O Urso de Ouro de Berlim foi para a Hungria e a melhor curta é portuguesa
Embora Colo de Teresa Villaverde não tenha tido nenhum prémio, Portugal não saiu do certame de mãos a abanar. (...)

O Urso de Ouro de Berlim foi para a Hungria e a melhor curta é portuguesa
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.433
DATA: 2017-02-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Embora Colo de Teresa Villaverde não tenha tido nenhum prémio, Portugal não saiu do certame de mãos a abanar.
TEXTO: On Body and Soul de Ildiko Enyedi é o vencedor da 67. ª edição do festival alemão, que premiou ainda Aki Kaurismäki, Alain Gomis e Agnieszka Holland. Diogo Costa Amarante é o terceiro realizador português a trazer para casa o Urso de Ouro das curtas, por Cidade Pequena. Embora Colo de Teresa Villaverde não tenha levado nenhum prémio — e a própria realizadora confessara ao PÚBLICO não o esperar —, Portugal não saiu de mãos a abanar do certame. Pelo contrário: pelo segundo ano consecutivo, o Urso de Ouro das Curtas é um filme português — depois de Balada de Um Batráquio de Leonor Teles em 2016, é a vez de Diogo Costa Amarante com Cidade Pequena, naquela que é a segunda passagem do realizador português em Berlim após As Rosas Brancas em 2014. Uma vitória tanto mais surpreendente quanto esta modesta produção sobre os ecos da infância era uma das poucas curtas do programa que já tinha circulado por outros festivais. Costa Amarante é o terceiro cineasta português a receber o prémio máximo das curtas de Berlim na última década, depois de Leonor Teles e João Salaviza (por Rafa em 2012). Outra das quatro curtas portuguesas a concurso, Os Humores Artificiais de Gabriel Abrantes, recebeu a nomeação do júri berlinense para os Prémios Europeus de Cinema. A 67. ª edição da Berlinale entregou o Urso de Ouro ao filme húngaro de Ildiko Enyedi On Body and Soul. O júri presidido pelo realizador holandês Paul Verhoeven atribuiu o Grande Prémio do Júri a Félicité, do franco-senegalês Alain Gomis; Aki Kaurismäki foi o melhor realizador por The Other Side of Hope, e os prémios de representação foram para a coreana Kim Min-hee e para o austríaco Georg Friedrich. Portugal, que estava a concurso com Colo de Teresa Villaverde, traz para casa o Urso de Ouro das curtas-metragens, pelo segundo ano consecutivo, com Cidade Pequena de Diogo Costa Amarante. O júri de Verhoeven, completado pelas actrizes Julia Jentsch e Maggie Gyllenhaal, pela produtora Dora Bouchoucha Fourati, pelo actor Diego Luna, pelo artista Olafur Eliasson e pelo cineasta Wang Quan’an, não hesitou em esquivar-se às previsões dos observadores. On Body and Soul, romance surreal entre dois funcionários de um matadouro de Budapeste que dão por si partilhando sonhos, foi o primeiro dos 18 filmes a concurso a ser exibido e um dos que mais dividiram a crítica e os observadores; é o primeiro filme em 15 anos da húngara Ildiko Enyedi, vencedora da Câmara de Ouro em Cannes em 1999 por O Meu Século XX, e recebeu igualmente os prémios do Júri Ecuménico e do Júri Fipresci da Associação Internacional de Críticos de Cinema. O favorito da crítica, The Other Side of Hope do finlandês Aki Kaurismäki, que vive parte do ano em Portugal, recebeu o Urso de Prata para melhor realização. Fiel à sua reputação de excentricidade, o realizador não subiu a palco e ficou no seu lugar na plateia do Berlinale Palast, fazendo vénias aos seus actores e ao público. Foram Dora Fourati e Dieter Kosslick que tiveram de lhe vir entregar o galardão ao lugar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os prémios de interpretação foram para a sul-coreana Kim Min-hee, actriz em recuperação de um affaire romântico na mais recente miniatura de Hong Sang-soo, On the Beach at Night Alone, e para o austríaco Georg Friedrich, engenheiro que reaprende a lidar com o filho durante uma viagem à Noruega para enterrar o pai em Bright Nights do alemão Thomas Arslan. As escolhas fizeram notar a ausência do palmarés da transexual Daniela Vega, cuja interpretação “faz” Una Mujer Fantástica. O Grande Prémio do Júri coube a Félicité, onde Alain Gomis acompanha as tribulações de uma cantora de Kinshasa e da sua família; o prémio para melhor contribuição artística foi entregue à montadora do filme romeno Ana, mon Amour, Dana Bunescu. Por uma vez, este foi um palmarés que não carregou excessivamente na política — falou-se mais dela durante a cerimónia do que nos filmes premiados. Ao entregar o prémio para melhor documentário ao filme do palestiniano Raed Andoni Ghost Hunting, uma reconstrução dos interrogatórios israelitas a prisioneiros palestinianos na prisão de Moskobiya, Laura Poitras, realizadora de Citizenfour e membro do júri de documentário, citou a acusação de Donald Trump de a “imprensa ser inimiga do público”: “Nós somos inimigos do nacionalismo e da exclusão. ” A polaca Agnieszka Holland, ao receber o Prémio Alfred H. Bauer para “um filme que abre novas perspectivas ao cinema” pelo seu bizarro (e muito mal recebido) thriller ecológico Spoor, disse: “Vivemos em tempos difíceis e precisamos de filmes corajosos. ” Sebastián Lelio e Gonzalo Maza, vencedores do Urso de Prata de melhor argumento por Una Mujer Fantastica, falaram da necessidade do amor para lutar contra o medo e contra a escuridão. E o director do festival, Dieter Kosslick, evocou o jornalista alemão Deniz Yucel, que foi ontem preso na Turquia.
REFERÊNCIAS:
O artesanato de hoje com as técnicas de há 100 anos
Se há cem anos andássemos por estas regiões à volta de Fátima, percorrendo serras, aldeias ou cidades, encontraríamos oleiros, latoeiros, tecelões... Fomos à procura deles. (...)

O artesanato de hoje com as técnicas de há 100 anos
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Se há cem anos andássemos por estas regiões à volta de Fátima, percorrendo serras, aldeias ou cidades, encontraríamos oleiros, latoeiros, tecelões... Fomos à procura deles.
TEXTO: Mil novecentos e dezassete, o ano do “milagre de Fátima”. Entramos em qualquer casa e facilmente encontramos tecedeiras a urdir teias, oleiros a moldar barro, latoeiros a dobrar a chapa, canteiros a recortar pedra, mulheres e homens a fazer cestos. Dois mil e dezassete: o tempo passou por aqui. As pessoas ocupam-se de tarefas que há um século não seriam imagináveis. Excepto. . . Vitória. O pai era “o Tóino da Vitória”, o nome da avó; ela ficou com Vitória agarrado a Esperança, a sobrinha chama-se Vitória também. “Há uma linhagem de Vitórias”, por isso, que outro nome se daria à sua marca? Modernizou e acrescentou um “c”. Nas etiquetas dos produtos lê-se “Victória” e “hand made” em letras mais pequenas. Quando se entra na sua oficina em Porto de Mós, a dar para a estrada, há um tear gigantesco a ocupar a maior parte do espaço. As cestas de junco são todas feitos aqui. A máquina de costura que está a um canto serve apenas para os acessórios. “O meu pai aprendeu quando era miúdo. Eu aprendi com ele, a minha irmã e a minha mãe também. Durante uma série de anos todos trabalhávamos nisto”. Vitória, Esperança Vitória, tem agora 41 anos mas nem sabe que idade tinha quando começou a tecer. Subia para cima de um tijolo para conseguir chegar ao tear e lá ficava num dos cantos. “Sempre soube fazer. As minhas férias da escola eram a fazer”. Com a irmã, Carla, aconteceu o mesmo — “acho que já nasci num tear”. Vitória tem as mãos da cor do trabalho que está a elaborar, ora avermelhadas, ora esverdeadas, e um calo bem no meio da palma da mão que vem de miúda, “por causa do pente”. Tem outros mais pequenos em vários dedos. Mas não os trocava por nada. Acredita que é a única mulher em Portugal a pôr as asas de vime nas cestas (apesar de, nesta zona, se usarem as de junco), porque é um trabalho que exige muita força de pulso. Se antes era “cada casa, cada tear”, nos anos 1990, com o aparecimento das fábricas de loiça e moldes a ocuparem a população, o objecto começou a tornar-se uma raridade. “Em Porto de Mós só há uma meia dúzia a fazer. . . O trabalho é muito árduo. O que manteve isto vivo foi servir de complemento de reforma das senhoras velhotas”. A própria Vitória esteve alguns anos afastada das cestas, a trabalhar num lar de idosos. Regressou com um “empurrão” do marido, Paulo Jerónimo, para continuar a tarefa. “O meu pai era exigente. As suas cestas eram conhecidas como as mais bem feitas da aldeia. Ele dizia que reconhecia uma cesta sua em qualquer sítio!” A filha não quer fazer pior, mas não as faz exactamente iguais. “Pegámos na cesta tradicional e tirámos do contexto rural para lhe dar um contexto mais urbano”. Aos seus conhecimentos do tear acrescentou os conhecimentos de alguém que sabe trabalhar o couro, e as cestas têm agora alças e fivelas. “As pessoas começaram a perceber que tinham de recuperar algumas tradições, mas com novidades”. Aqui na oficina trabalha quase a família inteira, incluindo a filha que quer ser designer e trata dos catálogos e do site; incluindo Vitória, a sobrinha, que está num curso técnico de serviços jurídicos, mas o que quer mesmo é ficar a tecer com a tia e a mãe. “Aqui com a família vai melhor”, diz, enquanto tira a espiga ao junco seco. Começou com os cantos das cestas, e se calhar no Verão já conseguirá “fazer qualquer coisinha”. Produzem cerca de 250 peças por mês — na véspera da nossa visita tinham enviado 50 cestas para Madrid; no próprio dia estavam a começar a dar resposta a uma encomenda de 30 para a Coreia do Sul (também as vendem para a Austrália, Brasil e vários países da Europa). “O nosso problema é o stock: há pouco. Vamos tentando dar resposta”. Não é fácil, já que cada uma leva, em média, oito horas de trabalho, desde o corte do junco (na ria de Aveiro) até ao acabamento final — e são eles que tomam conta de toda a cadeia, do início ao fim. Vamos por partes, explicadas entre Vitória e o marido:Primeiro apanha-se o junco, em terrenos alagadiços (a campanha vai de finais de Maio a Julho). Depois, aproveitando o Verão, seca-se ao ar livre, espalhando-o em terrenos planos, durante duas ou três semanas. Fica armazenado em molhos, “cada molho é a braçada de um homem — uns 60 centímetros de diâmetro”. Estes são por sua vez separados em “mãos”, uns molhos mais pequeninos, e as “mãos” são levadas para uma arca a enxofrar, onde ganham o tom de pedra, “porque o gás libertado pelo enxofre a arder aclara o junco”. De seguida, escolhem-se as palhas por tons: “as escuras serão tingidas numa tina com água a ferver e anilinas, as tintas em pó que já o meu pai usava”. Quando estão secas já podem ir para o tear. “Este tem oito metros de esteira”, e dá para ter três pessoas a trabalhar ao mesmo tempo. Na aldeia de Castanheira, a 12 quilómetros daqui, de onde é a família, “há uma grande tradição de cestaria. Cada família dedicava-se a uma das etapas. Havia o comerciante que vendia o junco pelas pessoas que tinham teares e depois vendia-lhes as cestas nas feiras. O meu pai saiu da rede porque fazia o processo todo”. Tradicionalmente, há quatro cores vulgares — vermelho, verde, violeta e amarelo. “São as quatro cores com que o meu pai trabalhou sempre”. Elas aqui estão, nos cestos Victória. Também há padrões tradicionais que são utilizados, mas uma coisa tão simples como usar o padrão em toda a cesta, em vez de lhe deixar um espaço vazio no fundo como se fazia antes, pode mudar tudo. Vitória explica onde está a fonte da inspiração: “É o leque de memórias que temos e a criatividade a trabalhar — dão possibilidades infinitas”. As cestas mais tradicionais são as que recebem mais “likes” no Facebook — “é a nostalgia”. Mas as que se vendem mais são “as mais contemporâneas”. “Eu própria não me vejo a usar a cesta tradicional”. Há amadores que sabem tanto ou mais do que profissionais. José Travaços Santos é muito mais do que um etnógrafo amador e até tem alguns livros publicados. Está certo que não estudou na faculdade e a sua profissão era dar apoio aos reclusos nas prisões, como técnico de orientação escolar e social. Mas perguntem-lhe o que quer que seja sobre o artesanato regional que logo se revela um saber enciclopédico alimentado ao longo de 86 anos. Não é sem algum pesar que Travaços Santos afirma: “O artesanato hoje deixou de ser utilitário: aquelas peças que se faziam para utilidade das pessoas, nas casas, deixaram de ser feitas. As pessoas agora têm outros hábitos. . . Hoje fabrica-se para inglês ver, com efeitos turísticos”. Uma perda de tempo? Não. “Tem interesse na mesma, porque corresponde a uma forma de cultura do nosso povo. Porque é que utilizavam aqueles materiais? Porque eram feitos com aquelas formas? Há com certeza influência de outras civilizações, temos muitas coisas que herdámos dos romanos, dos árabes. . . ”, adianta Travaços no pátio da Casa da Madalena, uma casa-museu criada pelo Rancho Folclórico Rosas do Lena, em Rebolaria (a poucos quilómetros da Batalha), onde se pode ficar a saber como era a vida no início do século passado. A zona tem “artesanato específico”, como o bracejo, típico da freguesia da Ilha (Pombal), e que segundo alguns documentos começou por ser usado em cofos e alcofas de duas asas. Foi nos anos 1930 que estas fibras vegetais começaram a ser usadas noutros objectos, como capachos. Há casos de práticas mesmo já enterradas, como aconteceu com os trabalhos em azeviche, “um carvão mineral, muito negro e luzidio — diz-se ‘é negro de azeviche’, vem daí”. Fazia-se com ele objectos de adorno — colares, anéis, pulseiras, brincos, as contas dos rosários e dos terços — que as mulheres usavam para substituir o ouro durante o luto. “Normalmente pessoas de posses, porque não seria muito barato”, adianta Travaços Santos. “No princípio do século XIX, os ferreiros começaram a utilizar o azeviche nas forjas e desapareceu por completo”. O trabalho de cantaria que esteve envolvido na construção do mosteiro da Batalha também trouxe a tradição à região, que chegou a estar cheia de canteiros. “Os antigos canteiros serviam-se das peças em calcário, a mesma do mosteiro, para ganhar mais algum dinheiro e começavam a vender a quem visitava a Batalha”, afirma. Mas quando recentemente foi preciso restaurar a cerca de pedra, com as suas flores-de-lis bem recortadas, praticamente não havia a quem recorrer. Não fosse António Moreira e a sua empresa Gárgula Gótica seria realmente difícil dar conta da empreitada. “Dentro do mosteiro havia uma escola de cantaria que fechou, há três anos. Era a única em Portugal onde se aprendia a arte da cantaria. Os canteiros estão em vias de extinção”, diz António Moreira, que aos 44 anos se pode orgulhar de ser um dos poucos canteiros sobreviventes. À conta disso, é chamado para dar formação no Brasil, Cabo-Verde, República Dominicana. . . “O que fazemos é a parte técnica da cantaria; a parte artística é do escultor”, explica. “Nós reproduzimos em pedra. Não fizemos estudos de anatomia, como fizeram os escultores”. Neste momento, está a restaurar o Senhor do Padrão de Matosinhos, com os seus quatro apóstolos (São Marcos, São Mateus, São Lucas e São João). “As peças estavam danificadas e estamos a fazer novas”. Primeiro, faz-se um modelo à escala em barro, depois em gesso e só então se passa para a pedra. “Usamos uma máquina exactamente igual à que usava Michelangelo”, no século XVI. Tem uma cruzeta em madeira com um ponteiro que assinala no modelo os pontos chave, e quando a máquina é transferida para o bloco de pedra, o ponteiro indica exactamente onde se deve esculpir e que quantidade de pedra retirar. Caixas, armários, cabos de electricidade, o rádio, os cabelos do trabalhador que está à volta do apóstolo — tudo está totalmente coberto de um pó branco fininho. Vivem aqui a tempo inteiro São Pedro, Nuno Álvares, Infante D. Henrique, o Sagrado Coração de Jesus, ou uma caveira gigantesca (os moldes em gesso, porque os originais foram entregues aos clientes). Está também o molde do gato de três metros feito em mármore pele de tigre, de Vila Viçosa, que foi encomendado pelos designers americanos Haas Brothers e que foi parar a casa do actor Leonardo DiCaprio. “Querem peças totalmente feitas à mão. Esse é o critério”. Outra espécie em vias de extinção: os latoeiros. José Marques, de 73 anos, está à volta de duas grandes latas para resina, de 40 litros cada, quando entramos na sua oficina, na Batalha. Rapidamente larga tudo para ir buscar baldes e baldinhos, candeias de vários tamanhos (“faço meia dúzia de uma vez porque não paga fazer só um”), uma enxofradeira (“para as primeiras parras da uva”), um funil, pás, um mata-frangos. . . “É o que o artista faz”, diz orgulhoso. O artista dedicou uma vida inteira a isto. “Fiz a quarta classe — é o que era naquela altura — e depois fui trabalhar”. Aprendeu tudo com um único mestre, Joaquim Félix. Agora, não tem a quem passar. “Tenho tido aí malta, mas estão por pouco tempo. Mal se cortam nos dedos e aparece sangue põem-se a cavar. Tudo quer trabalhar mas é com botões”. Mostra a unha negra de uma martelada recente para provar que as dores não se vão todas com a experiência. “O pessoal hoje não quer grandes responsabilidades. Rapazes que andaram em serralheiros chegam cá e nem sabem soldar estanho”. Costuma comprar a chapa zincada nas Caldas da Rainha — “antes era a folha de Flandres, mais branca, mas despareceu quando entrou o inox no mercado e agora só se encontra para caixas de atum”. De resto, as mudanças foram poucas. As duas bigornas e as várias ferramentas que aqui vemos poderiam estar no mesmo lugar se entrássemos nesta oficina de beira de estrada quando José Marques era ainda um rapaz novo. “Está tudo igual, tudo manual. Aqui não há cá máquinas eléctricas”. Os seus clientes são sobretudo os agricultores da zona. Desistiu de ir ao mercado da Batalha, como fazia às segundas-feiras, e aos de Porto de Mós e Maceira. Não compensa. Ainda que seja o único latoeiro do distrito. “Havia muitas olarias e praticamente desapareceram todas”, adianta José Travaços Santos. “Também havia muita cestaria. Agora há umas curiosidades espalhadas pela região”. De produto popular, o artesanato “passou a ser um artigo de luxo. Hoje é vendido a preços muito razoáveis — não digo elevados, digo razoáveis, porque as pessoas que trabalham merecem receber isso. ” Para Travaços, há um obstáculo para além do preço: “As pessoas querem ser todas modernas: ‘ter uma coisa dessas em casa, não’. Muita coisa se tem estragado e deixado de usar por causa disso. ”Moderno ou antigo? Quando entramos no atelier de Marisa Almeida, em Leiria, ficamos sem saber. O tear é aquele que estava em casa de uma tia, com décadas de trabalho em cima. Mas o que usa para passar entre a trama já é toda uma outra história. Há fitas de todas as cores penduradas na parede, quase como se fossem cortinas. São restos de plásticos que já não são usados e que vão substituir o fio. No final, saem bolsas, carteiras ou mochilas que parecem feitas de um tecido fino, quase seda. “A matéria-prima não é nobre, mas todo o processo é muito lento”, afirma Marisa Almeida. “São dois dias para montar o tear, e no caso da mochila mais um dia e meio” para a tecer. E aqui já não está a contabilizar o tempo que leva a transformar um saco de um hipermercado, por exemplo, num conjunto de tirinhas, todas do mesmo tamanho. Marisa Almeida estudou comunicação empresarial e estava sem trabalho. Em casa da tia, na aldeia de Reguengo do Fetal, havia este tear com mais de 100 anos. “Não sabia trabalhar nele, mas experimentei. Só que depois a teia acabou e era preciso montar outra. Uma senhora da aldeia ensinou-me não só a montar a teia como a fazer desenhos”. E a partir daqui, foi pensar em formas de reduzir o desperdício. Para além dos sacos, também já usou borracha de tapetes de carros, ou restos de tecidos. “É só uma questão de cortar”. Há uma estrutura de madeira na parede para urdir a teia, que depois vai para o tear em forma de trança, para garantir que os fios não se embaraçam; e um a um, os fios são passados pelo pente. “A minha mãe vem ajudar a montar, porque é sempre preciso alguém para esticar os fios do outro lado”. Depois, é começar a passar as fitas de plástico de um lado para o outro. Gosta de forrar as bolsas com capulanas, “por causa da versatilidade das cores”. São objectos cuidados que resultam de horas e horas de trabalho. “Para fazer isto, tinha de ser uma coisa diferente e por isso escolhi a reciclagem de plástico”, diz. Criou depois a sua própria marca — Maria Descalça — e podemos encontrá-la na Organii Concept Store, no Lx Factory, ou no Hotel Oitavos, em Cascais. “Em Lisboa, as pessoas valorizam mais o trabalho. Aqui nem tanto”. E por isso o preço final “é sempre problemático”. “Mas todas as peças são únicas”, afirma. “As pessoas gostam dessa exclusividade. Só que para crescer, é preciso encontrar alguém e dar-lhe formação, e para já não tenho essa disponibilidade. ” Apesar de ser uma tradição regional, pouca gente sabe fazer. “As pessoas mais velhas já só fazem como hobby, ou para os netos”. Ou seja, este é para já “um trabalho muito solitário. Por isso tenho sempre música a tocar!”Também há música quando entramos no atelier de José Siphioni: Miles Davis. Para chegar a Alvados, entre Mira de Aire e Candeeiros, segue-se pela estrada paralela à linha da serra, com carvalhos e azinheiras em abundância. Em baixo o vale, onde fica a aldeia. Estamos aqui porque a técnica que Siphioni usa para cozer as suas peças de barro não tem 100 anos, tem 1000. O raku vem do Oriente, mas “é o oposto daquela cerâmica oriental delicada. Esta é mais tosca”. Tal como muita gente da região, José Siphioni, com 32 anos, achou que iria viver dos têxteis. Era programador das máquinas que fabricam camisolas, numa das muitas fábricas de Mira de Aire. Recuamos novamente a 1917. O historiador José Manuel Poças conta que nessa altura as pequenas aldeias viviam da produção agrícola, e “mantinham uma relação muito forte com Minde e Mira de Aire, que eram centros de produção de mantas” e outros lanifícios. Era às aldeias que iam buscar as lãs . Na década de 1930, os filhos desses agricultores começaram a deixar as suas casas — e terras — para ir trabalhar para as fábricas de lanifícios que se começavam a desenvolver. “Houve um decréscimo da produção artesanal”, sobretudo a relacionada com o trabalho agrícola. Para além disso, “começou também a desenvolver-se Fátima”, atraindo pessoas que pela primeira vez se dedicavam ao comércio (e aumentando a produção de artesanato religioso). Actualmente, as fábricas de lãs são já quase todas apenas esqueletos — foram sobretudo substituídas pelas dos moldes, que agora ocupam uma boa parte da população da região. Sem trabalho, Siphioni teve de começar a procurar alternativas. “Fui aprender isto por acidente”, afirma. “Isto” é a moldar o barro. Faz cerâmica artesanal — desde pequenas peças sobre personalidades da história de Portugal (que incluem reis, músicos, escritores — “o que eu mais gosto de fazer é o Saramago: dizia o que pensava e pensava no que dizia”), a figuras que juntam barro e lã, ou serviços de chá. Não lhe faltam clientes, espalhados por várias zonas do país. “Queria trabalhar perto da natureza, sem estar num espaço fechado”, conta Siphioni. “Vivo disto a tempo inteiro. Mas não é para enriquecer, é para ter um estilo de vida”. Siphioni começa por colocar água no ambientador que ele próprio fez: um pote em grés que tem no fundo um pouco de alfazema, apanhada aqui na serra. Depois, liga a roda. Sentamo-nos com um pedaço de barro nas mãos — como Siphioni organiza workshops, qualquer um pode tentar. Ao fim de muitas instruções para amassar, centrar e tornear, lá conseguimos formar uma pequena taça. “A roda requer muito treino, sobretudo a parte de centrar”, afirma. Quando estão secas, as peças são vidradas. “Antigamente, utilizavam sílica bruta que era moída, sobretudo na zona de Porto de Mós. Muitos alguidares e gamelas eram feitos em casa, para uso doméstico. Toda a gente sabia desenrascar”, conta. Junta-se água ao vidro em pó, mistura-se e fica um vidrado esbranquiçado. “Se se quiser cor, acrescenta-se óxidos de metais, como a ferrugem ou o cobre, que pode dar azuis, verdes, vermelhos. O oxigénio é que vai depois alterar as cores — isto no raku, porque no [forno] eléctrico é tudo homogéneo”. Está na hora de explicar: o raku é um cubo feito em fibra de cerâmica, com uma grade à volta e sem uma das faces. Será este o lado que assenta em tijolos refractários (para aguentar os seus 1000 graus). Introduzem-se as peças na base e acende-se o maçarico, ligado a uma botija de gás. “Este [serviço de bule e chávenas] só vai a 900 graus porque este vidro borbulha um bocadinho. À noite é mais giro porque a fibra de cerâmica fica incandescente”. Ao fim de meia hora, colocam-se folhas apanhadas aqui mesmo, no jardim e do lado de lá da cerca, dentro de um bidão. Com uma tenaz, retiram-se as peças do forno e põem-se no bidão, tapado. O calor das peças incendeia as folhas e o fumo libertado vai colori-las, entrando onde o vidrado não entrou. Aos poucos vamos observando como mudam de cor. Há outro método que às vezes usa: o forno de papel, próximo das técnicas usadas no Neolítico. Aproveita-se papel de jornal, barro, madeira e controla-se a temperatura através da entrada e saída de oxigénio (pode atingir os 1200 graus). Também tem um forno eléctrico em casa. Mas esse “não tem alma nenhuma”. Não muito longe dali, em Minde, encontramos Alzira Roque Gameiro, bisneta do pintor, que é também directora do museu que alberga uma vasta colecção de aguarelas. Mas não é para falar de pintura que aqui estamos. Vamos falar de mantas, vamos falar do “atazanar das menízias” (já explicaremos). O Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro (CAORG) nasceu em 1986 para garantir que o museu sobrevivia em Minde. Como? Envolvendo a população (que agora anda à volta dos três mil habitantes). “Não se faz uma casa sem paredes”, afirma Alzira Roque Gameiro. Neste caso, as paredes são o museu, claro, um conservatório de música, onde os antigos alunos já são professores (“os mindericos gostam muito de música”), uma escola de ballet e um atelier para revigorar as mantas de Minde. Alzira Roque Gameiro garante que nunca teceu nenhuma, mas sabe exactamente como se faz. Regra de ouro: não se pode ver a trama. Por isso, a manta de Minde tem de ser cardada, para ficar de pêlo levantado. “Pendura-se e carda-se de um lado e do outro. Só quando é muito bem trabalhada é que não é preciso. ” Para além disso, há “três coisas fundamentais: coordenação entre pés, braços e cabecinha”. Só são usadas aqui lãs 100% nacionais, vindas da Guarda. “E mantemos os padrões” — há amostras com 70 e 80 anos expostas na parede com vários deles, não vá alguém esquecer-se. Algumas têm ainda a marca: Necil “manta regional de luxo”, anuncia uma etiqueta. “A fábrica Necil tinha uns 20 teares a funcionar e fechou nos anos 70. Nessa altura, os teares desapareceram de Minde, [ficaram] zero. As lãs eram caras, era uma vida difícil. ”A um canto, está um manequim com uma saia e um corpete feitos para a Exposição de Bruxelas de 1958, onde as peças ganharam uma medalha de prata. A parte de trás do atelier (que tem venda ao público) é praticamente toda ocupada pelos três teares. “Muita gente dizia que não valia a pena as mantas, que estavam ligadas a uma camada baixa da população”. Mas Alzira Roque Gameiro foi para a frente com o projecto e agora as mantas podem ser consideradas um produto de luxo. “A primeira manta de Minde é a chamada manta preta, que não tem preto, só cores naturais (castanho e branco), sem tintas. Não é possível datá-la porque há poucos documentos escritos. Mas sabemos que há vários séculos, os soldados que vinham de todo o país e ficavam na fortaleza de Almeida tinham direito a uma manta de dois em dois anos. Nos anos 20, 30 do século XX aparece a manta parda, com barras de cor nas pontas, depois as finas, por serem mais trabalhadas e com padrões”, explica. “O padrão é feito segundo o modo de pôr a trama no tear. E nos teares de Minde, a trama é de fio escuro, castanho”. Que não se diga “fazer uma manta” porque aqui em Minde isso significa fazer-lhe a bainha. Para a fabricar de uma ponta a outra diz-se tecer. E se dissermos “Menízias do Ninhou” estamos a falar de quê? Estamos mesmo a falar de “mantas de Minde”. Há aqui uma variante linguística própria, o minderico. Terá começado a ser usado pelos comerciantes de mantas, que as vendiam em várias partes do país, para poderem discutir os negócios à frente de estranhos sem serem compreendidos. Aos poucos, o minderico foi-se alargando a outros grupos sociais. Alzira Roque Gameiro garante que, se for a Lisboa comprar um vestido com a prima, é certo que lhe perguntará em minderico se ele lhe assenta bem. “Toda a gente sabe. Mas se perguntar a alguém aí na rua se fala, vão dizer que não. Depois, viram costas e começam a falar. Às vezes nem sabem que os termos que usam são minderico. É uma língua intragável, não se percebe nada!”É assim que à entrada do atelier, por cima da porta, há um letreiro onde lê e entende quem sabe: “atazanar das menízias”, ou seja, tecer mantas. Também poderíamos perguntar “a menízia é cópia?”. Sim, a manta é boa. “O artesanato é o parente pobre das artes, cá em Portugal. É [considerado] uma arte menor”, afirma Graça Costa. Apesar de tudo, “está a mudar um bocadinho, com a crise do emprego. As pessoas tiveram que se virar para aquilo que sabem fazer ou foram aprendendo”. A conversa decorre numa antiga escola que Graça Costa converteu na Oficina das Artes em Vale da Perra, perto de Ourém. Esta é também a sua segunda vida. Veio de Maputo para Lisboa em 1971 para se formar em Economia e Tecnologias de Informação. Trabalhou anos a fio na IBM. “Mas aos 57 anos [tem agora 66] decidi reformar-me e disse: ‘É agora!’”Era tempo de se dedicar às artes que tinham sido a sua vocação de garota, mas que por insistência da mãe não tinha prosseguido. Vivia em Lisboa e juntou-se a um grupo de amigos para “um projecto de velhice: ‘Os filhos têm as suas vidas, não vão ter tempo para nós, vamo-nos juntar, construir um conjunto de casas, partilhar serviços’. Começámos à procura de terrenos. Arranjámos vários. Eu e o meu marido começámos a construir, depois os outros foram mudando de ideias e nós ficámos sozinhos! Agora não partilhamos coisa nenhuma, e tenho os filhos a reclamar que estamos muito longe e que se precisarmos de assistência eles não vão conseguir dar!”Foi em Ourém que aprendeu a tecer. “Apresentei um projecto para fazer formações para adultos e crianças, e a Câmara aceitou. Uma das formações foi a de tecelagem, e fiz. ” Agora, ela própria já dá formação, e não só em tecelagem como em feltragem ou cerâmica. “O objectivo [das oficinas] é despertar o interesse nas pessoas e proporcionar-lhes um espaço para poderem trabalhar. É difícil ter espaço em casa para isso: a cerâmica é uma coisa que suja muito e os apartamentos por vezes são pequeninos, [o mesmo com] a pintura, a cestaria. ”No pátio com vista para a serra, onde antes as crianças brincavam nos intervalos, agora há quem aprenda a trabalhar o vime — “há vimieiros lá em baixo que têm de ser podados e as pessoas dão” os restos para os cestos. O workshop que está prestes a começar ao final da tarde é de encadernação. Um encadernador francês morreu e deixou-lhe todo um espólio de peles de cobra para lombadas, a prensa. . . Graça Costa não esperava o entusiasmo à volta desta actividade. “Vêm pessoas de Lisboa, Figueira da Foz, Coimbra. ”Apesar de tentar recuperar muito do artesanato que se está a perder na região, e de algum interesse renovado em certos meios, há uma dose grande de desânimo. “Como não se consegue escoar, é difícil vender. Não está bem visto e não há uma entidade que divulgue, que [garanta] protecção”. Conseguir o preço justo também é difícil. “Nas feiras, as pessoas estão à espera de encontrar tudo a preços baratos. Não é possível vender barato porque a matéria prima é cara e o artesão não consegue descontar tudo o que compra. ”Os clientes são sobretudo de fora da região. E “este tem sido o ano do chapéu. A mulher portuguesa decidiu usar chapéu e não tenho tido mãos a medir. ” Usa feltro, que apesar de ser “um material muito apreciado pelos estrangeiros, sobretudo os nórdicos”, não era tão popular em Portugal. Também faz bijutaria com cerâmica, pele, prata. É “selectiva” em relação aos locais onde coloca as suas peças à venda. Em Fátima, só as podemos encontrar no Hotel Santa Maria, “porque me irrita o artesanato em Fátima: aquelas velas e velinhas, santos e santinhos, não se pode! Houve várias lojas a querer os meus artigos, mas chego lá e vejo tudo misturado com as coisas do chinês. E feiras, praticamente não faço — não me sinto confortável em estar ao lado de uma banca onde vão comprar as continhas dos chineses, põem num cordão e chamam aquilo artesanato. Não estou para concorrer com isso. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. CONTACTOSGárgula GóticaZona Industrial, Lote 17, Batalhahttp://gargulagotica. pt/Maria DescalçaRua do Comandante João Belo, ?n. º 53, Leiriamdescalca@gmail. comCooperativa dos Cestinhos ?da Ilha/Arte de Bracejocooperativacestinhosdailha@gmail. comVictória HandmadeRua do Engenheiro Monteiro Conceição, 84, Corredoura, Porto de Móshttp://www. victoriahandmade. pt/José SiphioniCasas dos Riscos, AlvadosTel. : 911 077 547siphioni. wix. com/cerâmicaOficina das ArtesAntiga EB de Vale da Perra, Atouguia (Ourém)Graça CostaCAORG — Centro Artes e Ofícios Roque GameiroAteliê de Tecelagem — Mantas MindericasTel. : 249 840 022A Loja do CaminhoRua de Nossa Senhora do Caminho, 10B, 2440-121 BatalhaTel. : 963 834 117Windland Private Guided Tours Organiza passeios que incluem visitas a artesãosTel. : 965 853 012
REFERÊNCIAS:
Os papéis de Hemingway deram (finalmente) uma exposição
Ernest Hemingway: Between Two Wars estará no Museu Morgan, em Nova Iorque, até 31 de Janeiro. (...)

Os papéis de Hemingway deram (finalmente) uma exposição
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-10-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ernest Hemingway: Between Two Wars estará no Museu Morgan, em Nova Iorque, até 31 de Janeiro.
TEXTO: Ernest Hemingway gostava de acumular papéis. Passaportes caducados, rascunhos em folhas amarrotadas, manuscritos de contos que depois abandonava, bilhetes das muitas touradas a que assistia… O seu arquivo, na sua maioria confiado à Biblioteca Presidencial John F. Kennedy e ao Museu de Boston, deu agora origem à primeira exposição retrospectiva do escritor norte-americano, um dos maiores do século XX, cuja vida se confunde com os livros, autor de romances icónicos como Por Quem os Sinos Dobram e O Adeus às Armas, e prémio Nobel da Literatura em 1954. Ernest Hemingway: Between Two Wars, no Museu Morgan, em Nova Iorque, até 31 de Janeiro, reúne papéis que vão desde os tempos de liceu do escritor até à década de 1950, dedicando uma grande secção à temporada que passou em Paris, nos anos 20. Estes documentos mostram, segundo o New York Times, como no início Hemingway escrevia sobretudo a lápis, em blocos de notas baratos, ou no papel que tivesse à mão no momento em que sentia necessidade de apontar uma ideia, um detalhe. Mostram ainda que, como escritor, nem sempre era seguro de si, ao contrário da imagem que dele temos como homem dado a aventuras infindáveis – caça, pesca, mulheres –, protagonista de histórias rocambolescas que se contavam, e continuam a contar-se, sempre que algo que lhe pertenceu é leiloado ou um romance é reeditado. Esta insegurança em relação à obra torna-se evidente quando o visitante de Ernest Hemingway: Between Two Wars tem à sua disposição provas de que o escritor chegou a considerar quatro títulos e 47 finais diferentes para O Adeus às Armas, que começou a escrever em 1918 mas só viria a publicar 11 anos mais tarde. Foi o próprio Presidente Kennedy, um admirador confesso da obra e do homem, que, depois de o escritor se ter suicidado, em 1961, ajudou a viúva do escritor, Mary Welsh, a retirar de Cuba o seu espólio, lembra ainda o diário norte-americano. A exposição do Morgan, comissariada por Declan Kiely, director do departamento de manuscritos históricos e literários do museu, faz uma viagem cronológica por este arquivo pessoal (e pela vida que lhe deu origem), parando nos anos das duas guerras mundiais, nas tertúlias com os amigos, nas conturbadas relações que, por vezes, mantinha com editores e críticos literários. Estão lá, por exemplo, cartas que trocou com outros autores célebres, como J. D. Salinger e F. Scott Fitzgerald, de quem era amigo e cujas sugestões recebia com atenção; manuscritos de romances e contos, rascunhos de mensagens que não chegaram a ser enviadas e até um visto com a data de 1944, quando Hemingway trabalhava como correspondente de guerra. Nas fotografias vemo-lo de muletas, fardado, depois de ter sido gravemente ferido, em Julho de 1918, quando conduzia uma ambulância da Cruz Vermelha italiana que transportava chocolates e cigarros para os soldados; e a bordo do seu iate, Pilar, em Cuba, ao lado de Carlos Gutiérrez, o homem que lhe serviria de modelo para o protagonista de O Velho e o Mar.
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Os mestres da pintura espanhola em exposição no Museu de Arte Antiga
59 obras da importante Colecção Masaveu estão expostas em Lisboa até Abril de 2016. (...)

Os mestres da pintura espanhola em exposição no Museu de Arte Antiga
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-11-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: 59 obras da importante Colecção Masaveu estão expostas em Lisboa até Abril de 2016.
TEXTO: El Greco (1541-1614), José de Ribera (1591-1652), Francisco de Zurbarán (1598-1664), Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), Luis Egidio Meléndez (1716-1780), Francisco de Goya (1746-1828), Vicente López (1772-1850) ou Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923). O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) inaugura nesta sexta-feira Colecção Masaveu. Grandes Mestres da Pintura Espanhola, uma exposição especialmente pensada para Lisboa que é uma espécie de introdução à história de arte espanhola. São 59 as obras que nos traçam a história da pintura em Espanha do século XV até ao século XX, com especial foco naquele que ficou conhecido como o Siglo de Oro, o período, sem datas precisas, do florescimento da arte e da literatura espanhola. Apesar de a colecção Masaveu, reunida ao longo de várias gerações por esta importante família espanhola com participações em vários sectores económicos, não se limitar à arte de Espanha, para Portugal viajaram apenas peças dessa nacionalidade. “É um privilégio para o MNAA poder acolher esta amostra tão significativa”, disse aos jornalistas o director António Filipe Pimentel, explicando que é a primeira vez que estas obras são apresentadas desta forma. “É um novo projecto para Lisboa. ”Dividida em cinco núcleos – O esplendor da Idade Média e o Renascimento, El Greco e a transição na pintura do Maneirismo para o Naturalismo, Cintilações do Século de Ouro: os mestres do Barroco, Goya e as Luzes e Uma nova luz: de Fortuny a Sorolla –, o MNAA, em parceria com a Fundación María Cristina Masaveu Peterson e a promotora Ritmos, organizou a exposição de forma “muito didáctica”, explicou Pimentel. Expostas estão algumas das obras mais significativas da colecção. Apesar de a Colecção Masaveu ser uma das mais importantes colecções privadas de Espanha é ainda pouco conhecida por raras vezes ser exposta, disse o director. São recorrentes os empréstimos de algumas das suas obras mas são poucas as exposições como esta de Lisboa. Percorrer as salas desta exposição é compreender a evolução da arte no país vizinho, tantas vezes com nomes que ainda hoje em Espanha permanecem pouco conhecidos. A visita começa com uma introdução à pintura medieval, onde os mestres espanhóis se destacavam, por exemplo, com fundos dourados nas pinturas, para depois entrar no universo de El Greco com óleo Jesus é Despojados das Suas Vestes (1577-79), uma versão da obra-mestra O Espólio que pode ser vista na Catedral de Toledo. Ao fundo, salta à vista o óleo sobre tela Santa Catarina de Alexandria com 179 centímetros de altura. Pintado por Francisco de Zurbarán em 1640, “esta é uma das obras-primas da exposição”, segundo o seu comissário Ángel Aterido, professor de História da Arte e coordenador da seção Biblioteca da revista Goya, publicada pela Fundação Lázaro Galdiano, de Madrid. Estrelas desta exposição e da própria colecção são também as duas pequenas pinturas de Francisco de Goya: Espetar as bandarilhas (Bandarilheiros) e Despeje de la plaza (Alguacilillos). “São muito importantes porque é quando Goya começa a ser Goya”, explicou Aterido, contando que o mestre espanhol pintou estas obras depois de ter ficado surdo, consequência de uma grave doença, entre 1793 e 1794. Surdo, interessa-se cada vez mais, nestes finais do século XVIII, por experimentar. Nas obras aqui expostas, Goya recorre ao metal, “o que dá uma luz especial à pintura”, e dedica-se a um tema que lhe interessava, as touradas. “Estas são pinturas feitas por gosto, é a pintura pela pintura”, apontou o comissário, lembrando que foi depois da convalescença da grave doença que “Goya se converteu num grande mestre”. Ao lado, dois retratos de Vicente López, “o sucessor de Goya” na corte espanhola. Colecção Masaveu. Grandes Mestres da Pintura Espanhola termina com uma sala inteiramente dedicada à obra de Joaquín Sorolla y Bastida, o artista mais representado na colecção espanhola – são 55 obras, 7 das quais viajaram para Lisboa, entre elas um imponente retrato da família de Rafael Errázuriz Urmeneta, um importante político e diplomata chileno. “É inevitável pensar n’As Meninas [pintado em 1656 por Diego Velázquez]”, afirmou Ángel Aterido, para quem esta é uma obra “pintada com absoluta liberdade”. Os bilhetes para a exposição, que fica patente até 3 de Abril de 2016, têm o preço de sete euros.
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Palavras-chave doença espécie
Setúbal: Muito mais do que choco frito
A ideia era conhecer a região em três dias, com três guias. Na verdade, mais gente se juntou à romaria e ainda bem. Uma cidade é feita de muitas coisas. Escolhemos os passeios, a gastronomia e o património para desfrutar o que nos resta destes últimos dias de Verão. (...)

Setúbal: Muito mais do que choco frito
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.5
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: A ideia era conhecer a região em três dias, com três guias. Na verdade, mais gente se juntou à romaria e ainda bem. Uma cidade é feita de muitas coisas. Escolhemos os passeios, a gastronomia e o património para desfrutar o que nos resta destes últimos dias de Verão.
TEXTO: Se há cinco anos dissessem a Vanessa Lima, agora com 38, que iria voltar a viver em Setúbal, ela responderia com uma risada. Hoje, é vê-la montar de manhã na bicicleta para ir ao mercado comprar o seu queijo fresco preferido, passar os dias no mar, regressar a casa extenuada, sabendo que nada é melhor que isto. A sua história é a história de muitos em Setúbal, diz. Cresceu aqui, foi para fora estudar, lançou uma carreira na publicidade. Viveu a viajar, até chegar o dia em que, já com uma filha, decidiu que tinha de mudar de vida, abrandar, fixar-se. “Muita gente da minha geração saiu e está agora a voltar”, e com este regresso a cidade está a transformar-se. “Há mais trabalho e um trabalho mais diversificado porque há mais pessoas com coragem para seguir o seu sonho. ” O seu foi a empresa Sea Life Lovers, que organiza passeios no mar. Mas Vanessa Lima também gosta de estar em terra, e quando é preciso deslocar-se nada melhor do que a bicicleta. Por isso, ainda antes de nos lançarmos à água, o nosso primeiro dia em Setúbal vai começar em cima de duas rodas, tentando não atropelar os transeuntes. “É uma cidade relativamente plana. Vou de bicicleta para todo o lado, incluindo para as reuniões”, diz. O caminho é feito pela Avenida Luísa Todi (a principal artéria da cidade, paralela ao Sado), que tem uma ciclovia de 1, 29 km por baixo das suas árvores frondosas, dando alguma sombra. Depois, acompanhamos o estuário até à praia da Saúde, onde apesar de ser dia de semana muitos aproveitam o calor para estender a toalha. É uma praia urbana, que pouco poderá rivalizar com as vizinhas Galapos, Galapinhos, Figueirinha. . . Mas para um mergulho de emergência serve. Depois do Parque Urbano de Albarquel, faz-se inversão de marcha. Antes de voltar à margem do rio, pelo clube naval e os dois cais marítimos dos ferries para Tróia, entramos nos bairros tradicionais colados à avenida: Fontainhas, Santos Nicolau, Troino, Fonte Nova. Virá dos troinos o sotaque de “r” carregado: era aqui que estavam muitas fábricas de conservas com proprietários franceses, que passaram a pronúncia à população, explicam-nos. Há quem diga a brincar que o sotaque vai voltar em força com o investimento imobiliário que alguns franceses estão a fazer (compraram vários dos 57 prédios que nos últimos dois meses e meio se venderam na Baixa da cidade, afirma José Fernando Gonçalves, da Casa da Baía). A ligação à indústria conserveira, e à pesca, está em todo o lado. Ora em fachadas de prédios com grafittis aprimorados, como ao longo da Rua Vinte Seis de Setembro, ora nas chaminés que restam aqui e ali. Neste dia de final de Verão, e à medida que se aproxima a hora do almoço, se só tivéssemos um cheiro para descrever o centro de Setúbal, seria a peixe grelhado. As esplanadas invadem ruas estreitas e largos. Vários edifícios (dois, três andares no máximo) estão abandonados ou a precisar de obras, mas muitos acabaram de ser recuperados e mostram uma Baixa charmosa. Vanessa Lima vai cumprimentando do alto da sua bicicleta. Vista daqui, a cidade tem uma escala confortável: suficientemente grande para que o passeio não saiba a pouco, suficientemente pequena para ficarmos com a falsa sensação de ter visto quase tudo o que vale a pena ver, mesmo sabendo que nunca veremos o suficiente. Siga a marinha. Um dos barcos da Sea Life Lovers está à nossa espera com o mestre Carlos ao leme e a Ana Lúcia para dar apoio. A empresa foca-se em viagens de barco personalizadas: recentemente, recebeu durante o fim-de-semana uma festa de despedida de solteira. Entre rio e mar, experiências gastronómicas ou musicais (com jam session, por exemplo), dias inteiros ou um par de horas, na companhia de champanhe ou vinho branco, as alternativas são tantas quanto os clientes, ainda que haja alguns pacotes pré-definidos. “Nunca tenho uma saída igual a outra. ”A ideia é “fazer na água o que se faz em terra”, durante o ano inteiro, continua Vanessa Lima. “No Verão as pessoas vão para a água para se divertirem, no Inverno tem de haver um motivo para isso. ” Um deles pode ser chegar a locais onde nunca se chegaria de outra maneira. Esta é também uma forma de explorar “a panóplia de ambientes que temos naturalmente”. É essa diversidade que temos neste instante diante dos olhos: o rio, o mar, a cidade e a serra. Como esta é uma forma de conhecer a região, a gastronomia tem um papel importante a bordo, com degustação de produtos locais. A nós calhou-nos o tradicional choco frito, com gomos de lima, e uma bela massada de sapateira, saboreados perto da Caldeira de Tróia, passando já os esqueletos das embarcações que encalharam com a descida da maré e ali ficaram para sempre, as ruínas romanas que sobrevivem no areal, com os pinheiros em fundo, os dois pescadores que lançam pacientemente a cana à água. A esta viagem juntou-se João Serralheiro, da Lima e Limão Cycling Services. Trabalhava numa multinacional antes de se estabelecer aqui; andou por todo o mundo. “Quando se viaja e se está muito tempo sozinho, vai-se tomando notas. A área do turismo em bicicleta foi uma das minhas notas. ” Passeios pela serra é com ele. E, mais uma vez, o cliente é quem decide. “O turismo em Setúbal é recente, tem dois ou três anos. Os serviços estão a organizar-se em função da procura. ” Habitualmente, os passeios que organiza não descuram a parte gastronómica. Quem pedala gosta de almoços em adegas e provas de vinho. A região está a ser cada vez mais visitada por estrangeiros, mas a anfitriã quer sobretudo trazer os turistas portugueses e acha importante realçar isto: “Nós somos os nossos próprios testemunhos. Temos de trazer as pessoas de dentro [e mostrar que] Setúbal não é choco frito. ” É verdade que é uma vantagem estar perto da capital, “mas não faz sentido inseri-la no Turismo de Lisboa”, avisa. “Não é um apêndice de Lisboa, tem uma estrutura totalmente diferente. ”Indo agora na direcção oposta, como o rio seguindo para o mar, ficamos com o porto e a zona industrial à direita. Um desperdício de paisagem para fábricas e chaminés: Lisnave, Eurominas, Portucel, a central termoeléctrica. . . Mais adiante, à esquerda, está o casino de Tróia. É seguir viagem. À direita novamente: o forte de Santiago do Outão, que foi convertido em hospital ortopédico, o forte de S. Filipe, o convento da Arrábida. . . Nas enseadas da serra sucedem-se praias de água fria e cristalina: Figueirinha, Galapos, Galapinhos, Coelhos, Creiro, Portinho da Arrábida (uma das sete maravilhas de Portugal), Alpertuche. Não vemos golfinhos, mas só por acaso. Estamos agora a regressar. Um cargueiro gigante faz balançar o barco como se houvesse tempestade. Mas tudo acalma num instante. A chegada à marina não tarda, e à nossa espera, antes de um arroz de lingueirão com pregado no Miguel, estará uma lata de ovas de sardinha com um copo de vinho branco. E como as coisas boas da vida são para ser partilhadas, o tal queijo fresco comprado de manhã no mercado vem também para a mesa. Marcámos encontro às nove horas no Mercado do Livramento, e às nove horas o chef Luís Barradas lá está, na Casa das Bifanas do senhor Ramiro e da dona Celisa. É o seu pequeno-almoço e de muitos outros que lhe chamam a melhor bifana de Setúbal – uma classificação que não é (nunca é) consensual. Olhemos em volta. Na zona lateral, estão os “caramelos”, os pequenos produtores que têm quintas nos arredores da cidade: “São um barómetro da estação, que nos ajuda a ter ideias para os pratos. ” No centro, estão os vendedores com banca fixa. A “praia” de Luís Barradas é o peixe. Aos 40 anos, é um sushiman certificado pelo All Japan Sushi Association, e foi director de investigação e desenvolvimento do grupo Sea Me; actualmente, é chef executivo no restaurante da Quinta do Tagus, no Monte da Caparica. Tem um atum rabilho tatuado no braço esquerdo (“é o peixe mais apreciado da cozinha japonesa”) e há-de ter também um charroco e um choco. No braço direito, o seu número da sorte: 13. E é pelo peixe que começamos. Na banca de Ana Conceição e filhos, há um espadarte de 100 quilos com a cabeça decapitada ao lado, bico espetado para cima, como uma espada pronta a ser usada. O chef vai listando: peixe-galo, também chamado “S. Pedro” por uma mancha que se diz ser a marca do seu polegar, ou alfaquim (na banca em frente há-os mais pequenos, bons para fritar), rodovalho, sargo, salmonete (“um dos meus peixes preferidos”), peixe-agulha, também chamado “peixe do casamento” ou, ainda mais popular, “peixe da foda”. Adiante. Cabra-vermelha (“da família dos peixes voadores; a minha avó gostava muito dele cozido”), pescada, abrótea, chaputa (“há quem cozinhe as bochechas como se fossem peitinhos de pombo”). É na banca do sr. Paixão que normalmente faz as compras para a caldeirada à setubalense, onde não podem entrar os peixes de escama, avisa, e são bem-vindos os fígados de tamboril. A tramelga está em vias de extinção e deixou de aparecer no tacho, tal como o peixe-anjo, esse já extinto. Que venham então o safio, o tamboril, a raia (“no Japão, usam a pele da raia seca para ralar o wasabi”, diz Luís Barradas), pata-roxa (um pequeno tubarão, cuja pele também parece lixa e nem sequer secou ainda), cação (agora chamado “perna de moça”), charroco (que dá o nome à pronúncia setubalense e muito gosto à caldeirada, segundo o peixeiro). “Segundo a lenda do mar, a pata-roxa não quis casar com o salmonete. Ela no mar é linda, cheia de cores, e cá fora é feia; o salmonete é ao contrário”, explica o sr. Paixão. A ligação ao mar está bem representada também nos azulejos do mercado, construído em 1930, com cenas sobre a descarga das redes, o transporte de sal, a reparação das redes (que Luís Barradas ainda se lembra de ver), a recolha do sal, a descarga da sardinha e a salga do peixe. Depois, uma vista geral da região, na qual se vêem os castelos de S. Filipe e de Palmela (“o triângulo Setúbal, Palmela e Azeitão deveria ser património gastronómico da humanidade”, comenta o chef), e também os bairros antigos. Na sequência vem agora o campo: colheita da azeitona, lavra, sementeira, ceifa do arroz, vindima, o antigo mercado e a rega do pomar. Resumindo, a prova de como esta é “uma cidade virada para os dois mundos”. Passemos então para as coisas da terra. “O que a horta da Quinta do Tagus não produz eu compro aqui. ” Aqui é a banca da D. Donzília, onde brilham as maçãs riscadas de Palmela que Barradas costuma servir com ostras no seu restaurante. “Quando era miúdo, no Verão ia lavá-las ao mar e essa mistura de doce e salgado traz-me muitas memórias. ” Há ainda figos, uvas, pêssegos. Ao lado do pão, do sr. Victor, também se encontram enchidos e torresmos. “Este torresmo do rissol é o torresmo no seu estado puro, cozinhado na banha”, explica Luís Barradas. “É uma bomba, mas é o meu preferido. Uso esta gordura para os nigiris de pargo ou besugo, porque a minha mãe sempre fez o pargo assado com toucinho branco. ” Descreve a sua cozinha como “de fusão luso-nipónica” e já estamos a perceber porquê. Com duplas portas para o mercado e para a rua, os talhos sucedem-se. Paramos no Talho da Luz. “Vê-se o esforço para ter produtos acabados, como aqueles hambúrgueres de beterraba ou espinafres. Os cortes são os habituais, mas fazem coisas diferentes. ” Uma dessas coisas é uma massa de pimentão caseira. “É a que eu uso. Uma delícia. ”Na banca da Alice, há maxixe (parece pepino e é bom para pickles), giló, da família das beringelas, vários tipos de malagueta. Na banca da Adriana, temos a Arrábida. Ou melhor, as ervas da Arrábida que o marido vai apanhar. “A serra é o que temos para a nova geração. A gente precisa tanto de respirar. Nós é que estamos a matar isto tudo”, diz a vendedora. Aqui está o alecrim, rosmaninho (com folhas mais finas que o habitual), perpétua das areias, que se encontra nas dunas de Tróia e que transporta o chef para a praia. “Fiz uma cama de algas frescas e perpétua das areias com lingueirão”, conta o chef. “Também costumo fazer com ostra e dá um muco que parece que saiu de uma técnica de infusão avançadíssima! Faço uma cozinha de casa: mais arcaica. Andei para o passado numa altura em que está tudo concentradíssimo na técnica. ”Para chegar a Faralhão e visitar Célia Rodrigues, produtora de ostras, é preciso sair da cidade, passar pelos esqueletos das antigas conserveiras, atravessar o cheiro azedo da fábrica de fermento, deixar para trás a monstruosa central eléctrica, já desactivada, com as suas duas torres gigantes. Agora as ruas de vivendas e pomares, tascas com anúncios de choco frito, prédios baixos dos anos 1980. Por fim, o sapal. O Neptuno, um rafeiro alentejano, passa indolentemente por nós. Foi baptizado depois da empresa de Célia Rodrigues, a Neptunpearl, ostras da Reserva Natural do Estuário do Sado. E já agora: Faralhão é a síntese de Faro e Olhão, explica-nos. “Pessoas dessas cidades vieram para trabalhar nos arrozais, nas ostras. Ao início de forma sazonal, mas acabaram por se fixar cá. ”Pendurado na fachada de uma cabana de madeira onde se guarda material, está um rosário feito com cascas de ostras, já todo branco. Para que servia? “Como vivem num ambiente lodoso, depois da fecundação, que se dá na água, as ostras precisam de encontrar uma superfície sólida para se fixarem. ” Enfiadas num arame, as conchas davam essa estabilidade. “Nos bancos naturais, ficam em cima umas das outras, como cachos. Antigamente, os extractores iam apanhá-las, e depois em mesas corridas as mulheres destroncavam-nas [separavam-nas] e lançavam-nas outra vez na lama. ” Na altura de as vender, iam buscá-las e faziam-nas seguir para França, o principal cliente, onde eram conhecidas como les portugaises. As antigas salinas foram afundadas para dar lugar à piscicultura, porque o negócio do sal é bem menos rentável: uma tonelada custa 60 euros. Muitas delas são agora campos de lodo escuro. “Venho fazer ostras para aqui para aproveitar estes espaços”, diz Célia Rodrigues. Entre os campos, cresce salicórnia com fartura, ainda que longe do que se via no ano passado. Também se encontra cabelo de velha, alface do mar, códium, tudo algas que poderiam ser mais utilizadas pelos cozinheiros portugueses, diz. “No futuro, vai ser a nossa base de alimentação”, prevê Luís Barradas. Na maré cheia, o sapal fica inundado, quando desce ficam umas ilhotas à superfície, e que agora estão à vista. E os sacos de ostras ficam também fora de água. A anfitriã é de Peniche, de uma família de pescadores e peixeiras. “Sou pouco terrestre, quase nada. Ainda hoje tenho o sonho de viver num barco. Para mim, a terra é difícil”, confessa. Instalou-se em Setúbal há 18 anos (tem 43) para montar uma maternidade de peixes. “Fui para aquacultura para proteger os mares. ” Porque “há aquacultura e aquacultura”, comenta o chef. A que Célia Rodrigues faz é uma ostricultura em aquacultura integrada: as ostras são biofiltradoras e ajudam a reduzir a carga orgânica libertada pelos peixes, “porque o sapal é um ambiente já com imensa matéria orgânica”. Aproveita-se a fauna local e as marés. “Interessa mostrar tudo o que aqui habita. Isto é uma maternidade natural. Tudo nasce aqui. ”Para além disso, ajuda a preservar a crassostrea angulata, a ostra autóctone, que quase desapareceu quando em 1968 a doença das brânquias provocou uma crise mundial nas ostras, e que em Setúbal foi agravada pelo início da industrialização, na mesma altura. “Em Lisboa, que era o maior banco natural de ostras da Europa, já nem havia ostras por causa da poluição de metais pesados”, adianta. Foi depois disso que se começou a introduzir a crassostrea giga, “mas ela não se aguentou e as pessoas largaram a actividade”. Só que, com a introdução da giga, “ficou tudo misturado. É muito importante preservar a crassostrea angulata na medida em que oferece diversidade genética”. Em frente à tal cabana de madeira há uma mesa. E em cima da mesa está uma travessa cheia de ostras fine de claires, que Célia Rodrigues abre com uma desenvoltura invejável. Corta o músculo, “lava-as” na sua própria água, que deita fora, e depois vão directamente para a boca, sem mais nada. É difícil ser melhor do que isto. Foi só o aperitivo, porque o almoço será no Orlando, um restaurante mesmo à beira do mercado, onde Luís Barradas gosta de vir almoçar quando está de folga. “Peixe fresco, comida simples”, com produtos do terreno do proprietário, Paulo Rodrigues, seu amigo há 20 anos. Vêm para a mesa besugos, carapaus-manteiga, salmonetes. Todos eles são servidos em cima de uma fatia de pão, que no final vai a assar na grelha. Depois de combinar esta visita guiada com a Fugas, ocorreu a Luís Barradas que as suas primeiras memórias de comida estão no Palácio da Bacalhôa, onde tínhamos marcado uma visita. Isto porque a sua avó, que já morreu, foi governanta da casa. Acompanham-nos agora a mãe, Maria do Rosário (que casou lá) e a filha do chef, Luna, que nunca tinha ido ao palácio, em Vila Fresca de Azeitão, e que pertence agora à Fundação Berardo. Construído na primeira metade do século XV como propriedade real, era já uma ruína quando nos anos 1930 uma norte-americana fascinada por azulejos – Orlena Scoville – o descobriu e decidiu comprá-lo. Sabendo que a nova proprietária estava a resconstruí-lo, e tendo na adega um caixote cheio de azulejos que teriam vindo de lá, a avó paterna de Maria do Rosário mandou entregá-los à Quinta. Orlena Scoville agradeceu enviando uma peça de loiça e aí começou uma amizade que faz com que Maria do Rosário e Thomas, neto de Orlena, ainda hoje continuem a comunicar. Como a sua mãe se tornou governanta na casa, Maria do Rosário passava lá muito tempo – e conheceu muitas das suas visitas, incluindo Robert Kennedy, senador e irmão do ex-Presidente americano, ou o então embaixador Frank Carlucci. Mas há mais de 20 anos que não a visitava. Quando entramos, mãe e filho avivam as memórias das peças que estavam e não estavam em determinado local. “Aqui havia um raspa-pés com a forma de cão”, diz o chef apontando para a porta de entrada da cozinha que dá para o exterior. Mesmo ao lado, na sala onde agora estão cadeiras empilhadas e copos guardados em caixas, Maria do Rosário lembrava-se de ver depositada a bagagem de Orlena quando vinha passar uma temporada a Portugal. “O Thomas estava sempre a convencer-nos a fazer escavações porque achava que ia encontrar um tesouro”, ri-se Maria do Rosário. O neto de Orlena tinha razão numa coisa: havia algo por descobrir, porque há toda uma galeria de tijolo à mostra que antigamente estava soterrada e que agora abriga realmente um tesouro (parte da colecção do empresário Joe Berardo). Foi este o neto que recebeu a quinta de herança — “fomos à festa de noivado dele”, conta — e foi ele quem decidiu começar a plantar vinha, em 1974. “O primeiro vinho foi pisado por nós. ” Hoje, os vinhos da Bacalhôa contam com 300 hectares de vinha espalhados pela península de Setúbal, mas só cinco é que estão na área do palácio. Maria do Rosário tem pena de não ver as nogueiras centenárias que ocupavam uma alameda onde agora só há calçada branca. Mas os novos donos fizeram “um bom trabalho. Não há nada a dizer”. Quem também fez um bom trabalho foi Rui Simões. Tem uma medalha de ouro da World Cheese Awards pelo seu queijo de Azeitão DOP. O segredo? “Boa higiene e boa matéria prima. ” A Queijaria Simões é um negócio de família que começou “como uma brincadeira”. Ao início usavam 80 litros de leite por dia. Agora são dois mil. “Já não tenho ovelhas, agora compro o leite”, diz. Apesar do prémio, é difícil exportar o queijo para o exterior. “Só o vinho e o azeite é que têm boa imagem no estrangeiro”, afirma este produtor de 55 anos. Mesmo cá, já se vendeu mais: “As mulheres antigas levavam sempre o queijo aos doutores. Agora nada. Como eles dizem, é a conjuntura. ” Antigamente, encontravam-se muitas queijarias aqui na Quinta do Anjo. Agora, só duas. E a sua é a única queijaria artesanal de Azeitão licenciada, garante. Visitamos a sala do cardo, onde a flor é triturada para fazer uma pasta que será filtrada e que ajuda o leite a coalhar. Depois, a zona de fabrico, com duas cubas de 200 litros e uma de 300. De seguida, as câmaras de cura, onde os queijos repousam primeiro a 11ºC, depois a 14ºC, para secar a casca. O processo é fundamental para ficar amenteigado. No total, nunca recebem menos de 25 dias de cura. “Tem de ser um processo quase natural, sem precipitações. ”E já que aqui estamos, mais vale dar um pulo a outro negócio de família. A pastelaria O Cego está aberta desde 1901. José Pinto, de 53 anos, recebeu-a do pai, que a comprou em 1975. Quem lá entrar agora encontra-o acompanhado da mulher, Teresa, e a filha, Beatriz, “para ela aprender a gostar, que isto não é fácil”, desabafa do outro lado do balcão. “Mas à frente está sempre o nome da casa. Temos de manter a qualidade. ”Não é pasteleiro. Aprendeu tudo com as pessoas que sempre fizeram os Esses e as Tortas de Azeitão, tentando manter o tradicional, mas actualizando onde pode. Exemplos? Serve-nos um granizado de Moscatel acompanhado por Memés: uns deliciosos pastéis de massa filo com requeijão de ovelha e doce de ovos por cima, que têm de ser feitos na altura para não amolecer. E a mesma ordem de ideias manda comê-los de uma só vez. Todas as sexta-feiras, Bruno Ferro e Maria Miguel Cardoso encontram-se com Raul Gamito Gomes, Alexandre Portela e Rogério Vaz de Carvalho para olhar para fotografias antigas da cidade e tentar identificar pessoas e lugares. Hoje é sexta-feira. Bruno Ferro tem em mãos, através da Casa Bocage, o espólio de Américo Ribeiro (1906-1992), autor de todas as fotografias que são analisadas. Maria Miguel Cardoso é antropóloga e trabalha no Museu do Trabalho Michel Giacometti, que criou este Centro de Memórias. Vaz de Carvalho está de férias no Algarve, por isso cabe a Gamito Gomes (85 anos) e Portela (78) a tarefa de voltar atrás no tempo. Olhamos para algumas fotografias que já foram analisadas e que por terem feito parte de uma exposição, em Janeiro, estão protegidas por acrílico. Como esta de 1929, um ano antes da construção do porto, tirada a partir do bairro Santos Nicolau, e que exigiu a Gamito Gomes várias caminhadas até encontrar o exacto ângulo que produziu a imagem actual. Alexandre Portela conta que tem um site com mais de 3 mil fotos, e que desde os 20 anos é fotógrafo amador. Mas é sobretudo Raul Gamito Gomes quem faz as despesas da conversa. Aponta para a “Batalha das flores, 15 de Maio de 1949”. Todas as raparigas que aparecem no carro alegórico que venceu o desfile, incluindo as que não se vêem na foto por estarem tapadas pelo carro (cheio de flores de papel, cavalos marinhos, um tridente), foram identificadas com a sua ajuda. Percebeu que uma delas era Rita Fuzeta da Ponte e foi ela quem ajudou a dar o nome às outras 13. O Centro de Memórias funciona desde 2007 e o grupo já fez o reconhecimento de mais de 6800 fotografias. O espólio conta com 140 mil. Américo Ribeiro “foi uma espécie de fotógrafo oficial da cidade”, dizem os anfitriões. “Registou todos os acontecimentos importantes: as cerimónias não começavam enquanto ele não chegava e não deixou nenhum tema de fora: transformações urbanísticas, desporto, trabalho”, acrescenta. É Bruno Ferro quem prepara as 50 imagens a ser analisadas na sexta-feira, com toda a informação recolhida pelo próprio fotógrafo. Através do computador, ampliam-se para se ver melhor os detalhes. Este grupo dá “um contributo valioso para o estudo desta colecção. Ajuda a dar vida a uma imagem que é fixa e a ver o que ela representa: os hábitos, o quotidiano”, diz. Gamito foi o primeiro treinador de andebol do Vitória. Conhece muita gente na terra e tem uma memória afiada. “Não há muitos que não consigam identificar. Eles são muito persistentes”, comenta Maria Miguel Cardoso. Já aconteceu descobrirem erros nas legendas, como este: “Largo da Misericórdia, 1939”. A data não está certa porque o prédio que aparece foi demolido antes disso. Em frente havia o restaurante Novo Dia, onde Gamito ia lanchar ao final da tarde para comer “o melhor choco frito da cidade”. Pouco depois (antes haverá ainda um almoço no Snack Bar da Ti'Amélia com linguados fritos, carapaus e arroz de tomate), estaremos a passar por aquele mesmo local na companhia de Leonor Soares. Trabalha no serviço educativo dos Museus Municipais e por isso é a pessoa certa para nos mostrar coisas que estão à frente dos nossos olhos, mas que sem ela não conseguiríamos ver. Como a porta manuelina na Rua Dr. António Joaquim Granjo, 42, decorada com flores, pinhas e romãs, que simbolizam a fertilidade. Ou as antigas cantarias em brecha da Arrábida, um conglomerado que foi utilizado na muralha, em habitações, igrejas, e que muito polida parece mármore. Numa rua aponta para o entalhe de três bicos, que representa a santíssima trindade. Noutra para o painel de azulejos com santos protectores, colocados nas fachadas depois do terramoto de 1755. “Diz-se que 40% da população morreu com o terramoto”, por causa do sismo, do tsunami e dos incêndios, conta. Por exemplo, a igreja de S. Julião, do século XIII, na Praça do Bocage, “ruiu quase toda e apenas sobraram os dois portais manuelinos”. Seguimos agora em direcção à Casa do Corpo Santo, que no exterior apresenta ainda os restos da muralha de 1350 (a primeira a ser construída; a segunda é de 1650 e inclui já os bairros do Troino e Fontainhas). “É uma antiga confraria de pescadores e navegantes, também chamada Museu do Barroco. ” Construída em 1714, tem três zonas que se percorrem rapidamente: sala do vestíbulo, capela e sala do despacho. Mas abriga várias peças barrocas que estavam em locais diferentes da cidade, aqui reunidas para fazer jus à exuberância da casa, como o esplendoroso cofre do Sepulcro, do século XVIII. Em 1979, durante a construção do edifício onde está agora o centro de turismo Ask Me Arrábida, descobriram-se as ruínas de um conjunto de salgadeiras romanas. As maiores para conservas comuns – de atum, sardinha, cavala – as mais pequenas para preparados de peixe, ou garum, uma pasta de peixe para tempero, só acessível aos mais abastados, e que seguia daqui para todo o império, explica Leonor Soares. Setúbal chamava-se então Cetóbriga. Passamos agora na Rua Dr. Paula Borba. Há que olhar para o Paço da Procissão do Corpo de Deus, que se assemelha à fachada de uma pequena capela, com as cinco chagas de Cristo, mas que afinal é a ourivesaria Paço da Pérola. E não tarda estamos já a encontrar Maria João Cândido, “a nossa arqueóloga de estimação”, diz Maria Miguel. É ela que nos acompanha na visita ao Convento de Jesus – em frente à igreja, num largo amplo, bate um sol impiedoso, mas vários miúdos não deixam de tentar movimentos ousados por cima dos seus skates. A arqueóloga participou nas duas fases de escavação envolvidas na recuperação do convento, que estava enterrado a mais de um metro de profundidade. O projecto de recuperação, dirigido pelo arquitecto Carrilho da Graça, quis devolver o edifício à sua cota original, explica. Foi a ama de D. Manuel I, Justa Rodrigues Pereira, quem encomendou a obra, projectada por Diogo Boitaca (antes de este desenhar o Mosteiro dos Jerónimos), e a construção arrancou em 1490. Era um convento de clarissas até à extinção das ordens religiosas (em 1834). E por ser uma ordem de reclusão, a entrada dos fiéis na igreja é feita pela fachada lateral e não de frente para o altar, zona reservada às freiras, que assistiam à missa através de uma grade e por trás de uma cortina. Duas crónicas encontradas, escritas por duas freiras em duas épocas diferentes (uma do século XVI outra do século XVIII), dão algumas pistas sobre a vida no convento. “Sabemos por elas que havia a casa dos padres, a casa da roda [para receberem produtos vindos do exterior, não crianças como noutros locais]. Havia uma janela com grades e espigões” para manter a distância e um pano preto para não se ver o vulto, mas que servia para as freiras poderem comunicar com os familiares que as visitavam. “Uma andava com uma pedra na boca para não falar. Outra era para não comer”, conta a arqueóloga. A obra de recuperação não está ainda concluída, mas na zona que está visitável no segundo piso do convento, e que corresponde ao antigo dormitório das clarissas (“uma camarata só com cortinas a separar as camas”), Maria João Cândido aponta para uma mesa onde estão expostos vários resquícios de loiças, todos eles descobertos durante os seus trabalhos. “No lado nascente encontrámos uma zona de lixeira: peças em cima de peças deitadas fora por qualquer razão. Algumas estavam inteiras. ” Há a teoria de que seria uma forma de se livrarem de utensílios usados por freiras que estavam doentes, para evitar o contágio. “Todas as freiras eram de famílias nobres, que traziam um belo lote de loiças importadas. ”Quando em 1889 morreu a última freira que habitava o convento, o edifício foi cedido à Misericórdia para se criar um hospital, que ali ficou até 1959. Dois anos depois, instala-se o Museu de Setúbal. E é aqui que regressamos a Américo Ribeiro. O quadro de Fernando Santos sobre Bocage e as suas musas inspiradoras, de 1929, e que está exposto numa das paredes do museu, foi captado na altura pelo fotógrafo e essa imagem está ao lado da obra a óleo. Mas o que vemos são duas coisas distintas. Na fotografia, há situações um pouco mais ousadas, que na obra real não aparecem. Foram portanto censuradas. “O quadro do Américo repõe a 'verdade' do quadro”, diz Maria Miguel. A tarde ainda se estende. Já que falamos de memória, há tempo para uma passagem pela Mercearia Confiança de Troino. Os pais de Eduardo Silva, de 77 anos, trabalharam aqui toda a vida. E quando morreram, o antigo professor de Físico-Química quis preservá-la como se fosse um museu. “É um património do bairro”, diz. E por isso a exploração é feita pela câmara, para que seja possível manter as portas abertas. Já não vende as castanhas piladas, bacalhau, azeite, vinagre ou café, como no tempo em que o merceeiro passava atestados de idoneidade para quem queria comprar casa, contratar serviços de água ou luz, contrair um empréstimo. Agora há algumas conservas, produtos regionais, vinho. O gato lá está, à porta como sempre esteve, e olha-nos fixamente. A única diferença é que agora é de loiça. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pedimos aos nossos guias que nos recomendassem restaurantes. Aqui ficam as suas escolhas:Vanessa Lima: Taberna 490 Avenida Luísa Todi 490 2900-456 Setúbal Tel. 934760982 Preço médio 25 €Luis Barradas: Adega dos Garrafões R. de Arronches Junqueiro 103, Setúbal Tel. 265229151 Preço médio: 25 €Bruno Ferro: Champanheria Av. Luísa Todi 414, 2900-455 Setúbal Tel. 265 220 996 Preço médio: 25 €Sea Life Lovers Experiências a bordo geral@sealifelovers. com Tel. 932 254 016Vertigem Azul Observação de golfinhos e de pássaros http://vertigemazul. com/ Tel. 265 238 000 vertigemazul@mail. telepac. ptSAL – Sistemas de ar livre Passeios pedestres http://www. sal. pt Telf +(351) 265. 227. 685 E-mail sal@sal. ptLugares a visitar e frequentar numa cidade que não perdeu a escala humana.
REFERÊNCIAS:
Évora, a cidade invisível
Há 30 anos, o centro histórico de Évora foi classificado pela UNESCO como património da Humanidade. Não quisemos só ver pedras. Fomos à procura do património que está em quem a habita. (...)

Évora, a cidade invisível
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 30 anos, o centro histórico de Évora foi classificado pela UNESCO como património da Humanidade. Não quisemos só ver pedras. Fomos à procura do património que está em quem a habita.
TEXTO: "Encontrou a rua?” Não nos lembrávamos de lhe ter pedido indicações na véspera, mas o homem de bigode farfalhudo e avental preto, especado à porta do restaurante, assegura que sim. E remata: “Évora é como Roma: todos os caminhos vão dar à Praça do Giraldo. ” Estamos precisamente a tentar ver a cidade romana, a que está e não está diante dos olhos. O arqueólogo André Carneiro, professor na Universidade de Évora, conduz-nos por essa cidade oculta. “Vocês agora imaginem”, é um desafio que lança com frequência. É preciso “ver o não visto”. “Há uma série de camadas e nem tudo está incorporado na malha urbana actual. O esforço tem sido mais para a preservação do que existe do que para a descoberta de outras realidades que sabemos que estão aqui. ” O que existe não é nada pouco, e foi suficiente para que há 30 anos a UNESCO tenha classificado todo o centro histórico de Évora como Património da Humanidade. Mas já lá iremos. Entremos então na Ebora Liberalitas Iulia. Começamos por onde era inevitável começar: o Templo Romano, “o emblema máximo” que alimenta os guias turísticos tanto como o orgulho local. “É o elemento mais bem conservado da arquitectura romana [em Portugal], e está perfeitamente integrado nesta praça [Largo Conde Vila Flor], onde vemos vários séculos de história”: se imaginarmos um quadrado, de um lado está o Templo, à frente o Museu de Évora, um pouco abaixo a Sé; num dos lados a Biblioteca e o Convento dos Lóios, no outro o Palácio da Inquisição. O monumento imponente, com as suas 14 colunas (eram 32) foi construído no início do século I d. C. , mas aquilo que vemos é já uma reforma, efectuada menos de 100 anos depois, explica André Carneiro. O império romano passava por uma fase conturbada depois da morte de Nero, em 68; no ano seguinte dá-se início à dinastia dos Flávios. “A reconstituição da autoridade imperial tem um programa urbanístico — há uma reforma para embelezar as cidades, uma espécie de Programa Polis. ” Aqui, neste templo, “substituiu-se o granito por mármore nos elementos decorativos. . . O mármore deu-lhe uma harmonia, uma imagem de autoridade e sofisticação”. O mais provável é que o leitor pense que estamos a falar do Templo de Diana. E estamos. Ou melhor, estamos mas ele na verdade nunca foi um templo de culto à deusa da caça, como pretende indicar essa designação, “inventada” no século XVI, afirma o arqueólogo. A explicação para isso implica um salto (Évora obriga-nos a dar saltos constantes na história porque frequentemente a vemos entrecruzada no mesmo ponto geográfico). O rei D. João III passava aqui muito tempo e as elites locais começaram a fazer pressão para que a capital se transferisse para cá. “Um dos argumentos é que esta era uma cidade honorífica na época romana — não, era uma cidade modesta; Beja era bem mais importante. . . Neste ‘lobby’ de sensibilização do rei, um dos elementos são os monumentos romanos visíveis. A elite cria uma história com base num passado glorioso, para dizer que todas as figuras da história de Roma tinham passado por aqui”, incluindo a deusa Diana, “em termos figurativos, claro”. Seguindo viagem. Descemos uma rua, viramos à direita e não tarda estamos em frente ao arco de Santa Isabel. Um arco romano bem preservado que tem por cima, sobreposto, o arco da muralha medieval. Era a porta norte. Os blocos de granito de lado e as pedras do lajeado também são herança romana. “Aqui começava a cidade, para lá era o território rural. ”As escavações são difíceis de fazer numa cidade — a maior parte dos achados aparecem durante as obras urbanas — e ficam peças por estudar e resultados por divulgar, queixa-se André Carneiro. “Em qualquer buraco que se faça aparece um conjunto de testemunhos de várias épocas. Há múltiplas camadas aqui por baixo. ”Estamos agora no edifício da Câmara Municipal, um antigo palácio onde se encontra o que resta das termas. Uma espécie de sauna, com uma grande banheira circular com três degraus, rodeada por arcos, onde estavam as fornalhas para aquecer toda a área. “Era um espaço público e uma parte do itinerário de banhos quentes, tépidos, frios e com tratamentos de massagem. Era o grande lugar onde se conversava e faziam acordos, negócios, alianças. ”Não há vestígios visíveis da primeira muralha, construída no século I, mas há da que foi erguida no século IV, mais recuada, chamada ainda de Cerca Velha: “Não se sabe porquê, mas houve necessidade de encolher a cidade. ” Se passarmos na Rua da Alcárcova de Cima podemos ver alguns testemunhos dela. Não há como não reparar na Caixa de Água, construída em 1536 como se fosse um pequeno templo clássico — mais uma vez, “a recuperação da memória romana leva a fazer coisas intencionalmente falsas, um pastiche”. Mas “esse espírito do século XVI”, que tornou Évora a capital do Renascimento em Portugal, está ainda mais visível na Igreja de Nossa Senhora da Graça, com “uns homens barbudos sentados em cima dos pilares [no pórtico]: os titãs do imaginário mitológico clássico, que são guardiões desta igreja, que imita um templo grego ou romano. . . O imaginário pagão a conviver com as forças do clero”. Este foi o “apogeu da cidade”. “Com D. Sebastião, Évora sai do mapa. Depois perde-se a soberania para os espanhóis e acaba tudo muito rapidamente. ”“A memória é das coisas que mais me interessam. Temos uma febre de guardar tudo e ainda não percebi se vale a pena — tem que haver equilíbrio entre o direito de guardar e o direito de esquecer”, diz António Bexiga. Não estávamos a falar de património edificado, pedras ou vestígios arqueológicos, mas de música. “Um povo sem memória não sobrevive. Ou sobrevive mas transforma-se noutra coisa. A música tradicional talvez sirva para nos pôr de pé, perceber quem somos. ”António Bexiga chega ao café Estrela D’Ouro com a sua viola campaniça na mão, vindo de um ensaio. É uma réplica de uma das mais antigas que se conhecem, “tem um som quase latão, rude”, como faz questão de mostrar. Nasceu em Évora, há 40 anos, mas a sua raiz está noutro lado, em Ferreira de Capelins, uma pequena aldeia junto ao Guadiana e junto à fronteira. Foi lá que passou a infância e início da adolescência. “Cresci no meio rural, diz-se que são os guardiões das tradições. Mas eu sou da raia, onde as coisas acontecem mais depressa. ” Viu a série Verão Azul antes de toda a gente, e O Justiceiro era o El Coche Fantastico. “Ninguém da minha geração cresceu com música tradicional. O maior contacto com a música popular era nos bailes da aldeia. Uma senhora vestida com mil saias a dançar o vira não era sexy. ” A sua “praia” era o rock, e já em Évora, onde estudou piano na Academia dos Amadores de Música, tinha uma banda chamada Swamp. Era a época da MTV e dos videoclips. “Queríamos ser aquilo, não o rancho folclórico que representava o passado. ”Mas depois de andar “por muito sítio a pregar o associativismo” acabou por se encontrar com o tal passado. Encontrou-se com a viola campaniça, por exemplo. “Sinto que aquilo é meu. Faço um acorde e sinto que estou em casa. ” A viola campaniça, com uma forma cintada, mais pequena, está muito ligada ao Alentejo. Para António Bexiga tem “um som de síntese”, de uma genética “muçulmana, judia, cristã e tudo o que não é nada disso”. “Senti que a minha história estava ali. ”Tocou com o grupo Uxu Kalhus, formou o Bicho do Mato (misturando rock com folk). Já andou o suficiente por aí para poder dizer: “Há sítio mais inspirador do que este, com tanta história para contar? Vivo no centro histórico e todos os dias descubro uma coisa nova, um detalhe, uma janela, uma torre que nunca tinha visto. E todos os dias encontro pessoas de todo o mundo. Há algum cosmopolitismo, à sua medida. Já toquei com pessoas do Cazaquistão, aqui, sem sair de casa. ” Esse é, pois, o seu património da humanidade. Depois da conversa com António Bexiga damos um salto ao Fórum Eugénio de Almeida, o antigo Palácio da Inquisição — Évora foi a primeira cidade do país a ter tribunal da Inquisição, em 1541, e estima-se que tenham sido ali julgadas 22 mil pessoas até à sua extinção, em 1821. No espaço onde antes eram celas e salas de julgamentos, há agora obras de arte para nos ajudar a reflectir sobre o mundo à nossa volta. Este ano, e não por acaso, a reflexão foi dedicada ao património: “Como é que a contemporaneidade pode pensar sobre o património?”, resume Filipa Oliveira, directora artística do Fórum. A Fundação Eugénio de Almeida foi criada, há mais de 50 anos, para contribuir para o desenvolvimento regional nas áreas sociais, educativas, patrimoniais e espirituais. Porque por trás deste edificado histórico, “há uma pobreza muito grande e questões sociais complexas”, explica Filipa Oliveira. “Évora está dentro de muros, é uma cidade fechada. A cultura não tem um papel central na vida da cidade. . . A preservação do património tem uma importância muito maior do que a reflexão sobre ele. ”A propósito dos 30 anos da classificação, o Fórum organizou o ciclo de conferências Cidades Invisíveis — nome inspirado na obra de Italo Calvino e a que fomos buscar o título desta reportagem. Dois antropólogos, Eglantina Monteiro e Pedro Prista, falam então de património. A primeira desafia a que se “patrimonialize tudo, o mundo inteiro, e depois logo se verá o que se exclui”. Já Pedro Prista centra o debate nas cidades, “onde há os recursos para a humanidade olhar para si mesma”. O património faz parte desses recursos, ao “estimular a nossa vontade de ser socialmente”. Mas até um enorme templo romano se pode tornar invisível se não soubermos porquê e como precisamos dele. É preciso estimular o interesse e “evitar a noção ornamental, solene, altiva, como coisa visitada”, adianta Prista. Ou seja, precisamos de nos interrogar: que criatividade pode nascer a partir da curiosidade que o património nos suscita? Como fala connosco? Os recursos usados para a sua preservação geraram eborenses novos?Ana Paula Amendoeira, directora regional de Cultura do Alentejo, diz que a classificação “funciona como um espelho”. “A valorização foi feita de fora para dentro, criou orgulho aqui por haver um reconhecimento do exterior. E foi um contributo para a legitimação da conservação da cidade. ” Na altura, nem se falava na consequência que agora parece evidente: o crescimento turístico. “Ainda antes do 25 de Abril Évora era a chamada cidade-museu, já muito visitada. ” Mas fora de muros havia uma outra cidade, cheia de casas clandestinas. E ao mesmo tempo que se candidatava Évora a património da UNESCO, pedia-se ao arquitecto Siza Vieira que construísse o bairro da Malagueira, para habitação social: “Foi a experiência mais fantástica de construção de uma cidade nova, provando que é possível construir habitação social com qualidade e bem pensada”, comenta Ana Paula Amendoeira. “Foi uma experiência fundadora”, que partiu de um processo participativo com a população. Abílio Fernandes fala também na importância de criar condições de vida para as pessoas que viviam às portas da muralha — foi eleito presidente da câmara logo a seguir ao 25 de Abril, e passou os 25 anos seguintes à frente do município. “Não tinham água, não tinham luz, não tinham esgotos. Durante anos andámos a resolver os problemas de infra-estrutura básica para que as pessoas tivessem o mínimo de condições. ”Mas também se tornou claro que do lado de dentro havia um património para cuidar, e que incluía casas onde as rendas eram baixas e muitas vezes os senhorios tinham dificuldades em fazer obras. A autarquia aprovou então o primeiro plano director municipal do país, orgulha-se. “Definimos as prioridades e começámos a apoiar directamente as pessoas que viviam mal. ” O passo seguinte foi apresentar a candidatura à UNESCO. “A classificação iria dar-nos o reconhecimento que tínhamos ali uma grande valia; e com essa valia poderíamos ir buscar fundos e apoios — o que nunca aconteceu, porque a classificação foi feita, mas não houve nenhum apoio financeiro. ”O centro histórico tem a sua população envelhecida, “pessoas que sempre cá viveram”, mas também uma classe média vinda de fora que escolheu comprar casa aqui: professores universitários, quadros superiores, afirma o vereador Eduardo Luciano, encarregado do Património. De qualquer forma, não é suficiente para conter o despovoamento. Na década de 1960 viviam dentro das muralhas 19 mil pessoas; actualmente são seis mil. Dos 4364 fogos, 1163 estão devolutos, indica a câmara, com base nos números recolhidos em 2011, quando foi feito o último levantamento. A população estudantil, duas mil pessoas, dá uma ajuda. “Faz a cidade mais viva, mais segura. Há gente em permanência na rua”, avalia o vereador. Fora da muralha, é toda uma outra história. A zona residencial fica a norte, a oferta de emprego — com o parque industrial e as fábricas aeronáuticas — a sul. “Sempre houve duas cidades”, diz Eduardo Luciano. “As pessoas que moram a 100 metros das muralhas dizem ‘vou à cidade’ quando vão ao Giraldo. ” Não tem dúvidas de que a classificação foi “um marco” e que o olhar sobre Évora mudou. “Não é um monumento, é um conjunto: prédios, edifícios, todas a trama da cidade velha. . . O que foi classificado foi também um modo de viver a cidade”. Uma cidade não é um organismo unicelular. Para irmos por um caminho deixamos uma infinidade de outros de fora. José Alberto Ferreira gosta de percorrer artérias pequenas, aquelas por onde não passam turistas, por onde não passa mesmo ninguém. Encontramo-nos na Igreja de São Vicente, ao lado de uma rua onde agora os estudantes universitários assentam arraiais acompanhados de Coca-Cola e cervejas. De local de culto passou a depósito do Exército de Salvação Nacional, no início do século XX; nos anos 1960 foi devolvida à Câmara e com o 25 de Abril tornou-se um espaço cultural. É lá que está a Colecção B, uma associação cultural dirigida por José Alberto Ferreira, professor no Departamento de Artes Cénicas da Universidade de Évora. Programa exposições, promove debates, organiza ciclos de cinema (este mês foi dedicado a uma trilogia de Godfrey Reggio, numa “reflexão sobre as lógicas de desenvolvimento e choque”). Às vezes há teatro, outras concertos, para um público que é sobretudo feito de estudantes, professores, uma certa elite. Como o cenário era sempre o mesmo — o retábulo do século XVII — decidiu virar o palco para o outro lado, de costas para o altar. Não são teológicas as suas inquietações (pelo menos as que partilhou connosco). “O nosso trabalho é a paisagem, as características poéticas do território”, que é sempre “o lugar da criação”. Daí ter organizado um festival chamado Escrita na Paisagem. Mais uma vez: havia teatro, havia música, havia dança. . . Até não haver dinheiro. Começamos então a andar pela sua paisagem, a sua Évora. A dois passos dali há o Largo de Álvaro Velho, com dois imponentes jacarandás, que na Primavera ficam pintados de roxo. Do outro lado, a Pousada da Juventude. “Até ao ano passado era um largo vazio, com carros estacionados. ” Agora tem esplanadas e está fechado ao trânsito. “Os largos pequenos são uma das qualidades da cidade que valia a pena limpar e requalificar. ” Um dos exemplos disso é o Largo da Misericórdia, tão perto dali. Mais jacarandás ainda, “que dão uma bela sombra no Verão”. Em vez de ser zona pedonal, é zona de passagem automóvel, critica. Mas não é só essa lacuna que o preocupa, longe disso. “Devia haver um programa de residências de escritores. É uma maneira de a cidade se descobrir através dos olhares dos outros, de se transformar. ”Nasceu em Coimbra, viveu no Porto, Évora só surgiu depois. E o seu “património” aqui são as “raízes rurais que a cidade teima em esquecer”. Por exemplo: todos os sábados de manhã juntam-se no mercado municipal vários produtores locais. Cada vez há menos, diz, “porque as pessoas mais facilmente vão ao hipermercado, não procuram essa produção”. “Património é termos uma cidade com estas dimensões e podermos vivê-la nesta escala. As pessoas teimam em apostar numa escala maior. ” A cidade não tem um centro comercial, vários residentes se queixam, mas em contrapartida, “o que é que isso permite que a cidade seja?” Permite que “as ruas estejam cheias de lojinhas, que o carro fique do lado de fora e que se entre na muralha para fazer compras”, enumera. “Não viver essa escala é perder um património. A cidade precisa de um programa educativo que explique o valor da pedonalidade, do consumo local, da relação directa com o território, com o ambiente. ”Atravessamos a Rua da Alcárcova de Cima, estreita, “um caminho de fuga”. Passamos pela Fábrica dos Pastéis onde Inácia Junca recuperou uma receita antiga e faz uns pastéis de nata estaladiços. O café, que tem como boa parte da parede interior a muralha romana, “corre o risco de se tornar um hit e deixar esta rua impraticável”, prevê José Alberto Ferreira. Gosta de percursos que “passam pelos sítios certos mas pelas vias pequeninas — cendeiros, como se diz no Alentejo para os caminhos estreitos do campo”. Não tarda estamos no Templo Romano. Voltamos a descer. Entramos na Rua de São Joãozinho — “a menos frequentada da cidade”, um pequeno beco que liga a zona da Sé ao Largo da Misericórdia e que, talvez por não ser lugar de passagem frequente, tem paredes grafitadas. “Nunca me cruzei aqui com ninguém”, afirma. Os turistas não tomaram ainda conta de Évora, mas estão em massa nas vias mais centrais. “Não podemos ser apenas os agentes do turismo, dos que têm interesses económicos. Isso é redutor”, lança Ana Paula Amendoeira. “Tem que haver educação patrimonial, cultural. A história do nosso território tem que ser ensinada e aprendida. Só valorizamos o que conhecemos e o que nos interpela. A história e a memória não são nunca dispensáveis. ”É um pouco por causa disso que todos os sábados de manhã, às 11h30, quem quiser pode entrar no número 8 da Rua da Corredora, onde mora a associação É Neste País, e ouvir uma história. E “todos os ouvidores podem ser contadores”, diz Gertrudes Pastor. No sábado passado foi uma mãe com o filho de oito anos. Há uma caixa onde cada um deixa o que quiser e que serve para convidar contadores de fora. O cartaz com a programação mensal está à porta, e todos os meses ele alude a uma história tradicional (a deste mês é a galinha dos ovos de ouro). Na hora do conto há biscoitos feitos ali — “É como em casa da avó”, afirma a anfitriã. “Trabalhamos a nível da comunicação, da promoção da leitura e da tradição oral. . . Acrescenta-se ao património construído este património imaterial”, explica. Todos são envolvidos, desde as crianças, nas escolas, aos mais velhos, nos lares — “para dar a ouvir a ouvi-los a eles”, recuperando uma tradição oral que também está em risco de se perder. Manuel Dias também faz parte da associação — ele e os seus bonecos. Os Robertos — o toureiro a cavalo, o fadista, o forcado, o touro, o diabo. . . — e todos os outros que de vez em quando desperta do sono. Marionetas, cabeças de madeira, luvas, lenços, tudo pode transformar-se em vida humana. Na oficina, que fica no mesmo espaço da associação, há um palco com panos pretos, onde se fazem alguns ensaios. É também aqui que constrói as suas marionetas. Mostra uma que está em “esqueleto”, com o mecanismo para pegar e manipular bem à vista, sem roupa. É um objecto complexo e manipulá-lo é como tocar um instrumento. Muitas vezes há música a acompanhar as suas actuações — ao vivo (António Bexiga é um dos músicos com quem trabalha) ou gravada. Não há textos, mas há uma narrativa, que gira muito à volta do bem e do mal, da vida e da morte. “A morte é uma coisa que marca os marionetistas. Temos uma relação difícil com os bonecos: quando morremos não sabemos o que lhes vai acontecer. Eles têm um fragmento de vida cada vez que mexo neles. Só assim resulta com o público. Sabemos que não estão vivos, mas há este jogo. ”Os Robertos são a sua ligação mais imediata à tradição — tem a palheta para fazer a voz metálica característica dos bonecos, e a cana de bambu rachada para tornar sonoras as pancadas que eles dão uns aos outros. Mas neste momento interessa-lhe também, se não mais ainda, o lado experimental. Em qualquer dos casos, é tudo uma grande brincadeira: “Nós não fazemos espectáculos, brincamos. ”O sol voltou, depois de um dia inteiro de chuva miudinha. Ao final da manhã, a esplanada do café Arcada, na Praça do Giraldo, enche-se de gente. Velhotes lêem o jornal em bancos virados para o sol. O vendedor de castanhas vai agitando o assador. Passam crianças da creche em fila indiana, passam homens de pasta na mão, passam mulheres apressadas, jovens de mochila às costas. Aqui e ali há pequenos grupos de gente à conversa. Deste largo parte a Rua 5 de Outubro, que começa com a livraria Nazareth (1897) com livros de cozinha e tricot na montra. Toda a rua é um mar de cortiça para os turistas. Há poucas excepções. Há a Gente da Minha Terra, uma loja de artesanato com produtos da região, e a livraria Fonte das Letras, que tem à porta uma máquina que vende poemas a troco de uma moeda de 50 cêntimos, como aquelas de onde antigamente saíam bolas de pastilha elástica. Calhou-nos Sentimento de um ocidental, de Cesário Verde. Geralmente, a montra passa alguma mensagem sobre o momento que se está a viver. Um dia depois de Donald Trump ter ganho as eleições presidenciais americanas, está toda vermelha, e entre os vários livros encontramos o Manifesto Surrealista de André Breton. Foi também à volta de livros que começámos a conversa com o fotógrafo José Manuel Rodrigues. Marcou encontro na Biblioteca Pública, um edifício do século XIX com uma sala de leitura sossegada, forrada de antiguidades. “Foi aqui que li os meus primeiros livros proibidos [antes da revolução]. Tinha cá um amigo. Passei aqui muitas tardes. ”José Manuel Rodrigues era bem pequeno quando os pais se mudaram de Lisboa para uma quinta às portas de Évora. O pai, que não gostava que ele andasse pela biblioteca, queria que fosse trabalhar para a sua fábrica de vidros e espelhos; ele escolheu os espelhos, sim, mas de outro tipo. Aos 17 anos, partiu para Paris, depois para a Holanda. Quando regressou definitivamente, em 1995, foi em Évora que se instalou. Fotografava a cidade de forma exaustiva, sistemática, quase como um documentalista obsessivo: igrejas, conventos, o património edificado, “dificilmente haverá sítio onde não tenha estado”. Mas não era pelo que lhe diziam as pedras. “Interessei-me sempre pela vivência das pessoas. O património existe desde que esteja ligado a pessoas e elas saibam tirar lições dele. ” No seu caso, as ruínas, as fendas, as frestas, deram-lhe “asas para interpretar a parte histórica e ver a sua utilização através do tempo”. E se o fez com todo aquele método foi para o “obrigar a cumprir” a sua “missão de fotógrafo”. No processo, a memória emerge: “Um pequeno detalhe mostra-nos uma coisa muito grande. ”Também apontou a câmara para as pessoas “que tinham um conhecimento ancestral fantástico, tinham aprendido com mestres” e conservavam uma memória que se arriscava a perder-se. “Eram trabalhadores manuais, com um conhecimento muito profundo das coisas e comecei a fazer retratos: ferreiros, carpinteiros, marceneiros. A cidade estava cheia deles. ” Agora, resta muito pouco disso. Saímos da biblioteca, passamos a Igreja do Espírito Santo, bem ao lado da Universidade (que em 1559 se tornou na segunda do país). José Manuel Rodrigues gosta particularmente da sacristia, com os seus frescos sobre a vida e morte de Santo Inácio de Loyola. Mas a igreja está de portas fechadas, por isso só nos resta descer a rua. Aponta em frente, bem para lá dos muros, para a Ladeira da Boa Morte: “Aqueles campos tiveram uma enorme influência em mim. ” Todos os dias os atravessava para ir para a escola: cinco quilómetros a pé. “Fortaleceu muito o meu lado poético, o admirar as coisas. ”No caminho, passava pelo Matadouro, espreitava por uma fresta e via os animais a serem puxados com cordas, o sangue a escorrer no chão. Desde 1985, o espaço é outra coisa. Pedro Fazenda abre-nos a porta. Dezenas e dezenas de esculturas espalham-se pela antiga fábrica de morte, ocupam as traseiras onde cresce vegetação selvagem, invadem o edifício, agora sem telhado, onde antes os porcos eram abatidos. Há alguns vestígios da utilização anterior, mas as vidas das pedras falam agora mais alto. Quem quer chega e desenvolve o seu projecto. O importante é aproveitar o espaço para que haja “um jogo com a comunidade”. Para José Manuel Rodrigues, Évora também são os cafés e os clubes. Como o de pesca, por onde se entra através de um logradouro de um palacete, com carros estacionados, para encontrar um pequeno bar, uma mesa de snooker e uma vitrine cheia de troféus. Locais “onde os turistas não entram”. Estamos a caminho da Casa de Vasco da Gama, com os seus frescos num claustro ao ar livre, do século XVI, com uma temática mitológica e naturalista, que inclui um dragão de sete cabeças, sereias, tigres e serpentes. . . Tudo isto impossível de fotografar: “Nunca se consegue a cor certa. ” De qualquer forma, não era por isso que o fotógrafo aqui vinha com tanta assiduidade quando era jovem. “Isto era um paraíso, um refúgio na cidade, um sítio onde se conseguia estar isolado. O jardineiro era da Madeira e trouxe a ilha para aqui. Isto estava cheio de plantas. Claro que os frescos sofriam com isso. ”Imaginamo-lo aqui sozinho a imaginar partir. De um lado a terra, as raízes; do outro, as viagens e o salto para o desconhecido dos frescos infotografáveis. “Os eborenses têm a cidade como o centro do mundo”, observa José Manuel Rodrigues. E logo a seguir relativiza: “Somos uns animais com algumas artes, mas é tudo. ”Fórum Eugénio de Almeida, Largo do Conde Vila Flor, Tel. : 266 748 350É Neste País, Rua da Corredoura, 8, Tel. : 266 731 500Colecção B, Tel. : 931 763 350, jaf@escritanapaisagem. netSociedade Harmonia Eborense (SHE), Praça do Giraldo, 72Café Alentejo, Rua do Raimundo, 5, Tel. : 266 706 296Botequim Da Mouraria, R. da Mouraria 16, Tel. : 266 746 775Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O Combinado, R. de Machede 95, Tel. : 266 700 627Opções não faltam e o posto do Turismo de Évora pode dar uma ajuda. Fica na Praça do Giraldo, 73; tel. 266777071.
REFERÊNCIAS:
Um concerto morno, um murro no estômago
Morrissey esteve cá e celebrou-se o momento. Moderamente, sem a aura dos grandes acontecimentos. (...)

Um concerto morno, um murro no estômago
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.6
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Morrissey esteve cá e celebrou-se o momento. Moderamente, sem a aura dos grandes acontecimentos.
TEXTO: Tínhamos visto as fotos do homem a passear por Lisboa no dia anterior e, portanto, estávamos razoavelmente serenos. Era quase certo que, ao contrário de 2012, quando cancelou o concerto agendado para Portugal, Morrissey não falharia. Em Junho passado, problemas pulmonares obrigaram à interrupção de parte da sua digressão americana. Quatro meses depois, neste 6 de Outubro, Morrissey esteve mesmo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para dar arranque à apresentação europeia do recente World Peace Is None Of Your Business. Esse álbum de história atribulada (a editora Harvest deixou-o cair três semanas após a edição e Morrissey, despeitado, não se ficou: “Fuck Harvest” leu-se nas t-shirts dos músicos que o acompanharam em Lisboa) foi, naturalmente, a base de um concerto com história (Morrissey veio mesmo, Morrissey continua com uma voz imponente, Morrissey tocou quatro canções dos Smiths), mas com pouco de verdadeiramente memorável (é louvável que não se prenda ao passado e que queira provar a relevância do seu presente, mas, enfim, com as canções tépidas que preencheram parte considerável do alinhamento, adornadas com guitarras acústicas e teclados ambientais de perigoso teor soporífero, ficam as intenções e caem os argumentos). Tudo começou antes de o vermos em palco. Em vez da música tocada pelo sistema de som, uma experiência audiovisual: vídeos de Charles Aznavour; imagens dos Ramones; os New York Dolls, inspiração de sempre, em actuação na televisão alemã; ouThe bullfighter dies, canção que constaria depois do alinhamento, acompanhada de imagens de touradas em que, sim, o touro saiu vencedor (ouviram-se os primeiros aplausos da plateia e o concerto ainda nem começara). Morrissey, as suas referências e as suas batalhas. Morrissey, o egocêntrico, o cantor que elevou a depressão e a devastação sentimental a arte maior, o activista sem freio, no centro das atenções, no centro do palco: a rainha de Inglaterra surgindo nos ecrãs em pose pouco real (dois piretes erguidos à multidão que preenchia três quartos do Coliseu) e o ícone pop a aparecer depois dela. As primeiras palavras: “Acredito que vivemos num mundo de violência sem precedentes”. Segue-se o clássico The Queen is dead. O som está demasiado baixo e a voz sobressai na mistura mais do que o desejável mas, por agora, nada disso interessa. O homem chegou. O homem que veste calças brancas, camisa igualmente alva, e que usa um pendente verde sobre o peito meio descoberto, está a cantar The Smiths. Não seria preciso muito. Seria até bastante fácil (demasiado, diríamos), fazer do concerto uma celebração tão festiva quanto, obrigatoriamente, nostálgica. Bastaria interpretar canções dos Smiths atrás de canções dos Smiths, polvilhadas de passagens criteriosas pela carreira a solo, e Morrissey teria a sala a seus pés. Fazê-lo, porém, seria desvirtuar a sua própria natureza. Falamos, afinal, do cantor que há cerca de um ano, quando lhe foi requisitada uma lista dos melhores álbuns em que participou, colocou nos lugares cimeiros os três últimos que editou a solo (e não incluiu nela um único dos Smiths). Para Morrissey o agora é mesmo agora (não, não ouvimos How soon is now). Viajámos por Vauxhall & I, um dos mais celebrados álbuns a solo, com Speedway, ouvimos Certain people I now, de Your Arsenal, e a belíssima e muito aplaudida e muito cantada I'm throwing my arms around Paris - irresistível o dramatismo blasé daquela voz a cantar estes versos: “In the absence of your love / And in the absence of human touch / I have decided I'm throwing my arms around Paris / Because only stone and steel accept my love”. Entre elas, o manifesto anti-tourada The bullfighter dies, com a energia pop dos primeiros momentos a solo, e um sopro mariachi a introduzir Kiss me alot. Depois, a investida decidida em World peace is none of your business. O que não é um problema, de todo, quando se ouve a canção título do álbum, interpretada com a graciosidade Motown e o tom "Scott Walkeriano" preservado em disco. O que se torna um problema quando surgem canções como Neal Cassady drops dead, delicadeza desinspirada minada por arranjos de guitarra arraçada de flamenco, ou Kick the bride down the aisle, canção pop anónima de que não nos recordaríamos não fosse a foto projectada nos ecrãs, mostrando o príncipe William e sua mulher, Kate Middleton, sob a legenda “United King-Dumb”. Sem grandes conversas, como é de resto habitual nele (uns “obrigados”, um par de “gracias”), Morrissey foi conduzindo um concerto morno com a autoridade da sua voz e o carisma da sua presença. Até que se ouve Hand in glove, a canção com que tudo começou, nos Smiths, no longínquo ano de 1983, e erguem-se telemóveis para registar o momento. Até que se ouve, depois dela, Morrissey a falar verdadeiramente. O que deve ser feito “nesta vossa bela cidade”, diz, é pegar em latas de spray e aplicá-lo em toda a publicidade à McDonalds que encontrarmos. Nada de selvajaria, de pichar simplesmente - sugere palavras para a intervenção: “No no no” ou “Shit shit shit”. O que se seguiu à declaração foi Meat is Murder, terceira canção dos Smiths da noite e aquela que deixará marca mais duradoura na memória do público. A acompanhar o terror da balada apocalíptica ("this beautiful creature must die"), o terror das imagens: a crueldade do tratamento dado pela indústria alimentar a vitelos, perús, porcos ou pintos exposta de forma terrivelmente gráfica – o vegetariano Morrissey de costas para o público, mãos na cabeça, a observar o horrível que passa no ecrã para não ver o murro no estômago desferido no público. Depois daquilo, era difícil pensar em sorrir ou em dançar como normalmente num concerto rock. Mas Morrissey não parou. Despediu-se com a batida alegre de One day will be farewell quando ainda não recuperáramos do que víramos e, então sim, abandonou o palco. O encore trouxe mais Smiths (Asleep) e a canção mais celebrada da noite, First of the gang to die. Esta útima, extraída de You Are The Quarry, o álbum do renascimento em 2004, surgiu em versão serenada, de base acústica, e quase despida da vitalidade pop que lhe garantiu há uma década o estatuto de clássico na discografia do seu autor – o que, de certa forma, serve de ilustração do que foi o concerto em parte considerável da sua duração. Morrissey cantou de flor na mão, Morrissey baixou-se na boca do palco para alcançar mãos ávidas do seu toque e despediu-se em tronco nu, depois de lançar a camisa ao público como oferenda. Morrissey esteve cá e celebrou-se o momento. Moderamente, sem a aura dos grandes acontecimentos. Em 2012, quando cancelou no próprio dia o concerto marcado para o Cascais Music Festival, não tivemos direito a nada disso. Dois anos depois, vimo-lo mesmo e ouvimos-lhe a voz. Continua expressiva como poucas. Deve ser suficiente.
REFERÊNCIAS:
Partidos BE
Perdi a cor do meu cabelo
É uma sensação estranha esta de, pela primeira vez, ter de escolher a cor do meu próprio cabelo. “O mais próximo que temos do seu é este.” Aqui sentada, à espera de que o meu cabelo acastanhe, participo num ritual com uma história muito antiga. Ao meu lado, uma cliente chega em busca “de luz”. Já eu só queria saber de que castanho é o meu cabelo. (...)

Perdi a cor do meu cabelo
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma sensação estranha esta de, pela primeira vez, ter de escolher a cor do meu próprio cabelo. “O mais próximo que temos do seu é este.” Aqui sentada, à espera de que o meu cabelo acastanhe, participo num ritual com uma história muito antiga. Ao meu lado, uma cliente chega em busca “de luz”. Já eu só queria saber de que castanho é o meu cabelo.
TEXTO: O meu cabelo era virgem, nunca o tinha pintado. Era castanho. Que castanho? Castanho assim para o escuro, nunca pensei defini-lo além disto, nunca pensei muito nele, crescia-me assim naturalmente, o meu cabelo castanho. Com os primeiros brancos, ou deverei dizer os segundos e os terceiros, surgiu-me na meia-idade a certeza de que queria pintar o cabelo para não o deixar tornar-se branco, como ele insistia em querer. Mas não esperava que tivesse à esquina uma nova e inesperada questão de tipo existencial: de que castanho é o meu cabelo?As raras vezes que vinha ao cabeleireiro, antes de ter cabelos brancos tão viçosos, era para cortar o cabelo de forma vigorosa, para cortar muito cabelo, porque não gosto de cá voltar nem do tempo que aqui perco. Essa época da minha vida acabou. “Vai pintar?” “Sim”, respondo. “Tem preferência de colorista?” E é esta a primeira novidade. Existe uma profissão chamada colorista. Há uma secção no meu cabeleireiro que desconhecia e agora tenho de passar pelas mãos de uma destas profissionais. Acomodam-me numa das quatro cadeiras reservadas a quem vai ser pintado o cabelo. Olho-me no espelho enquanto espero pela colorista que não escolhi e penso nas consequências de me calhar a pior do cabeleireiro. Não é só escolher uma cor igual à minha? Não é só empaparem-me o cabelo com uma mistela malcheirosa e esperar pela transformação lendo revistas sobre realeza de palácios e de ecrãs?Chegou finalmente a minha colorista, a quem pergunto o nome, é a Raquel, digo-lhe que me chamo Catarina, num tom talvez exageradamente simpático, porque acho que isso poderá criar entre nós uma ligação e quero aumentar a probabilidade de me tratar bem do meu castanho, como aquelas pessoas que dão prendas aos médicos na esperança de que lhes tratem melhor da saúde. A minha colorista abre uma mão sobre o meu cabelo, como se os seus dedos fossem um pente a fazer espargata, levanta-o, estica-o, chama-se a este acto, jargão de colorista, “fazer o diagnóstico”, e pousa-o no seu estado original, acachapado. O espelho, sob a luz intensa dos holofotes, devolve-me alguns dos meus brancos, nunca os vi tão bem iluminados, serão aqueles alguns dos que eu, antes de capitular à coloração, tinha tentado perseguir com uma tesourinha? Cada vez que descobria um caçava-o, isto antes de grupos de cãs se unirem entre si, contra mim, para formarem legiões de tufinhos prateados. A minha colorista constata que me encontro no espectro de cabelo “com menos 70% de brancos”, ponto que, pelos vistos, se considera sem retorno, algo como os 65 anos e os descontos automáticos no passe social. Para o meu caso recomenda-me a mais impermanente e inconspícua das soluções cromáticas, chama-se “tom sobre tom”. Soa-me bem. Não pinta os brancos, torna-os transparentes. Será no fundo como andar com os brancos à mesma, mas à paisana. Concordo com a solução. A minha colorista traz-me então um grande volume de capa dura e lombada grossa. É o menu. É uma sensação estranha esta de ter de escolher a cor do meu próprio cabelo. Neste cardápio há uma série de mechas de cabelo perfeito de várias cores onde eu não me encontro. E pergunto-me se, talvez, sendo Portugal um país de morenas, não devesse o inventário ter uma paleta de castanhos mais alargada do que esta. A colorista palpa uma madeixa e sigo-lhe o exemplo, como se com o tacto pudéssemos sentir a cor: “O seu é assim mais ou menos este. ” Mais ou menos este. Tenho de me contentar com uma aproximação. Não acho que o meu cabelo seja daquela cor, mas é ela a especialista, e eu coloco-me nas suas mãos aceitando a sua escolha, avalizada. Vai então pintar-me o cabelo de uma cor “que é mais ou menos a minha”, mas, ressalva, o cabelo nunca fica bem da cor da melena do livro que é mais ou menos a minha. É o primeiro momento em que o castanho que ainda é o meu começa a perder nitidez e em que penso que talvez esteja prestes a despedir-me dele. Nesse momento, o da pós-escolha, a colorista abandona-me e penso que talvez me devesse ter fotografado neste momento. Percorro o meu passado capilar em algumas fotos. Vejo-me num berço de grades na maternidade onde nasci, que hoje seria proibido, completamente careca; depois na minha foto ao colo do meu pai, que nessa altura usava um bigode à anos 1970, na Praia das Maçãs; eu adolescente na ilha de Faro, na primeira vez que passei férias sem os meus pais, cabelo castanho luzidio com nuances douradas dos dias de praia. A colorista volta e, depois de me empapar o meu cabelo e de o esconder, coloca-me um cronómetro à frente, daqueles de cozinha, que apita quando o assado no forno já está pronto. Aqui sentada, à espera de que o meu cabelo acastanhe, participo num ritual com uma história muito antiga. O antropólogo Justine M. Cordwell escreve, no ensaio As Artes muito Humanas da Transformação, que “talvez o corpo humano tenha sido a mais antiga superfície onde o homem aplicou tinta” e que a “preocupação humana com a aparência”, esta necessidade de nos “autodecorarmos” para atrasar o tempo ou para corrigir a natureza, é tão antiga como a humanidade. Tão universal é esta necessidade “que estamos quase tentados a considerá-la um instinto”. Os antigos egípcios preferiam o preto. Mas não pintavam os cabelos directamente nas cabeças. Rapavam-nas e depois criavam perucas com os seus cabelos que ornamentavam e usavam para proteger as carecas do sol, descreve um artigo da revista americana Atlantic intitulado “Tinta para cabelo: uma história”. Por volta do século XII antes de Cristo, o preto perdeu peso. Começaram a usar-se plantas para colorir as perucas de vermelho, azul, verde, também se usava o pó de ouro para dar ao cabelo uma cor amarela. No Império Romano, as prostitutas tinham de se auto-sinalizar pintando o cabelo de amarelo, algumas embebiam os seus cabelos numa solução feita de cinzas de plantas queimadas ou nozes para atingir essa cor de forma química. Plínio, historiador romano que viveu entre 23 e 79 depois de Cristo, descreve-nos, por seu lado, uma tinta vermelha usada pelos guerreiros germanos para tingir os seus cabelos, feita de sebo de cabra, cinzas e sucos coloridos de plantas, escreve Álvaro Santos em Beleza à Flor da Pele (Plátano Edições). Os antigos também coloriam os cabelos usando açafrão, anil e alfafa. Das tintas naturais, a hena continua a ser usada, ainda hoje, com esse fim. O problema das tintas naturais era serem demasiado temporárias. Análises a amostras de cabelos de gregos e romanos mostram que se usava tinta preta “permanente” há milhares de anos, misturando substâncias que hoje se sabe que são óxido de chumbo e hidróxido de cálcio. Quando a aplicação directa do chumbo se demonstrou demasiado tóxica, os romanos passaram a produzir a sua tinta de cabelo preta através da fermentação de sanguessugas durante dois meses em recipientes de chumbo, descreve o artigo da revista Atlantic. Mais à frente no tempo, o livro de dicas femininas Delícias para Senhora, publicado no início do século XVII, revela-nos, por exemplo, que o óleo de vitríolo era recomendado para colorir de castanho o cabelo preto, recomendando-se, contudo, que durante a pintura se evitasse “o contacto com a pele”. “Um conselho sábio, uma vez que hoje se sabe que o óleo de vitríolo se trata de ácido sulfúrico”, ironiza a autora da revista norte-americana. No século XVIII já o louro tinha feito o seu caminho. Nessa altura, as mulheres venezianas espraiavam-se ao sol em terraços, com o seu cabelo ensopado em soluções corrosivas de lixívia para obter mechas de cabelo dourado. A chegada à tinta industrial do cabelo foi acidental, continua o artigo da Atlantic. Imagine-se a desilusão quando o químico inglês William Henry Perkin, ali para meados dos anos 1800, descobriu a primeira tinta para cabelo sintética, quando tentava descobrir a cura para a malária. No meu cabeleireiro, a campainha zune passados 30 minutos, mas é preciso secar o cabelo para saber de que castanho ficou. Mudam-me de cadeira rapidamente para a secção de corte — o cabelo ainda oculto sob a toalha —, secam-no e a minha cabeleireira começa rapidamente a talhar-me o cabelo. Vejo as mechas a encherem-me o colo, num momento inicial fico feliz por já não ver brancos, os fios tombados uniformemente escuros, unos, mas não os reconheço. Se visse uma destas madeixas num catálogo à la carte não escolheria este meu cabelo como sendo meu. Mas depois tento desvalorizar a tristeza sentida. Será que alguém consegue reconhecer um seu próximo a partir de um catálogo de madeixas? Reconheceria eu o cabelo do meu pai? Da minha mãe? Dos meus filhos? A resposta provavelmente seria “não”. O cabelo não é assim tão reconhecível e único. Ou, pelos vistos, até é, porque a minha colorista não acertou com o meu e agora não sei que cabelo é o meu. Sei que a cor com que fiquei não é a minha, este é um castanho mais escuro, quase preto, com uns brilhos estranhos que nunca tive. Chego a casa e tenho a confirmação: “O teu cabelo não é dessa cor. ”Mas fora de casa a minha mudança não é notada. Passaram-se poucos meses e os cabelos brancos, que parecem sempre mais fortes do que os outros, irrompem-me, de novo. Na indústria da coloração, o adjectivo “permanente” tem que se lhe diga, aplica-se aos fios de cabelo em presença no dia da pintura, porque o cabelo é todo ele impermanência e renovação. Uma cabeleira, e os seus 100 a 150 mil fios de cabelo, pode crescer a um ritmo de 0, 5 milímetros ao dia. Falta-me a disponibilidade para voltar ao cabeleireiro original, que fica fora de mão, e tento um cabeleireiro mais próximo, com a ambição de manter não o meu castanho mas o último castanho com que me pintaram, que é o que de mais próximo tenho do castanho inicial. Os catálogos devem ser todos iguais, pensei. “O mais próximo que temos do seu é este”. “Mas isto parece ruivo”, “pois, mais próximo do seu cabelo só com reflexos de caju”. E eu fiquei, numa tarde de quarta-feira, com cabelo castanho e reflexos arruivados. E se até aqui tinha passado despercebido que eu tinha começado a colorar o cabelo. . . “Pintaste o cabelo? Estás diferente?”É tudo o que não se quer ouvir. Porque toda a indústria da cosmética, toda a parafernália existe para nos fazer parecer, artificialmente, o mais naturais possível. O melhor elogio que nos podem fazer é a mudança não ser digna de nota. Um “ficou tão natural” é em si mesmo uma derrota, porque nos coloca já no terreno de uma boa imitação. Um anúncio americano dos anos 1940 ao champô de coloração Clairol vendia-se assim: “Clairol cobre o seu cabelo grisalho com tons tão verdadeiros e transparentes que rivalizam com a própria natureza. ” Slogan: “Clairol mantém o seu segredo. ”Leio que até houve um tempo em que pintar o cabelo podia arruinar a reputação de uma mulher. Era coisa de starlet e coristas, mulheres fáceis, não era para mulheres respeitáveis. Chegou a haver salões de cabeleireiro com entradas traseiras para colorações feitas às escondidas, refere o artigo da revista Elle americana intitulado “Quando e como é que as mulheres começaram a pintar os cabelos brancos”. Imagine-se a revolução que foram, ainda na década de 1950, as tintas de trazer por casa. Mais ninguém precisava de saber. Para os homens, pintar o cabelo mantém ainda estatuto de crime social. Conheço um homem que mantém, ano após ano, um impecável preto antinatura, e que cada vez que o vai pintar manda fechar o salão de cabeleireiro. Como este meu último castanho não convenceu ninguém e o segredo deixou de o ser, decido que não volto ao cabeleireiro que me pôs a brilhar em tons de vermelho. Regresso ao cabeleireiro onde mais se aproximaram da minha cor para lhes pedir a referência daquele meu castanho, para poder andar com ela na carteira, como uma espécie de palavra-passe que me dá acesso ao que de mais próximo tenho do meu castanho original, e poder decidir onde o pinto. E espanto-me quando me respondem, ainda na recepção, em tom de coisa óbvia, que não me podem dizer qual é o meu castanho. Insisto, e dizem-me que isso está na minha ficha e que não revelam esses dados à cliente. Porque “isso seria como um chef revelar a receita de um prato secreto”. O meu castanho torna-se assim uma fórmula confidencial. Obedecerá às mesmas regras do sigilo jornalístico? Do sigilo médico? Haverá um código deontológico das coloristas? Aqui me mantêm refém. Esperneio, mas é assim o mercado. E volto, obediente, a sentar-me na mesma cadeira, com uma outra colorista que me vai tingir com a minha cor, porque tem acesso ao meu “historial”, o que me soa ligeiramente a cadastro. Volto a tentar obter a referência do meu segredo, que a colorista segura num papelinho que tem na mão. Sinto que me compreende e que até gostaria de me ajudar, mas olha ao longe, um olhar que remete para o alto, e diz que nada pode fazer por mim, “só com autorização superior”. Está acima dos seus poderes de colorista. Acede, contudo, a dizer-me que o meu castanho não é um, é a mistura de dois que ela amalgama numa tigela tipo sopa, num espaço à parte, escondida de mim, ao estilo alquimista. E faz, também, mais uma concessão: pode dizer-me qual é o meu castanho-base. Não sei se revelo uma intimidade, mas o meu “castanho fundamental” é o número 5: castanho-claro. Só que o segredo completo tem mais dois números e o 5 de pouco me serve. Imaginem se fosse um cofre. O segredo completo está nesse outro segundo ingrediente que se encontra, isso pode dizer-me, na página dos “marrons frios”. E logo aí me sinto injustamente catalogada. Porque é que não faço parte da página seguinte, a dos “marrons quentes” (escrito em italiano ainda soa melhor: “marroni caldi”)? Quem é que não quer ter um cálido cabelo “marron mel”, “castanho-violino, “moca”, “café, “marron-conhaque”, “marron-avelã”, “brownie”, “marron-caramelo” ou até “acajou-ardente”?Conformada, percorro com a minha colorista a lista dos “marrons frios” com ar atento, a ver se lhe apanho um deslize e descubro se o meu será o “marron-tafetá”, o “marron-nacarado”, o “marron-chocolate”, o “louro-escuro-nacarado”, o “carvalho”, o “marron-cristalizado”, o “marron-mirtilo”, o “cristalizado”, “marron-glacê” ou o “marron-frapê” Nada atraiçoou a minha colorista. As bolandas cromáticas do meu cabelo fizeram com que agora pense que o meu cabelo, o verdadeiro, está a desaparecer, porque o meu córtex já não produz melanina em quantidade suficiente para o ir mantendo da mesma cor, como uma impressora com falta de toner, que imprime umas linhas e deixa outras em branco. Só que eu não sei a referência do meu toner e é como se estivesse a gastar os últimos cartuchos. É como se houvesse uma luta invisível a decorrer na minha cabeça: os castanhos contra os grisalhos, os fios de cabelo que mantêm a minha cor versus os fios de cabelo onde a minha cor se ausentou. O meu castanho, uma cor em vias de extinção. Se continuar a pintar o meu cabelo do castanho de cabeleireiro, corro o risco de nunca o voltar a rever. Para isso teria de deixar que ele crescesse de novo. Aqui está um dilema. Deixo crescer o cabelo, incluindo os brancos, e volto a ver que castanho é o meu para tentar nova aproximação? São vários os artigos que me informam de que há uma nova moda. Alguns títulos: “Sim, o grisalho pode ser glamoroso”, “Brasa em cinza: maravilhosos estilos de penteados prateados”, “O cabelo da avozinha está na moda”, “Como fazer furor como diva de cabelo grisalho”, “O cabelo grisalho é a grande tendência de cor em 2018”. Ou fico presa a esta aproximação ao meu castanho?À secção de cor chega uma nova cliente que se senta na cadeira ao meu lado, vê-se que é da casa, “ai Raquel, dê-me aqui uma luz”. Parece-me aquela frase demasiado mística para aquele contexto, mas a cliente continua, “quero aqui um brilho, dê-me luz, estou a precisar de luz”. E eu, que sou toda queixume interior, calo-me e decido ouvi-la: “Preciso aqui de uma alegria. ” A minha colorista assume naquele momento um poder que me parece divino, de, através da cor, conceder a alegria de viver que parece faltar a esta cliente de semblante carregado e raízes escuras. Basta-lhe nesta tarde sombria e chuvosa pintar de louro duas madeixas que segura com as mãos, “são estas”. Não tem, por ora, tempo para mais. Decido interrogá-la sobre o poder de Raquel em conceder brilho. Esta cliente de cor não tem brancos, ou pelo menos nunca os viu, do que tem saudades é de quem foi. “Eu fui loura até aos 18 anos. ” Nas raízes do seu cabelo, que há décadas pinta de louro, o castanho-escuro está a reconquistar terreno e ela quer por tudo afastá-lo da cara, ele que fique lá no fundo: “Junto à cara é que não. Ao pé da cara tem de estar claro. Modifica-me a cara, abre-me o olhar. ” Bem sabe que o seu louro de catálogo não é o que era o seu. “Fico fascinada com miúdas de 18 anos com aqueles brilhos, um brilho que nunca volta. Não há tinta que reproduza a cor do cabelo, é impossível. O cabelo fica baço, não é real. Vê-se que é um cabelo pintado. ”Eu quero o meu castanho de há uns meses, esta cliente quer o seu louro dos 18 anos, só que já sabe, de antemão, que, de todas as vezes que aqui vem em busca de luz e brilho, ele nunca regressa bem ao que foi. Mas não deixa de sair dali transformada. “Para mim, funciona, dá-me alegria. Ela dá-me alegria. ”A mim não. “Descontente com a coloração do seu cabelo? Acontece. Não se deixe deprimir”, consola-me Isabel Queirós no seu livro Cabelo a Moldura do Rosto. Conselhos, truques e. . . segredos, que consulto de forma clandestina, uma vez que me encontro na solene sala de leitura da Biblioteca Nacional, e os cabelos são, como se sabe, um assunto menor. Camuflo-o com a Historia do Belo, de Umberto Eco, que se revelou inútil nesta minha pesquisa sobre cabelos, mas onde, a páginas tantas, leio que “Tomás de Aquino recorda que para a beleza são necessárias três coisas: a proporção, a integridade e a claritas, quer dizer, a clareza e a luminosidade”. A minha colorista esclarece-me que a senhora em busca de luz não está isolada. Com a idade, as mulheres tendem a querer ficar cada vez mais louras. Diz-me que a opção de cor não tem que ver apenas com estética, mas sim com o poder que o louro tem, melhor do que os cabelos escuros, de camuflar os brancos. Mas será apenas essa a razão para tanta ânsia de louro a partir da meia-idade?Um artigo do jornal francês Le Monde, intitulado “O fim das verdadeiras louras?”, informa-me de que um terço das europeias pinta o cabelo de uma nuance de louro, face a um rácio de uma em cada 20 mulheres que tem o louro como cor verdadeira. Há, no mesmo artigo, quem advogue que a fixação do louro tem que ver com a sua raridade. Numa experiência em que a vários homens era dada a hipótese de escolherem uma potencial esposa entre várias mulheres atraentes, eram-lhes mostradas três imagens: uma de seis morenas, outra apresentando uma morena e cinco louras, e uma outra com um conjunto de uma morena e onze louras. Resultado: quanto mais rara uma morena no conjunto, mais tendência tinha a ser escolhida face às louras. O que parecia reforçar a tese da raridade. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Já a escritora britânica Marina Warner é citada no artigo a dizer que “ser louro é lembrar a cor da infância, é entrar na conquista da juventude eterna”. E há que ter também em linha de conta “a força simbólica do louro como fruto de dois séculos de supremacia do mundo ocidental, depois das colonização e da expansão americana, com as suas ‘deusas platinadas’”. A minha colega de coloração diz-me que, para si, o louro representa, para além da sua própria juventude, “anjinhos barrocos e bombas sexuais”. O que procurava talvez esteja entre uma coisa e outra. Já eu só queria que o meu cabelo castanho pintado se parecesse com o meu cabelo castanho não pintado. Quando chego a casa, dizem-me, de novo, “esse castanho também não é o teu”. No livro de Isabel Queirós fala-se de mulheres que “ousam” desde cedo pintar o seu cabelo e descobrir dentro de si “uma nova mulher”, notando que muitas dessas “novas mulheres não se recordarão já da cor original do seu cabelo”. Ao que tudo indica, daqui a uns dois meses voltarei ao mesmo cabeleireiro para me continuarem a pintar o cabelo de um castanho que mantêm prisioneiro, até chegar o dia em que eu e quem me é mais próximo não mais nos lembraremos do meu castanho primordial.
REFERÊNCIAS:
Conhecer Giosefine por artes de Mísia
Mísia agarra a audiência no que é, como ela própria o descreveu, “um duplo salto mortal entre géneros”. (...)

Conhecer Giosefine por artes de Mísia
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mísia agarra a audiência no que é, como ela própria o descreveu, “um duplo salto mortal entre géneros”.
TEXTO: Não é um disco, nem um fado. É uma peça de teatro, que Portugal viu agora pela primeira vez depois da sua estreia em Buenos Aires, na Argentina. Mas no centro dela está Mísia e isso pode levar a esta exclamação: uma cantora a encarnar um monólogo teatral? Pois antes de contar a história desta aventura, leia-se o que escreveu o crítico de teatro Antonio Hernández Nieto na edição espanhola do Huffington Post, após ter assistido ao primeiro espectáculo no Teatro Regio, registando a metamorfose operada no público: “Um público que entrou descrente (“dizem que é protagonizado por uma cantora”, ouvia-se no hall e entre a plateia), no qual o espectáculo foi criando empatia e interesse pelo que se passava em cena, que se entusiasmou quando Mísia se pôs a cantar e que, vendo os seus rostos e comentários, agora crê. E mostrou-o aplaudindo muito, e muitos também o mostraram pondo-se de pé. ”Em Coimbra, onde o espectáculo teve estreia nacional, em 27 de Abril (no Teatro Gil Vicente, no âmbito da 19. ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, em co-produção com o Complejo Teatral de la Ciudad de Buenos Aires, que o viu nascer), a reacção foi também justificadamente entusiástica, embora a sala pedisse mais público. No palco, no papel de um travesti argentino nascido em Itália (que, na sala de operações onde irá mudar de sexo, escreve uma carta à irmã, Lina, contando a sua história, que passa pela feérie dos palcos e do canto), Mísia agarra a audiência com uma dicção clara e uma interpretação brilhante naquilo que é, como ela própria o descreveu, “um duplo salto mortal entre géneros, da Música para o Teatro, de Homem para Mulher. ” Uma mulher que faz de homem que faz de mulher e em mulher se transforma, é essa a essência da história, que renasceu no dia em que emprestaram a Mísia o livro O Jogo do Reverso, de Antonio Tabucchi. Ela fixou-se num dos seus contos, “Carta desde Casablanca”, e quis adaptá-lo aos palcos. Sugeriu-o a Guillermo Heras (actor, encenador e dramaturgo espanhol), que aceitou; e convidou também o maestro e pianista napolitano Fabrizio Romano, com quem tem feito dupla em várias ocasiões e espectáculos. Nascia assim Giosefine, a segunda e mais arriscada incursão de Mísia no teatro (a primeira foi Matadouro Invisível, de Karin Serres, na Malaposta, em Dezembro de 2013). Em Buenos Aires, Giosefine esteve dez noites, de 17 a 28 de Dezembro de 2016. Em Coimbra esteve uma noite só. Quem viu, não duvida: devia ter mais sessões, noutras cidades e palcos. Porque há nele motivos bastantes para uma divulgação maior, desde a sua origem (o saber de Tabucchi) até à sua concretização em palco por uma cantora que nele pôs todo o seu empenho, dedicação e arte, trazendo à ribalta, com humor, memórias da música e do cinema (como Rita Hayworth, em Gilda). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em 2004, no final de um espectáculo que Mísia acabara de dar em Coimbra, precisamente no Gil Vicente, um estudante comentou assim o que ouvira: “Mísia antecipou esta nova vaga [no fado] e abriu caminho. Mas talvez esta nova vaga de fadistas venha ajudar outras pessoas a descobrir a Mísia, que andava um bocado esquecida”. Andava? Apesar de ter 25 anos de carreira, em Portugal ainda há quem lhe diga, no final de um espectáculo: “Gostei muito de a ouvir, não conhecia nada seu”. Isso entristece-a, claro. Mas o “motor” não pára, pelo contrário. Está até mais acelerado. Depois de Giosefine, estará no CCB, em Lisboa, a cantar “os seus Poetas” no Grande Auditório, no dia 19 de Maio, num espectáculo integrado no ciclo Há Fado No Cais. E em Setembro voltará à Argentina, para apresentar, não um mas dois espectáculos diferentes: Para Amália e Do Primeiro Fado ao Último Tango, no histórico Centro Cultural Néstor Kirchner, em Buenos Aires. E talvez haja novo disco à espreita. Tudo razões para que haja mais gente a dizer: “Mísia? Eu sei quem é”. Correcção: No segundo parágrafo, onde, por lapso, estava "27 de Maio" passou a estar, correctamente, 27 de Abril.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher homem sexo cantora
Fátima, Futebol e Fado-se
Golo de Portugal! Até que enfim! Vamos a Fátima, vamos a Fátima pelos dois, Salvador! (...)

Fátima, Futebol e Fado-se
MINORIA(S): Mulheres Pontuação: 2 Animais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Golo de Portugal! Até que enfim! Vamos a Fátima, vamos a Fátima pelos dois, Salvador!
TEXTO: Quem leva a bola é António Calvário, o avançado com pinta de galã que está na lista do Benfica para a próxima época. Calvário segura a bola, rodopia sobre ela, faz um compasso de espera e passa para Simone de Oliveira! Que passe, meus amigos, uma autêntica oração neste sol de Inverno que foi a desmarcação de Simone pelo corredor esquerdo. Mas Simone tem o caminho tapado, hesita entre ele e ela e acaba por se ver obrigada a atrasar para Madalena Iglesias. Está frio nesta noite de sábado e a selecção nacional ainda não acordou para o jogo. Aí vai Iglesias, parece que agora o vento mudou, descobre Eduardo Nascimento à entrada da área, Nascimento de costas para os defesas, tenta virar-se, mas fica sem a bola! Não há sol de Inverno que aguente, meus amigos. Esta equipa precisa mesmo é que chegue o Verão, é o que é. Vai, Carlos Mendes, pressiona! Mendes tira a bola àquele médio raçudo que só atrapalha, aí vai Mendes, tira um, tira dois, tira três e devolve a Simone de Oliveira lá na esquerda, é agora que isto vai, é a desfolhada portuguesa! Vai Simone, Vai Simone, Simone toca para o lado para Sérgio Borges. Mas onde é que tu vais, ó Borges? Onde vais, rio que eu canto? Valha-me Deus, Borges, valha-me Deus! E valha-nos a nossa menina do alto da serra, vai Tonicha, leva a bola para fazermos a festa da vida! Tonicha procura outra vez Carlos Mendes, que recebe com o peito e mata na relva. É um artista, este Mendes! Passa a bola por baixo das pernas daquele brutamontes e toca para Fernando Tordo, que tourada, meus amigos, que tourada! É agora que isto vai! Mendes, Tordo e Paulo de Carvalho, o trio maravilha a fazer estragos como sempre!Olha, que coisa mais linda, mais cheia de graça, esta canção não é daqui e não rima com e depois do adeus, o que faço aqui? O que importa é que Portugal está a pressionar cada vez mais, mas já é quase madrugada neste relvado flor de verde pinho e nada, e nada. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Duarte Mendes acaba de entrar em substituição de Eduardo Nascimento e deixa para Carlos do Carmo, parecem bandos de pardais à solta, os putos, os putos. Temos Portugal no coração, meus amigos! Vai, Tozé Brito, vai Tozé Brito, dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe, dá-lhe! E deu! Deu para Manuela Bravo, com ela a bola sobe, sobe, sobe, balão sobe, e vê José Cid desmarcado na direita, deixou para trás três defesas, chama Carlos Paião, que imita na perfeição, parace karaoke mas é playback. Bem bom este Paião, um grande, grande amor, um doce!Mas a verdade é que Portugal não consegue entrar na grande área, às vezes é samba, às vezes esta balada que te dou. Vamos ver o que faz Armando Gama, olha a Maria Guinot, ó Armando, olha a Maria Guinot isolada! Pensa em mim que eu penso em ti, ó Armando! Às vezes é no meio do silêncio que descobres o amor em teu olhar, uma pedra ou um grito, uma bola a saltar! Mas não vale a pena, Armando Gama é lento e deixa-se antecipar. É o desespero de Adelaide Ferreira, que gritava e agitava os braços no ar a meio do meio-campo adversário. É preciso fazer mais pressão aí, apertem com eles! Vai, Simone, Vai, Simone. Agora sim, dá para Paulo de Carvalho, devolve a Carlos Paião, Fernando Tordo cruza, Salvador está sozinho na pequena área, vai Salvador, salta Salvador, é agora! É agora! E é golo! Golo de Portugal! Até que enfim! Vamos a Fátima, vamos a Fátima pelos dois, Salvador! E o árbitro apita para o final da partida, com uma visita do Papa a Fátima, uma vitória de Portugal no Festival Eurovisão da Canção e o tetra do Benfica. Os três F voltaram. Ainda bem que houve festa, e ainda bem que não voltaram para ficar.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave campo tourada