Portugal e Espanha negoceiam desembarque de 50 imigrantes na Líbia
Os embaixadores de Portugal e Espanha em Tripoli estão em processo de negociações com o Governo líbio para que 50 imigrantes, resgatados por um barco de pesca espanhol ao largo do país, sejam autorizados a desembarcar no porto da capital. De acordo com a edição online do “El País”, a embarcação “Corisco” resgatou ontem 50 imigrantes – 42 homens, cinco mulheres e três crianças – de origem subsariana e magrebina de um barco que se encontrava à deriva na costa líbia. O “Corisco”, propriedade de um espanhol e com uma tripulação de doze espanhóis e portugueses, pediu autorização para entrar no porto de Tripoli, para q... (etc.)

Portugal e Espanha negoceiam desembarque de 50 imigrantes na Líbia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2007-10-14 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20071014234300/http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1307523
TEXTO: Os embaixadores de Portugal e Espanha em Tripoli estão em processo de negociações com o Governo líbio para que 50 imigrantes, resgatados por um barco de pesca espanhol ao largo do país, sejam autorizados a desembarcar no porto da capital. De acordo com a edição online do “El País”, a embarcação “Corisco” resgatou ontem 50 imigrantes – 42 homens, cinco mulheres e três crianças – de origem subsariana e magrebina de um barco que se encontrava à deriva na costa líbia. O “Corisco”, propriedade de um espanhol e com uma tripulação de doze espanhóis e portugueses, pediu autorização para entrar no porto de Tripoli, para que os imigrantes desembarcassem, mas não obteve resposta positiva. Desde ontem que permanece a cerca de 128 quilómetros da costa a aguardar um sinal das autoridades líbias. Em Tripoli, os embaixadores de Portugal e Espanha tentam agora que o grupo de imigrantes seja autorizado a receber apoio em território líbio. Citado pelo diário espanhol, José Ramón García Fuentes, presidente da Cofradía de Pescadores de Santa Pola, de onde o barco de pesca é originário, os imigrantes “encontram-se bem de saúde”, mas de acordo com a rádio Cadena SER, que conseguiu falar com o proprietário do “Corisco”, a situação a bordo é complicada, dada a falta de alimentos e espaço para receber tantas pessoas.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens mulheres alimentos
Morreu o Comandante Lassard dos filmes Academia de Polícia
George Gaynes tinha 98 anos e uma carreira feita sobretudo na comédia para cinema e televisão. (...)

Morreu o Comandante Lassard dos filmes Academia de Polícia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 9 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: George Gaynes tinha 98 anos e uma carreira feita sobretudo na comédia para cinema e televisão.
TEXTO: Arriscamos dizer que George Gaynes é um nome que a maioria de nós não conseguiria identificar de imediato como sendo de um actor, nem associar-lhe um rosto. Mas, se formos buscar a personagem que interpretou na saga Academia de Polícia, presença regular nas matinés de fim-de-semana na televisão portuguesa, é natural que muitos consigam lembrar-se de imediato de uma ou outra cena em que o distraído Comandante Eric Lassard, de atitudes inesperadas, toma conta da acção. Gaynes morreu na segunda-feira, em North Bend, Washington, aos 98 anos. A notícia foi confirmada ao diário The New York Times pela sua filha, Iya Gaynes Falcone Brown. Com uma carreira longa – retirou-se apenas em 2003, sendo Casados de Fresco o seu último filme -, George Gaynes é também conhecido pelo seu papel em Punky Brewster, uma popular sitcom americana dos anos 80 que lhe trouxe grande notoriedade quando o actor tinha já 67 anos. Nesta série para a NBC, Gaynes é Henry Warnimont, o administrador de um condomínio que, ao encontrar uma menina abandonada num dos apartamentos vazios, se torna seu pai adoptivo. A relação entre os dois, com um cachorrinho à mistura, é o fio condutor desta sitcom sobre a qual, lembra o diário americano, disse o actor: “As duas coisas que um actor mais teme são crianças e cães. Nesta série tenho os dois. ”A década de 80 foi, aliás, muito produtiva para Gaynes, que nasceu na Finlândia como George Jongejans, em 1917. O actor, que começou por ser cantor de ópera antes de se dedicar ao cinema e à televisão, teve no filme Tootsie (1982), em que contracena com um Dustin Hoffman em versão feminina e transformado numa estrela de telenovela, um dos seus melhores papéis. Dois anos mais tarde estreava-se como Eric Lassard no primeiro de sete filmes de Academia de Polícia (o último foi em 1994). O seu começo de carreira como cantor lírico (era barítono) deu-lhe, escreveram vários críticos, uma versatilidade invejável. Com uma infância e juventude passadas em França, Inglaterra e Suíça, Gaynes aterrou nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra e juntou-se à Ópera de Nova Iorque, integrando diversas produções antes de começar a trabalhar na Broadway nos anos 1950, em espectáculos como Out of this World, de Cole Porter, e My Sister Eileen, com música de Leonard Bernstein. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nas duas décadas seguintes, Gaynes fez carreira na televisão, participando em séries como The Defenders, Bonanza, Missão Impossível, Chicago Hope, Hogan's Heroes e The Six Million Dollar Man. A sua passagem pelo pequeno ecrã foi, aliás, duradoura e incluiu mais de 100 papéis em séries dramáticas e de comédia. A esse percurso recheado, devem juntar-se ainda os filmes, os musicais, óperas e operetas no EUA e na Europa. Apesar de ser um rosto imediatamente reconhecível, Geroge Gaynes nunca atingiu o estrelato, escreve a revista especializada Variety, e considerou-se sempre mais um actor do que um cantor lírico. O estrelato, ao que parece, não era coisa que o deslumbrasse, nem nos anos 80, em que ganhou grande notoriedade. Foi precisamente nessa altura em que, falando sobre o seu sucesso quando já tinha quase 70 anos, disse ao jornal The Times: “Já sou demasiado velho, já estou aqui há demasiado tempo para me entusiasmar com isso. É claro que fico feliz. A minha mulher está feliz porque podemos viajar mais e ela pode comprar uma nova capa para o sofá, mas conhecendo os caprichos do mundo do espectáculo, não posso levar [o sucesso] muito a sério. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
"Somos um país de medrosos"
É provavelmente o nome mais respeitado da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva. Deitámos o país no divã do psicanalista. (...)

"Somos um país de medrosos"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É provavelmente o nome mais respeitado da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva. Deitámos o país no divã do psicanalista.
TEXTO: Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma curva do Douro. A vista assombrosa de São Leonardo de Galafura transporta-nos para uma espécie de tempo mítico. Pendurada na parede em frente à porta, aquela fotografia é uma janela para as origens de Coimbra de Matos. Ao longo de duas horas de conversa, o psiquiatra e psicanalista, nascido em 1929, evoca por diversas vezes episódios da infância para ilustrar o que diz. Embora se tenha afastado da importância que a teoria psicanalítica clássica dá ao passado. António Coimbra de Matos é um ávido consumidor da ideia de futuro. A papelada que se amontoa na secretária a que nos sentamos, um de cada lado, revela o tipo de organização muito pessoal de quem privilegia a actividade à arrumação obsessiva. Fuma incessantemente e concede-se a si próprio o tempo necessário para responder a cada pergunta. Como se fosse a primeira vez que algumas das questões se lhe colocassem. Pode-se falar em estados de depressão colectiva?Pode. A depressão é uma coisa individual mas há situações em que aparecem mais casos depressivos. Em momentos de crise. Como agora. Diria que estamos a passar por uma depressão colectiva?Há uma maior incidência de depressões. Em certos momentos podemos falar de uma depressão colectiva. Isso foi muito evidente naquele caso muito falado da France Telecom. Em que houve uma série de suicídios de trabalhadores da empresa. Sim. Isso foi muito noticiado. Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal. Sim. Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam, quando não têm condições para protestar com mais veemência. Na sua definição, segundo li, o que distingue a depressão normal da depressão patológica é justamente a capacidade de revolta. Sim. Em Portugal, não somos lá muito bons nisso, na capacidade de revolta colectiva, pois não?Não, somos um bocado passivos. Os espanhóis são muito mais agressivos, revoltam-se muito mais. Sim, nas imagens das manifestações em Espanha ou na Grécia vemos um grau de revolta que não identificamos em Portugal. Isso é verdade. Noto isso na área científica. Aqui em Portugal, vamos a um congresso e se dizemos: “Não estou nada de acordo com isso” dizem-nos logo: “Foste muito agressivo com aquele tipo”. Isso, num congresso internacional, é a coisa mais banal do mundo e ninguém leva a mal, nem diz que está a ser agredido. Somos mais susceptíveis?Sim. E mais delicados, mais medrosos. Somos um país de medrosos. É a velha ideia dos brandos costumes?Dos brandos costumes mas também da atitude do poder. O poder em Portugal sempre foi menos violento. Isso não facilita a revolta. O Salazar não matava, mandava prender. Franco matava mesmo e isso cria uma revolta maior. Somos um bocado passivos. Somos um país de medrosos. E considera isso mais negativo do que positivo?Sim, há uma sujeição maior. Umas vezes é mais negativo, outras vezes mais positivo. A nossa colonização foi muito melhor do que a colonização de outros países, nomeadamente de Espanha. Fizemos uma colonização mais respeitadora, mais suave. É capaz de haver gente nos estudos coloniais de cabelos em pé com essa ideia de que a colonização portuguesa terá sido branda; também houve grandes atrocidades. Mas não foi tão agressiva como a dos espanhóis, pelo menos na América Latina. Não tivemos um Cortés. Os espanhóis liquidavam aqueles indivíduos. Nós escravizávamo-los e tal. Vê uma continuidade de carácter ao longo dos séculos no povo português?Repare na nossa luta contra os árabes, no princípio da nacionalidade: conseguimos conquistar território mais facilmente porque o Afonso Henriques e os outros não matavam os árabes. A maior parte dos alcaides foram feitos governadores civis. Já os espanhóis chegavam lá e liquidavam os alcaides: substituíam-nos logo e às vezes até os matavam. Nós fomos mais diplomatas. Identifica nisso um traço de continuidade?Sim. Percebi-o muito cedo, ainda na instrução primária. Fiz a instrução primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar. O facto de nos revoltarmos menos do que outros povos, significa que somos mais atreitos à depressão?Não sei dizer ao certo mas haverá vários factores para isso. Um dos factores é a nossa história, a expansão, as descobertas, os pais que saíam. Os homens iam para a guerra, iam para as colónias, para os descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais passivo. Há um trabalho interessante da Professora Celeste Malpique, do Porto, precisamente sobre o pai ausente. Fez esse estudo nas zonas de Ovar e de Aveiro, onde os homens iam para a pesca do bacalhau. Isso lembra-me uma frase sua a explicar a diferença entre os papéis do pai e da mãe: quando a criança tem medo, a mãe dá-lhe a mão. . . . . . e o pai dá-lhe um pontapé no cu. O meu pai fez-me isso uma vez, tinha eu para aí uns dez, onze anos. Tinha montado um cavalo que lá havia e que era um bocado arisco. Estávamos no quintal da casa e o cavalo começa a empinar-se. Fiquei com medo e gritei pelo meu pai. Ele veio ter comigo e julguei que ia segurar-me o cavalo. Mas não. Pegou no chicote e dá duas porradas no animal. O cavalo largou-se, sai pelo portão da casa, pela estrada fora. Sei que perdi os estribos, agarrei-me ao selim, e ia a chamar ao meu pai filho da puta, cá por dentro [risos]. Mas nunca mais tive medo dos cavalos. Essa distinção de papéis entre o pai e a mãe ainda é assim tão clara?É. O homem, em relação à criança, tem uma atitude diferente da da mulher. O homem faz mais movimentos extensivos, para fora, periféricos, centrífugos. As mulheres fazem mais movimentos centrípetos. O homem pega no bebé e tem tendência para o pôr assim [demonstra, afastando os braços do corpo]. Há até pais que atiram a criança ao ar. Sim. As mulheres raramente fazem isso. Isto induz a um tipo de relação diferente. Os homens falam de uma forma mais grave, as mulheres de maneira mais melódica. Diria que essas características são inatas ou culturais?São inatas. Isto faz-se em todas as culturas. Em algumas será mais forçado. Como é que enquadra isso em realidades novas como a dos casais homossexuais com filhos?É difícil responder. Os casais homossexuais não são patogénicos. Não há perigo nenhum na adopção por casais homossexuais. Agora, é uma situação com um risco um bocadinho maior. A que nível?Mais facilmente pode haver dificuldades adaptativas. Por causa dos diferentes papéis que não estão preenchidos?Sim. E não só. Os casais heterossexuais são mais harmónicos. Nos casais homossexuais há mais frequência de conflitos, de separações. São menos estáveis, de uma maneira geral. Diz isso com base na sua experiência empírica ou em estudos publicados?Há estudos sobre isso. E depois é a experiência que temos de clínica. Tem detectado alterações a esse nível?Ocorrem mudanças na medida em que isso existe, é aceite, é cultural. As coisas melhoram. Os casais homossexuais tornam-se mais harmónicos por causa da aceitação. Numa cultura em que a homossexualidade não é aceite os casais envergonham-se, escondem-se, são criticados, há reparos. Portanto reagem a isso. Se são aceites sentem-se integrados. Voltando à ideia de depressão colectiva: sente-a no seu consultório?Não sinto muito. A clínica do consultório é de classe alta. Nos hospitais vê-se mais, há mais depressões. Parece-me que será assim, mas não tenho estatística nenhuma que o comprove. Com tanta coisa em transformação na sociedade, o que é que lhe parece mais comum a nível individual: o que permanece ou o que se altera?Mais do que a mudança nos quadros clínicos ou nas coisas que aparecem, é a mudança em mim próprio. São as coisas novas que vou descobrindo ou que vou investigando. Os homens iam para a guerra, para as colónias, para os descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais passivo. De que tipo?A minha técnica hoje é muito diferente do que era há 20 ou 30 anos. O que é que mudou?Muita coisa. Até as concepções teóricas. A inovação, a investigação são a base de todo o movimento. Se a pessoa se fixa naquilo que descobriu ou que aprendeu, às tantas está fossilizada. É fácil ficar fossilizado nesta actividade?Em todas as actividades é fácil. Na nossa talvez mais porque é mais complexa, e as pessoas aprendem sempre muita coisa e depois repetem aquilo que já sabiam. As pessoas dizem-me isso: “Não percebo, você agora vem com umas ideias completamente diferentes”. Não sou nenhum maluco, fui vendo umas coisas, algumas ideias que tinha e que não estavam muito certas e entretanto fui trilhando outros percursos. Dê-me o exemplo de uma dessas alterações. Por exemplo, aprendi, e durante muito tempo procedi assim, que os sonhos nocturnos eram uma coisa muito importante, que nos davam grandes indicações. Hoje a minha teoria é que os sonhos nocturnos pouco nos dizem porque são um trabalho de memória. Portanto, a interpretação dos sonhos já não lhe interessa. Não. É muito mais importante aquilo a que chamo o sonho-projecto, os devaneios diurnos que temos. Esses é que estão virados para o futuro. Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador, está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o futuro. No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas?Isso também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente. Imagino que isso lhe valeu algumas antipatias ou mesmo inimizades dentro do meio da psicanálise. Sim, sim. E críticas. Porque é que há uma tão grande animosidade entre escolas terapêuticas?Como é uma ciência mais difusa, com menos certezas, é mais fácil formar essas escolas e crenças. Religiões, quase; seitas. Mas a propósito disso, há uns anos recebi um prémio nos Estados Unidos, e um dos analistas de lá, com quem depois me correspondi bastante, mandou-me um mail: “Mas isso que você disse é uma mudança total de paradigma, não é?” “Pois é”, disse-lhe eu. A que é que ele se referia?Precisamente a isto de que estávamos a falar, porque na psicanálise clássica o paciente repete muito as coisas que aprendeu na infância. A minha teoria é que ele, ao longo da vida, vai aprendendo coisas novas e vai mudando. E isso é que é o importante. Também reconstruímos e reinventamos o passado. Sim, mas vivemos do futuro, não do passado. Infelizmente nem sempre é assim, mas é assim que deve ser. Veja na política portuguesa: foi o problema do Sócrates, e antes do Sócrates do Guterres. . . Noutro dia dizia a um amigo meu: naturalmente, a culpa foi do Afonso Henriques, que conquistou isto aos mouros em vez de ir para a Galiza. Andamos a olhar demasiado para o espelho retrovisor?Andamos. De uma maneira geral, nos países europeus. Há um estudo que já tem uns 30 anos, de psicólogos e psicanalistas americanos, que se limitaram a investigar a década de 70. Foram buscar 400 artigos que vêm de duas revistas de psicanálise bastante conhecidas, seleccionaram 200 artigos escritos por psicanalistas europeus, e 200 artigos escritos por psicanalistas americanos. E só foram investigar uma coisa: o número de vezes que citavam Freud. A diferença era de dez vezes mais para os europeus. [risos] É o peso da história. E também a coisa cultural: os europeus são mais conservadores. É frequente ir-se a uma conferência sobre filosofia e ter de se ouvir falar no Aristóteles e no Platão. Sente-se mais americano, nisso?Muito mais. Aliás, tenho muito mais contacto com analistas americanos do que com analistas europeus. Esse prémio que me deram nos Estados Unidos, na Europa não mo davam. Deram-mo voluntariamente, foram eles que me seleccionaram, pelos meus escritos. Na Europa achavam que aquilo não tinha muito interesse. Revê-se mais no pragmatismo americano. No caso da análise, sim. Noutras coisas não. Noutros aspectos têm muitos defeitos. Mas os filósofos são muito mais pragmáticos. Os filósofos europeus estão presos às abstracções todas. Com a sua idade seria natural que o peso da experiência já tivesse uma prevalência maior do que o da tentativa de descobrir. As coisas evoluem investigando, não é acumulando conhecimentos. Como é que se dá, por exemplo, com a revolução tecnológica? Não vejo aqui nenhum computador. Não, porque os computadores já chegaram tarde demais e eu já não tinha muita paciência para aprender a lidar com aquilo. A minha secretária é que trata disso. Mas acho que é importante, aquilo é bom. Nunca usa computador?Não. Mesmo o telemóvel, uso-o mal. Sabe o que é o Instagram?Sei [risos]. Sabe o que é o Facebook?Também sei, mais ou menos. As redes sociais são apenas novas formas de comunicação ou parece-lhe que há o risco de mexerem com características fundamentais das pessoas?Penso que se não forem em excesso, não. Como tudo. A instantaneidade da comunicação terá alterado algumas das características relacionais que existiam na sua juventude?Não sei. Ouço os meus colegas, na faculdade de psicologia, dizerem: “Esta malta hoje não presta, no nosso tempo é que era bestial”. Pois, eu acho que os alunos agora são muito melhores do que eram no meu tempo. Muitíssimo melhores. Mais ávidos, mais interessados. A evolução é positiva. No meu tempo de estudante a maior parte dos colegas só pensava em futebol e em beber copos. Hoje vêem-se vários alunos e alunas interessados em filosofia, política, história. Não se reconhece, portanto, no discurso da crise de valores. Não, de maneira nenhuma. Os valores é que são outros. Em relação aos valores da religião, do pecado, são outros. Quais diria que são hoje os valores estruturantes?O primeiro de todos é a liberdade. E por outro lado o de haver menos proibições. A minha liberdade só acaba quando perturba a liberdade do outro. É a única proibição. Depois a moral: há um tipo de moral, a que chamo exógena, ou heterónoma, que vem ditada pelo outro. Pela religião, pelo partido político, pela cultura. E há uma moral endógena e autónoma, que depende simplesmente de o indivíduo ter empatia e compaixão pelo sofrimento do outro. Se me ponho no lugar do outro e fico preocupado se ele não está bem, construo a minha moral. Aquela que me é ensinada não tem interesse nenhum. Por exemplo, há uma coisa que é muito discutida e em que várias pessoas não estão de acordo comigo: continua-se a dizer que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade tem limites; a realidade física e a realidade social. Se a criança bate com a cabeça na parede magoa mais a cabeça do que a parede [risos]. Se chama filho da puta ao pai, se calhar o pai fica chateado e deixa de brincar com ele, já não lhe apetece jogar à bola. É só isto. Continua-se a dizer que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade tem limites. Há agora uns pediatras que dizem que as crianças ganharam um tal controlo, e uma tal atenção das famílias que se tornaram pequenos ditadores. Ah, isso é aquele idiota do Urra. Um cretino. O espanhol Javier Urra. Sim. Só diz idiotices [risos]. Mas tem cargos importantes: é professor catedrático na Universidade Complutense de Madrid e é, ou foi, o provedor dos menores em Espanha. Os livros dele têm várias edições mas é um homem execrável. Numa entrevista que li dele, acaba dizendo que castigava os filhos porque gostava muito deles. Bestial! [risos]Está mais próximo, nesse aspecto, do Dr. Spock. O Spock era muito melhor. Ou de Berry Brazelton. Esse é bom. Mas tem uma teoria com a qual não estou totalmente de acordo: diz que o bebé precisa de amor e disciplina. O bebé não precisa de disciplina, precisa de um ambiente ordenado, de um ambiente disciplinado. É diferente. Se um dia lhe derem a refeição às três horas, no dia seguinte às seis da tarde, noutro dia deitam-no às oito, e depois às onze. . . Isso é desestruturante. É. Se o ambiente for ordenado a criança integra-se nisso. Se eu, como professor, protesto por os alunos chegarem tarde à aula, não dá em nada. Agora, se eu chego a horas, ele habituam-se a chegar a horas. E o que é que faz quando há prevaricadores?No Centro de Saúde Mental e Infantil tínhamos dez ou onze equipas e fazia uma reunião por semana com cada uma delas, e uma vez por mês uma reunião geral com toda a gente. Essas reuniões eram às nove da manhã; das nove às onze. E as pessoas chegavam sempre atrasadas. Fiz várias coisas até que simplesmente escrevi num quadro, “quem chegar depois das nove e dez é favor não interromper”. Começaram a ir a horas. As pessoas protestam quando é imposto, mas se for dito com jeito acabam por colaborar. E há outra coisa: a ideia do nosso governo anterior era a de que as sociedades progridem por competição. Não, as sociedades progridem por colaboração. Não é nos períodos de guerra que se fazem as grandes descobertas, é nos períodos de paz. Há uma ideia muito difundida de que é o investimento militar que tem providenciado grandes avanços. . . Não. . . . até na área da psicologia. O Hitler é que dizia mais ou menos isso: que a guerra trazia desenvolvimento. Como é que encara a questão com que todos temos de nos confrontar: a ideia da morte?Fiz uma conferência aqui há tempos num congresso de filosofia em que me convidaram para falar sobre isso. Primeiro recusei, depois insistiram muito comigo. Pus uma condição: “Só se for falar ao mesmo tempo da sexualidade e da morte” [risos]. Todos temos uma angústia, que não é propriamente a angústia de morte, essa é comum nos animais; a angústia perante a morte imediata, o risco. Os homens e os macacos superiores - o orangotango, o gorila, o chimpanzé - já têm alguma consciência disso, têm aquilo a que chamo a angústia essencial. Uma angústia perante a finitude da vida. Têm consciência de que a vida tem um limite. Essa angústia não é totalmente resolvida, mas é resolvida em parte pelo que se chama a imortalidade simbólica. Sei que vou morrer daqui a uns anos, mas também sei que fiz algumas coisas que ficaram, que foram úteis. Ensinei algumas coisas porreiras a umas pessoas. Sei que vou morrer mas diverti-me mais ou menos. Fiz umas asneiras, mas também fiz algumas coisas bem feitas. Há uma certa satisfação, não vou vazio e insatisfeito. Essa consciência aumenta com o passar do tempo, ou nem tanto?Nem tanto. Temos é de ter sucesso em algumas coisas que fazemos. Se só se tem insucesso isso deprime, causa mau estar. Os americanos falam muito dos três “g”, a propósito do amor. Good, giving and game. Bom, generoso e divertido. O mundo deve ser bom, generoso e divertido. Isso é aplicado ao amor?Sim, ao amor e às relações em geral. Mas eles falam disto a propósito do amor. O bom amor é aquele que é good, giving and game (jogo, mas que eu traduzo para divertido). Também temos de aprender a viver com os momentos menos divertidos para não desistirmos à primeira contrariedade. Isso é outra teoria. A teoria da psicanálise clássica é a de que as dores são boas, que é preciso sofrer para ficar mais forte, para enrijecer o carácter. Não é nada a minha teoria. A dor é inevitável, não é boa. Há sempre insucessos, há sempre dores. Eu estava a referir-me à chamada gratificação imediata, cuja necessidade, segundo se diz frequentemente, tem vindo a crescer. Pois, a teoria clássica é a de que a gratificação imediata é má e que se deve educar para a frustração. Reduzir a frustração lenta e progressivamente, é o que ensinam os clássicos. Não é de facto a minha teoria. A frustração é sempre má e deve evitar-se. O que se deve fazer é outra coisa: é desenvolver a capacidade de espera, o que é diferente. Estou suado, vim a correr, apetece-me beber uma cerveja gelada. Mas percebo que se descansar um bocado a cerveja me vai saber muito melhor. Não é a mesma coisa que manter a frustração, ou que considerar a frustração útil. Há hoje patologias mentais novas?É difícil dizer mas há algumas. O DSM [o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] agora é maior. O DSM é uma porcaria. Aquilo é um catálogo condicionado pela indústria farmacêutica para venderem mais medicamentos. Todos temos lá um lugarzinho. Sim, sim. E um medicamento apropriado. Quais são então as novas patologias?Há uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline. Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira que não há familiaridade. Deixou de haver a confiança, a colaboração mútua. Isso é um efeito da vida urbana por contraponto à vida rural?Claro, das grandes cidades. E do estilo de vida que as pessoas levam, também. Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo era íntimo de todas as pessoas da minha aldeia. Mesmo nas cidades havia aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva dos laços. Não haverá, por outro lado, uma maior liberdade? Porque essa situação de antigamente era também de um grande controlo sobre os indivíduos. Sim. Nesse aspecto, sim. O que é que é preferível?Bom, os extremos serão sempre maus. Mas não sei se a situação de antigamente era assim de tanto controlo. As pessoas respeitavam mais os segredos, por exemplo. Hoje respeitam menos. Se pedir a um amigo seu para respeitar um segredo, ele di-lo logo na primeira esquina. Não tem grande confiança na natureza humana, pelos vistos. A vida actual é mais insegura. Existe isso da natureza humana?Existe, é um bocado diferente da natureza dos macacos, por exemplo [risos]. Mas reconhece a existência de padrões de comportamento, independentemente da cultura, da origem, do meio em que se cresceu?O problema dos valores é um problema posto do ponto de vista moral, quase religioso. Do ponto de vista ético, estético, também. Mas o importante é aquilo que tem valor para a vida, aquilo que é vital. O que acontece é que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não é só o cheiro a cio. Ou seja, não é só o aspecto pragmático. Também é pragmático: isto permite escolher melhor, saber quem é a pessoa. A selecção é muito mais complexa porque o número de dados que recolhemos é muito maior. Há muito mais variáveis em jogo. Muitíssimo mais. Para um macaco interessa que a fêmea esteja receptiva. Para o homem interessa que a mulher seja simpática, que goste dele; uma série de coisas. Agora, o que acho que tem pouco interesse são esses valores com sentido ético e moral. Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita ajuda”. Pode dizer-se que é um optimista?Sou. Acha que estamos a aperfeiçoar-nos?Sim, não tenho dúvidas. Apesar de todos os defeitos, cada vez se vive melhor. A curva da civilização é isto [desenha no papel uma curva], é ascendente. Mas a ascensão na subida não é contínua, há ciclos. E depois há a visibilidade social. Aqui há uns anos numa conferência com o Dr. Jorge Macedo – o historiador que foi director da Torre do Tombo –, houve uma coisa que não me agradou: ele falou muito da violência, referindo que a violência era muito grande nas cidades. E eu disse-lhe: “Parece impossível um professor de História estar a dizer-me isso; sabe melhor do que eu que no tempo do Marquês de Pombal a média de assassinatos era de um ou dois por dia em Lisboa, e Lisboa tinha cento e tal mil habitantes. Hoje tem 600 mil e se calhar são dois ou três por mês”. Há aqui um problema interessante: no tempo do Marquês de Pombal matava-se uma pessoa no Rossio e em Alfama ninguém sabia; hoje matam uma pessoa em Nova Iorque e logo à noite já sabemos. É uma ilusão, é um problema de visibilidade social. A visibilidade social tem a ver com um papel progressivamente maior dos media; os media são indutores de ansiedade?Não. Isso é outra história. Fiz parte de um grupo de trabalho organizado pela Maria Barroso, da Fundação Pro Dignitate. Fui um dos fundadores daquilo. E ela tinha essa ideia: porque se mostram as mortes, as revoluções? Isso não tem mal nenhum, a informação elucida as pessoas. Mas ainda há tempos ouvi o professor Daniel Sampaio, que é um tipo inteligente, dizer que não se podia falar do suicídio dos jovens porque isso contaminava, induzia outros. Pelo contrário; sabendo as pessoas os perigos que existem, não vejo perigo nenhum nisso. O perigo é não informar. Não vê sequer a possibilidade de isso contribuir para um acréscimo da ansiedade?Aí, o que acho é que o grande modelo é a própria natureza. O que não podemos é dar um acidente de automóvel e mostrar só o carro todo esborrachado, um tipo a deitar sangue. É mostrar a cena toda, mostrar a vida. Salientar só aquilo é que pode ser prejudicial e provocar grande ansiedade. Hoje temos a ameaça terrorista, a ameaça dos vírus, agora a ameaça do mosquito. Estamos a receber permanentemente estas doses de alarme…Já pensou que em vez de estarmos aflitos com o mosquito que transmite o Zika, devíamos pensar que isso pode ser um processo de resolver as dificuldades de proteínas, e começar a comer esses mosquitos num prato especial? [risos]. Com manteiga, um bocadinho de mel. . . Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Por qualquer razão não é nas proteínas do mosquito que as pessoas pensam em primeiro lugar. Mas podem começar a pensar nessa vantagem. Se por absurdo tivesse à disposição uma máquina do tempo, para onde escolheria viajar?Para o futuro. O passado passou, que é que ia fazer com o passado? Não gostava nada de voltar atrás, gostava de ter mais 100 anos à frente. O bife que me interessa é o que vou comer logo à noite, não é o que comi ontem [risos].
REFERÊNCIAS:
Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés. (...)

Vimos uma nova luz nos The xx e ouvimos todas as vozes para Zé Pedro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.268
DATA: 2018-07-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A banda britânica era a mais aguardada da noite e mostrou-se confiante e celebratória como nunca. Neles se concentraram todas as atenções no arranque do Super Bock Super Rock, marcado também pelo tributo em família ao guitarrista dos Xutos & Pontapés.
TEXTO: “Gostei”, diz um amigo ao outro enquanto se sentam ambos num muro à saída da Altice Arena, em Lisboa, hora já avançando madrugada dentro. “Gostei porque sabia o que ia ver”, sentencia. Era uma forma de enquadrar aquilo a que acabarámos de assistir, ou seja, era uma forma de descrever o concerto dos The xx, o mais aguardado da primeira noite do Super Bock Super Rock 2018, no Parque das Nações, em Lisboa. Num pavilhão preenchidíssimo de público – foi o único momento do dia em que todos pareceram escolher o mesmo destino –, o trio britânico ofereceu realmente aquilo que o público esperava. Hold on, Crystalised, Shelter, Say something loving, VCR ou Angels. Todas elas passaram pelo palco maior do festival que esta quinta-feira recebeu também todos os muitos convidados da celebração conjunta, familiar, de Zé Pedro (tributo baptizado, de forma que o homenageado certamente aprovaria, “Who The F*ck is Zé Pedro”). Um festival que aplaudiu à noite, com toda a justiça, sob a pala do Pavilhão de Portugal, um grande soul man chamado Lee Fields, precisamente no mesmo local onde, às 17h, os Parkinsons, os primeiros a actuar, avisaram a certa altura, só para enganar, “a próxima é uma balada” (claro que não era, que os Parkinsons são banda punk'n'roll sem temperamento para coisas dessas). Um festival, continuemos, que, ultrapassadas as duas horas da madrugada, continuava a dançar no pavilhão o som tonitruante dos Justice – dois homens e sua maquinaria, uma barreira imponente de amplificadores e luzes a faiscar enquanto os franceses libertavam batidas saturadas, insufladas de prog e rock e funk e mais patifaria sónica da boa. Apesar da generosa quantidade de t-shirts com a famosa cruz que fomos vendo durante o dia, o equivalente, nos Justice, à icónica língua que se confunde com os Rolling Stones, a verdade é que no arranque do Super Bock Super Rock, tudo pareceu convergir para os The xx. “Gostei porque sabia o que ia ver”, disse-se então quanto tudo terminara. Num concerto iniciado às 23h30, uma hora e quinze minutos depois do inicialmente previsto (o início do tributo a Zé Pedro foi alterado das 20h para as 21h, adiando todas as actuações no palco principal), ouviram-se as vocalizações partilhadas entre Romy Madley Croft e Oliver Sim, ouviram-se os ecos da guitarra daquela flutuarem pelo ar, ouviu-se Jamie xx agindo como propulsor rítmico da banda. Isso era o esperado. Mas, e isto não sabíamos que iríamos ver, viu-se também um trio que, no último concerto da digressão europeia e depois de quase dois anos na estrada, como referiram durante a actuação, já não é aquele casulo de timidez que conhecemos nos primeiros encontros. A música continua a ser espaço para confissão de intimidades, mas também se liberta, efusiva, para transformar o pavilhão numa pista de dança gigante. A delicadeza de um sussurro continua a ser o tom assumido, mas eles encaram-nos agora de frente, Romy Croft dançando livre e confiante, Oliver agitando-se nos calções de napa enquanto Jamie xx põe a máquina em movimento. Ao longo do tempo, do homónimo álbum de estreia (2009) até chegarem, depois de Coexist (2012), ao mais recente I see you (2017), a banda londrina foi caminhando em direcção à luz, procurando fazer da insularidade inicial uma celebração conjunta, quase festiva. A forma como o demonstraram, tão seguros de si, aproximou-os ainda mais de um público que, de qualquer forma, parecia rendido à partida. Começaram intimistas e envolventes, num início em que se ouviu, por exemplo, Say something loving e, pouco a pouco, as texturas electrónicas feitas névoa fantasma foram ganhando corpo e intensidade. Serenámos para que Romy Croft, depois de juras de amor à cidade e ao país em que actuavam, dedilhasse Performance a solo mas, pouco depois, quando Oliver Sim dedicou Fiction à comunidade LGBT - “vejo-vos, são lindos, sou um de vocês” -, o tom alterou-se definitivamente. Chegaram raios laser, Jamie xx empolgou-se na função e até se ouviu uma das canções do seu percurso a solo, Loud places. O público das bancadas levantou-se definitivamente dos lugares para dançar (chegara On hold) e mesmo a sentida e delicada Angel, a da despedida, teve o seu quê de celebração. Sabíamos o que íamos ver, mas não estávamos à espera que os The xx nos encarassem desta forma, tão livres e confortáveis no palco. O arranque do festival, que contou com os Vaccines, curioso caso de culto em Portugal, com a elegância disco-house dos Mirror People de Rui Maia, com o inspirado riot-qurrr, chamemos-lhe assim, de Vaiapraia E as Rainhas do Baile e com as novas de Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo, foi também marcado pelo psicadelismo barroco dos ingleses Temples ou por uns curiosos Parcels, australianos radicados em Berlim que parecem o resultado de uma estadia dos Daft Punk e dos Chic nas mediterrâncas Ilhas Baleares. Por eles e, claro, por Lee Fields, homem de carreira tão vasta – começou nos anos 1960, conviveu com Solomon Burke, aprendeu com James Brown – quanto grande é o seu talento para dar vida à soul. De impecável fato branco debruado a brilhantes e acompanhado pelos Expressions, banda ágil e sábia, gingou pelo funk de We can make the world better, ergueu a voz numa dor de alma feita matéria apoteótica em Faithful man. Antes, falara de companheiros tombados cedo demais, dedicando a sua Wish you were here a Sharon Jones e a Charles Bradley, falecidos em anos recentes e, como ele, heróis tardios da soul. Poderia tê-la dedicado também à memória do homem que, à mesma hora, reunia dezenas de músicos na Altice Arena – e a razão pela qual nos foi impossível ver todo o concerto de Fields. Sucederam-se as imagens – Zé Pedro nas várias fases da vida, os seus heróis musicais, os seus companheiros de percurso -, sucederam-se os músicos, sucederam-se as canções. A primeira de todas, London calling, clássico punk dos Clash e uma das canções da vida do guitarrista dos Xutos & Pontapés, deu o mote. Tocou-a uma banda residente que era verdadeira banda família: Fred, director artístico do concerto e filho de Kalú, Marco Nunes, sobrinho do baterista dos Xutos, Sebastião e Vicente Santos, filhos de Tim, João Nascimento, filho de Gui, Joel Cabeleira, sobrinho de João Cabeleira. No baixo, Nuno Espírito Santo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois da memória dos Clash, um a um, foram surgindo cúmplices como Tó Trips, que recuperou Submissão, Rui Reininho, que lhe dedicou Morremos a rir, ou João Pedro Pais, que cantou uma És do mundo que, confessou, compôs com Zé Pedro no pensamento. Ao longo das duas horas, vimos Manuela Azevedo cantar Amor com paixão e, com a companhia de Tim, Conta-me histórias. Manel Cruz entregou-se ao clássico Circo de feras e, antes dele, Tomás Wallenstein atacou Morte lenta na companhia de António Reis Colaço, sobrinho de Zé Pedro, e partilhou Este mundo é teu e Esquadrão da Morte com Carlão. Ainda ouviríamos Paulo Gonzo, surgido em palco de muletas erguidas, cruzadas num xis de Xutos, e ainda se veria Jorge Palma e os reunidos Palma's Gang (chegou assim Esta cidade e Portugal Portugal), bem como os Ladrões do Tempo. Para o fim ficaram eles mesmos, os Xutos & Pontapés. Para o adeus, Tim, João Cabeleira, Gui e Kalú chamam todos os participantes a palco. Foi uma multidão a cantar “Remar remar”. Dando justa medida à dimensão do homenageado, Carlão dissera que, “se tivéssemos em palco toda a gente da tuga que gosta do Zé Pedro, tínhamos que fazer três dias de Super Bock Super Rock” – se pecou, não foi por excesso, mas por defeito. O Super Bock Super Rock continua esta sexta-feira com foco centrado no hip hop e tem Travis Scott, Anderson . Paak, Princess Nokia ou Slow J como protagonistas. Termina no sábado, dia em actuarão no Parque das Nações Benjamin Clementine, Julian Casablancas, The The ou Stormzy, entre outros.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Pouco menos do que uma lenda
É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink. (...)

Pouco menos do que uma lenda
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento -0.17
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink.
TEXTO: E eis então Ariel Pink, que acaba de editar Pom Pom, um dos álbuns mais aguardados neste final de ano, a dizer o seguinte: "Com sorte, assistiremos à morte da música daqui a um ano. Esperemos que seja isso que aconteça. " A morte da música? Não toda, corrige. “A música gravada. Já não faz sentido, porque as pessoas não querem saber. " Mais tarde, enquanto abordamos a escandaleira on-line em se que tem visto envolvido nas últimas semanas (aparentes elogios à homofóbica Westboro Baptist Church; declarações sobre Madonna consideradas misóginas), Ariel Marcus Rosenberg, nascido em Los Angeles, ano 1978, dirá que o problema é um e um apenas: “As pessoas pensam que eu estou a gozar em 90 por cento do que digo, quando na verdade estou quase sempre a ser honesto. Não, não estou a gozar. Essa é a ironia em mim. "Pom Pom é o novo álbum do músico que pegou na história pop e transformou a memória que o bom gosto esqueceu (não só, mas numa escala considerável) em Santo Graal para respigadores de despojos do passado (e foi ver o soft-rock, as baterias sintéticas e os teclados foleiros dos anos 1980 ganharem credibilidade indie, o lo-fi a renascer enquanto género e afectação, e uma nova nomenclatura a brotar de estúdios caseiros: ainda nos lembramos da chillwave?). Estávamos em meados da década passada e Ariel Pink reeditara The Doldrums, obra caseira registada em 1999 e descrita como uma viagem imaginária pelo FM de Los Angeles no início dos anos 1980 – daí o ruído que parecia cobrir as canções de estática. Ariel Pink, que como contado pelo própio compôs a primeira canção aos dez anos, quando ainda não sabia tocar qualquer instrumento mas vivia já obcecado com o rock, o seu imaginário e a sua estética, e foi descoberto 15 anos depois disso pelos Animal Collective, que o contrataram para a recém-criada Paw Tracks (que reeditaria The Doldrums), era então incompreendido pela maioria do público que lhe via os concertos na tangente entre a performance e a cacofonia. “O público apupa-me em todo o lado… Nem esconde o seu desprezo”, contava então. Uma minoria, porém, estava atenta e viu nele algo de inspirador. Subterraneamente, Ariel Pink era instigador de novas vagas no universo da música popular urbana. Assim continuou até 2010. Foi nesse ano que editou Before Today. Gravado com uma banda que reuniu e que baptizou de Haunted Graffiti, trouxe-o do underground à cristalina superfície do mundo da pop. Esse álbum magnífico, de som ainda enublado de poeira sónica e feito de memórias sabotadas da década de 1980 (de Michael Jackson a funk robótico e a hard-rock), mas recheado de canções de corpo inteiro, transformou-o numa estrela à escala das pequenas comunidades melómanas do nosso tempo. “É muito pouco provável que alguém consiga ser hoje uma estrela rock, mas é óptimo que não tenhamos de passar 20 anos na escola”, comentará Ariel Pink. “Tens de ter mais que um interesse passageiro e, se o mantiveres, eventualmente algo acontecerá. "Amor-ódioMisto de poster boy glam e figura excêntrica da LA de glamour e decadência, Ariel Pink tornou-se um músico inescapável do presente pop. Deixou de ouvir apupos nos concertos (tudo era agora adoração). Em 2012 chegou Mature Themes, um álbum desequilibrado em que o talento para a síntese e a marca de água musical de Pink conviviam com uma indulgência desapontante. A aura, no entanto, manteve-se intocada. Dois anos depois, Pom Pom, disco em que enterrou os Haunted Graffiti e a que, ao contrário do habitual, devotou longos nove meses e todo o tempo do mundo, chegou quando a aura de herói independente e farol criativo do presente estava sob ameaça. Nos meses anteriores, contara num programa on-line, em tom de paródia confessional, uma história que envolvia uma saída à noite, ele e uma rapariga a borrifar-lhe os olhos com um spray Mace no final. Choveram acusações de misoginia pela Internet em artigos inflamados (os do dia). Depois, numa entrevista a um jornal australiano, Ariel revelou que fora contactado pelo management de Madonna para, de acordo com o citado, revitalizar a carreira da cantora. Pelo meio, disparou que, a partir do primeiro álbum, a criatividade da dita “Rainha da pop” fora desaparecendo progressivamente mas que ele, com as suas canções, poderia ajudá-la – o management de Madonna desmentiu, ele queixou-se de ter sido mal citado e, entre uma coisa e outra, mais acusações de misoginia a choverem on-line. Enquanto tudo isto se desenrolava ao longo do mês passado, chegou outra entrevista, na qual declarava gostar da Westboro Baptist Church, um ajuntamento de conservadores homofóbicos americanos que fazem questão de se envergonhar inadvertidamente a cada manifestação. Resultado? “Ariel Pink é o homem mais detestado do indie-rock”, lia-se por todo o lado (na tal da Internet). A tentativa de defesa não correu bem. “E se eu me suicidasse e twitasse 'Obrigado, pessoal. Tinham razão'?. . . Foi assim que o Ruanda aconteceu”, começou a justificar-se à New Yorker, antes de concluir: “Todos são vítimas, menos os pequenos e simpáticos tipos brancos que só querem deixar as suas mães orgulhosas e tocar numas maminhas. "Note-se, ainda assim, que Ariel Pink não manifestara particular apreço pela Westboro Baptist Church. Defendera que ouvir a agremiação gritar na rua a intolerância que grita era uma recordação importante de que vivia num país onde existe liberdade de expressão. “Gosto de colocar questões, mas acho que não há respostas”, diz agora ao Ípsilon. “Não acredito no certo e no errado. O mundo é muito mais complexo e eu sou uma pessoa… tradicional. " Tradicional? “Sou conservador e acho que devemos manter as coisas como eram em vez de pensar nas transformações maravilhosas que podemos fazer. A mudança acontece por si só, quer tentes fazê-la ou não. Assim sendo, é inútil tentar consegui-la. Mas faz parte do espírito inquieto do nosso tempo”, diz o conservador que canta Nude beach a go-go ou Sexual athletics. Um intruso no passadoÉ portanto neste contexto, o da parangona “o homem mais odiado do indie-rock”, que o encontramos. Mas o Ariel Pink que conversa com o Ípsilon não está preocupado com o contexto. “Não há nada de stressante em tudo isso”, diz descontraído. “Isso é só o Twitter a funcionar”, ri. E sim, levem-se mais ou menos seriamente as declarações, há muito de histeria internética na história do último ano de vida de Ariel Pink. Algo que não existe no álbum que agora editou, Pom Pom. Nele ouvimos, uma vez mais, um músico no seu casulo. As suas canções vêm, de facto, de um lugar peculiar. “Todo o meu projecto de carreira tem sido agir como um intruso na visão do passado, do meu passado. Quando ouço música, tento apreciá-la como quando tinha cinco anos. Estou constantemente a pegar naquele miúdo de cinco anos de forma a não o esquecer. Se eu o esquecer, ele desaparecerá completamente. Porque já não está cá. "Pom Pom conta, entre muitos outros, com a colaboração de Jason Pierce, dos Spiritualized, ou do mítico músico e produtor Kim Fowley (produto acabado da LA de toda a energia criativa e de todos os excessos, figura de culto desde a década de 1960). Fowley deu a Ariel Pink títulos de canções e excertos de melodias a partir da cama de hospital onde luta com um cancro. “Nasceu ao fundo da minha rua, mas ele tem 75 anos e eu tenho 36. E ele é uma lenda e eu sou um pouco menos do que uma lenda. "O álbum, longo de 17 canções, é uma colecção de experiências pop com assinatura sónica vincada, e habita um universo sonoro tão misterioso quanto descaradamente envolvente – brilho sintético, calor orgânico e aura de fantasma. Sendo desequilibrado, mantém-nos sempre longe do aborrecimento ou do desinteresse (esta música pode ser desconcertante, nunca aborrecida ou desinteressante). Nele, 68 minutos eclécticos o suficiente para acolher pop solar extraída dos anos 1960 (Plastic raincoats in the pig parade), indie muito twee (Put your number in my phone), hard rock de laca bem doseada (Not enough violence), experimentação vanguardista falhada (o final de Dinosaur Carebears), pop sátira à Frank Zappa & The Mothers Of Invention (Nude beach a go-go), histórias patetas de strippers e adolescentes que acabam mal (o funk sintético, 80s totalmente 80s, de Black ballerina). Pom Pom é o álbum de um provocador ocasional e de um excêntrico inadvertido que inventou uma linguagem pop perante a qual reagimos primeiro intrigados. Chegados a este disco, não deixámos de ficar intrigados, mas a música ganhou uma curiosa familiaridade. Vivemos o presente de um passado que nunca existiu. Só não deslindámos se é rosto mesmo a máscara de Ariel Pink. Nem quando se despede assim. “Não há um Ariel Pink e um Ariel Rosenberg. As pessoas pensam que estou a interpretar uma personagem, mas só mudei o nome para encaixar num projecto musical. Quando fala comigo, fala com Ariel Rosenberg. Não sou um actor. " Interessa sabermos?
REFERÊNCIAS:
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Não deve ler esta entrevista (contém palavreado altamente ofensivo)
Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? O podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade. (...)

Não deve ler esta entrevista (contém palavreado altamente ofensivo)
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.16
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Pertence ao grupo de um milhão e duzentas mil pessoas que ouviram Uma Nêspera no Cu? O podcast de Bruno Nogueira, Filipe Melo e Nuno Markl é um exercício de liberdade.
TEXTO: Se há ocasião em que a palavra “destravado” se justifica, é esta. Os humoristas Bruno Nogueira e Nuno Markl e o pianista Filipe Melo não têm travão. Dizem as coisas que as pessoas não devem dizer e que, na prática, todas dizem mais ou menos. Esta entrevista, como o programa Uma Nêspera no Cu, passa-se num mundo onde a estupidez tem lugar. Um mundo onde é proibido proibir e os limites são quase nenhuns ou nenhuns mesmo. Um mundo onde se volta à criança que folheia uma revista pornográfica (que sacou, quiçá, da mesinha-de-cabeceira dos pais) e descobre que não é a única a fazê-lo. Eles são amigos, trabalham episodicamente juntos. O espectáculo que os juntou, Deixem o Pimba em Paz, de Bruno Nogueira, volta ao Teatro São Luiz, em Lisboa, de 3 a 12 de Julho, de fato de gala e Orquestra Metropolitana. Os arranjos são de Filipe Melo e de Mário Laginha. Depois de lerem a entrevista, vão poder imaginar as coisas que dizem na carrinha, nos camarins, a maluqueira que não pretende salvar o mundo mas que os diverte. Última advertência: nesta entrevista dizem-se coisas impensáveis. É melhor ir a outro balcão se não gostar de gelado de nêspera. Vamos começar com um dilema? Como fazem no vosso programa. O meu é: não poder rir nunca mais na vida ou viver para todo o sempre, não com uma nêspera, mas com uma nespereira no cu. NUNO MARKL – Espera: mas com as raízes metidas dentro? A folhagem cá fora? Isso é decisivo. A folhagem para fora. BRUNO NOGUEIRA – Raiz por dentro? Nunca mais rir. Escolho nunca mais rir! Porque as raízes vão a sítios que ninguém imagina. MARKL – O não poder rir: era uma coisa biológica, ou vias uma coisa que faz rir e tinhas de [faz o som de engolir o riso]?BRUNO – Markl, não estás a perceber: a alternativa era teres uma nespereira no cu. NUNO – Tens razão. Eu não queria uma nespereira no cu. BRUNO – Mas o Filipe queria. FILIPE MELO – Estou a pensar que é possível viver sem rir. Olha o nosso Presidente da República. . . E se ríssemos por acidente, nascia uma nespereira? Temos unanimidade: ninguém se ria mais. MARKL – Imagina, estás no cinema, a ver um filme que é cómico, começas-te a rir e nasce-te uma nespereira. . . E as pessoas: “Sai da frente!”Cómicos, pessoas que vivem do humor, que se fizeram no humor, escolhem não rir mais? Como é que podem passar sem rir?BRUNO – É difícil, mas a outra hipótese é viver com uma nespereira no cu. Uma nêspera, já é o que é. Ele [Filipe] é da música. Aguentava melhor do que nós. FILIPE – Ou não. Estamos no mês das nêsperas. As nespereiras estão carregadas. Supunham que eu ia trazer uma nêspera (ou da família da nêspera) para começar a entrevista?MARKL – Não. Mas isto faz de ti uma séria candidata a estar no Uma Nêspera do Cu. No programa, já percebemos que sempre que uma das opções é meter alguma coisa no rabo, tentamos evitar essa. Isso é uma piada homofóbica?TODOS – Não!BRUNO – Tenho muito MARKL – Eu, supositórios, já meti. Em que é que estão a pensar? Um supositório age mais depressa do que um comprimido (para certas coisas). FILIPE – Alka Seltzer, usas?MARKL – Já não uso supositórios há uns 20 anos. Ou 30. Os dilemas de que toda a gente foge e que estão relacionados com ter alguma coisa no rabo: porquê?BRUNO – O título do programa surge de um dilema que envolvia, justamente, meter uma nêspera no cu. Há outros que envolvem inserir um pau de incenso. Nós fazemos isto em bolha. Não tínhamos noção da dimensão que ia ter. A única ideia era divertirmo-nos. Às vezes visamos pessoas, nos dilemas, com quem, depois, nos cruzamos. E é um bocadinho desagradável. Já se cruzaram com a Júlia Pinheiro ou a Teresa Guilherme, com quem se metem num dos dilemas?MARKL – Já me cruzei com a Teresa Guilherme. Não toquei no assunto. Fiquei com a sensação de que ela não tinha ouvido. BRUNO – Penso que agora vai ouvir. . . MARKL – É interessante ver as reacções das pessoas. O Guilherme Leite teve grande fair play. O Fernando Pereira: nós achávamos que tinha tido grande fair play. Convém esclarecer qual era o dilema que envolvia Fernando Pereira, o imitador. FILIPE – Esgalhar uma ao Fernando Pereira (tinhas direito a estar com um fato e uma máscara de ski). Contacto meio astronauta. Ou. . . Qual era a outra?MARKL – Não sei. O Fernando Pereira escreveu um texto engraçado no Facebook, que partilhámos. Mas estive com ele no 5 para a Meia-Noite, fui agradecer-lhe o fair play que tinha tido perante o nosso dilema e ele, sempre a sorrir, disse: “Gosto muito do trabalho dos humoristas, e respeito. Vocês têm um grande poder. Entristece-me quando o usam para a estupidez. ”BRUNO– Respondeste bem. MARKL – “Ó Fernando, a estupidez às vezes também é precisa. ” Acredito mesmo nisto. Acreditas mesmo que a estupidez também é precisa?MARKL– Acho que sim. FILIPE – Senão não existia o Lord of the Voices, o espectáculo [de Fernando Pereira]. MARKL– Filipe Melo o disse. Há muita gente que gosta de ouvir a Nêspera e comenta: “Aquilo é só cocó e xixi, rabo e não sei o quê. Podiam meter alguma crítica social. ” O que eu respondo: “Não, não. O que é giro na Nêspera é ser infantil, estúpido, e sacar esse lado às pessoas. ” Tipo ao [António] Zambujo e ao Rodrigo Guedes de Carvalho. Como é que a Nêspera surgiu? A sementinha é qual?FILIPE – Eu não tenho a pressão de vir do humor, não é?És um respeitado pianista. FILIPE – Não propriamente respeitado. Sou um pianista. Na verdade, sou um erro de casting. Mas está tudo bem. A razão pela qual estou aqui é esta: nós estivemos a fazer um espectáculo, que foi uma ideia do Bruno, chamado Deixem o Pimba em Paz. O Nuno Markl tinha no espectáculo um número de strip-tease. Vinha connosco para a estrada no papel de stripper. MARKL – Vamos deixar isto assim, sem mais explicações. Eu vi. E não eras o George Clooney. MARKL – Não. FILIPE – As nossas conversas de carrinha eram dilemas destes. Foi o Nuno Markl que disse: “Isto daria um óptimo podcast. ”Explica aos infoexcluídos o que é um podcast. BRUNO – Um podcast é uma emissão áudio de um programa que só é emitido na Internet. Descarregas e ouves na Internet. FILIPE – Tenho a impressão de que nenhum de nós acreditava que isto dava um óptimo podcast. Estávamos cépticos. BRUNO – O “preferias isto ou aquilo” tem décadas. É daqueles jogos que toda a gente joga. Não tem autoria, que se conheça, e ainda que alguns colegas nossos se tentem apropriar dela. Isto não tinha nada de original. E funcionava na carrinha. No nosso microcosmos. Depois o Markl insistiu e experimentámos. Correu bem. Acho que tem que ver com isso: não tem um objectivo. Não pretende salvar o mundo ou mudar o país. É desprendido de tudo. É divertir o pagode?BRUNO – É para nos divertir a nós, acima de tudo. FILIPE – Sobretudo no meio em que o Bruno e o Markl se movimentam, o humor e a exposição mediática estão muito ligados a dinheiro. Nós, com este podcast, não ganhamos um tostão. Isso deu-nos uma liberdade. . . Eu sempre tive essa liberdade, mas eles, talvez por estarem mais ligados ao mainstream, não podem utilizar palavras ou expressões como arraial de cona. [gargalhada geral] Ou comedor de esmegma. Onde é que foram descobrir essas expressões?BRUNO – Foi num almoço. Isto que o Filipe disse é muito importante. Nós não temos nenhuma marca associada. MARKL – Há uma sede de gozo. BRUNO – É-nos cedido o estúdio muito gentilmente pela TSF. A liberdade é total porque não temos de prestar contas a ninguém. MARKL – Houve algumas empresas que consideraram a possibilidade de patrocinar isto. E desistiram. BRUNO – Só pelo título. MARKL – Se algum dia tivermos um patrocínio, a nossa preocupação é pagar àquele que de nós tem mais trabalho, o João Pombeiro, que faz as animações. Dá um trabalho imenso. Há uma versão só áudio no iTunes. As animações [visíveis na versão do YouTube] deram um certo carisma aos episódios. FILIPE – Os estudos e os interesses do João Pombeiro têm muito que ver com as artes plásticas. Embora pareçam umas animações absurdas, são feitas por uma pessoa que tem um cuidado extremo com aquilo, com o pormenor. Não responderam: o comedor vem de onde?BRUNO – Comedor de esmegma. Tínhamos recebido algumas queixas no Facebook por causa do tipo de linguagem que usamos. Então decidimos fazer um aviso antes do episódio seguinte a dizer que não utilizaríamos termos tais como. . . MARKL – Foi uma lista! O processo de criação dessa lista foi fascinante. Enquanto almoçávamos num restaurante japonês, na Expo. Fino. BRUNO – Finíssimo. MARKL – Estamos a comer sushi e a sugerir coisas porquíssimas. São, para reproduzir as vossas palavras, reles, doentios, e usam palavreado do feio. Usam-no normalmente?MARKL – Sou bastante regrado a dizer palavrões. O que faz com que as pessoas fiquem muito surpreendidas. “Não sabia que o Markl dizia. . . ” Mas eles são porcos, não é?BRUNO – Eu uso muito. Alivia-me bastante. MARKL – O Filipe consegue conter-se até ao momento em que diz uma caralhada desumana. Mas és um tipo pacato. FILIPE – Na minha auto-análise, diria que digo muitos palavrões. O Bruno claramente ganha, na liberdade de utilização. BRUNO – É muito raro usar em trabalho. Na vida pessoal, dá-me prazer. Vamos lá ver: toda a gente (ou quase) diz palavrões? Homens e mulheres, de todas as idades, de todas as classes sociais. Temos a ideia de que há palavras que não se dizem. Ensinamos às crianças que não se dizem asneiras. Logo, palavrão é asneira. BRUNO – Acho que toda a gente diz. MARKL – Há sempre uma altura em que sai qualquer coisa. Nem que seja quando uma pessoa se queima numa torradeira. Uma vez disse: “Foda-se” em frente do meu filho. Logo a seguir: “Ah, atenção, isto não se diz. ” Nesse mesmo dia, ele ia a deitar-se, deu uma cabeçada na cama e disse: “Foda-se. ” Fez um cálculo: “Se há dor envolvida, pode-se dizer isto. ”BRUNO – O palavrão não tem de ser só associado a situações de tensão. Na alegria também deve existir o palavrão. Conheces o texto do [Miguel] Esteves Cardoso sobre os palavrões? Há palavras que ditas com o termo técnico — por exemplo, pénis — são bem mais ofensivas do que. . . MARKL – Caralho. BRUNO – Portanto, eu uso em ambiente controlado. MARKL – Uma vez, numa estação de serviço, estavam a ouvir O Homem Que Mordeu o Cão. A rir e a dizer: “Grande cabrão. ” É muito português: insultarem as pessoas que as fazem rir. Talvez porque intrinsecamente sejamos um povo que está sempre triste. Então, quando há alguém que faz piadas, diz-se: “Filho de uma grande puta. ” É quase um elogio. Do que é que se gosta? Da transgressão? De alguém dizer o que aquele que está a ouvir não ousa dizer?BRUNO – O segredo da Nêspera é só este: é completamente livre. Sente-se, nos projectos que o Markl faz, que eu faço, que, por muito livres que sejamos, como estamos a trabalhar para um canal [de televisão] ou estação de rádio, há sempre uma barreira. Numa época em que está tudo muito formatado, em que é tudo muito previsível, o facto de se estar à beira de um abismo [é estimulante]. A mim, dá-me vontade de fazer. MARKL – Há as pessoas que ouvem porque se riem e gostam genuinamente. Há as pessoas que ouvem para se irritarem e porque têm o lado voyeurista do: “Deixa ouvir estes gajos que dizem coisas horríveis que não podem dizer em mais lado nenhum. ”Têm programas formatados na TSF (Tubo de Ensaio) e Rádio Comercial (O Homem Que Mordeu o Cão). Estão sempre nos primeiros lugares do top dos mais ouvidos. Foram suplantados pela Nêspera. MARKL – [com tom de locutor sensacionalista] Também no Brasil!Já lá vamos, ao Brasil. A pergunta: temeram que os vossos formatos de sucesso, confirmados pelo público, patrocinados pelas empresas, pudessem ser beliscados por este arraial de maluqueira?MARKL – Tu, Bruno, no Tubo de Ensaio, és mais terrorista do que eu. Eu tenho crianças a ouvir, que gostam muito do que faço. Também faço dobragens de desenhos animados [riso]. Há um lado explosivo. . . Pensei que se calhar ia perder trabalho. Ao mesmo tempo sentia que era uma coisa que valia a pena fazer. FILIPE – Um episódio real: no outro dia, a minha namorada estava num bar e falavam da Nêspera na mesa do lado. Diziam que era feito pelo Bruno Nogueira, pelo Nuno Markl e por aquele gajo que ninguém sabe quem é. Isto é uma grande vantagem: não tenho absolutamente nada a perder. Os meus amigos são humoristas ou estão dedicados ao humor. O Nuno Markl vejo-o mais como o grande defensor de todos os nerds. Um dia disse-lhe, quando estava verdadeiramente alcoolizado, não ele mas eu, que me surpreendia como é que tinha ascendido a uma posição de tanta exposição e continuava a ser um verdadeiro nerd. O Bruno, sendo um humorista, sendo alguém que me faz rir imenso, mesmo quando está fora do ar — é uma pessoa que tem graça natural. . . MARKL – É verdade. FILIPE – O que quero dizer: como tenho muitos amigos dedicados ao humor, tenho pensado, temos falado sobre o limite do humor. Qual é o seu limite?FILIPE – O humor deixa de fazer sentido quando ofende alguém que não está a pedi-las. Ouço o Tubo de Ensaio. Vejo as coisas que o Markl mete no Facebook. É um nível de cascanço. . . Mas, se pensarmos bem, é sempre alguém que está a pedi-las. Nesse aspecto, o humor acaba por ser uma forma de fazer justiça. Passo o tempo a pensar nestas coisas, no limite. É o intelectual do grupo? Também pensam nos limites do humor?BRUNO – É o intelectual, é. Olha a barba. Cofia o bigode, como um personagem de um romance do século XIX. BRUNO – Põe cera. FILIPE – Não ponho cera. MARKL – A discussão sobre os limites do humor dá pano para mangas. Nunca se chega a uma conclusão. Se tem graça, realmente, é de fazer. FILIPE – E quando destróis alguém que não está a pedi-las?MARKL – Não é a minha corrente de comédia. Mas o Bruno é o humorista que usa o bastão. Foi assim que apareceu, num espectáculo no Teatro São Luiz, de bastão. Continua a fazer um humor demolidor. MARKL – O Bruno é um justiceiro. BRUNO – Em relação ao Tubo de Ensaio, [que faço] com o [João] Quadros [co-autor dos textos]: muitas vezes terei errado. Muitas vezes apontei ao alvo errado. Mas o que aquelas pessoas [visadas no programa] fizeram, e que deu origem ao Tubo de Ensaio, não é menos grave do que aquilo que ali dizemos. E em 90% dos casos, são ilibadas, o caso prescreve. Não sei se passamos tanto o limite ou não. Reconheço que esticamos um bocadinho a corda. Que fazemos uma coisa arriscada. Não direi que é justiceira. Nem é esse o nosso objectivo. Mas é por sermos um país conservador que isto é visto assim. Queria dizer outra coisa sobre os limites do humor. . . ah. . . já não me lembro. A vossa mãezinha fala-vos dos limites? Ocorreu-me a mãe do Herman José, que lhe dizia: “És um bom artista. Não havia necessidade. ” A frase foi depois adaptada pelo próprio Herman no Diácono Remédios, como se sabe. MARKL – Não, não. A minha mãe adora ouvir a Nêspera. Faz likes na Nêspera. BRUNO – Ternurento. Os meus pais, também. O meu pai, curiosamente. . . Muito do meu humor vem do meu pai. Que é do Norte, de Penafiel. Em relação à Nêspera, disse: “Aquilo às vezes é um bocado forte, hã. . . ” Uma pessoa que já me ouviu a dizer de tudo!Dizes de tudo à frente dos teus pais?BRUNO – Sim. Tenho imenso respeito, mas isso não interfere com a liberdade que sinto. FILIPE – A minha mãe gosta imenso. Tenho a impressão de que a utilização da Internet para o meu pai tem mais que ver com os forwards de fraude nas bombas de gasolina. Que é isso?MARKL – São aqueles forwards que avisam: atenção há seringas infectadas nos bancos dos cinemas. O teu pai é um grande propagador disso. FILIPE – Sim, e de power points da natureza. Mas a minha mãe gosta da Nêspera. Nunca disserta muito sobre o assunto, mas sei que ouve. MARKL – Há o orgulho das mães, nisto. Há mesmo? Não sentem embaraço quando vão ao café com as amigas?MARKL – Não. Conseguimos, neste curto espaço de tempo em que durou a primeira série de Uma Nêspera no Cu, criar uma espécie de mainstream do cu. Tornou-se estranhamente aceitável e não muito censurável que três pessoas e um convidado estejam ali a expelir aquele vernáculo. FILIPE – Não podem dizer: aquilo não tem graça. O nosso objectivo não é ter graça. Onde quero chegar: não há muito por onde atacar. Juntamo-nos para nos divertirmos, e não obrigamos ninguém a ouvir, não é?Há uns efeitos colaterais. Os visados da Nêspera. Já falámos de alguns. MARKL – As pessoas não levam tão a mal quanto isso. Ou então fomos nós que ainda não fomos suficientemente brutos. BRUNO – O Ricky Gervais diz que podes fazer comédia que vem de um sítio bom ou de um sítio mau. Aqui, verdadeiramente, vem de um sítio bom. Sim, há pessoas pelas quais não nutrimos assim tanta simpatia. Mas, regra geral, já envolvi pessoas em dilemas que. . . Nós também nos envolvemos. FILIPE – [Em tom de troça, para Markl] Ele é o Nilton, não é?Nilton é apresentador, como Markl, do 5 para a Meia-Noite. MARKL – Dizerem isso é um clássico. Nós começamos por nos sovar de uma forma agressiva uns aos outros. Sobretudo o Bruno. O Bruno é um grande bully que eu tenho. Vou para casa a pensar: “Devia ter respondido melhor. Tenho 43 anos e ele tem para aí 20. ”Tens quantos anos, afinal?BRUNO – Tenho 33. A idade do próprio. Fazemos isso porque há confiança e amizade entre nós. Ah, já sei o que é que ia dizer em relação aos limites do humor: ninguém pergunta quais são os limites da música, os limites das novelas. Lembro-me de um primeiro episódio de uma novela da TVI. O Pedro Granger estava numa cadeira de rodas, era homossexual e morria numa explosão. Não vi ninguém dizer que aquilo era contra os homossexuais, contra os deficientes motores. . . Na novela, como há o rótulo da ficção, pode-se fazer tudo. No outro dia, uma mulher tentava atropelar o pai. Que é que importa? Se fazes isso no humor, acham que estás a incentivar as pessoas a atropelar, a matar homossexuais que andam em cadeiras de rodas. . . MARKL – A discussão sobre os limites do humor não é muito fértil. Na cabeça das pessoas há uma associação entre comédia e maldade. O humor já é o lugar da subversão. Tiveram necessidade de transgredir ainda mais, como se também o humor estivesse a ficar aprisionado ou formatado. MARKL – Sim, mas isto não foi uma decisão muito cerebral. Estou num formato e muito feliz nele, mas tenho cuidado. Não há qualquer pressão por parte da Rádio Comercial, não dizem: “Não fales sobre isto, sobre aquilo. ” Sou eu próprio que penso numa família que me diz: “Gostamos muito d’O Homem Que Mordeu o Cão”, e na notícia sobre uma máquina de venda automática de vibradores. . . Começas a ver o teu filho do outro lado, a ouvir sobre a máquina de venda automática?MARKL – Não sei se isto não é um macaquinho no meu sótão. Miúdo pequeno, assistias a este palavreado? A Nêspera parece um grupo de miúdos que se diverte porque apanhou uma revista pornográfica. . . BRUNO – A ideia é essa. MARKL – Chegámos a esta idade a pensar: “Vamos lá outra vez abrir a Gina. ”A saudosa revista Gina?MARKL – Não é saudosa porque ainda há. E continua a ser muito cara. Bruno, pensas nas crianças a assistir? Esse é o grande travão?BRUNO – Tenho esta vantagem em relação ao Markl. Pura e simplesmente não visualizo o lado de lá. Só tento divertir-me. Depois, como numa gelataria, há vários sabores. Não queres um, não és obrigado a comer. A Nêspera nem é um acto de rebeldia: é só um acto de liberdade. Podemos controlar do princípio ao fim aquilo que faríamos se não estivesse lá nenhum microfone. FILIPE – É também um exercício de criatividade. Semanalmente pensamos nos dilemas. Inventámos jogos — como o famoso Azar do Caralho. Que jogo é esse?FILIPE – Foi um jogo inventado, mais uma vez, pela mente perversa e doente do Bruno Nogueira, quando estávamos nos camarins do Deixem o Pimba em Paz. Consiste em escolher um contacto aleatório do teu telefone. Tens de ligar a essa pessoa num prazo de 20 segundos e utilizar uma palavra dada. Palavras inócuas, imagino. MARKL – O grande desafio está em arranjar palavras que não sejam javardice pura. FILIPE – Por exemplo, expectoração. MARKL – O Bruno teve de usar “berimbau” [instrumento musical]. BRUNO – Faz-se assim: dás-me o teu telemóvel e eu faço um scroll na tua lista de contactos. Dizes stop, eu paro. FILIPE – Caso não ligues, tens de pagar uma coima. Eu ligo e digo simplesmente “berimbau”?MARKL – Não, não. Tens de manter uma conversa normal. BRUNO – Ah, vamos jogar, vá lá! Dá-nos o teu telemóvel. Anabela, Anabela. Continuando. MARKL – Imagina. Sai-te o Jardim Gonçalves. Tens de ligar do teu telemóvel. Ele atende: “Então, Anabela, como está?”BRUNO – E tu: “Estou com um bocado de expectoração. ”MARKL – Disseste expectoração? Pumba, já ganhaste. Mas não podes desligar logo. BRUNO – Nem podes ligar de novo a explicar que aquilo era um jogo. O nosso próximo passo é fazer o Azar do Caralho by night. À meia-noite, fazer o mesmo jogo. E aí pareces um psicopata ou um tarado sexual. MARKL – Se receberes um telefonema nosso à meia-noite, já sabes. BRUNO – A reacção é estranha. Cerca de 90% das pessoas que te calham são pessoas com quem não falas regularmente. Na tua lista tens oito ou nove pessoas com quem falas regularmente e a quem podes ligar a qualquer hora. Qual é o número mais precioso da vossa lista de contactos? E o mais poderoso? O Cavaco?MARKL – Não tenho telefones de ninguém superpoderoso. Não tenho mesmo. Tenho assim de algumas supervedetas. Ricardo Araújo Pereira. Bruno Nogueira. FILIPE – Nilton. [risos]BRUNO – O meu número mais precioso é o de casa. O mais poderoso, não sei. MARKL – O mais poderoso? Nuno Artur Silva, que é administrador da RTP. FILIPE – Eu tenho o número de telefone do Marante. BRUNO – Eu tenho do Nel Monteiro. Para além do número do Marante. Anabela, queres jogar ao Azar do Caralho?Falem-me agora da criança que foram e que apanhou umas revistas pornográficas. MARKL – Tenho memórias vívidas de folhear a Gina, na Escola Secundária de Benfica. Havia um que comprava. Não havia Internet e íamos para umas arcadas comentar. BRUNO – Porque é que ias com um amigo teu?MARKL – Íamos — em grupo — para umas arcadas. Para não estarmos na escola. Folheávamos e dizíamos: “Eh, pá, olha para ela. ” Virávamos a página. “Ehhh, olha o que está a acontecer aqui. ”BRUNO – Enquanto faziam isso, tinham erecções, ou não?FILIPE – Havia esgalhanço?MARKL – Entre amigos? Não!FILIPE – Negas aqui e agora que houve esgalhanço colectivo? A minha mãe era presidente do conselho directivo quando tu andavas na Secundária de Benfica. Portanto isso passou-se sob o reinado dela. BRUNO – Eu lembro-me, eu lembro-me. . . [riso] Não sei porque é que vou contar isto. Eu passava as férias grandes na aldeia, em Mogofores. Terra do José Cid. A malta ia para becos esgalhá-la. Um aqui, um ali. Era a mesma coisa que ir a um bairro de drogados e, em vez de se estarem a injectar, estavam a. . . Quando perguntei pela criança, não pensava que íamos dar a este sítio. Vamos tentar pôr alguma ordem nisto. Vocês não perdem nada com a Nêspera, mas eu tenho muito a perder. MARKL – Chegámos todos a um momento das nossas carreiras em que podemos fazer isto. As consequências não serão muito nefastas. Sim, vai haver alguém a dizer: “Isto não é para mim. ” Senhoras. Mas isto deu-me uma certa aura punk. A Nêspera é uma brincadeira de rapazes?MARKL – Tivemos, entre os convidados, a Rita Blanco. Foi a única mulher. Há esse preconceito: fica mal (e a expressão é esta) a uma mulher dizer Uma Nêspera no Cu. FILIPE – Ainda existe?BRUNO – Por muito que queiramos ter mais mulheres, há esse lado. A própria convidada não se sente confortável para usar determinada linguagem. Mas há sempre maneira de contornar isso. Como? Não tens de usar palavrões. FILIPE – O conteúdo é muito infantil. Talvez por isso as pessoas achem graça e se identifiquem. E tem continuidade. Acaba o podcast e as pessoas estão no seu local de trabalho, começam a desenvolver os seus próprios dilemas. Fizemos com que todas as segundas-feiras se falasse daquilo. O pior dilema de todos, para mim, foi o do gatinho. De um lado, havia um gatinho, ao qual tínhamos de nos afeiçoar, e por fim matar numa pedreira. Do outro, um tipo que tem a suástica desenhada na testa e que vai para a Cova da Moura. FILIPE – Para mim, também é o pior. MARKL – Eu sacrifiquei-me pelo gato. Este dilema, ao contrário de quase todos os outros, não tem palavrões, não tem que ver com sexo. É de longe o mais violento. MARKL – É sangrento e mau. Roça o evil. BRUNO – Gosto mais quando é um dilema elaborado e perverso. Dá-me mais quentinho aqui no estômago. Especialmente sabendo que eles adoram gatos. MARKL – A Rita Blanco também é defensora dos animais. BRUNO – Como eu sou. Mas a Rita tem animais. O Filipe tem dois gatos com sida. MARKL – Têm a sida dos gatos. Mas está controlado. BRUNO – Não passa de gato para humano. Mas neste caso passou de humano para gato. [gargalhada] Eu tenho um cão. Gosto deste tipo de dilema. Os palavrões: só se servirem um propósito. MARKL – Quando vamos para a badalhoquice, a ideia é que, mesmo na badalhoquice, haja alguma imaginação. Para não ser, simplesmente, um arraial de palavrões. MARKL – Sim. O Carlos Vaz Marques propôs duas opções. O efeito era o mesmo: em ambas acabávamos a levar no cu. A grande escolha era entre um humano e uma máquina sofisticada. Este dilema podia ser só porco, e contado de forma resumida as pessoas ficam a pensar: “O Carlos Vaz Marques? Enlouqueceu. Um jornalista respeitado. ” Mas teve tanta graça. É poética a maneira como descreve a máquina, o funcionamento. A imaginação. . . Isto faz da Nêspera uma jam session de disparate puro. Há uma certa recorrência nesse tema. . . MARKL – Por mais que se diga, acho que o cu é uma parte muito engraçada do corpo humano. BRUNO – [Em tom filosófico] Penso que sim. Se isto for uma psicanálise, somos capazes de descobrir coisas interessantíssimas. O título já puxa a dilemas que vão para esse lado. De onde vem o título?MARKL – “Brainstormamos” muito por SMS. Lembro-me de chegar um SMS do Bruno que propunha: “E se fosse Uma Nêspera no Cu?”FILIPE – A produtora do espectáculo Deixem o Pimba em Paz estava a tentar arranjar algum tipo de apoio para esta ideia. Ao Bruno, dava-lhe gozo especial pensar que ela ia a uma reunião e que tinha de dizer que o título era Uma Nêspera no Cu. Porquê nêspera?BRUNO – Porque gosto da palavra. Sabem como se diz nêspera no Porto? Magnório. BRUNO – Um magnório no cu!MARKL – Podíamos fazer a versão nortenha disto só com convidados do Porto. Não sei explicar, mas é mais engraçado chamar-se assim, e não Um Ananás no Cu ou mesmo Um Pêssego no Cu. Fizeram oito programas, após o que interromperam para pensar o futuro do programa (escreveram isto no Facebook). Estes programas foram ouvidos por quantas pessoas?BRUNO – Um milhão e duzentas mil. Não estávamos à espera. Na verdade, estávamos à espera de deitar isto cá para fora. O caroço. MARKL – Estar em primeiro lugar no iTunes do Brasil é bizarro. BRUNO – Agora não sei se estamos. Mas estivemos. Alguém falou disto. De repente, no Twitter comecei a ter uma série de seguidores brasileiros. Aos milhares por dia. Até que percebi que um tipo. . . MARKL – “Anticast”. BRUNO – . . . que tem um podcast no Brasil (que está sempre no top), partilhou. FILIPE – Os brasileiros acham graça ao sotaque. Já que falámos em Brasil, trago a Porta dos Fundos, cujo projecto começou por só existir na Net. Há algumas semelhanças. É por não terem nenhum patrocínio, é por não estarem ligados a uma rádio ou televisão que podem fazer tudo o que quiserem. Sem compromisso. Inspirou-vos?BRUNO – Neste caso específico, não. Até porque a ideia inicial era ser só um podcast. Em qualquer caso, é incrível o poder que a Internet tem. Trata-se sempre de liberdade. Trata-se de saber, enquanto espectador, que aqueles artistas não estão condicionados. MARKL – A Nêspera representa a ideia de estarmos numa plataforma em que vale tudo. Se há sítio onde se pode experimentar e ter liberdade absoluta é o podcast. É quase como as rádios piratas nos anos 80. FILIPE – Verdade, boa comparação. MARKL – Eu estive numa rádio pirata nos anos 80. BRUNO – Com amigos?MARKL – Sim, fazíamos masturbação colectiva. [riso]Quando é que volta a Nêspera?BRUNO – Em Setembro. Se calhar vamos profissionalizar um bocadinho a coisa. FILIPE – E o espectáculo ao vivo? É um plano que temos. MARKL – O ideal seria reiniciar isto com um espectáculo ao vivo. Uma coisa bonita, com quarteto de cordas. O Filipe tem bons contactos ao nível do quarteto de cordas. E terminarmos com um dilema? Saído agora. BRUNO – Eh, pá. MARKL – Não consigo. Demoro muito tempo a pensar. [Alguma conversa fiada pelo meio]FILIPE – Já tenho um bom. Vocês são pais. A primeira opção: estão a fazer amor com a Alcione. . . MARKL – Onde é que ele vai buscar a Alcione?FILIPE – Ela abre os vossos braços, uma cena dominatrix, e vomita-vos em cima. A outra opção: vão ter de deixar durante dois dias os vossos filhos ao cuidado da Alcione. MARKL – Mas estamos com a Alcione todos os dias?FILIPE – Um dia, só. Mas vomita-vos na boca. MARKL – Na boca? Há bocado não disseste que era na boca. BRUNO – Na boca? Isto é uma entrevista! Eu escolho a primeira. Nunca deixaria a minha filha com a Alcione. MARKL – Eu também. Amor de pai. MARKL – Tens de ter algum heroísmo pelos teus filhos. FILIPE – Fui muito hardcore?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
E se trocássemos umas ideias sobre vida de casal?
O psiquiatra José Gameiro trabalha sobretudo com casais em crise. Não gosta de dar receitas, mas prescreve algumas. Por exemplo? Ouvir. Mesmo que estejamos fartos da velha conversa. E baixar a bolinha e criticar menos.Entrevista de Anabela Mota Ribeiro. (...)

E se trocássemos umas ideias sobre vida de casal?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O psiquiatra José Gameiro trabalha sobretudo com casais em crise. Não gosta de dar receitas, mas prescreve algumas. Por exemplo? Ouvir. Mesmo que estejamos fartos da velha conversa. E baixar a bolinha e criticar menos.Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
TEXTO: José Gameiro nasceu em 1949. É psiquiatra. No consultório onde nos encontramos, numa manhã de terça-feira, há maples individuais e um sofá onde cabem dois. Há casais que o consultam e se sentam longe um do outro. Outros repetem que continuam a gostar da pessoa com quem vivem, não sabem é ser felizes com ela, no todos os dias. O problema é o todos os dias. O problema é o outro ter outro. O problema é o outro ser inaturável, criticar de mais, ter uma família de origem chata. Consultam-no a ver se ainda conseguem ser felizes. Alguns separam-se, outros reconstroem-se. Porquê, para ele, a terapia conjugal? “O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal. ” O que é que um terapeuta conjugal faz, exactamente? “Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido. ”A maior parte das pessoas está para as duas coisas. Ser amado é tão satisfatório como amar. As duas coisas são complementares. Mas ser amado é mais uma construção do que amar. Posso sentir que sou amado, e se perguntar à outra pessoa, ela pode achar que não me ama tanto, ou que me ama mais do que sinto. Para mim, individualmente, é fundamental. Já conheci pessoas que amaram com a sensação de não serem amadas da mesma forma e que conseguiram viver essa situação. Se vivem sem sofrimento, tudo bem. Também já vi muita gente que, em fases críticas de uma relação, achou que, para trás, nunca tinha sido amada, ou que nunca tinha amado. E alguém que está deprimido pode achar que faz sentido não ser amado porque não presta para nada. Sim. Há pessoas que vivem relações de 30 anos sempre a pensar: “Mas o que é que eu tenho para esta pessoa gostar de mim?” E começam à pesca das coisas que têm ou não têm. Gosta-se porque se gosta, ama-se porque se ama. Quando amamos alguém, não sabemos muito bem porquê. Quando deixamos de amar, arranjamos 30 razões para dizer porquê. Completamente. Já há muitos anos que desisti de perceber porque é que gostamos de outra pessoa. Há quem diga que é o cheiro. É uma coisa irracional. Isto não tem nada que ver com a relação ser mantida. Se viver com alguém, tenho de me adaptar, e vice-versa, à pessoa. E as cedências, as negociações, são feitas em nome daquilo que sinto e que a outra pessoa sente. Se queremos estar juntos, não temos outro remédio senão adaptarmo-nos. Ou então separamo-nos. Separarmo-nos de uma pessoa de quem gostamos, e que gosta de nós, é estúpido. Parto do princípio, porque mo dizem, que continuam a gostar um do outro. Isso é uma coisa que não trabalho. O amor não é trabalhável. Trabalho a possibilidade de o amor ser vivido. Aí tem que ver com os comportamentos. A definição que vou dar é um bocadinho egoísta. É gostar de estar com a pessoa. Isto não chega. . . Mas é gostar de estar com a pessoa de uma forma bastante permanente. É gostar de ir ter com ela. É sentir necessidade de estar com ela. É sentir falta quando não se está. E é também uma espécie de solidariedade e de intimidade que se cria com alguém. Não posso estar com alguém com quem não estou solidário. Posso ter opiniões diferentes, mas tenho de ser solidário. Se a minha mulher vem falar da sua vida, do seu trabalho, ela não espera que me comporte como um colega. Espera que eu perceba qual é o seu ponto de vista. Não há objectividade numa relação amorosa, não pode haver. Os casais que trabalham juntos podem ser um problema. O problema maior é a vida conjugal ser invadida pela vida laboral, e as discussões conjugais serem trazidas para a vida laboral. É uma situação especial, não aconselho. Mas há quem sobreviva bem a isso. A competição pela pressão social é sobretudo um problema dos homens. As mulheres estão cada vez mais em lugares de destaque, de maior visibilidade. Depois, há a questão do dinheiro. Um homem ganhar mais do que uma mulher não é um problema, uma mulher ganhar mais do que um homem é, muitas vezes. Se falar de mim, não. Sou um filho de pais separados. A relação conjugal que vi foi sempre de tensão e conflito. No entanto, o meu modelo de relação conjugal não é de modo nenhum esse. Vivo muito mal numa relação conjugal conflitual. Não tenho dúvidas de que a história pessoal influencia, mas com a idade e a experiência clínica acho cada vez mais que as pessoas se podem libertar da sua história passada. O meu fascínio profissional pelos casais tem tudo a ver com a história dos meus pais, ainda que o encontro com a terapia familiar tenha sido causal. Os meus pais casaram-se em 1944. Nasceu a minha irmã em 45 e eu em 49. É uma história de amor que durou até ao fim da vida dos dois, ainda que com a separação. Pode ser uma construção minha, mas tenho dados objectivos. O meu pai era um filho-família do Ribatejo, com algum poder económico. Sim. Gente da Escola Agrícola de Santarém. Era o filho mais velho de três irmãos, com uma relação fusional com a minha avó (era o filho claramente preferido). Conheceu a minha mãe, que era filha única de um casal de origens pobres, da zona de Tomar. O meu avô materno foi para África em 1914 ou 1915, quando casou, e ganhou muito dinheiro no Lobito, com um negócio de venda de carros. A minha mãe nasceu lá. Vinha cá muitas vezes. Marcaram-me as histórias das viagens de barco da minha mãe. As viagens duravam um mês, do Lobito a Lisboa. Ia a bailes todas as noites, dançava, falava. Fez 15 ou 17 viagens. E num Verão conheceu o meu pai, na Nazaré. As pessoas do Ribatejo iam muito à Nazaré, à praia. Apaixonaram-se. Não tinham nada a ver um com o outro. A minha mãe estudou piano e falava Francês, literalmente. Sim. O meu avô vem de África, reforma-se. Comprou prédios em Lisboa, que ainda são nossos, e vivia dos rendimentos. Penso que também emprestava dinheiro, que funcionava como financiador das construções dos chamados “patos bravos”. Casam contra a vontade dos meus avós maternos. A história que ouvi é que receberam informações de que era de boas famílias, mas um bocadinho levantado. Mulherengo. Sempre foi. Foram viver para Torres Novas, onde era a quinta dos meus avós. Não sei. A minha mãe tinha uma paixão muito grande pelo meu pai. Desde cedo correu mal. O meu pai ia a Lisboa quase todas as noites. Estamos a falar dos anos 40, as estradas eram como eram. Dizia que ia tomar café e ia passear com os amigos. Tinha três carros. Um com o qual ia, um em Lisboa para o caso de o outro se avariar, e outro para um amigo, para o desenrascar. O meu pai tem histórias, tem aventuras, mas a minha mãe aguentou sempre. Sempre. Sabem sempre. Aos meus oito anos, a minha irmã tinha 12, o meu pai apaixonou-se e saiu de casa. Uma das minhas memórias mais fortes é a saída do meu pai de casa. A minha mãe tenta que o meu pai não saia. “Não te vás embora!” Ofereceu-lhe de presente um estojo de barba muito bonito. Os meus avós ficaram muito contentes. Não gostavam do meu pai. E o meu pai achava os meus avós uma seca. Ao domingo tínhamos de ir todos passear o Mercedes para o Estoril. “O senhor do Mercedes”, como ele dizia, era o sogro. Mais tarde falámos muito disto e o meu pai sempre disse que a minha mãe era controlada pelos pais, que não conseguia libertar-se daquilo. Passados dois ou três anos, há um processo em tribunal. Os meus avós resolvem fazer uma separação. Não havia divórcio. Aliás, nunca se divorciaram. O advogado da minha mãe é o Azeredo Perdigão, que dá cabo do meu pai. Mas não provocaram a separação. Acontece que a minha mãe se torna. . . uma espécie de namorada do meu pai. Mantêm uma relação, clandestina aos meus avós. Havia um problema importante, o económico. O meu pai tem uma relação com o dinheiro complicada. Ora tinha, ora não tinha. Era um tipo generosíssimo, mas muito irresponsável. Durante anos não nos deu um tostão. A minha mãe tem de ir ter com os meus avós para receber uma mesada. Quando a minha mãe e o meu pai começam a sair, de vez em quando saíamos os quatro no carro. A minha irmã e eu não percebíamos nada. Não podíamos dizer nada aos avós. Isto durou uns tempos. Não. O meu pai era regente agrícola, depois começou a vender imobiliário, depois voltou a ser regente agrícola. Teve uma vida profissional sempre oscilante. Várias vezes diz à minha mãe que quer voltar. A minha mãe diz sempre a mesma coisa: “Podes voltar, mas larga essa mulher. Vives sozinho durante uns tempos e depois voltas. ” Parece uma coisa de bom senso. A determinada altura, penso que por dificuldades económicas, decide ir para São Tomé e Príncipe. Disse à minha mãe que ia sozinho, mas não foi. O meu pai não conseguia estar sozinho. Há-de confessar-me que não conseguia dormir sozinho. Sim. Em São Tomé tem um AVC, com 49 anos. Faz uma depressão violentíssima. Volta passado um ano e a situação mantém-se igual. Nunca consegue separar-se da mulher. Acho que a relação com a minha mãe nunca passou disto, não estou a ver que fosse uma relação íntima. A minha mãe era muito especial nisso. Pode ser a minha visão, não sei. Não me faria confusão nenhuma, até achava graça, mas não acredito. O meu pai: deixou de trabalhar, herdou, fazia uma vida boémia. Ia para o Gambrinus todos os dias lanchar. Era o poiso dele na Baixa com os amigos. E muitas vezes, já com um copo a mais, telefonava à minha mãe. Há vários interregnos nisto. Depois nasce a minha sobrinha, e a partir daí começam a encontrar-se na casa da minha irmã. Uma relação familiar. Mas nunca com a senhora. O meu pai nunca tenta impô-la. Conhecia-a desde sempre, ia lá a casa de vez em quando almoçar, jantar. A minha irmã, menos, tinha mais dificuldade nisso. Mas o meu pai ia muito a minha casa, no meu primeiro casamento, e a senhora nunca ia. Depois da separação, há longos períodos em que ele desaparece. Mais tarde explica que desaparece porque não tem dinheiro. (O meu pai separa-se em Outubro ou Novembro e vai no Natal lá a casa oferecer-me um comboio eléctrico. O primeiro que tive. Ainda hoje tenho comboios eléctricos. ) Mais tarde a relação normaliza-se. Estou com ele frequentemente. Tiro a carta e empresta-me o carro, depois dá-me um carro. Inverte-se a relação: sou um bocadinho pai dele. Tem problemas de saúde, é hipertenso, come e bebe bem. O meu pai fazia as suas rábulas, dizia: “Tem juízo. ” Mas nunca foi o meu educador. A minha mãe é a figura importante desse ponto de vista. O meu pai é o chamado “gajo porreiro”, de quem gostei muito, a quem perdoei o abandono. Não tenho nenhum conflito com ele neste momento. Na verdade, nunca cheguei a ter. Eu dava-lhe conselhos. Abria-se muito comigo, contou muita coisa dele. Sim. Que nunca tive com a minha mãe. Era uma relação fortíssima, sofri muito com a morte dela em 2008. Foi um luto que demorou muito tempo a resolver-se. Mas é uma pessoa com quem quase não falei de mim. É paradoxal. A minha mãe não permitia muito isso, queria que estivesse tudo bem e tudo calmo. Separei-me e levei muito na cabeça. Nunca teve disponibilidade para ouvir o que sentíamos, como é que estávamos. A minha mãe tinha uma relação connosco muito pela comida e pela casa. Uma coisa muito primária. Sinto imenso a falta dela. Não para falar com ela. Para ela estar ali. Costumo dizer a brincar: tive pais separados quando ninguém tinha, tive um pai que foi irresponsável durante muito tempo, e estou aqui, não estou muito mal! [risos]Percebo que se pretende trabalhar com os pais nas suas dificuldades funcionais. Mas educação parental é uma coisa que não faz nenhum sentido. Há 20 mil maneiras de se ser pai. Aquilo que é o modelo de uma família funcional não existe. Pode haver famílias aos nossos olhos disfuncionais, em que os miúdos ficam sozinhos e não tomam banho, e que são funcionais. Os técnicos têm uma imagem e estão cheios de preconceitos. E muitas vezes aplicam estes preconceitos a famílias a que não faz sentido que sejam aplicados. Sim. E o sentir-se amada pode ser de 20 mil maneiras. Uma criança para crescer e para ter alguma saúde mental tem de ter sido amada. Não tem de ser amada pelo pai e pela mãe, pode ser amada só pelo pai, só pela mãe, por uma tia, uma avó ou por uma figura muito importante. Alguém que seja contentora. Se isso tem de ser feito numa família tradicional? Nem pouco mais ou menos. A adopção por casais homossexuais: a questão que ponho é social. Como é que um miúdo na escola vive isso? É uma treta dizer-se que o miúdo precisa de uma figura masculina e de uma feminina. Eu posso ser uma figura feminina, apesar de ter pénis. No sentido de ser aquilo que é tradicional na figura feminina: mais acolhedor, mais colo. Não tem de passar pela anatomia das pessoas, muito menos pela orientação sexual. De mais. Não. Quem entra aqui está sofrer. Raramente uma pessoa entra aqui só para se conhecer a si própria, sem que tenha havido um gatilho de sofrimento. Isso é verdade. As pessoas muitas vezes vêm aqui e dizem: “O que estou a sentir é isto. É normal?” As pessoas não são tão diferentes como isso em relação ao sofrimento. Quando percebem que aquilo que estão a sentir não é nada do outro mundo, que não estão sozinhas, e que é uma coisa que é trabalhável e ultrapassável, ficam mais tranquilas. Há pessoas que querem ser normais, formatadas, e há outras que não querem. Querem ter a sua individualidade e a sua maneira de estar. Não querem é sofrer com isso. Veio o 25 de Abril, o meu pai podia ter-se divorciado e nunca se divorciou. A minha mãe também nunca quis o divórcio. O meu pai morre bastante tempo antes da minha mãe. Tem um AVC e fica com uma demência vascular durante quatro ou cinco anos. Morre em 1987. A minha mãe faz um luto complicado. Nunca foi vê-lo, nunca conheceu a mulher com quem ele vivia. A história acaba assim. Até esse AVC a relação deles é muito frequente, quase todos os fins-de-semana se encontram. Creio que não tinham encontros só os dois. Não sei dizer. Ela arranjava-se sempre bem. Havia um charme, tanto quanto a minha mãe conseguia ser charmosa. A vida fê-la dura. O meu pai esbanjava charme. Não havia nenhuma mulher que não gostasse dele. Mais tarde soube muita coisa através do Ayala, que foi secretário do meu pai. O Ayala tinha sido secretário do Humberto Delgado. Nunca disse ao meu pai que trabalhava na oposição. O meu pai era apolítico. Era contra o Salazar, mas não tinha actividade política. Venho a encontrar o Ayala quando estou na Câmara de Lisboa, com o Jorge Sampaio [foi assessor do ex-Presidente]. Quis. Eram sobretudo histórias de relações com mulheres. E histórias de dificuldades económicas que teve. Houve. Uma vez o meu pai tentou falar da relação íntima com a minha mãe, a meio de um almoço já bem regado. Disse: “Pai, isso não quero. ” Foi a única vez que me lembro de ter sentido incómodo. Nunca falei com a minha mãe sobre isso. Não. Quando se fala de dizer tudo, normalmente fala-se de relações extraconjugais. Não é disso que estou a falar. Um exemplo: se a minha mulher, numa conversa com a mãe dela disser mal de mim, não quero saber. E a minha mulher terá o bom senso de não me dizer. Pode ser um desabafo do momento e vai inquinar a minha relação com a minha sogra e dificultar a minha relação conjugal. Será que preciso de saber que a outra pessoa teve uma relação ocasional com alguém? Se não souber, não me importo, se souber, importo-me. O que sei é que algumas relações conjugais estão paradas no tempo porque uma das pessoas tem uma relação fora do casamento e essa relação não é clara. A outra pessoa não sabe, ou se desconfia, [faz de conta que] não sabe. E a relação não avança nem recua porque há uma energia amorosa que não está investida ali. Digo às pessoas — e são muitas as que me procuram numa situação desse tipo —, individualmente: “Há duas hipóteses: ou você diz e há uma crise, e a partir daí as coisas ficam diferentes, e não vai ser fácil; ou você não diz e isto não mexe. ” O problema de uma pessoa que é casada e que tem uma relação extraconjugal, já com algum tempo, e que não consegue nem dizer nem sair da relação, é que aquilo fica parado. O sistema equilibra-se num certo sentido, tornando a relação conjugal numa relação tensa, sem resolução. É apanhada. Não diz. O ser apanhado é bom no sentido da evolução. O casamento pode rebentar. A maior parte das vezes não rebenta. A partir daí nada será igual. O dizer tem duas consequências: a primeira é o medo que a outra pessoa lhe ponha as malinhas à porta. A outra: perde também a clandestinidade. Dá uma força às relações, a clandestinidade. . . Quando alguém se apaixona de facto fora de casa, é difícil manter uma energia na relação em casa. Se é uma relação “só física” (com todas as aspas), aí sim, pode trazer energia à relação de casa. Menos. É. Os filhos não gostam que os pais se separem, mas sobrevivem. Sobrevivem mal é ao conflito depois da separação, se ele é violento e longo. Contudo, há quem fique porque acha que isso é traumático para os filhos. E há muita gente que adia cada vez mais a separação (agora os filhos têm um exame, depois vão fazer anos, depois há o Natal). Há pessoas a quem faz muita impressão que os filhos fiquem sem os pais juntos. Sim. Hoje os pais mudam a fralda, limpam o cocó, dão banho. O vínculo que se cria com as crianças é muito mais forte. Tenho homens na consulta que sofrem horrores com a ausência dos filhos. E que se culpabilizam da separação. Às vezes, é verdade, outras vezes é uma grande treta [risos]. Às vezes, a relação física em casa mantém-se muito boa. E ambas as relações físicas são muito boas. Alguém que está sozinho e que tem uma relação com um homem ou com uma mulher casada vai acreditando que ele ou ela se vai separar. Até que há uma altura em que começa a não acreditar. E depois leva muito tempo a conseguir separar-se. A vida das pessoas é à base dos bocadinhos, das fugas, das coisas rápidas. Essas pessoas isolam-se muito para estarem sempre disponíveis. Têm vergonha em relação aos amigos. As relações de amantes têm uma semivida que não é eterna. Mas é muito difícil manter uma relação deste tipo durante muito tempo. Nos primeiros meses há projectos de vida em comum. Depois há um tempo em que, se esses projectos não se concretizam, a relação começa a decair. Há um tempo útil para a separação, após o qual é muito mais difícil separarem-se porque se instalam na situação. É muito raro, da minha experiência clínica, um casamento que acabe ao fim de anos de relação extraconjugal. É a relação extraconjugal que vai acabar ou que se vai espaçando. Não. O grande problema das relações conjugais é as pessoas deixarem de gostar uma da outra, obviamente. Hoje as pessoas separam-se porque são infelizes na relação conjugal. E são infelizes quando deixam de gostar ou quando deixam de sentir que a outra pessoa gosta delas. As razões por que isso acontece podem ser várias, mas é o que desencadeia a relação. E quer se queira, quer não, continuamos a acasalar para o resto da vida. Mesmo que estatisticamente isto seja um disparate. Quando as pessoas se juntam com alguém, nunca há a ideia da separação. E quando se confrontam com a situação de que são infelizes começam a pôr a relação em causa. Isso é um luto que tem de se fazer. Não é fácil para ninguém separar-se. Sim. Mesmo que queira separar-me (já passei por isso), mesmo que seja um alívio, é um falhanço. É uma coisa que não resultou. As relações falham porque as pessoas não conseguem adaptar-se a viver em comum. Viver em comum não é nada fácil. Há pessoas que estão sempre a criticar, a culpabilizar, a apontar defeitos. A coisa mais devastadora numa relação conjugal é a crítica. Isto está estudado. É muito diferente dizer a uma pessoa: “Não ponhas a camisa aí, põe ali”, ou não dizer nada e mudar a camisa. Ou então dizer: “És uma besta, és desarrumada”, e atacar a pessoa por causa da porcaria de uma camisa. Numa relação conjugal, é muito fácil criticar porque conheço a pessoa muito bem, sei onde é que vou atingi-la. Desde as coisas mais íntimas, ao nível da sexualidade, até às coisas banais do dia-a-dia. Ninguém sobrevive a um ataque sistemático. Posso gostar muito de alguém, mas não consigo aguentar estar sempre a ser posto em causa. Gostar é gostar de estar com a pessoa. Isto não chega. . . Mas é gostar de estar com a pessoa de uma forma bastante permanente. É gostar de ir ter com ela. É sentir necessidade de estar com ela. É sentir falta quando não se está. E é também uma espécie de solidariedade e de intimidade que se cria com alguém. Não tenho dúvidas de que a história pessoal influencia, mas com a idade e a experiência clínica acho cada vez mais que as pessoas se podem libertar da sua história passada. Costumo dizer a brincar: tive pais separados quando ninguém tinha, tive um pai que foi irresponsável durante muito tempo, e estou aqui, não estou muito mal!Viver em comum não é nada fácil. Há pessoas que estão sempre a criticar, a culpabilizar, a apontar defeitos. A coisa mais devastadora numa relação conjugal é a crítica. A relação com as famílias de origem. Se tenho uma relação difícil com a família da minha mulher, ela está metida num conflito de lealdades. Na cultura latina, as relações com a família são muito importantes. Há sogras muito intrusivas, difíceis de controlar. Se uma sogra chega a casa e começa a mandar palpites, aquilo ao fim de pouco tempo está estragado. E o marido, coitado, fica ali entalado no meio. As sogras não são controláveis. Ninguém consegue controlar uma mãe quando ela tem o nariz empinado. São pessoas de uma certa idade que acham que fazem tudo muito bem. Tem de se viver com isso e aceitar que aquilo que a sogra diz, paciência, disse. Outra questão: os modelos diferentes de educação dos filhos. Quando se tem um filho adolescente que começa a querer sair, e um é mais liberal, e outro mais repressivo, há uma negociação que não é fácil. Uma negociação que passa muitas vezes pelo não verbal. (Nos casais o não verbal é muito importante. Posso estar a desqualificar o que a minha mulher está a dizer sem abrir a boca. São coisas muito finas, não explícitas, e que dão conteúdo à relação. )E que a outra pessoa não tem disponibilidade, não tem pachorra, ou que está farta de a conversa ser sempre igual. Em relação a isso, dou uma receita. Digo isto mais aos homens do que às mulheres. As mulheres têm mais pachorra para ouvir, gostam de dar palpites. “O casamento tem uma folha de serviços, que varia de casamento para casamento, mas há uma tarefa que tem de se habituar a fazer: ouvi-la. ” É quase uma perspectiva machista. “Ela está a falar do trabalho, você tem de ouvir. E tem de ouvir sem ler o jornal ao mesmo tempo, com a televisão desligada e com um ar atento, mesmo que seja a maior seca. Segunda coisa: não pode criticá-la nessa altura, mesmo que ache que aquilo é uma parvoíce. Mais tarde, fora desta conversa, se achar que há coisas que deve dizer, diz. ” Pode dizer que isto é paternalismo. Por um lado, sim, por outro, não. Tenho de fazer muita coisa na relação conjugal em nome da outra pessoa. Desculpe a brutalidade do que vou dizer: qual é a diferença entre ter de ouvir a minha mulher e mais tarde ela ter de me lavar o rabo quando for velho? São duas coisas que podem não ser agradáveis, mas que devem ser feitas em nome da relação. Não é possível um casamento sem fretes. Por exemplo, está-se com uma pessoa para quem é muito importante todas as semanas almoçar com a família. Até se acha a família simpática, mas não se tem grande conversa. Pode-se ir só uma vez por mês, se isso for possível e não for um problema. Se para ela for importante que o outro vá, e se não ir for sentido como uma coisa de desprezo pela família dela, tem de ir. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há pessoas que entendem isto como engolir sapos e há pessoas que sentem isto como uma coisa que faz parte. [riso] Enquanto são casais, são felizes. Alguns já se separaram, voltaram a casar. Hoje, mais do que antigamente, a maior parte dos casais que estão em casal são felizes. Uma grande parte dos casais que estão infelizes, ao fim de um tempo, separam-se. Isto não quer dizer que não haja momentos de infelicidade na vida dos casais. Com esta crise económica, muitas pessoas estão infelizes no trabalho, estão desempregadas, e cada vez mais a casa, a família, o casamento, é o local da sua felicidade. O casamento tornou-se uma coisa muito mais viva, muito mais forte do que era.
REFERÊNCIAS:
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McQueen selvagem
Savage Beauty, a exposição que celebra a obra de Alexander McQueen, é como a picada de uma aranha — não nos mata, mas é tóxica (...)

McQueen selvagem
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.1
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Savage Beauty, a exposição que celebra a obra de Alexander McQueen, é como a picada de uma aranha — não nos mata, mas é tóxica
TEXTO: A beleza do mundo de McQueen é de facto agreste, indomesticada, não assimilada. É bravia, nómada, às vezes rude. Nos momentos mais extremos, chega a ser bárbara. Por outro lado, tem sempre lá dentro uma sombra fetichista, qualquer coisa de mórbido e grotesco, qualquer coisa de fantasmático e assombrado. Todas essas características sobrepostas tornam-na muitas vezes inquietante. Aterrorizadora, mesmo. Que dizer, por exemplo, da mulher negra de cabelos escorridos e unhas enormes que vemos agora com as pernas e os braços agrilhoados a um enorme quadrado de ferro enquanto tenta penosamente descer uma escadaria?Estamos no coração de Savage Beauty no Victoria and Albert Museum, em Londres. E — tal como há quatro anos, no Metropolitan Museum (Met), em Nova Iorque — o coração de Savage Beauty na capital britânica é uma sala relativamente pequena mas com um pé direito altíssimo. É nesta sala que toda a gente pára e se senta, como se precisasse de respirar fundo depois das salas anteriores. Só que, quando a beleza que nos devora é selvagem, não há descanso possível. Em momento algum. No coração de Savage Beauty, estamos no interior de um gabinete de curiosidades. A toda a volta, do chão ao tecto, há informação visual. Fazemos parte de uma estante habitável e os nossos olhos percorrem um compartimento após outro. Dentro de cada um, uma peça. Vestidos, sapatos, corpetes, máscaras, toucados… Depois, pelo meio, há ainda monitores por onde passam registos videográficos de alguns dos desfiles de McQueen. A bizarra mulher negra de que falávamos surge num desses registos. Foi em 1997 e o desfile chamava-se Bellmer La Poupée — era a colecção de Primavera/Verão e a mulher era a manequim Debra Shaw, quase nua sob um vestido de rede preta, franjas a baloiçar em volta do corpo magro, seco e longilíneo, o grilhão de ferro a tolher-lhe todos e cada movimento. De tal maneira que não parece completamente humana. Há qualquer coisa de macabro nesta grande marioneta saída de um filme de terror. E o cenário que a rodeia só contribui para o arrepio: desfila sobre uma passerelle inundada de água, como um calabouço esquecido e húmido, ali onde um mal se esconde e nos espreita, pronto a atacar. Quando Savage Beauty foi inaugurada em Nova Iorque, tornando-se um inesperado blockbuster — mais de 600 mil visitantes em menos de três meses (filas sem fim, manhãs e noites de abertura especial, encerramento adiado por toda uma semana…); uma rival directa de recordistas históricas como Mona Lisa (1963) e Os Tesouros de Tutankamon (1978) —, o Met recolheu testemunhos junto dos que acompanharam o percurso de McQueen. Alguns dos que em 1997 assistiram ao vivo a “Bellmer La Poupée” passaram nota de ter sido doloroso ver Shaw evoluir lentamente pelo espaço. Mas eram opiniões recolhidas nos Estados Unidos, onde o grilhão sobre o corpo de uma manequim negra foi visto como uma referência à escravatura. Talvez. Mas a leitura esquece o título da colecção, que referencia directamente o artista alemão Hans Bellmer. Nascido em 1902 em Kattowitz — hoje Katowice, na Polónia —, Bellmer foi um frontal opositor ao regime nazi. Na década de 1930, as suas bonecas de corpos macabramente reconfigurados foram uma declaração de força contra o culto do corpo e do ideal físico ariano — uma escolha que terá sido influenciada pela leitura de Oskar Kokoschka, o artista, poeta e dramaturgo austríaco cuja obra foi banida pelo III Reich sob o selo “Arte Degenerada”. ? Não. Não com Bellmer. Nem com McQueen. Com McQueen mente e o corpo são sempre virados do avesso, nunca perseguem o cânone positivista. Com McQueen, a única sanidade reside na capacidade e coragem de trazer à superfície os recantos esconsos e descontrolados do reprimido. Por muito negros que sejam — e com ele são quase sempre. . . Com McQueen, trata-se de revelar a ferida escondida, de saber — e mostrar — que toda a luz implica sombra. E que a sombra é densa. É a profundidade a vir à tona. E é isso que nos rouba o ar enquanto avançamos por Savage Beauty, a exposição — aqui, estamos sempre nus frente ao espelho; e o espelho não foi polido até reluzir. Ou, por outra: talvez na verdade não seja um espelho, mas, antes, a superfície turva de uma visão oracular — o que vemos quando nos debruçamos sobre a bacia de sangue. “Há qualquer coisa de sinistro no que eu faço”, disse um dia McQueen. Explicando: “Há uma certa tristeza [na minha obra], mas acho que a tristeza é romântica. Suponho que sou uma pessoa melancólica. ”Foi ele também quem disse: “Acho o grotesco belo, como a maioria dos artistas. ”Alguns. Sim. Bellmer e Kokoschka, Horst P. Horst e List, mas também nomes vindos muito mais de trás, como Bosch, Vesalius, Campin, Hinz, Aldrovandi, Amusco, Muybridge, e contemporâneos, como Rebecca Horn, Damien Hirst, Jake e Dinos Chapman, Matthew Barney… A todos — e muitos outros — McQueen foi buscar qualquer coisa. McQueen não foi o primeiro nem será o último nome da moda a mergulhar nas artes plásticas e a voltar de lá com uma obra densa de evocações, referências e citações. Mas fê-lo com uma verve e irreverência raras. Fê-lo quase sempre em relação a autores que partilham a sua paixão pelo lado mais negro do romantismo. E fê-lo no momento certo. Donde o culto suscitado pela sua obra. É a antítese dos anos do american cool de autores como Calvin Klein, traduções de uma sociedade racionalista, onde as pessoas são vistas como elos idênticos de uma cadeia que tem de funcionar sem solavancos, sem ameaçar jamais a funcionalidade da economia de mercado. McQueen é o contrário dessa sensibilidade dada a regras e emoções temperadas, sem desvios nem picos. Na linha de batimento cardíaco, McQueen é o momento do AVC — o momento em que entramos em falência e vamos ser ressuscitados. “Pagámos um preço suficientemente alto pela nostalgia do todo e do individual, pela reconciliação do conceito e do sensível, do transparente e da experiência comunicacional”, escreveu o filósofo Jean-François Lyotard. Para concluir: “Na viragem do século XX [para o século XXI], sob a demanda geral de apaziguamento, podemos ouvir os murmúrios do desejo pelo regresso do terror. ”O terror — infinitamente sublime — é uma forma de voltar a sentir. E com McQueen é tudo sentimento e êxtase. Com ele, deixamos o mundo moderno das ruas luminosas e dos arranha-céus de vidro, viramos costas à tecnocracia e às filas de trânsito. Visitamos ruínas, perdemo-nos em florestas, enterramo-nos em pântanos e travamos batalhas históricas. Com McQueen, não estamos aqui, agora — estamos em todo o lado sem estar em lugar algum, somos tudo e não somos nada: viajamos para a frente e para trás no tempo a matar e morrer, uma e outra vez. Fizemos um longo caminho até poder viver isto. A moda fez um longo caminho na moldagem da sensibilidade do seu público para poder apresentar-se assim. Foi preciso passar primeiro por gente como Vivienne Westwood e Thierry Mugler — porventura os dois nomes mais próximos do imaginário de McQueen. Um dos vestidos de McQueen tem um corte do peito à pélvis e está pintado de negro e vermelho em volta, como uma ferida. Uma das noivas em renda branca tem um toucado de hastes de veado cobertos por uma imensa rede em balão, a esconder o rosto — ela caminha, mas podia estar morta. Como a manequim de corpete de plástico coberto de vísceras. Ou aquela outra de cabedal preto e mascarilha que aparece dependurada de cabeça para baixo, como um vampiro. E depois há os Cristos na cruz, os palhaços com lágrimas de sangue, as asas arrancadas inteiras a pássaros grandes, as borboletas…McQueen não esteve sozinho em tudo isto, a invocar sempre dor. Na mesma década de 1990, no teatro britânico, nomes como Sarah Kane, Mark Ravenhill e Anthony Neilson levaram à cena incesto e violações, depressões, mutilações e suicídios, infanticídios e pactos de morte. “Se se aborda a masculinidade, então mostram-se violações; se se está a tentar falar sobre sexo, então mostra-se fellatio e penetração anal; quando a nudez está em questão, então a humilhação também está; se se quer violência, encena-se tortura; se as drogas são o assunto, mostra-se adição. Se os homens se portam mal, então as mulheres também”, escreveu o crítico de teatro Alek Sierz. Era a geração In-Yer-Face — onde tudo era um murro na redescoberta de um espírito de indignação, aparentemente. Mais havia mais filhos do “thatcherismo”. Como a geração Young British Art, com a qual tudo era também estratégia de choque e murro no estômago — camas desfeitas e sujas, animais fatiados e conservados em formol, corpos decepados…McQueen faz parte destas famílias. E a imensa beleza disso é de facto selvagem. Será que alguma vez conhecemos Alexander McQueen? Será que precisamos de o conhecer nalguma versão do que foi a sua intimidade? Quão profundo pode ou deve ser o olhar sobre a vida de um designer que sempre anunciou que o seu trabalho era eminentemente autobiográfico? Estas são algumas das perguntas que se levantam perante os dois novos livros lançados no Reino Unido semanas antes da inauguração de Savage Beauty, a exposição dedicada a “um artista que calhou trabalhar em vestuário”, como descreveu a reputada crítica de moda Suzy Menkes no elogio fúnebre de McQueen. Menkes, então editora de moda do International Herald Tribune (agora é editora internacional da Vogue), é apenas uma de dezenas de figuras da indústria, das relações pessoais e espectros do passado que surgem tanto em Alexander McQueen, Blood beneath the skin (ed. Simon & Schuster), de Andrew Wilson, quanto em Gods and Kings (ed. Allen Lane), de Dana Thomas. E foi Menkes que, no púlpito da Catedral de São Paulo, em Londres, na homenagem prestada ao designer em Setembro de 2010, recuperou uma recordação perturbadora — a de uma conversa em que o criador falava de si no passado. “A raiva no meu trabalho reflectia a inquietude na minha vida pessoal. ” Lee Alexander McQueen suicidou-se aos 40 anos, uma semana depois da morte da sua mãe por cancro — uma das mulheres mais importantes da sua vida e que “pode ter sido a única pessoa a quem obedecia”, como escreve Thomas. O relato de Wilson, que já biografou as escritoras Sylvia Plath e Patricia Highsmith, avisa na capa: “Escrito com o apoio da família McQueen. ” É o único. Gods and Kings, escrito pela colaboradora da T Magazine do New York Times e que explora a ascensão e queda de McQueen e de John Galliano, não contou com tal luz verde. É Wilson quem vai mais longe no esgravatar de algumas feridas na sua versão “autorizada” da história do rapazinho do East End londrino que se fazia de extremos e contradições. Lee, como era conhecido no seu círculo mais próximo, era relutantemente proletário nas suas origens mas desconfortável na abundância que o sucesso profissional lhe trouxe, uma figura arrogante e tímida com uma mente na alta cultura e trato pouco sofisticado que encontrava a sua eloquência, superlativa, na criação de moda. E em particular nos seus desfiles, que atribuíam contexto e densidade a peças de enorme beleza (e, frequentemente, violência). “O que vêem no trabalho é a pessoa em si”, reiterou à Harpers Bazaar em 2007, citado por Thomas. E essa pessoa foi vítima de abusos vários. É graças a Wilson e aos familiares de McQueen que se nomeiam e descrevem alguns desses abusos com mais detalhe. Resumindo: McQueen foi violado na pré-adolescência. “Ele roubou-me a inocência”, diz o designer, citado por terceiros, sobre o cunhado, que agredia também a sua irmã mais velha. A psicologização da revelação vai desde a sua relação com o sexo e as suas preferências (fonte de algumas entradas voyeuristas em ambas as obras) até ao efeito que a indústria teve na sua (fatal) insegurança — tese parcial dos dois livros. E essa ligação da narrativa pessoal à expressão artística passa ainda por um elo inevitável à mulher que Lee Alexander McQueen vestia nos seus sonhos e pesadelos. Na adolescência, Lee fazia vestidos para as suas irmãs e aconselhava-as no vestir. “Estava sempre a tentar fazê-las parecer fortes e protegidas”, dizia, citado em Gods and Kings. As três irmãs eram o seu arquétipo, o seu símbolo de mulher. Um feminino vulnerável mas resiliente, “um sobrevivente” como escreve Andrew Wilson — “Esta era a mulher que ele queria proteger e empoderar através das suas roupas. ” Um mergulho em Savage Beauty ou um folhear de imagens na Internet mostra a sua interpretação tortuosa do corpo. Da mulher social, com ou sem roupa. Mas sempre com carga, estética e conceptual. McQueen é dramático. Cinco anos depois da sua morte e com a sua crescente ascensão no panteão da moda, há muitas histórias contadas sobre ele — e muitas pelo próprio, minadas pela subjectividade do fabrico de uma personagem pública — mas também muitas lacunas. Os dois livros surgem na crista dessa onda, talvez não como biografias na pura acepção da palavra, mas como colecções de polaróides de figuras extintas (uma delas, a de Galliano, agora renascido na casa Margiela depois do escândalo que o afastou da Dior em 2011). São as revelações sensacionalistas (encontros sexuais, paranóia securitária, consumos e dependências) que mais críticas suscitaram aos dois livros. Afinal, “Lee é Marilyn Monroe. Ele é James Dean”, como disse recentemente Sarah Burton, amiga e número dois na casa McQueen e que viria a tornar-se sua sucessora na marca, ao diário britânico Telegraph. Morreu jovem, talentoso, paga o preço da imortalização com o garimpo de sinais, sintomas e chaves para o mistério da mente criativa. Lee era um génio atormentado, um rapaz disléxico que desde criança sabia ser gay, vítima de bullying, eterno envergonhado pelo peso ou pela dentição torta. Mas foi também um skinhead temporário ou um brincalhão que dizia ter escrito obscenidades nos forros dos casacos para o Príncipe Carlos quando era aprendiz de alfaiataria em Saville Row. E ainda “uma criatura verdadeiramente aterrorizadora”, “pouco claro, abrasivo e simples”, “e absolutamente brilhante”, como recorda o editor da Vogue EUA, Hamish Bowles, sobre um encontro com o designer no início da década de 1990. econtam histórias do rapaz que pôs o seu cabelo nas etiquetas das suas primeiras peças, que misturou a fotografia de hermafroditas de Joel-Peter Witkin e o filmenuma colecção (Dante, 1996), ou Van Eyck e garrafas de cerveja partidas noutra (, 1993). Esta última, aliás, carregada como muitas das suas primeiras criações em grandes sacos pretos de lixo, foi perdida quando, após o seu primeiro desfile no calendário da Semana de Moda de Londres, os escondeu atrás de contentores para ir para a discoteca. Na manhã seguinte, quando se lembrou deles, já não estavam lá. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No estágio com Romeo Gigli, em Milão, aprendeu “o poder da narrativa. O poder dos arquétipos”, diz Lise Strathdee, assistente do designer italiano, a Dana Thomas. Regressado a Londres, impressionou Bobby Hillson, responsável pelo programa de mestrados da Central Saint Martins mesmo sem cumprir os requisitos académicos. Entrou. Enquanto estudava, ia a Paris ver desfiles para os quais não tinha convite e tentou mesmo estagiar na maison Martin Margiela, um dos nomes que mais admirava na moda contemporânea, mas o belga achou “que ele era demasiado talentoso para trabalhar como estagiário”, escreve Thomas. Voltou para Londres, onde fazia roupas para videoclips e o pai lhe dizia para “arranjar um emprego a sério”. Já conseguia identificar a modelagem, as entranhas, a planta do edifício que é um vestido, a olho nu. A sua importância em termos de corte e silhueta para a história da moda já é reconhecida, embora não unânime — há Galliano, a quem sucedeu na Givenchy em 1996. Em 2001, é um McQueen mais adulto que sai de Paris já com o grupo Gucci no capital da sua marca. Fará o desfile da colecção VOSS, que se torna um dos seus grandes feitos, a usabilidade das roupas aumenta. Os capítulos do sucesso nos dois livros são mais curtos, mais rápidos ou diluídos em detalhes da vida pessoal. McQueen não foi sempre compreendido — e, até certo ponto, terá gostado disso. A sua estranheza e desconforto intrínsecos, a mente perversa de que se orgulhava, a falta de confiança e a arrogância combinavam-se em declarações ácidas sobre os colegas de profissão ou a imprensa (Menkes incluída). Numa parede do caleidoscópio que é Savage Beauty, e onde está uma versão de muitos best of possíveis das imagens que criou, deixa a sua ambição por escrito: “Quero ser o fornecedor de uma certa silhueta ou de uma forma de cortar, para que quando estiver morto as pessoas saibam que o século XXI foi começado por Alexander McQueen. ”
REFERÊNCIAS:
Fazer rir sem fazer rir
Nanette, o especial de comédia da australiana Hannah Gadsby mostrado em Junho, tem tido um impacto grande. Será que há uma tendência de comédia que não é necessariamente orientada para fazer rir? O Vulture, site da New York Magazine, chama-lhe "pós-comédia". O que é que quem trabalha no meio pensa sobre isso? (...)

Fazer rir sem fazer rir
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.3
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nanette, o especial de comédia da australiana Hannah Gadsby mostrado em Junho, tem tido um impacto grande. Será que há uma tendência de comédia que não é necessariamente orientada para fazer rir? O Vulture, site da New York Magazine, chama-lhe "pós-comédia". O que é que quem trabalha no meio pensa sobre isso?
TEXTO: No ano passado, a australiana Hannah Gadsby decidiu, antes de se reformar da comédia, fazer um último espectáculo. Nanette começou no palco e chegou ao Netflix em Junho de 2018. Feito de histórias da sua vida pessoal como mulher lésbica, um alvo habitual de piadas, dos abusos que sofreu e de uma crítica à comédia, o especial teve um enorme impacto logo que saiu: fez colegas de profissão questionarem o seu trabalho, levou Gadsby ao palco dos Emmy, e travou a anunciada reforma da humorista. Nanette é um espectáculo intenso, ultra-pessoal que é por vezes irado e triste e que, durante trechos significativos, decide abandonar por completo as piadas, a cómica pensa não só sobre o que é fazer rir, mas também sobre a auto-depreciação, a saúde mental e a romantização dos problemas psicológicos na arte em geral e como esta não tem, ao longo da História, sido muito branda para com quem não é um homem branco. A hora e dez de stand-up faz parte de uma série de conteúdos diferentes entre si, sejam especiais experimentais, alguns filmados, ao contrário do que é normal, sem público ou comédias no cinema e na televisão que parecem não estar necessariamente interessados em suscitar risos, preferindo parar para reflectir sobre a própria comédia ou o absurdo da vida, contar histórias ou tratar temas sérios. Mas será que são comédias? Em Setembro, o Vulture, site de cultura pop da New York Magazine, agrupou esta tendência, com destaque para Nanette, e chamou-lhe “pós-comédia”. A peça inaugural da série de artigos sobre o assunto, de Jesse David Fox, perguntava logo no título: “Quão hilariante é que a comédia tem de ser?” Ao P2, o autor fala de como o ensaio foi recebido no mundo da comédia: “Enviaram-me mensagens a dizer que a indústria se estava a distanciar ainda mais de piadas do que eu tinha feito parecer. Posto isso, como são cómicos, muita gente só fez piadas sobre isso, a apontar o absurdo do termo, o que eu compreendo. Também houve críticas, exclusivamente de pessoas que leram mal o texto como um argumento para esse género ser melhor do que outros, por oposição ao argumento que faço, que é o de que o fenómeno existe. ”Uma das críticas mais habituais a Nanette é que não é stand-up. Que lhe faltam piadas. A própria autora gozou com isso no Twitter: “Não tenho problema com todos os homens zangados a dizerem-me que não tenho piada. Só desejava que eles pelo menos tentassem exprimir os seus sentimentos desproporcionais sobre comédia de uma maneira mais humorística. ”Essa visão negativa não é partilhada pelos profissionais de comédia com quem o P2 falou. Laraine Newman, do elenco original de Saturday Night Live, declara: “Eu diria que é um novo formato. É certamente teatral, mas a entrega dela é completamente stand-up. ” Chris Schleicher, que escreve para a vindoura adaptação televisiva de Quatro Casamentos e um Funeral, concorda que Nanette tem “um número significante de piadas bem escritas”. Prossegue: “Tem muita piada, particularmente nas partes sobre história da arte”. “As secções dramáticas podem ser o destaque”, mas ele, “que não é de riso fácil”, esteve “o tempo todo” a rir-se. Ainda assim, confessa que acabou “a chorar” lágrimas “catárticas”: “Ela estava a articular muitos sentimentos que eu nunca tinha dito em voz alta, particularmente o custo psicológico da auto-depreciação e à rejeição do impulso de transformar o trauma queer em histórias engraçadas para públicos heterossexuais. ”Nos anos 1980, Merrill Markoe foi a principal arquitecta do Late Night de David Letterman – e uma das poucas mulheres a alguma vez ter escrito para o programa –, uma verdadeira revolução na forma como se fazia comédia de late night. Ao P2, defende que gosta de pensar na “comédia como uma forma de arte” e que é preciso “deixá-la evoluir”. “Se se mantiver a mesma para sempre, não é uma forma de arte”, é coisa de “cabotino”. Especifica como, ao longo da história da comédia, os formatos se foram esgotando, primeiro a vaudeville, depois a comédia televisiva e as sitcoms que foram um dia frescas e interessantes, mas se transformaram em lugares comuns. “O mesmo com os talk shows. Eram interessantes até se tornarem uma seca previsível. Depois nós, no Letterman, explodimos com o paradigma, só para preservar a nossa sanidade criativa. ”“Não acho que qualquer forma de arte deva ser uma coisa ou outra”, continua. “Isso é meio caminho andado para ser frágil e inútil e aborrecida. ” Quanto ao epíteto “pós-comédia”, “a história da arte está cheia de pessoas a tentarem criar etiquetas inúteis e categorias para a criatividade, compreendo que é o que os críticos têm de fazer, mas a arte vai para a frente sem estas categorias importarem”. O argumentista Chris Schleicher lamenta que o tipo de comédia com que cresceu, “densa em piadas”, como 30 Rock, tenha sido posto um pouco de lado, mas ao mesmo tempo sabe que é cíclico e gosta “de ver todas estas comédias dramáticas que parecem novas e diferentes”. Mas não acha que retirem espaço às outras séries: “A comédia não é um jogo de soma zero. ”Há vários anos que há pessoas preocupadas com extravasar as margens do que é ou não comédia. Nanette lida directamente com a tensão que leva ao riso e usa uma estratégia que limita e deixa de fora partes importantes das histórias. Steve Martin, no seu livro de memórias Born Standing Up, de 2007, escrevia que, nos anos 1970, se perguntou: “E se não houvesse punch lines? E se não houvesse indicadores [de quando rir]? E se eu criasse tensão e nunca a libertasse? O que é que o público faria com toda essa tensão? Teoricamente, teria de sair nalgum lado. Mas se eu continuasse a negar-lhes a formalidade de uma punch line, o público escolheria o seu próprio lugar para rir, essencialmente por desespero. ”O texto de Jesse David Fox aborda justamente a comédia em que não há lugares claros para rir. Refere, como antecedente, Uncabaret, a noite de comédia alternativa em Los Angeles criada por Beth Lapides que está a comemorar 25 anos. Merrill Markoe também menciona a sua importância. “Temos andado a minar essas fronteiras da comédia incessantemente lá. Adorei o especial da Hannah Gadsby. Ela é fluida e tem uma voz original e autêntica… Mas habituei-me a ouvir sets assim no Uncabaret. A Julia Sweeney desenvolveu lá um espectáculo hilariante chamado God Said Ha!, sobre o irmão dela ter tido cancro, os pais mudarem-se para casa dela e ela própria depois ficar com cancro. Foi uma revelação, comecei a tentar fazer comédia com ter sido agredida sexualmente. Se a Julia podia fazer isso com cancro, bem… O que é que não podia ser comédia? Mais recentemente, o Patton Oswalt fez o espectáculo dele sobre recuperar da morte súbita da mulher. É simplesmente a expansão de um formato que precisava de expansão. ” Gadsby foi só mais uma de uma longa lista de pessoas “a tentarem adicionar alguma profundidade ao formato”. “Fiquei surpreendida com a quantidade de reavaliações críticas que ela causou. Parecem vir de pessoas que achavam que stand-up ainda era piadas sobre sogras e a comida em aviões. ”Laraine Newman é outra habitué do Uncabaret. “Para mim parece ser a génese deste novo formato experimental. Mesmo sendo monólogos e contarem histórias e não piadas, suscitam grandes risos. ” A linhagem é fácil de ver: Maria Bamford, que tem um especial gravado na sua sala de estar em que o público são só os seus pais, frequenta o Uncabaret. Quanto a comédia que não é feita necessariamente para rir, Newman nomeia um filme de Jerry Schatzberg com Faye Dunaway de 1970, Tempo de Viver. “O humor é tão subtil e comportamental, mas tão profundamente hilariante para mim. ” Quanto ao humor nos dias de hoje, “a comédia evoluiu no sentido em que é muito mais pessoal e idiossincrásica. Por causa da internet, os cómicos e intérpretes estão numa posição de serem aquilo que são na realidade. Há um público para isso”, conclui. Eliza Skinner, que faz stand-up e está aos comandos da escrita de Drop the Mic, explica que sempre foi assim: “Não podes manter a atenção das pessoas por uma quantidade longa de tempo sem investimento emocional. Há a ‘comédia de clubes’, mais genérica e densa em piadas, e a comédia alternativa, baseada em histórias, mais pessoal. Para se identificar com comédia alternativa, o público precisa de empatizar com a pessoa no palco e ligar-se à experiência dela. As plateias estão a ganhar mais prática a imaginarem-se no lugar das pessoas que não são como elas, de géneros, raças ou religiões diferentes. ” Jena Friedman, também cómica de stand-up, ex-produtora do Daily Show e alguém que estava a escrever para a nova temporada de Roseanne antes do cancelamento, resume: “É mais fácil fazer pessoas rir do que dizer algo profundo que as faça pensar de forma diferente ou as inspire a agir. Com sorte, os grandes cómicos conseguem fazer ambos. ”Nanette é assertivo sobre a necessidade de haver vozes diferentes na arte, argumentando que “diversidade é força”. O Uncabaret assume-se como “não-homofóbico”, “não-xenófobo” e “não-misógino”. A verdade é que, por muito que certos cómicos gostem de garantir que a comédia nunca foi tão pouco livre, há cada vez mais e diferentes vozes nela, além de muitos meios de comunicação possíveis. Há a ideia de que as mesmas piadas de sempre já não chegam. Será que isto da “pós-comédia” tem directamente que ver com mais oportunidades para grupos que antes não tinham espaço na comédia? Jesse David Fox defende que, apesar de “ser o resultado directo da diversidade de perspectivas”, tem medo de justificá-la com o facto de “haver mais oportunidades para grupos marginalizados”. Sobre o politicamente correcto, o bicho-papão que tantos cómicos gostam de demonizar, o jornalista comenta: “Este exagero animalístico do anti-politicamente correcto é só pessoas a queixarem-se de que não são mais populares. A maioria dos cómicos anti-politicamente correcto não está a quebrar barreiras, mas apenas a pregar aos convertidos. A correcção política obriga a comédia progredir como forma de arte. Força um cómico a ver se a única razão pela qual conseguiu um riso é porque disse uma palavra má. Faz com que trabalhem mais e de forma mais inteligente. É uma coisa boa. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Chris Schleicher demonstra entusiasmo em relação à comédia em 2018, mesmo que admita que é um lugar estranho, entre o sério e o absurdo. “Muitos de nós estão a questionar qual é o valor da nossa comédia enquanto vemos a sociedade a desmoronar-se. Às vezes quero fazer um tweet como ‘colibris são só percevejos disfarçados’ e penso ‘será isto demasiado frívolo? Deverei só lembrar as pessoas de que o presidente é um supremacista branco?’ Normalmente acabo por fazer ambos. ” Jena Friedman é peremptória: “Acho necessário, enquanto escorregamos para o fascismo, sermos lembrados do que tem piada nisso”. Para Schleicher, a diversidade é a melhor parte da comédia em 2018: “A razão pela qual essas vozes estão a ter sucedido é que temos estado esfomeados tanto tempo por elas. Nós, nas comunidades pouco representadas, habituámo-nos a aceitar que a comédia vem do ponto de vista de pessoas que não são como nós que é um pouco chocante ver alguma representação. " Prossegue: "É emocionante já não ter de continuar a acompanhar coisas que me alienam com piadas homofóbicas. " Quanto ao bicho-papão, conclui: "Reviro sempre os olhos quando alguém se queixa de o público ser ‘demasiado politicamente correcto’. É um mercado livre, as pessoas só não compram o velho material que eles estão a vender. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Carta contra o genocídio dos povos da Amazônia
Nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem. (...)

Carta contra o genocídio dos povos da Amazônia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem.
TEXTO: TuíreKayapó, mulher Kayapó, liderança indígena, diz: “Nós estamos ouvindo uma campanha de ódio. ”Valdenise, da etnia Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, denuncia: “Ontem, dia 12 de outubro de 2018 [. . . ], Jair Bolsonaro usou minha foto na propaganda eleitoral. Eu não admito, não permito; está usando minha foto sem a minha permissão. É mais um massacre, é mais um genocídio: esse tipo de gente quer a nossa morte, nunca vou apoiar, eu repudio essa forma de campanha eleitoral. É isso que eu tenho de falar, eu e meu povo Guarani Kaiowá, o povo indígena no Brasil: nós não o apoiamos, ele não!”Agnaldo, cacique indígena xavante, declara apoio a Haddad e Manuela, que “vão defender os direitos dos povos indígenas”. Nos últimos anos, no Brasil, grupos vulneráveis (indígenas, quilombolas, mulheres, LGBTrans e outros) conquistaram direitos via organização, saíram da condição de atomizados. Negar os direitos de tantos grupos marginalizados não é simplesmente uma forma de criminalização de indivíduos, mas perseguição contra agentes sociais organizados politicamente. Em relação aos indígenas e à terra que eles ocupam, é importante repetir e sublinhar que a região amazônica é o lar de centenas de povos tradicionais. Como já reconheceram cientistas – entre eles a cientista Elinor Ostrom, Prêmio Nobel –, por sua forma tradicional de vida, esses povos mantêm a floresta em pé e os rios limpos, apontando para o futuro da sustentabilidade no planeta. Suas formas de gestão dos recursos naturais têm muito a ensinar à nossa civilização urbana. Os conhecimentos ancestrais que preservam providenciam o equilíbrio, inclusive climático, do nosso planeta beneficiando não somente o Brasil, mas a todos os habitantes da Terra. A Amazônia brasileira ocupa mais de 60% do território nacional. Nessa região vivem aproximadamente 25 milhões de pessoas: muitos povos indígenas com mais de 180 línguas e, portanto, mais de 180 sistemas de conhecimento do mundo, com o potencial de nos apontar o caminho para uma vida ecologicamente equilibrada. Somente em um trecho do Rio Negro, no Alto Rio Negro, há um “arquipélago de saberes”, formado por povos que falam 23 línguas e preservam conhecimentos sobre a floresta que não se encontram em nenhuma outra parte. Além dos povos indígenas, outros povos tradicionais também atuam como guardiões da floresta: os quilombolas, as quebradeiras de coco babaçu (cerca de um milhão e duzentas mil mulheres), os peconheiros (coletores de açaí), os pescadores e ribeirinhos, os castanheiros e seringueiros, extrativistas da terra e das águas e até mesmo os indígenas que não querem contato sistemático com a nossa civilização. As várias formas tradicionais organizadas em harmonia com a floresta geram uma economia lucrativa, demonstrada em estudos minuciosos sobre as unidades de conservação, permitindo a compreensão de que a floresta em pé vale mais que derrubada. Esses grupos produzem uma economia que não causa danos à floresta e perpetuam, assim, condições de vida que mantêm as áreas verdes que, uma vez preservadas, são essenciais para a biodiversidade e para a sociodiversidade. Ao atentar apenas à questão do clima global, já teríamos muitas razões para defender esses povos. E queremos acreditar que a humanidade ainda persegue a preservação da vida e dos direitos humanos. Por isso, repudiamos a candidatura da extrema-direita no Brasil. O candidato Jair Bolsonaro, mesmo antes de sua eleição, propaga uma onda de ódio contra os povos que vivem na floresta. Promete não deixar nenhum centímetro para terras indígenas e, ao falar em quilombolas, equipara-os a animais. Enfim, ameaça de extermínio os segmentos sociais que conquistaram direitos desde a Constituição de 1988, ameaçando com limpeza étnica um país que, sabemos todos, é rico justamente porque composto de centenas de culturas e etnias. Bolsonaro atinge as formas de mobilização: seu objetivo precípuo, antes de estar ligado a qualquer moralidade, é uma estratégia de desmobilização de movimentos sociais para que uma estrutura militar e autoritária assuma o controle político para reproduzir grupos sociais dominantes, vinculados à lógica neoliberal, de privatização e mercado, o que é assustador e genocida como lógica para a Amazônia. De um lado, a possibilidade de reconhecimento das diferenças; de outro, o pensamento monolítico. De um lado, os sistemas de uso comum; de outro, a colocação das terras da Amazônia no mercado. Está em curso na candidatura de Bolsonaro uma articulação genocida de quebra do projeto nacional, especialmente do nacional composto pela diversidade, mas não tão-somente. O projeto nacional está em questionamento inclusive com a ausência da preocupação com a memória dos nossos povos, e tivemos uma tragédia recente irreparável com o incêndio do Museu Nacional, sobre a qual o candidato se limitou a dizer que não havia nada a fazer, sem nem mesmo ter lamentado o ocorrido. E se a memória é o lastro com o qual se pode contar na luta contra o fascismo, o Brasil precisa de apoio. O que dizer, então, da memória de tantos povos da Amazônia – invisíveis nas cidades brasileiras e ignorados na mídia –, com absoluto desconhecimento da riqueza que podem oferecer à sociedade, algo que não pode mais ser tolerado. E, absolutamente, não pode ser ignorado e tolerado o seu extermínio. Os grupos sob o ataque do candidato de extrema-direita, indígenas e quilombolas, sobretudo, são justamente os grupos responsáveis pela preservação da Amazônia, os que se insurgem, com seus corpos e suas formas de vida, contra o desmatamento irresponsável e a favor do equilíbrio do clima no planeta. A convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), exige a “consulta” aos povos tradicionais para qualquer empreendimento a ser desenvolvido em suas terras. No entanto, como a “consulta” não está especificada em sua forma, empreendimentos são levados adiante mascarando a falta de comunicação e, portanto, a falta de uma efetiva consulta aos povos. O rompimento com os acordos internacionais não será problema para Jair Bolsonaro, que já manifestou a intenção de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e com o Ministério da Cultura, que abriga o órgão de memória e patrimônio histórico e artístico do País. Os conceitos de civilização que temos estão em jogo nessa eleição, havendo a barbárie como antagonista. E tudo isso pode terminar antes que saibamos quem são os nossos guardiães da floresta: tantos nomes de tantas belas línguas como os Kokama, os Munduruku, os Jaminawa, os Manchinéri e tantos outros. Eles estão lá, resistindo há séculos, e ainda não foram reconhecidos como os donos de suas terras. Por isso lutam uma batalha, quase sempre sangrenta, para seus direitos à terra ancestral – a mãe que lhes dá a vida – e à sua cultura. Unimo-nos, portanto, à luta desses povos da floresta, que guardam, por nós, as sementes da vida em forma de floresta em pé e de um mundo em que a vida humana é irmã da vida dos seres que nela vivem. Declaramos que, independente do resultado das eleições, nós, comunidade internacional, estaremos atentos à vida digna desses povos e que sejam cumpridos todos os acordos internacionais que os protegem. Anabela Mota Ribeiro, jornalistaAna Luísa Amaral, escritora e professora universitáriaAna Paula Coutinho, professora Universidade do PortoAna Vidigal, artistaAnne Marie Métailié, editora EditionsMétailiéBoaventura de Sousa Santos, professor Universidade de CoimbraCatherine Dumas, professora emérita Universidade SorbonneCarlos Magno, jornalistaCarlos Mendes de Sousa, professor universitárioCéline Geffroy, Université Côte d'Azur. Laboratoire d'Anthropologie et de Psychologie. Eduardo Lourenço, EnsaístaErik Pozo-Buleje, Laboratório de Antropologia Social, EHESSFernando Cabral Martins, professor Universidade Nova de LisboaGolgona Anghel, investigadora da Universidade Nova de LisboaGonçalo Vilas-Boas, professor jubiladoHeloïse Toffaloni da Cunha, antropóloga e filmmaker (EHESS)Hugo Monteiro, professorIsabel Allegro de Magalhães, Professora e ensaístaJérémie Voirol, antropólogo, Graduate Institute, Geneva, SwitzerlandJoana Matos Frias, professora Universidade do PortoJoão Teixeira Lopes, professor universitárioJosé Eduardo Agualusa, escritorJosé Mário Brandão, galeristaJosé Soeiro, sociólogo e deputadoJosé Sousa Machado, escritorJulien Blanc, professor no Museu do HomemLídia Jorge, escritoraLuís Quintais, escritor e professorMaria Irene Ramalho, decana Universidade de CoimbraMiguel dos Santos S. Ramalhete, professor Univ. de LisboaPaula Morão, decana da Universidade de LisboaPaula Rego, artistaPaulo de Medeiros, professor Universidade de WarwickPedro Eiras, escritor e professor Universidade do PortoPedro Serra, professor Universidade de SalamancaRosa Maria Martelo, professora Universidade do PortoSusana Anágua, artistaTiago Cação, fotógrafoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Valter Hugo Mãe, escritorZetho Cunha Gonçalves, poeta, autor de literatura infantilZulmira Coelho Santos, professora Universidade do Porto
REFERÊNCIAS: