, Carlos Pimenta sorvera os filmes de La Fuente e os episódios de Há Só Uma Terra de Correia da Cunha; o estudante de liceu fora diariamente do Barreiro para Setúbal de lenço no nariz porque ou o nevoeiro trazia os gases do ácido sulfúrico dos adubos da Quimigal ou o vento, se soprasse de leste, trazia o que a siderurgia no Seixal largava; o mesmo estudante descobrira com as cheias de 67 o outro país que o Estado Novo escondia e a força da denúncia de Ribeiro Telles de um desastre anunciado — “foi um herói para mim e continua a ser hoje, pôs o dedo na ferida”; o universitário que, entretanto, ganhou a direcção da Associação de Estudantes do Técnico criara com João Caninas a primeira secção Património e Ambiente de uma associação académica de uma escola de engenheiros ligados ao betão e à obra pública. O primeiro lugar político e público para o qual foi eleito representou a passagem do ambiente de luta política do final dos anos 60 e do 25 de Abril que o levara a filiar-se no PSD de Sá Carneiro em Junho de 1974, com 19 anos, para a luta política pelo ambiente. Os tempos estavam-lhe também de feição: a adesão à Comunidade Económica Europeia obrigava a uma revolução nas leis do ambiente e a austeridade do segundo resgate do FMI, estava Mário Soares à frente do Governo, induzia um clima de rigor. Já jovem licenciado e sindicalista, ajudava a organizar sessões de educação ambiental destinadas às populações, país fora, com o apoio de um projector instalado na parte traseira de um carro e bobinas de filmes da Comissão Nacional do Ambiente. “Explicavam-se coisas básicas” num tempo em que “as pessoas atiravam uma garrafa fora, fosse de plástico ou vidro, não tinham saneamento básico em casa ou tinham, mas o esgoto ia direito para a ribeira, as fábricas e fabriquetas atiravam tudo para os rios, fossem metais pesados como o crómio, nos sapatos e no couro, fossem as tinturarias no rio Ave, no Cávado, que tingiam de azul, a água saía a ferver, em circuito aberto. . . A situação era mesmo muito má nas zonas industriais têxteis e do agro-industrial”. Entretanto, criou o GEOTA (Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e Ambiente) e “era sócio do que havia para ser sócio” na defesa do ambiente. Com duas passagens pela Secretaria de Estado do Ambiente (83/84 e 85/87) e uma mais fugaz pela das Pescas (Fevereiro a Novembro de 85), Carlos Pimenta tornou-se também um dos principais rostos da derrota do nuclear em Portugal. “A guerra maior foi em 83/84 com o nuclear, foi a que deu mais impacto público, mais nervos, mais problemas, foi preciso geri-la com muito cuidado. ” É uma indústria que, para Pimenta, “de certa forma, simboliza o mal levado ao extremo da sociedade industrial”, vive “sob o segredo e a mentira” e usa “muitas vezes o nuclear civil como capa do nuclear militar”. Em 1983, quando chegou à Rua do Século, em Lisboa, a comissão técnica do Plano Energético Nacional (PEN) propunha a construção de três centrais nucleares, eventualmente uma quarta, capazes de alimentar um determinado crescimento da procura de electricidade das décadas seguintes, calculado com base em modelos matemáticos. Foi dos primeiros despachos que teve para assinar e para o qual foi aconselhado a não criar obstáculos. Antes da discussão do assunto em Conselho de Ministros, o pequeno grupo de pessoas de que se rodeou e o conselho do ex-secretário-geral da agência francesa de energia ajudaram a identificar os principais erros da proposta: a assunção de que a procura de electricidade ia crescer sempre mais do que a economia e que as alternativas ao nuclear não existiriam ou seriam caras. Segundo as previsões dos “nuclearistas”, estaríamos hoje a consumir mais 50% de electricidade, o carvão estaria significativamente mais caro, não teríamos gás natural e as renováveis teriam um peso residual. Para um documento de mil páginas, Carlos Pimenta preparou cinco notas de uma página para o seu ministro, António Capucho, que acompanhara a “descodificação” dos cálculos. A “intuição política” do então primeiro-ministro Mário Soares e a “sensibilidade ao risco financeiro” do ministro das Finanças Ernâni Lopes reagiram à argumentação de Capucho e o nuclear caiu. Cerca de um ano depois, com Francisco Sousa Tavares já como ministro do Ambiente e com Pimenta fora do elenco, o dossier voltou de surpresa a Conselho de Ministros. “Era o mesmo projecto. Estavam convencidos que passava”. Uma das pessoas a quem Sousa Tavares telefonou a pedir conselho foi Pimenta. Havia muito menos tempo desta vez, “foram três horas” em que um falava e o outro tomava nota — “escrevia páginas”. Soube do resultado do Conselho de Ministros por um ministro que lhe disse que “o ‘Tareco’ [como era conhecido Sousa Tavares nos meios próximos] falou hora e meia e destruiu aquilo”. “Foi assim que escapámos, por duas vezes”, sublinha. Carlos Pimenta orgulha-se da dupla vitória contra o nuclear como também dos anos seguintes como eurodeputado, em que deu a cara por várias lutas ambientais, mas especialmente pela do clima, como relator do Parlamento Europeu à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC) e para o Protocolo de Quioto, assinado em 1997. Antes disso, cruzou-se com os dossiers de saúde humana, no caso da qualidade da carne. A investigação a muitos matadouros e quintas, e da qual foi relator por influência de Simone Weil, tornou-o quase vegetariano até hoje. “As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa, até porque se pode viver muito bem sem ela. O planeta não aguenta. . . não há recursos, não há água, não há capacidade de gerir tanto desperdício. Para fazer um quilo de bife o que se deita fora de água, nutrientes, de bife estragado ao longo da cadeia para depois ter um bife no prato, não dá. E o que vi assusta: hormonas, cortisonas, antibióticos, outros tipos de drogas. . . ”O relatório aprovado no PE quase por unanimidade, em 1988, proibia a utilização de antibióticos sem atestado médico. “Se se tivesse cumprido, não teria havido a crise das vacas loucas”, anos mais tarde. Guardou como memória desse tempo o quarto de milhão de animais que tiveram de ser abatidos no Reino Unido quando “não houve uma única vaca de agricultura biológica ou de raças autóctones criadas em liberdade que tivesse tido a BSE [vulgarmente conhecida como doença das vacas loucas]”. Esteve, entretanto, ligado à preparação da conferência do Rio-92 e logo após é nomeado relator do PE para o clima, “por muitos anos”, e que o leva a “dar a volta ao mundo muitas vezes”. Considera que a luta do clima é “a grande luta e a mais complicada”. “Quioto (em 1997) é uma vitória, um marco muito importante, não salva o planeta mas era o acordo possível para trazer para a mesa da negociação países como a China, Índia, Brasil, onde reside o maior número de habitantes do mundo e que estavam fora disto. Nunca teria havido a cimeira de Paris e o acordo de Paris em 2015 se não tivesse havido Quioto quase 20 anos antes. ”Na contracorrente dos nacionalismos de hoje, o então senador dos EUA Al Gore cria a Globe, uma organização internacional com membros de vários parlamentos (as duas câmaras dos EUA, o europeu, o russo, entre outros). Carlos Pimenta foi “vice” da organização, mais tarde presidente. “Foi muito importante para haver Quioto, era uma rede de cumplicidade que organizava seminários, colóquios concretos sobre o que estava em cima da mesa que os legisladores podiam ajudar a fazer passar”, sem divisões entre direita e esquerda. “Havia gente pró-ambiente em todos os grupos parlamentares”. Na causa pelo ambiente, olha para a construção da Ponte Vasco da Gama como a sua maior derrota. “É a ponte errada no sítio errado porque ela foi fazer mais um subúrbio em cima de terreno agrícola bom, que temos muito pouco, criou uma nova oferta de habitação e de pessoas a fazerem movimento pendular e, além disso, não resolveu o problema que vem desde Fontes Pereira de Melo que é a falta de uma ligação ferroviária entre o Sul e o Norte do país. Faltava uma ponte ferroviária, vá lá rodoferroviária, e ainda continua a faltar, não se resolveu o transporte de mercadorias pesado e a ligação dos portos do Sul do país com a zona industrial do país. São tiros no pé da competitividade. ”Marcelista convicto, de quem foi seu “vice” no PSD — foram também contemporâneos a chamar a atenção para os problemas do Tejo, um dando mergulhos famosos, o outro subindo e descendo o rio a defender a urgência de um sistema nacional de tratamento de resíduos perigosos —, foi Durão Barroso quem lhe cortou a continuidade como eurodeputado. E ao contrário do que previra, também não regressou ao Estado. “Intervencionista” para a ala liberal do PSD, incómodo para outros, outsider na política, insider no ambiente, mudou-se para o sector privado, no início dos anos 2000, especificamente para as energias renováveis, com a Generg e a criação do fundo Novenergia, que haveriam de contribuir para o crescimento da energia eólica em Portugal. “Tirando a grande hídrica, não havia praticamente nada. Antes de entrar na política em 1983, fui um jovem engenheiro à frente de uma pequena reparação naval, na altura pública, e uma das primeiras coisas que fiz foi montar painéis solares de água quente para os duches no estaleiro. Isto em 79/81. Já tinha essa ‘pancada’”. No início deste Agosto, viu no site da NASA que a concentração de CO2 na atmosfera atingiu o recorde do último milhão de anos de 403ppm em volume e Quioto já foi há mais de duas décadas. Confessa-se mais angustiado hoje do que antes. “Já não são os problemas do ambiente de proximidade — que se resolvem com estações de tratamento, com filtros, e outros. O problema do clima é o problema da maneira como vivemos. Deriva da forma como usamos a energia e também como usamos a terra e produzimos alimentos, e que são as principais fontes de emissão de GEE. O clima é estrutural, não pego no clima sem mexer nas cidades, na maneira como as pessoas vivem, comem, se vestem, habitam. ”Preocupa-o que se esqueça a mudança climática assim que a temperatura desce; que na última década o Alentejo tenha perdido um terço da água da chuva, mas esteja a ser povoado com culturas superintensivas; que a água do mar tenha subido sete centímetros nos últimos 25 anos; que metade da humanidade viva à beira-mar, que as infra-estruturas estejam impreparadas para resistir a fenómenos meteorológicos extremos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Estamos a viver a sexta extinção planetária desde que a Terra é Terra, em mais de quatro mil milhões de anos esta é a sexta grande extinção, com a diferença de que as outras foram causadas por fenómenos naturais e esta é causada pelo Homem. O clima tem efeitos de grande sofrimento humano, está a provocar refugiados aos milhões, vai provocar a não-habitabilidade de zonas que hoje são grandes cidades, à beira de água, Nova Iorque, Xangai, Hong Kong, Miami e também Lisboa, Aveiro, Faro, Viana do Castelo, todo o litoral. ”Continua a ver “uma enorme resistência à penetração das renováveis”, quando se projecta que, dentro de 20 anos, um quarto da electricidade possa ser produzida na casa das pessoas e transaccionada entre vizinhos ou entre comunidades de energia sem passar pelos sistemas centrais. “Será uma grande mudança do sistema económico, quando uma parte da mobilidade deixará de andar a petróleo e passará para a electricidade, parte desta feita em casa das pessoas e outra centralizada de fontes renováveis. ”Carlos Pimenta está certo de que o que vem aí “é outro mundo, outra economia”. E para o país, “essa economia interessa”. “Porque nós fazemos os equipamentos em Portugal e o petróleo e o carvão e o gás importamo-los para queimar com muita ineficiência”, explica. O que determina essa mudança é que não muda: “Tudo volta à questão de cidadania. As pessoas, nas suas múltiplas vertentes, têm de ser confrontadas com a sua responsabilidade, com o seu padrão de consumo, sejam consumidores, patrões de uma indústria ou autarcas”.
REFERÊNCIAS:
As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades? (...)

As mulheres ciganas estão a fazer a sua pequena revolução
MINORIA(S): Refugiados Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 5 Mulheres Pontuação: 21 Animais Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 21 | Sentimento -0.18
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ciganas portuguesas estão a levantar-se contra as várias formas de discriminação de que são alvo dentro e fora das suas comunidades. Que movimento é esse, que junta mulheres do país inteiro? Como começou? Quais são as suas prioridades?
TEXTO: Guiomar Sousa é mediadora sociocultural. Está habituada a fazer a ponte entre pessoas ciganas e pessoas não ciganas. Invoca o dia em que, contra o concurso Miss América, 400 feministas se dispuseram a queimar soutiens, cintas e outros “instrumentos de tortura”. “Estamos atrasados 50 anos”, comenta aquela activista, de 36 anos. “O movimento feminista é uma novidade nas comunidades ciganas, mas a nossa ideia não é chocar. Estamos a adaptar o feminismo à nossa realidade. ”Serão perto de duas dezenas as mulheres que fazem parte deste movimento. Nos últimos cinco anos, foram-se cruzando em encontros e acções de formação, percebendo pontos em comum, trocando contactos, forjando amizades. Neste último ano, têm-se desdobrado pelo país a dizer que são “mulheres e ciganas” e que “existem e resistem”. Maria Gil – que já foi feirante e empregada de balcão e faz teatro comunitário e teatro do oprimido – assume a autoria da frase que identifica o movimento. Em Maio de 2017, estava ela no Porto, na manifestação “Mexeu com uma, mexeu com todas”, olhou em redor e reparou que ela e a filha eram as únicas ciganas. “Faziam poemas nos quais incluíam mulheres negras, mas nem uma palavra sobre mulheres ciganas. De uma forma muito espontânea, peguei num bocado de cartão e escrevi: “Mulheres e ciganas, existem e resistem. ” Partilhou a imagem nas redes sociais. “A frase começou a ser usada. ”“A história das mulheres ciganas é uma história de resistência”, sublinha aquela activista, de 46 anos. Há uma discriminação externa que dificulta o acesso à educação de qualidade, ao emprego, à participação na vida pública. E uma discriminação interna que faz com que rapazes e raparigas, homens e mulheres não sejam tratados da mesma forma dentro das suas famílias e das suas comunidades. “Estamos a viver um tempo muito bom”, considera o alto-comissário das Migrações, Pedro Calado. “Tínhamos apenas a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, no Seixal, agora temos a Ribaltambição, na Figueira da Foz. E há outras mulheres muito activas, como a Cátia Marisa, de São Brás de Alportel, a Guiomar Sousa, de Espinho, a Maria Gil, do Porto, a Toya Prudêncio, de Gondomar, a Vanessa Matos, de Braga”, prossegue. “Como diz um provérbio cigano, ‘A fogueira começa com pequenos ramos’. Esse é o momento em que estamos. Estamos a começar a fogueira. ”Já têm uma agenda concorrida. Algumas estiveram no passado fim-de-semana no Festival Política, organizado pela Produtores Associados e pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural, em Lisboa. Muitas estão este fim-de-semana na Academia Política das Comunidades Ciganas, em Torres Vedras, iniciativa do Conselho da Europa, que está apostado em promover a participação. Guiomar Sousa foge agora de todos os holofotes. Morreu-lhe o pai há pouco tempo. E o luto, nas comunidades ciganas, é um assunto muito sério. Um lenço esconde-lhe o cabelo e roupas largas, longas, negras, escondem as formas do seu corpo. Não usa maquilhagem, nem jóias. Não ouve música, nem se deixa fotografar. Quem não deixa de estar em todo o lado apesar do luto integral é Olga Mariano. O seu marido já morreu há mais de 20 anos. E a história da luta pela emancipação das mulheres ciganas confunde-se com a história desta mulher, de 68 anos. Há 50 anos, Olga Mariano fez algo que cigana alguma havia feito: tirou a carta de condução. Não foi um ímpeto feminista. “Às vezes, a necessidade obriga. ” O pai, que era vendedor ambulante, vendera um grande lote de tecido a um alfaiate que lhe pagara com um Fiat 1100 cinzento-claro. Ele nunca fora à escola. “O meu irmão mais velho sabia ler e escrever, mas não tinha a 4. ª classe. As minhas duas irmãs estavam casadas. A única solteira era eu. O meu pai emancipou-me para tirar a carta. ”Viviam no Fogueteiro, na freguesia da Amora, no concelho do Seixal. Olga conduzia os pais às feiras de Sesimbra e de Cascais e às festas da família em Évora. Houve críticas. “Como é possível uma mulher cigana conduzir? Como é que o pai a deixou tirar a carta? Amanhã ela casa-se e ele vai ficar desprevenido. ”A família de Olga era uma excepção. O pai, fervoroso adepto de futebol, lamentava não conseguir ler o jornal A Bola. E queria que o filho e as filhas aprendessem a ler, a escrever e a contar. Eram os únicos ciganos daquela escola. Quase não havia ciganos nas escolas portuguesas. A esmagadora maioria não podia permanecer mais do que 24 horas num sítio, andava de terra em terra a ler a sina, a vender tapetes, cobertores, atoalhados, peças de tecido e outros produtos, a fazer pequenos trabalhos. A carta de condução não foi apenas útil para a família de origem. Foi também útil para a família que Olga formou aos 22 anos. Conduzia o marido à feira e com ele trabalhava de segunda a sábado. Ao longo de mais de 20 anos, tiveram banca em Almada. De repente, ele adoeceu. Ela enviuvou volvidos três anos. Olga fez tudo como manda a tradição. Cortou o cabelo bem curtinho. No primeiro ano, ia ao cemitério todos os dias. Nos primeiros cinco, tinha de usar dois lenços – um mais pequeno, interior, que cobre o cabelo, e outro maior, exterior, que vem da cabeça até à cintura. Só depois podia usar apenas um, atado de trás para a frente. A indumentária era o que menos a preocupava. Pior era aquela dor, pior era reorganizar a vida. “A coisa descambou”, recorda. Os filhos eram muito novos. “Ainda precisavam do braço forte do pai. Eu própria não tinha cabeça para nada. Foi uma fase muito ruim. ”Recorreu ao rendimento mínimo garantido, o actual rendimento social de inserção. Era nova aquela medida destinada a aliviar a pobreza extrema e a ajudar a encontrar forma de sair dela. Num instante, Olga, a filha, Noel Gouveia e outras três ciganas, Alzinda Carmelo, Anabela Carvalho e Sónia Matos, foram seleccionadas para frequentar uma acção de formação. Como dizer não? Em vez de 150 euros de prestação social, receberiam uma bolsa equivalente ao salário mínimo nacional, que rondava os 350 euros. A mediação sociocultural despontava em Portugal por recomendação de Bruxelas. Em 2000, os mediadores começaram a entrar em diversas escolas de territórios considerados críticos. Olga, por exemplo, assumiu de imediato o lugar de mediadora no Bairro Padre Cruz, em Lisboa, e lá se manteve até 2005. Não foram só as portas de uma nova profissão que se abriram. Por sugestão de um formador, logo em 2000, aquelas cinco mulheres fundaram a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas. Os ciganos, em particular as mulheres, continuavam a deixar a escola muito cedo. E elas queriam reduzir o absentismo escolar, reverter o abandono escolar, ajudar as mulheres a conciliar a vida familiar e profissional. No virar do século, Olga, a mais velha e mais experiente das cinco, tornava-se a primeira mulher cigana a liderar a primeira associação do género em Portugal. Durante 14 anos, a Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas foi a única. Porquê? “Muita relutância dos homens e falta de coragem das mulheres”, resume Bruno Gonçalves, mediador sociocultural que partilha com Olga Mariano o lugar de mais influente activista cigano. Além do domínio masculino colocar grandes entraves ao desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres, não há tradição associativa na população cigana. As poucas organizações que tinham aparecido no pós-25 de Abril quase que se resumiam à figura de algum homem respeitado num determinado meio e ao seu círculo. Nos últimos 20 anos, pouco a pouco, alguns homens e algumas mulheres foram-se capacitando através de acções promovidas por entidades públicas, como o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que já teve outros nomes, e privadas, como a Rede Europeia Antipobreza – EAPN Portugal. Se lhe perguntarem o que serviu de trampolim às mulheres, Bruno Gonçalves apontará, sem hesitar, duas iniciativas. Primeiro, o Escolhas, um programa de inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis criado pelo Governo em 2001. Segundo, o Programa Europeu de Formação para Mediadores Ciganos – Romed, lançado pelo Conselho da Europa em 2011. Foi no seio do Romed que em 2013 nasceu a Letras Nómadas, liderada por Olga Mariano e Bruno Gonçalves, que já fora presidente da Associação de Ciganos de Coimbra e vice-presidente do Centro de Estudos Ciganos. A liderança da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas passou para Noel Gouveia, que está com 43 anos e casada com um não-cigano. De repente, tudo convergia. Mulheres ciganas de toda a Europa juntavam-se em Helsínquia para definir a Estratégia para o Progresso das Mulheres e Raparigas Ciganas. Portugal aprovava a sua primeira Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas (e que está a rever neste momento). Finalmente, ia haver dinheiro para apoiar o associativismo cigano e alguns pequenos projectos. Em Novembro de 2013, em parceria com a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, a Letras Nómadas organizou o I Encontro de Mulheres Ciganas, em Lisboa. “Feliz o dia em que decidimos fazer isso”, comenta Bruno Gonçalves, que levou a mulher, a sogra e a cunhada. Há um antes e um depois daqueles dois dias a pensar o presente e a procurar formas de construir um futuro de emancipação. “Em 20 anos de activismo cigano, nunca andámos tanto. As mulheres são a mudança. ”A cunhada, uma mediadora de 37 anos chamada Tânia Oliveira, resume o encontro em três frases: “Conhecemos várias mulheres com as quais temos objectivos em comum. Isso veio dar mais força às que pensavam que estavam sozinhas. Até hoje lutamos pelo empoderamento das outras mulheres ciganas. ”Na tentativa de fomentar a participação, da segunda edição do Romed formaram-se grupos de acção comunitária em sete municípios. O da Figueira da Foz, coordenado por Tânia, deu origem à Associação Ribalta Ambição – Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. Ela é a presidente e a irmã, Marisa Oliveira, dois anos mais velha, é a vice-presidente. No Verão do ano passado, organizaram o II Encontro de mulheres ciganas. Sob o lema “Siñando Kali [Ser Cigana] no século XXI”, quiseram abrir espaços de diálogo entre ciganas de todo o país, mostrar bons exemplos, semear confiança. Tânia Oliveira gosta de dizer que “é solteira e boa rapariga”. Foge à conversa sobre a pressão social para encontrar um marido e ter filhos, algo que afecta ciganas e não ciganas que já ultrapassaram a barreira dos 30 anos. Prefere pôr a tónica na flexibilidade para trabalhar, estudar e lutar pela igualdade de género. Deixou a escola findo o 4. º ano, apesar de no seu tempo a escolaridade obrigatória ir até ao 9. º ano. “Eu e a minha irmã queríamos estudar, mas a escola era longe e não tínhamos quem nos levasse”, relata, numa mesa de café. “Eu andava nas feiras, não tinha condições de as levar”, acrescenta a mãe, Maria de Fátima, sentada ao lado. A escola não fazia parte das prioridades. A venda ambulante garantia o presente dos pais e haveria de garantir o futuro dos filhos. O abandono escolar precoce era “normal”. “Bem lá no fundo, acreditava que o meu futuro não passava pelas feiras e mercados, nem pelo papel formatado de mulher que cuida dos filhos e da casa”, afirma. “Sabia que podia alcançar muito mais sem comprometer a minha identidade cigana. ”Aos 18 anos, fez um curso profissional que lhe deu equivalência ao 6. º ano. Tornou-se mediadora sociocultural nas escolas da Figueira da Foz. “Foi um enorme prazer ajudar a minimizar o absentismo e o insucesso escolar”, assegura. Esteve lá seis anos. Teve outros trabalhos temporários de mediação. Esteve um ano no serviço de habitação social e outro no transporte de alunos com necessidades especiais. Através do Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, obteve o 9. º ano. Entretanto, despertou nela o desejo de se licenciar. “Para me concretizar enquanto mulher e para dar o exemplo”, justifica. Candidatou-se ao ensino superior, via programa +23. E está a fazer o curso de Animação Socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra. Entrar agora até parece fácil, difícil mesmo é ter bons resultados. Está a ser o cabo dos trabalhos. “Passei um bocadinho…. Tenho de acompanhar jovens que tiveram um percurso escolar regular. Não tenho explicações. Estava a trabalhar até às 19h na Figueira da Foz e as aulas começavam às 18h30 em Coimbra. ” O contrato de trabalho acabou. “Vou ter de ir mais às aulas, vou ter de me esforçar mais. . . ”Tem uma bolsa e um tutor. Faz parte do Opre, que começou por ser um projecto-piloto e se tornou uma política pública de acesso ao ensino superior gerida pelo ACM, em parceria com a Letras Nómadas e a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades entre Mulheres e Homens. No ano lectivo 2015-2016, eram oito os estudantes apoiados. Agora, são 29. “Cada ano, vamos multiplicando”, orgulha-se. A educação parece-lhe fundamental para a mudança de ideias feitas acerca do seu povo. “Temos um objectivo? Temos. Vamos ter obstáculos? Vamos. Vamos ser apoiadas por alguns? Vamos. Vamos ser criticadas por outros? Vamos. Mas isto faz parte do percurso. É isto que faz a mudança. ” Há uma mensagem que vai repetindo: “Trabalho e estudo, mas nunca deixei de ser cigana. Continuo a respeitar a minha comunidade e a ter o respeito da minha comunidade e isto para nós, enquanto mulheres e ciganas, é fundamental. ”As pioneiras assumiram a escolarização como prioridade. “A minha bandeira é a educação. É o instrumento que nos dá a partilha”, enfatiza Olga Mariano. E é essa também a bandeira das novas activistas ciganas. “É a melhor que podemos ter”, corrobora Guiomar Sousa. “Permite reconhecer e lutar pelo que é nosso por direito. ”A escolaridade da população cigana é muito baixa. “Atinge proporções mais preocupantes entre as mulheres, que na sua maioria não ultrapassam a barreira do 1. º ciclo do ensino básico”, segundo o Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, feito por Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias em 2014, a pedido do ACM. E interfere em tudo – no acesso à formação profissional e ao emprego, na capacidade de perceber o funcionamento das instituições, na possibilidade de participar na política. A presença de crianças e jovens ciganos nas escolas portuguesas mais do que duplicou em 20 anos. Poucos, porém, terminam o 3. º ciclo e ainda menos o secundário, segundo o Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017. Na tentativa de fazer com que todos cumpram a escolaridade obrigatória, que agora vai até ao 12. º ano, o Ministério da Educação criou outras ofertas educativas, como os Percursos Curriculares Alternativos, os Programas Integrados de Educação e Formação ou os Cursos Profissionais, onde está grande parte dos alunos ciganos. E o ensino doméstico, o ensino em itinerância e o ensino à distância. A questão é complexa, até porque a escola é uma realidade recente na vida dos ciganos portugueses e a mentalidades não mudam do dia para a noite. Se dúvidas houvesse, bastaria ver que uma das netas de Olga frequenta o ensino doméstico. E essa não é uma escolha da avó. “O melhor é fazer tudo direitinho até ao 12. º ano, mas se vão tirar as meninas da escola. . . eu costumo dizer: quem não caça com cão caça com gato. ” Como tem equivalência ao 12. º ano, assumiu o papel de tutora. “Eu mantenho-a ali certinha. Ela não falha. ”Olga associa a escolha do filho e da nora à “censura social”. Moram a quatro ou cinco quilómetros da escola. O horário dos transportes públicos nem sempre coincide com o horário escolar da menina de 12 anos. Os pais trabalham, não podem aparecer à hora certa para a transportar entre cá e lá e não querem que ela seja objecto de comentários. Quando isso acontece, há processos de marginalização dentro da comunidade. O argumento étnico é conhecido. A honra é importantíssima no seio das comunidades ciganas. A honra das famílias tradicionais assenta no comportamento das mulheres, que se devem manter castas até ao dia do casamento. A opinião dos outros membros da comunidade é muito pertinente. Para garantir que uma rapariga não é alvo de falatório, a partir da puberdade limitam-se os contactos com rapazes. “Nós ainda vivemos na aldeia, mesmo estando nos meios urbanos”, explica aquela dirigente associativa. “As nossas aldeias são os bairros sociais. Toda a gente sabe a vida de toda a gente. Há aquela censura. Continuamos a ter um grande controlo social, porque vivemos à margem – não porque queremos, mas porque as câmaras nos põem em bairros sociais e os não-ciganos não nos querem ao pé deles. ”O rendimento social de inserção tem tido um papel fulcral. Para não arriscar perder aquela prestação social, muitas famílias mantêm as crianças e jovens na escola e algumas mulheres têm iniciado ou retomado a trajectória escolar através de programas de educação alternativos, como a alfabetização de adultos, o Sistema Nacional de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências ou a Iniciativa Novas Oportunidades. A sensação de que a venda ambulante é uma carreira em vias de extinção também é algo motivador. Pode ser uma revolução, apesar de todas as limitações. “Fui beneficiária do RSI durante três meses”, sublinha Noel Gouveia. “Há 17 anos que sou contribuinte. ” É mediadora sociocultural, professora de dança cigana, dirigente associativa. Também saiu da escola com o 4. º ano. Foi fazendo formações. “A escola é a base de tudo. ”Já fez mediação em escolas. Agora mesmo é mediadora Opre. “Eu namoro a família para que ela permita o casamento entre a filha e o curso e namoro a universidade, como se fosse a sogra, para ela receber bem a nora”, brinca. “Tem sido uma experiência única e de verdadeira mudança dentro das comunidades ciganas e fora delas. Daqui a uns anos, vamos ter muitos licenciados. Nada como ter exemplos vivos. ”Por ser considerada um exemplo para outras mulheres, Toya Prudêncio, 30 anos, recebeu o galardão de Cigana do Ano em 2016. “É sinal que estou a percorrer o caminho certo”, orgulha-se. Foi a segunda vez que tal distinção foi atribuída pela Letras Nómadas. Guiomar Sousa recebera-a em 2015. Também saiu da escola finda a 4. ª classe. Tinha de limpar, cozinhar, lavar roupa e criar a irmã, de três anos. “Eu tinha o sonho que acho que toda menina tem: casar-se, ter filhos, ter um lar. ” Conheceu o marido, Bruno Prudêncio, numa festa de noivado, contava 16 anos. Começaram a falar às escondidas. Volvido meio ano, uniram-se. Não fizeram um casamento tradicional cigano, com três dias de festa, porco no espeto, sucessivas mudas de roupa. Fizeram um “fugimento”, isto é, desapareceram durante três dias. Andaram a passear pela região centro. No regresso, foram recebidos pelas famílias em festa. Como a prioridade é manter a honra da família, se um rapaz e uma rapariga têm sexo, as famílias consideram que estão casados. Toya deixou a casa da família, na Maia. Estiveram um mês em casa dos sogros, em Gondomar. E arrendaram uma casinha que era “metade” da sala do apartamento que hoje ocupam. “Nos primeiros anos, as feiras ainda davam. Depois, começamos a ver que não era vida”, conta ela. Ele queria voltar a estudar. Abandonara a escola no 6. º ano. Fez um curso de educação e formação de adultos que lhe deu equivalência ao 9. º. Toya está a contar esta história sentada à volta da mesa da sala. O marido está sentado no sofá, a estudar, e diz: “Tinha o 9. º ano, não consegui emprego. Toca a voltar à escola. Três anos e meio. Tinha de apanhar três autocarros. Tirei o 12. º ano – um curso profissional de técnico multimédia. Agora vai surgir qualquer coisa. Incrível. Só mesmo filmando as caras que as pessoas fazem. As pessoas não têm noção – a cara que fazem, o ar de riso, o ar de quem está enojado por estar na nossa presença. ”Não foi perda de tempo. Entrou como cantoneiro na Junta de Freguesia de Baguim do Monte. O presidente olhou para o currículo e mudou-o para a secretaria. Durante cinco anos, trabalhou lá. “Sempre através de medidas de emprego, sem direito a subsídio de férias, subsídio de Natal, subsídio de desemprego. ”Toya começou a pensar na possibilidade de voltar a estudar. “A vida estava estabilizada. ” A câmara atribuira-lhes um apartamento. Todos os dias, o marido ia para o trabalho, as filhas iam para as aulas e ela ficava em casa. “Eu sempre gostei de saber mais. O meu cérebro nunca andou muito quietinho. ”Pensava começar por uma certificação de 6. º ano. Bruno Gonçalves, “esse grande desestabilizador”, desafiou o casal a tentar entrar no ensino superior, através do +23. Tinham de se inscrever em duas cadeiras isoladas, para ver como se adaptavam. “Apliquei-me 100%. Às vezes, estávamos os quatro aqui a estudar. ”Bruno entrou logo no curso de Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto. Toya não conseguiu entrar à primeira. Virou-se para outro lado. Começou este mês o curso de Educação da Universidade Aberta. Os sonhos de Toya alteraram-se. “O meu sonho é acabar o meu curso e arranjar um emprego, dar uma vida melhor às minhas filhas. O que me imagino a fazer? Tanta coisa! Jesus! O que mais quero fazer com este curso é empoderar jovens, incentivá-los, mostrar que há outros caminhos. Quero trabalhar com jovens de etnia cigana e não só. Nem só os de etnia cigana precisam de incentivo. Moro num bairro social e vejo isso. ”O entusiasmo não abafa a necessidade de medir as palavras. Assumindo-se como feminista, isto é, como defensora da igualdade de género, Guiomar Sousa explica o cuidado: “O feminismo é um terreno minado. Temos de saber onde pisamos para que os nossos tenham a plena noção do que nós defendemos. ”As activistas estão mobilizadas para lutar pelo direito à educação, pelo conhecimento da história e da cultura da população cigana, contra a discriminação étnico-racial, contra os estereótipos de género, pelo “empoderamento” das mulheres. Isso é evidente nos projectos que têm desenvolvido com o Fundo de Apoio da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Não discursam sobre práticas culturais nefastas. O grande tabu é o teste de virgindade. Há quem se limite a afirmar que o assunto é privado (inúmeras mulheres sentem-se honradas e sentem que honram as suas famílias com tal prática). Há quem se limite a dizer que é raro (a maior parte dos casais, hoje, opta pelo “fugimento”). E há quem veja nesta prática um atentado aos direitos humanos, mas tema as reacções dos defensores das tradições (afinal, a ideia é provar que uma mulher pode estudar, trabalhar, ser activista sem deixar de respeitar as tradições). Há reacções defensivas quando se puxa pelo assunto casamentos arranjados. “Ninguém é obrigado a casar-se”, frisa, por exemplo, Olga Mariano. Os pais podem combinar tudo quando os filhos são crianças, mas não os podem forçar. A rapariga pode “dar cabaças”, isto é, pode romper o compromisso. A mesma reacção defensiva ocorre quando o assunto é o casamentos precoce. “Nenhum pai quer que uma filha se case antes dos 18 anos”, afirma a activista. Só que muitos, como já se disse, optam pelo “fugimento”. Basta-lhes desaparecer umas horas. “Culturalmente, não há namoro. Quando um rapaz toca numa rapariga, é para ficar. ”Para Maria Gil, o maior desafio de qualquer feminista cigana “é criticar as estruturas patriarcais internas sem reforçar os estereótipos negativos sobre a sua comunidade”. A população cigana não é homogénea. As comunidades são muito diversas. E o machismo não é um exclusivo destas comunidades. “Estamos a começar a fazer alguma coisa. A partilha de preocupações parece pouco, mas já é alguma coisa”, realça. A escolaridade não é só uma via para o emprego. “A escolarização vai abrandar o ritmo dos casamentos precoces. E criar massa crítica de práticas que vão contra a dignidade da mulher. ”Diz coisas que nenhuma outra activista se atreve a dizer. Como esta: “A violência doméstica é silenciada. Uma mulher cigana não pode denunciar um homem cigano à polícia. Conheço mulheres ciganas que fizeram isso e estão fora do país. Os filhos não falam com elas. O facto de terem fugido de uma história de violência faz delas umas putas. ” As separações, como as uniões, são assunto de toda a família. “Às vezes, não podemos fazer esta exposição”, esclarece Maria Gil. “Eu posso, porque já não tenho tanto medo, tenho algum. Há mulheres activistas que não podem dizer tudo o que pensam. Têm de ter o aval do marido. Vivem com aquele medo de, a qualquer momento, ver a sua caminhada interrompida…. ”Já foi ameaçada por se assumir como feminista, por falar do que não se fala, por contestar homens mais velhos. “Já recebi telefonemas: ‘Vê lá como é que falas da próxima vez que fores à televisão. ’ Já apanhei alguns sustos. ” Não é só o sexo masculino. “O machismo é tão perverso que gera nas mulheres um sentimento de protecção. ” Muitas “são umas patetas alegres, têm um homem que toma conta delas e defendem que há as mulheres sérias, que são firmes, castradoras, e as outras, que ousam fazer as suas opções”. Às vezes, cansa-se, mas não se cala. “Compreendi que era importante ser voz. E a verdade é que o faço de uma forma, se calhar, diferente da que outras fazem, porque elas têm um suporte que eu nunca tive”, diz. “Tenho de fazer valer o meu direito à liberdade. Desde cedo me vi privada de liberdade. ”Maria Gil tinha sete anos quando o pai morreu. A mãe tirou-a da escola. Deixou-a voltar aos oito, de luto carregado. Voltou a tirá-la quando ela concluiu o 4. º ano. “Resisti. Percebi que era tratada de forma diferente por ser menina. Por ser menina, não podia usar calças. Por ser menina, não podia sair sozinha. ”Havia regras que não lhe faziam confusão. Não sentia falta de saídas noturnas, para bares ou discotecas, por exemplo (“Havia tanta festa em casa”). Mas outras faziam-lhe e rebelava-se contra elas. Devorava os livros dos primos, que continuavam a ir à escola. Estudava sozinha. Fez o 6. º ano autopropondo-se a exame. Foi fazendo as suas escolhas – e pagando o preço. Casou-se com um não-cigano com quem teve três filhos. “Era uma história de amor que eu queria viver. ” Separou-se. Esteve uns anos sozinha. Juntou-se a outro não-cigano. Teve uma filha. E sentiu-se muitas vezes posta de lado por isso. As relações com não-ciganos não são bem vistas. Nota uma espécie de medo. “Isso revelou-se mais quando decidi não voltar para casa da minha mãe com os meus quatro filhos, ficar a morar com eles no centro da cidade, sem o controlo directo de familiares. ” Que exemplo está ela a dar a outras meninas e mulheres? “Mostro que é possível uma mulheres estar sozinha e isso provoca receio numa população que está estruturada em torno da família. ”Alerta várias vezes para a necessidade de não se generalizar. “Esta é a minha experiência. Há mulheres ciganas que não se identificam comigo. Há mulheres que por causa disso me dirigem insultos. E há mulheres com as quais não me identifico de todo. Eu não me identifico com mulheres que silenciam a opressão. ”Cada uma das mulheres que dão forma ao movimento tem uma história única. “Este movimento pode levar a alguma coisa”, acredita. “Não é um movimento registado. É uma sucessão de palavras e de acções. Cada mulher vai dando o seu contributo. No Norte não temos uma associação. A ideia é criar uma e fazer um trabalho mais consistente. ”A Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação 2018-2030, aprovada em Janeiro, assume como objectivo central a eliminação dos estereótipos de género. Reconhecendo que estes se cruzam com outros, reconhece necessidades específicas de mulheres ciganas, afrodescendentes, idosas, com deficiência, migrantes, refugiadas. Do Plano de Ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens consta o “envolvimento de crianças ciganas, particularmente meninas, em actividades de promoção do ensino e de combate ao abandono escolar”. E o Plano de Combate à Violência contra Mulheres e Violência Doméstica refere “programas específicos para a intervenção junto de vítimas em situação de especial vulnerabilidade em virtude da intersecção de vários factores de discriminação”, incluindo mulheres ciganas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Já fizemos muito trabalho”, suspira Noel Gouveia. No início deste ano, a sua associação passou a partilhar a sede com o Centro Romi, um espaço comunitário projectado por oito mulheres ciganas. “Já passámos esta luta para outras mulheres. Isso é muito bom, mas no fundo estamos a vender sonhos sem segurança. ” Sonhos sem segurança? “Estamos a incentivá-las a sair do rendimento social de inserção, a estudar, a arranjar emprego, mas ninguém nos dá emprego, temos de ser nós a criar emprego para nós. Aquelas mais clarinhas não dizem que são ciganas e arranjam um trabalhinho. As mais escurinhas, como eu, não. ”Conta 17 anos de sucessivos trabalhos temporários. “Estou tão precária e insegura como se estivesse na praça. Na praça, tínhamos de comprar à noite para vender de manhã. Aqui é igual. Não sei se amanhã vou ter projecto. ” Olha para a filha, que tem nove anos e está no 3. º ano. Não pode desistir. “Gostava que a minha filha não fosse identificada pela etnia. Ela é mulher, é portuguesa, faz parte da raça humana. Para os não-ciganos é a ciganita, para os ciganos já não é cigana, porque o pai dela não é cigano. Ela costuma dizer que não é só uma sandes de queijo, nem só uma sandes de fiambre, é uma sandes mista. ”
REFERÊNCIAS: