Cannes 2015: o regresso de Todd Haynes, Gus Van Sant e Nanni Moretti
Mais títulos vão ser anunciados, nos próximos dias, para as várias secções da Selecção Oficial. Portugueses? Até ao lavar dos cestos é vindima, diz ao PÚBLICO Luís Urbano, o produtor de As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes. (...)

Cannes 2015: o regresso de Todd Haynes, Gus Van Sant e Nanni Moretti
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-04-25 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150425174655/http://www.publico.pt/1692576
SUMÁRIO: Mais títulos vão ser anunciados, nos próximos dias, para as várias secções da Selecção Oficial. Portugueses? Até ao lavar dos cestos é vindima, diz ao PÚBLICO Luís Urbano, o produtor de As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes.
TEXTO: Com “noventa por cento” do elenco da próxima edição de Cannes fixada, e ainda com títulos a negociar para as várias secções da selecção oficial, Thierry Frémaux, delegado-geral do festival, acaba de anunciar em Paris Jacques Audiard, Matteo Garrone, Todd Haynes, Hou Hsiao Hsien, Nanni Moretti ou Gus Van Sant para o concurso, Woody Allen e a nova animação da Pixar, Inside Out, fora de concurso, os romenos Corneliu Porumboiu e Radu Muntean na secção Un Certain Regard. . . Faltam ainda títulos, que virão a público nos próximos dias. Por isso mesmo. . . e portugueses? “Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz ao PÚBLICO Luís Urbano, produtor de As Mil e uma Noites, o filme de mais de seis horas e em três capítulos de Miguel Gomes. A abertura, a 13 de Maio, será feita, como já anunciado, com La Tête haute, de Emmanuelle Bercot, filme que tem Catherine Deneuve e Benoît Magimel, mas a que faltam os condimentos habituais do “filme de abertura” para servirem o tapete vermelho (a propósito: a direcção do festival promete "desacelerar" a prática “ridícula”, no tapete, do selfie, essa “photo de lui même avec lui même”). Segundo Frémaux foi uma decisão muito vincada começar com esse filme e não, por exemplo, com Mad Max: Fury Road, de George Miller, com Tom Hardy, ou Irrational Man, de Woody Allen, com Joaquin Phoenix (que estão fora de concurso): para mostrar que Cannes pode perfeitamente abrir com um título que tem os condimentos da competição, os seus códigos e temáticas – neste caso, a delinquência juvenil, a educação. É a segunda colaboração de Deneuve com a cineasta, depois de Elle s’en Va, em 2013. “Belle année française”, segundo Frémaux, foi complicado escolher, houve títulos que ficaram de fora – o novo de Arnaud Desplechin, Trois Souvenirs de ma jeunesse, poderá ser repescado. Vai ser então o regresso de Jacques Audiard à competição (Un héros très discret, com Mathieu Kassovitz, Un Prophète, com Tahar Rahim, De Rouille et d’os, com Marion Cotillard, foram presenças anteriores), que desta vez traz um filme sem vedetas, Erran, a aventura de um guerrilheiro Tamil em França, onde trabalha como porteiro; ainda Maïwenn (Prémio do Júri em Cannes 2011, com Polisse), agora com Mon Roi, que tem como actriz principal Emmanuelle Bérco, a realizadora do filme de abertura, La Loi du Marché, de Stéphane Brizé, com Vincent Lindon, e Marguerite et Julien de Valerie Donzelli e Macbeth do australiano Justin Kurzel, com Michael Fassbender e Marion Cotillard. A propósito de regressos, dois vendedores da Palma de Ouro poderão habilitar-se a entrar para o clube dos duplamente premiados com o galardão máximo: Nanni Moretti, com Mia Madre (ainda as dúvidas criativas de um cineasta em crise), Gus Vant Sant com The Sea of Trees, sobre o encontro entre um americano que se quer suicidar (Matthew McConaughey) e um, igualmente perdido, japonês (Ken Wanatabe), os dois na base do Monte Fuji. E se se fala em regresso, ei-lo, Todd Haynes, prémio da melhor contribuição artística a Velvet Goldmine na já longínqua edição de Cannes 1998, compete com Carol, com Cate Blanchett e Rooney Mara. É história de amor entre duas mulheres na Nova Iorque dos anos 50. Moretti não é o único italiano, a ofensiva é intimidante: Il racconto dei racconti, de Matteo Garrone, e La giovinezza, de Paolo Sorrentino, filme sobre a velhice (como A Grande Beleza era um filme sobre a fealdade) com Michael Caine, Jane Fonda, Harvey Keitel. E eis os asiáticos: The assassin do taiwanês Hou Hsiao-Hsien (filme de artes marciais - ou a forma como Hou interpreta o género, tal como Wong Kar-wai o interpretou em Ashes of Time, e tal como no caso do cineasta de Hong Kong a produção arrastou-se por vários anos, com interrupções por problemas orçamentais); Mountains May Depart de Jia Zhangke (a China contemporânea, de novo, depois de A Touch of Sin); Notre Petite Soeur de Hirokazu Kore-Eda. The Lobsters de Yorgos Lanthimos, Le fils de Saul de Laszlo Nemes, Louder Than Bombs de Joachim Trier (Oslo, August 31st), com Isabelle Huppert, Sicario de Denis Villeneuve, completam a lista dos 16 títulos anunciados - a selecção poderá chegar aos 20 nos próximos dias. Vão ser apreciados por um júri presidido pelos irmãos Joel e Ethan Coen e nos próximos dias serão também anunciados os restantes jurados. O grego Lanthimos, o realizador do intrigante Alpeis (2011), com o seu grupo de personagens profissionais em fazerem-se passar por quem já morreu para ajudar ao luto dos familiares, foi destacado por Frémaux: The Lobsters será um dos casos misteriosos do certame ("o género de filmes em que não se compreende tudo”); agora os humanos são transformados em animais.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos educação género mulheres japonês luto
E a vida continua, melancolicamente, sem Abbas Kiarostami
O seu último filme, 24 Frames, foi apresentado postumamente no festival para a celebração da 70.ª edição. Thierry Frémaux, o delegado-geral, anunciou gestos de homenagem em Cannes às vítimas do ataque terrorista de Manchester. (...)

E a vida continua, melancolicamente, sem Abbas Kiarostami
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O seu último filme, 24 Frames, foi apresentado postumamente no festival para a celebração da 70.ª edição. Thierry Frémaux, o delegado-geral, anunciou gestos de homenagem em Cannes às vítimas do ataque terrorista de Manchester.
TEXTO: “O que ele nos deixou foi isto” — que Thierry Frémaux apresentou como um filme em sketches —, “ao partir ainda abriu pistas e portas, que é o que fazem os artistas. ” Este chamou-se Abbas Kiarostami (1940-2016), o festival de Cannes chamou-o, postumamente, para a celebração da 70. ª edição, apresentando o seu último filme, 24 Frames. No dia seguinte ao ataque na sala do concerto de Ariana Grande em Manchester, o delegado-geral do festival, Thierry Frémaux, anunciando gestos de homenagem às vítimas e seus familiares (o habitual fogo-de-artifício nocturno não iria acontecer; minuto de silêncio na passerelle), terminou com “e a vida continua”, pedido de empréstimo ao filme de 1992 de Kiarostami. Tem de continuar a vida, a liberdade e partilha — Cannes também vai continuar. Não é uma facilidade de citação, é verdade que 24 Frames é isso, começou logo a ser isso. Numa declaração do cineasta sobre o seu projecto, ele dizia que uma vez que os pintores e os fotógrafos só capturam uma imagem e nada do que acontecera antes ou depois dela, decidira utilizar as fotos que tirara nos últimos anos, acrescentando o que imaginara que tinha acontecido antes ou depois do imobilizado. São 24 “cenas”, duas horas de filme, realismo imaginado, fabricado e animado, como se uma natureza-morta desenrolasse, sem precisar de autorização humana, a sua vida própria — é a melancolia que vai tomando conta da experiência de assistir a 24 Frames, de detectar vestígios dos homens (por exemplo, nas janelas de casas e de carros que enquadram e contemplam a neve, o mar, os animais, as vacas, os antílopes, os pombos), mas a narrativa a prosseguir apesar deles, apesar dos tiros que ecoam na neve, dos carros que ameaçam a reunião das aves. . . novas possibilidades de história, portanto. Faz todo o sentido o termo “sketch” empregue por Frémaux para este objecto, porque apesar de o cruzamento de materiais exibir a sua natureza de objecto compósito de cinema, fotografia e instalação, a sua determinação é imaginar histórias. E a vida continua, melancolicamente, sem Abbas Kiarostami. Última imagem que ele nos deixou: um The End ao som de Love Never Dies, de Andrew Lloyd Weber. Para a 70. ª edição, outros amigos foram chamados para celebração, reunião do património do festival, Thierry Frémaux e Cia. propõem ainda dois episódios da nova série com que David Lynch regressa a Twin Peaks (e é um regresso ao festival porque Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, o filme que Lynch realizou como prequela à série de 1990-1991, teve aqui, na edição de 1992, a sua primeira pateada); Carne y arena, uma curta-metragem, sete minutos realizados por Alejandro González Iñárritu e fotografados por Emmanuel Lubezki, marcando a entrada da realidade virtual no festival e provando, segundo o delegado-geral quando apresentou a programação, que “é uma arte e não apenas uma técnica” — serve de antestreia a uma instalação que mais tarde vai ser apresentada na Fundação Prada, em Milão; ainda, Top of the Lake – China Girl, dois episódios da série da neozelandesa Jane Campion, a única realizadora a ter recebido a Palma de Ouro — o corpo, não de Laura Palmer, mas de uma rapariga asiática dá à costa, em Bondi Beach.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens ataque carne corpo rapariga morta aves
Akram Khan dança com o pai na cabeça
O coreógrafo e bailarino mostra Desh sexta e sábado no Centro Cultural de Belém. Um espectáculo de deslumbramento mútuo – Khan aceitar ligar-se às suas raízes bangladeshianas, nós pasmamos com uma peça que é, em simultâneo, a cicatrização da relação com o seu pai. (...)

Akram Khan dança com o pai na cabeça
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: O coreógrafo e bailarino mostra Desh sexta e sábado no Centro Cultural de Belém. Um espectáculo de deslumbramento mútuo – Khan aceitar ligar-se às suas raízes bangladeshianas, nós pasmamos com uma peça que é, em simultâneo, a cicatrização da relação com o seu pai.
TEXTO: Logo numa das primeiras cenas, muito antes de se ver perante um elefante ou de trepar a uma cadeira gigantesca, Akram Khan, sozinho em palco, dança com vestígios das danças tradicionais que a mãe lhe ensinou em criança, mas dança, antes de mais, com a figura ausente do seu pai, com a recusa em ser um espelho deste. A cada dois passos, Akram deixa o braço direito ficar para trás, como se alguém lho agarrasse e prendesse, para em seguida sacudir essa presença. “Essa cena representa o estar aprisionado por uma identidade que nos é imposta”, comenta o coreógrafo e bailarino inglês, acerca da herança da cultura bangladeshiana dos seus pais e da forma como a aborda em Desh, solo cuja digressão, passados três anos, termina este fim-de-semana no Centro Cultural de Belém. Não são, por isso, apenas as reflexões identitárias, políticas e ecologistas que se imprimem no corpo de Akram Khan em Desh. Em parte, admite, esta “é uma peça acerca da fragilidade dos pais”. E esse lado, de confronto e de resistência em subjugar-se a uma cultura à qual Akram não sentia pertencer, de recusa desse modelo parental de um emigrado tentando desesperadamente não trair as suas raízes, é aquele que mais se tem transformado desde a estreia da peça em Setembro de 2011, no Curve Theatre, em Leicester. “Só quando nos tornamos igualmente pais é que percebemos a relação com o nosso próprio pai”, admite. “E eu tornei-me pai em 2013, pelo que essa é a grande alteração psicológica desde a estreia. Acho que o Desh é muito sobre o meu pai e sobre o Bangladesh, sobre uma parte da minha identidade da qual fugi durante muito tempo. ”Khan afasta, no entanto, qualquer tentação de leitura psicanalítica ou terapêutica. A relação com o pai, aliás, continua atravessada pela mesma frustração. Mas é de tal forma essencial na composição da peça que o cozinheiro bangladechiano emigrado para Inglaterra e orgulhoso proprietário do seu restaurante (o pai) é trazido para dentro de Desh, tornando a purgação mais clara e efectiva. Aproveitando a observação casual de um amigo que, no decurso de um ensaio, lhe apontou uma pequena cova na cabeça que lembrava um nariz, Akram resolveu desenhar com um marcador, no cocuruto, uma boca e dois olhos para convocar essa personagem do cozinheiro que lhe dizia, por exemplo, “os estúpidos sotaques não fazem de ti um deles”. “Quando se é adolescente”, insiste Khan, “todos queremos ser outros, quaisquer outros menos os nossos pais. E eu não queria nada ser como o meu pai – nem sabia o que isso significava na altura, mas não queria ser bangladeshiano. Queria ser como o Michael Jackson ou o Bruce Lee, e então imitava sotaques diferentes, de forma tosca. Houve uma fase em que me imaginava um tipo do norte de Inglaterra e imitava o sotaque. Quanto mais o fazia, mais frustrado o meu pai ficava. Mas parece-me que é quase sempre assim a relação entre pai e filho. ”Michael Jackson era, na altura, um símbolo autonómico e emancipatório para Akram. Equivalia à adopção inequívoca de uma cultura quotidiana totalmente distante do legado que o pai tentava passar-lhe à força e era a sua contribuição pessoal para o “ambiente muito caótico” em que cresceu. “De um lado”, recorda, “tinha a minha mãe a tocar discos de tipos como o Tom Jones, porque ela trabalhava na fábrica de discos da Decca. Ele, na mesma sala, tocava bandas sonoras de filmes de Bollywood. E eu punha-me a ouvir Michael Jackson no rádio. Num certo sentido, isso abriu-me o espírito. ”Vénia a Noor HossainFoi a poetisa e romancista Karthika Nair quem primeiro lhe propôs criar uma peça sobre as suas origens. Entre a provocação e a cisão continuada com o mundo de casa, Khan respondeu-lhe que isso significaria fazer uma peça sobre Londres. Perante a insistência de Nair em aceitar olhar mais para trás, tentou furtar-se ainda, alegando que nada sabia sobre o Bangladeche. “Bom, talvez esteja na altura de saberes”, respondeu-lhe a poetisa. Foi o que fez. Juntamente com a sua equipa, o coreógrafo desembarcou no Bangladesh, embora pela primeira vez sem ter como destino um casamento ou um funeral e passar o tempo com a família, e sem ter a sua perspectiva sobre o país sistematicamente moldada pelo filtro paterno. “Fomos para ver como o país vive e passámos dez dias a conhecer activistas, políticos, pescadores, agricultores, crianças de rua, mulheres que tinham sido abusadas, artistas – de realizadores a escritores e a fotógrafos. ”Uma das cenas de Desh directamente resultantes da viagem ao Bangladeche coloca Akram Khan esquivando-se a luzes brancas que cruzam o chão do palco, acompanhadas pelo som de buzinas que anunciam uma marcha imparável. Em Daca, como em várias outras cidades asiáticas, chegar de um lado ao outro da rua pode ser coisa para demorar horas e fazer temer pela vida, exigindo uma destreza quase inconsciente para fintar um trânsito torrencial. “Foi um momento muito intenso para nós porque foi um pesadelo”, recorda o coreógrafo. “Não há regras. Se seguirmos regras, acabaremos por ter um acidente. O trânsito vem em 360 graus. Ao voltarmos a Leicester essa cena saiu muito naturalmente, não teve de ser muito coreografada. ”É certo que a fabricação da personagem “pai” em palco resultou da identificação da geografia (levemente) acidentada da sua cabeça, mas Akram Khan andava já de marcador preto na mão, inspirado pela figura emblemática de Noor Hossain. Morto aos 26 anos pela polícia bangladeshiana, em 1987, Hossain foi elevado a mártir em todo o território, tornando-se uma inspiração para todo o movimento pró-democracia. Ao ver fotografias do activista com os slogans “Fora com a autocracia”, “Libertem a democracia” escritos no torso, Khan quis importar igualmente essa imagem para Desh, encontrando depois uma forma enviesada de a evocar, não deixando de se vergar perante um episódio de automática ignição emocional para os bangladeshianos. Com a sua imagem do Bangladesh a transformar-se durante a intensa estada, Akram Khan voltou a Inglaterra certo de que a sua relação com o país dos seus antepassados tornara-se não mais forte, mas seguramente mais clara. “Ajudou-me a compreender um pouco melhor o meu pai, com quem tinha e ainda tenho uma relação muito complicada. E permitiu-me um pouco mais de clareza, uma vez que as emoções nunca são claras. Em certos aspectos, a peça funciona como cicatrização emocional. ”O deslumbramento de olhar para o Bangladesh pela primeira vez com os próprios olhos deixá-lo-ia debaixo de um estado encantatório que apenas consegue comparar com a perspectiva de uma criança no seu dia-a-dia, lidando com um mundo construído para a escala dos adultos. Em palco, quando o vemos frente a um elefante ou uma selva nascidos de um trabalho de animação com que interage em segmentos comoventes, ou sentado numa cadeira desproporcionada para o seu corpo, “é um conceito quase Alice no País das Maravilhas” que assume estar a seguir. Afinal, Desh é, antes de mais, essa tentativa belissimamente contraditória de Akram Khan procurar estabelecer uma relação com uma cultura que sempre lhe quiseram transmitir, mas de forma livre, desobrigada, quase às escondidas. E, por isso, sem pressões, maravilha-se com o país que reivindicou a independência do Paquistão no momento em que não quis aceitar a substituição da língua bengali pelo urdu; cuja relação com a natureza é constante – “a situação em que me encontro mais próximo da natureza”, diz Khan, “é quando vou ao supermercado comprar peixe”; e uma cultura tão rica que, em Desh, o coreógrafo dialoga com a voz da sua sobrinha, instando-a a aproximar-se da cultura bengali, ao invés de tanto se entusiasmar com Lady Gaga. Tal como o seu pai fez consigo.
REFERÊNCIAS:
O nosso eterno cavalheiro do rock’n’roll
Soube muito cedo o que queria ser e o punk mostrou-lhe como o conseguir. Sonhador de pés na terra, estrela no palco e cavalheiro fora dele, Zé Pedro foi o guitarrista e a alma dos Xutos & Pontapés. Morreu aos 61 anos. (...)

O nosso eterno cavalheiro do rock’n’roll
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-12-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Soube muito cedo o que queria ser e o punk mostrou-lhe como o conseguir. Sonhador de pés na terra, estrela no palco e cavalheiro fora dele, Zé Pedro foi o guitarrista e a alma dos Xutos & Pontapés. Morreu aos 61 anos.
TEXTO: Zé Pedro, 61 anos, fundador dos Xutos & Pontapés e ícone do rock n' roll nacional, morreu nesta quinta-feira. Doente hepático, tinha feito um transplante de fígado em 2011 e estava doente há vários meses. Subiu ao palco pela última vez a 4 de Novembro, num espectáculo esgotado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o último da digressão Mar de Outono. O velório realiza-se sexta-feira, a partir das 16h, no antigo Museu dos Coches (e não nos Jerónimos como foi inicialmente anunciado). A missa de corpo presente será no sábado, às 13h30 (meia hora mais cedo do que inicialmente previsto), no mosteiro dos Jerónimos. Parte da infância passou-a em Timor-Leste, na montanhosa Maubisse. O pai, Pedro João dos Santos Reis, oficial do Exército, fora destacado para o país asiático, então colónia portuguesa, e com ele viajara quase toda a vasta família – não pôde seguir viagem a irmã recém-nascida, quinta criança de uma família que será de sete, cinco raparigas, dois rapazes e Zé Pedro como o mano mais velho. Partiram de Portugal no final de 1960 e iniciaram viagem de regresso no Verão de 1963. Zé Pedro recordava-se bem da vida livre timorense, pés descalços sobre a terra em correrias nos pátios e entre a vegetação. Houve um episódio em particular que foi contando ao longo dos tempos. Tinha seis anos e, no regresso de Timor, madrugada alta, veria Hong Kong erguendo-se ao longe, toda luz na escuridão, com néones denunciando vida agitada, urbana. A visão deixou marca profunda. “Foi a primeira vez que reparei na electricidade. Era como se estivesse a descobrir a civilização”, diria em várias entrevistas. O fascínio pela magia das luzes manifestou-se cedo e seria, a ela, à electricidade canalizada em rock'n'roll, que devotaria a sua vida. “Pensas que eu sou um caso isolado/ Não sou o único a olhar o céu/ A ver os sonhos partirem/ À espera que algo aconteça”, escreveria décadas depois, na letra de uma das canções tornadas hino da banda que foi o seu sonho (cumprido). Viajante na infância – de Lisboa para Tomar, de Tomar para Timor, de Timor para Lisboa, daí para a Guiné-Bissau nas férias de Verão, para visitar o pai, e Lisboa novamente, mais propriamente o bairro dos Olivais –, faria dessa deambulação constante modo de vida. Foi cidadão que queria ser do mundo partindo em interrail, na adolescência, para descobrir outras realidades e para testemunhar em carne e osso os sons e a agitação que as revistas e capas de discos sugeriam. Mais tarde, estudioso e eterno apaixonado pela música popular urbana, escolheria as cidades a visitar com o mapa das digressões das suas bandas preferidas na mão. Ainda assim, ou também por causa disso, Zé Pedro tornar-se-ia indistinto do país que o viu nascer e cuja evolução nas últimas quatro décadas testemunhou e documentou, através dos seus Xutos & Pontapés. País para cuja evolução, reformulemos, contribuiu, através de uma banda que se tornou referência máxima do rock em português e um verdadeiro marco cultural. No caderno em que registava a infância dos filhos, a mãe, Olga Helena Ricardo Castro Amaro dos Santos Reis, criou uma entrada para o dia 24 de Novembro de 1957. “O Zé Pedro dançou sozinho”, citou Helena Reis, irmã do músico, na biografia que lhe dedicou, Não Sou o Único (Editorial Presença, 2007). “Tínhamos o rádio aceso e estávamos entretidos a conversar; quando demos por ele, estava a dançar muito convencido”. Não há referência a que tenha iniciado a “actuação” com apresentação tornada icónica em mil palcos deste país – “Boa noite, aqui Xutos & Pontapés!”. Mas, de certa forma, e olhando retrospectivamente, essa apresentação já tinha que estar algures no corpo do rapaz nascido a 13 de Setembro de 1956, registado pela mãe como nascido no dia seguinte para afastar o azar. O grito de guerra do palco já estaria a germinar na criança que procurava ter sempre um rádio por perto, que ouvia o pai deliciar-se com o jazz que consumia avidamente, que descobriu o rock'n'roll e, nele, o que queria fazer da vida, enquanto ensaiava posições de guitarra nas réguas em T que as irmãs usavam no colégio. Já tocava uns acordes quando, “eureka!”, descobriu que não precisava de ser um virtuoso para subir a um palco – assim lho mostraram os Ramones e o punk. Bastava saber o que queria e atirar-se de cabeça para que o que queria se tornasse realidade. Zé Pedro, guitarrista e co-fundador dos Xutos & Pontapés, ícone da música portuguesa, estrela arredia a tiques de estrelato, sempre próxima e disponível, morreu aos 61 anos. Habitualmente, figuras públicas da sua dimensão são sentidas pelo público como alguém próximo, como um amigo ou um familiar. Essa ilusão de proximidade, criada pela presença mediática, na televisão, nos palcos, nos jornais e revistas, e pela presença real, através do palco, de um encontro fortuito numa rua, num bar, num clube (Zé Pedro gostava dos concertos e gostava da noite, e o país é pequeno), parecia ser, no caso específico de Zé Pedro, mais que mero simulacro. Nascido José Pedro Amaro dos Santos Reis no Hospital da Estrela, em Lisboa, tinha em palco o carisma das estrelas rock'n'roll, movendo-se no corpo esguio ao sabor dos acordes simples em que se funda o som da sua banda, e tinha, fora dele, uma genuinidade cativante e calorosa. Como costumava dizer: “Eu tenho sempre tempo para falar de rock'n'roll”. E fazia-o com os companheiros de banda, com camaradas músicos, com técnicos de som e de palco, com anónimos, novos e velhos, que o abordavam na rua para trocar dois dedos de conversa. Zé Pedro tinha sempre tempo. Para a maioria dos portugueses, considerando como muito provável que 90% da população tenha ao longo da vida assistido a pelo menos um concerto dos Xutos, Zé Pedro seria realmente alguém próximo com quem já se trocaram algumas palavras, alguém que acompanhou o que somos e fomos sendo desde o final dos anos 1970, período em que os Xutos irromperam na cena musical em concerto modesto, mas que causou estrondo. Alunos do Apolo, Janeiro de 1979: seis minutos durou o primeiro concerto dos punks Xutos & Pontapés, quando os seus membros estavam longe, muito longe, de sonhar que seriam um dia os primeiros rockers portugueses tornados comendadores da nação, cortesia do então Presidente da República Jorge Sampaio, em 2004. A abertura e empatia perante o outro era uma das marcas distintivas de Zé Pedro. Outra, o prazer pela música, inabalável ano após ano, e guia de todas as suas acções até ao fim. Em 2001, quando uma hemorragia no esófago o deixou às portas da morte – “os médicos disseram-me que se tivesse entrado [no hospital] duas horas depois, não me safava”, contou –, saiu do internamento, ainda naturalmente fragilizado, e poucas semanas demorou até subir a palco novamente. Devia-o à sua banda, a toda a equipa que a rodeava e que tinha nos Xutos o seu ganha-pão, e ao público que esperava vê-lo e que já comprara bilhetes. No último 4 de Novembro, subiu ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para o último concerto da digressão de 2017. A seu lado, os companheiros de sempre, Tim, Kalú, João Cabeleira e Gui. Perante si, os fãs que cresceram ao longo dos anos até se tornarem muitos, muitos milhares. Começaram por ser um pequeno grupo, uns punks da Amadora que, num concerto dos inícios, em 1979, invadiu o palco onde tocavam os Xutos em aprovação da música e do gesto artístico. Aconteceu no Liceu D. Pedro V, quando Zé Leonel, o primeiro vocalista dos Xutos, vitimado por um cancro no fígado em 2011, partiu em palco um gravador que teimava em não funcionar como devia e atirou os pedaços para a plateia – os pedaços foram devolvidos, o palco invadido. Aqueles punks suburbanos que, contava Zé Pedro, adoptaram a banda como sua, seguindo-a concerto a concerto a partir daí (naquela primeira noite, propuseram logo aos Xutos irem juntos partir umas vitrines à privilegiada Avenida de Roma, para consumar a relação), foram os primeiros. Hoje, como naquele Coliseu lisboeta lotado, o público e os fãs dos Xutos & Pontapés são um grupo transversal a faixas etárias, classes sociais e geografias. São de todos e são para todos. Foi por eles que Zé Pedro continuou, mesmo debilitado pela doença hepática que o obrigou, em 2011, a um transplante de fígado, a actuar todas as noites de mais uma digressão dos Xutos & Pontapés. Por eles, pela banda que será sempre a sua, e por si mesmo. Em Conta-me Histórias, biografia da banda assinada por Ana Cristina Ferrão, Zé Pedro recorda a estreia da banda na supracitada actuação nos Alunos do Apolo, integrada numa comemoração dos 25 anos do rock’n’roll. “A assistência que tinha estado a ouvir, a noite toda, o Rock around the clock e outras coisas similares, ficou estática. Quando acabámos não se ouviu nem uma palma, nem um assobio. Não se ouviu nada. Eles não devem ter percebido absolutamente nada e a verdade é que nós também não”. Foram cerca de cinco canções em seis minutos. Foi o início da história conhecida. Pode ter sido curto, pode ter sido um caos, pode não se ter ouvido sequer um aplauso, mas Zé Pedro não teve dúvidas quanto ao que sentira. “Tinha sido muito excitante. Marcámos logo o próximo ensaio”. Em entrevista a Ana Sousa Dias, publicada no Diário de Notícias em 2016, apresentou a sua definição de rock'n'roll. “O rock'n'roll é um estado de espírito, e uma pessoa ou sente ou não sente. Não é preciso ser músico para se sentir, tem que ver com aventura. Pode ter que ver com uns certos limites na vida, mas tem, acima de tudo, que ver com a realização pessoal de uma vida mexida”. A sua foi, verdadeiramente, uma vida mexida, realizada. Em 1969, os pais compraram uma televisão para a família assistir em directo ao grande acontecimento do ano, a chegada do Homem à Lua. Zé Pedro viu Neil Armstrong dar o grande passo, mas a televisão mostrou-lhe outra coisa, um concerto dos Deep Purple, banda que mais tarde encaixaria na categoria de dinossauros, mas que, naquela altura, funcionou como um despertar. A partir daquele momento, começou a procurar as novidades discográficas, a encomendar a imprensa musical que lhe mostrasse o novo que se ia fazendo no cenário musical. Dois anos depois, os pais levavam-no a ver o seu primeiro concerto. Momento histórico: Zé Pedro foi um dos felizardos que, no primeiro Cascais Jazz Festival, assistiu à actuação de Miles Davis. Fascinou-o aquele homem, quase alienígena, certamente alienígena no Portugal de então, na sua roupa colorida, tronco dobrado sobre a trompete e olhar escondido atrás de grandes óculos escuros. Mas assistir ao concerto teve um efeito secundário. Chegar àquele patamar musical parecia tarefa impossível. “Deixei de ter aquele apetite de ser músico depois de vê-lo: ‘Eh pá! Isto dá muito trabalho, chegar aos calcanhares de uma coisa como esta’”, recordou a Ana Sousa Dias. Ainda não havia os Ramones, ainda não havia o punk rock. Ele ainda não tinha ouvido os primeiros e testemunhado a revolução cultural do segundo para exclamar: “Isto consigo e quero fazer”. Sente-se a electricidade no ar, o entusiasmo, no limite da euforia, que rodeava o momento. Ouve-se o clamor do público e percebe-se como esse clamor contagia o palco. Os versos são, várias vezes, em várias canções, cantados por todos, pelo vocalista e pelos milhares que lotaram o Pavilhão d’Os Belenenses nos dias 29, 30 e 31 de Julho de 1988. Os Xutos & Pontapés viviam o seu primeiro auge de popularidade, ascendendo de banda de culto a verdadeiro fenómeno, alicerçados em canções como Remar remar, Homem do leme, Contentores, À minha maneira, A minha casinha ou Para ti Maria, e nos álbuns Cerco, Circo de Feras e 88. O sucesso devia-se tanto ao protagonismo ganho pelas canções quanto à incansável ética de trabalho: os Xutos & Pontapés haviam resistido à saída do primeiro vocalista, Zé Leonel, haviam acolhido novo guitarrista, Francis, viram-no partir para que chegasse aquele que parece pertencer à banda desde sempre, João Cabeleira. Conseguiram-no guiados pela vontade indomável de Zé Pedro, líder sereno mas decidido, tocando onde e quando os quisessem, para 50 pessoas, para cem ou para cinco mil, tocando sempre. “Assumiram que o rock nunca foi um estilo de música mas sim uma atitude e, quer se queira quer não, um estilo de vida”, escrevia Fernando Magalhães no PÚBLICO em 1999, cumpriam os Xutos & Pontapés vinte anos de carreira. Escrevia mais: “Remar remar, Homem do leme, Circo de feras, Contentores, Quero mais, Não sou o único ou Longa se torna a espera são palavras de ordem para quem se alimenta de palavras de revolta, servidas por melodias cuja força e simplicidade formam uma condensação perfeita da fúria, do espanto, da dúvida e da loucura de quem avança sem olhar para trás. Um segredo que se encontra exposto desde o início no próprio nome do grupo”. No Pavilhão d’Os Belenenses, em 1988, nos concertos que resultarão em Xutos Ao Vivo, Tim cederá o protagonismo ao companheiro de estrada e Zé Pedro cantará Submissão em voz crua e ritmo acelerado, punk mais punk não há. Zé Pedro cantará: “Deixei a escola e fui trabalhar/ Mas é pior do que andar a estudar/ oito horas por dia é muito a aturar/ é tanto tempo, tempo que nem dá p’ra pensar”. Há muito tinham desaparecido os receios de há 17 anos, quando assistira pela primeira vez a um concerto e vira o imponente Miles Davis em palco. Eram nove naquele 7. º andar direito, nos Olivais. Os pais, as duas irmãs mais velhas e as três irmãs e o irmão que chegaram depois dele. Núcleo familiar forte, muito unido e sem sinais de conflitos geracionais. Nos anos 1980, muito solicitado para comentar o fosso entre a geração dos pais e a sua, diria vezes sem conta a jornalistas que nada tinha a dizer sobre esse assunto. Que gostava muito da família, que se dava muito bem com os pais, explicava. A mãe, de resto, não só apoiava a carreira musical do filho como marcou regularmente presença nos concertos até à sua morte, tinha Zé Pedro 27 anos, chegando a ser a responsável pela maquilhagem com que a banda subia a palco. Foi a partir do bairro lisboeta dos Olivais que o adolescente Zé Pedro começou a ver mais, a descobrir mais. Tinha 15, 16 anos quando sentiu pela primeira vez o que era a vida na estrada, acompanhando uma banda local, os Ficha Tripla, até um concerto no Algarve. Ao mesmo tempo, ia contactando com a geração do rock português anterior à sua, a dos Petrus Castrus e dos Objectivo, e prestava atenção ao que fazia Filipe Mendes, o grande guitarrista de Chinchillas ou Heavy Band, o bem conhecido Phil Mendrix dos Irmãos Catita. Demasiado irrequieto e desinteressado na escola – olhando para esses anos, descrevia-se como “speed-freak rebelde” –, foi-se sentindo atraído para a acção política que começa a fervilhar imediatamente antes, durante e logo após o 25 de Abril. Semanas antes da Revolução foi, nos Olivais, um dos membros fundadores de um misterioso CRIME – Comité Revolucionário para a Independência da Malta da Encarnação. Interessava-lhe a agitação e acção directa, não tanto a burocracia das reuniões – na política como na música, portanto. Antes de pegar na guitarra em palco, divulgava música na imprensa, escrevendo crítica musical no Diário de Lisboa (o tio, Ruella Ramos, era o director) e colaborando ocasionalmente com a Rádio Comercial. Foi, por exemplo, o primeiro a escrever em Portugal sobre Horses, o histórico disco de estreia de Patti Smith. O momento decisivo chegaria em viagem. A história é bem conhecida. Verão de 1977 e Zé Pedro em interrail pela Europa. Em Amesterdão, decide inverter marcha. Algures numa vilória francesa aconteceria algo que ele não podia perder. Em Mont de Marsan, Sul de França, realizava-se um festival por onde passaram os Clash, os The Damned ou os Police. Na sua conta de Facebook, em Junho de 2017, Zé Pedro partilhou fotos do festival, com bandas e público a conviver unidos nos alfinetes espetados e nas t-shirts esburacadas. “Nesse momento, a minha vida mudaria para sempre”, escreveu num dos posts. Alex Cortez, baixista dos Rádio Macau, guardou bem nítida na memória a primeira vez que viu Zé Pedro, então alcunhado Podrezinho por influência de Johnny Rotten, o vocalista dos Sex Pistols. Foi num 1º de Maio, assim recordado em Conta-me Histórias: “Ele usava um impermeável amarelo cheio de badges de grupos punk da altura e eu lembro-me de achar aquele personagem curioso, no meio dos trabalhadores que davam vivas à Revolução”. Um ano e meio depois de Mont de Marsan, Pedro Ayres Magalhães, com quem Zé Pedro firmara um pacto assinado a sangue em mortalhas coladas – ainda haveriam de ser grandes na música, ditava –, diz ao jovem guitarrista: “Tomem conta do rock’n’roll, que nós temos que ir para outro lado”. Era o último concerto dos fugazes Faíscas, de quem Zé Pedro era manager, e o da estreia dos Xutos & Pontapés. Pedro Ayres Magalhães foi – para a criação dos Corpo Diplomático, dos Heróis do Mar, dos Madredeus. E os Xutos & Pontapés foram também – tomar conta do rock’n’roll. Zé Pedro atravessou toda a celebrada história que se seguiu com a elegância e frontalidade que revelou desde o início. Enquanto guitarrista, tinha a virtude da simplicidade, indo directo ao assunto através de riffs crus e sequências de acordes eficazes – a âncora em que se suportaram as canções da sua banda. Francis, guitarrista dos Xutos & Pontapés entre 1981 e 1983, dizia-o em Conta-me Histórias: “Sendo um guitarrista limitado, tem um balanço desgraçado, ele em ritmo é fabuloso. É ele e o Kalu na bateria. A guitarra do Zé Pedro não é uma guitarra de encher chouriços: a guitarra dele é importante”. Enquanto figura pública, prezou a transparência, sem falsos moralismos. O carisma de estrela em palco, do alfinete espetado na boca às t-shirts apertadas e rasgadas, imagem dos primórdios, aos casacos, sobretudo e pulsos cobertos de pulseiras de metal, qual mestre rock’n’roll, de tempos mais recentes, não tinha equivalência, fora dele, numa pose distante, inatingível. Era um verdadeiro cavalheiro, tão à-vontade com os seus – os músicos, os roadies, os agentes da indústria – como com os admiradores anónimos na rua ou com figuras de relevo na política como Manuela Eanes, fã assumida, ou Jorge Sampaio, o Presidente que agraciou os Xutos com a ordem de comendadores da nação. “Pessoas que gostam do que estão a fazer querem ir o mais longe possível”, disse em 2016 a Ana Sousa Dias. “No meu caso, como músico, acima de tudo, há uma honestidade total em relação à vida que levo. Assumo o que faço e isso é transportado comigo. A andar na rua, a ir às compras, seja o que for, eu também sou o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés”. Assim foi. O prazer pela música, pela vida que lhe está associada, foi uma constante. Não só no apoio e no entusiasmo de verdadeiro fã que foi mostrando por bandas das gerações que lhe sucederam, como os Censurados, os Lulu Blind de Tó Trips, que chegou a produzir, os Linda Martini, os Pontos Negros ou os Capitão Fausto. Não só na criação de bandas paralelas aos Xutos & Pontapés, como o Palma’s Gang de revisita rock’n’roll ao cancioneiro de Jorge Palma, os destrambelhados Os Cavacos ou, mais recentemente, Os Maduros e os Ladrões do Tempo. Sempre atento, rodeado de revistas, de DVD, CD e vinil, divulgou música das mais diversas formas: na rádio, em programas que passaram por diversas emissoras; na televisão, através de Viva o Vídeo, onde, ao lado de Xana e de Henrique Amaro, revelou em primeira mão em Portugal o emergente panorama grunge, por exemplo; enquanto DJ, actividade que manteve nas duas últimas décadas; ou no clube Johnny Guitar que co-fundou e, que nos anos 1990, foi o grande centro criativo musical lisboeta, digníssimo sucessor do Rock Rendez Vous onde os Xutos haviam feito boa parte da sua história inicial. Com o passar dos anos, viu como a sua banda cresceu até se tornar verdadeira instituição nacional, saltando dos clubes para os pavilhões, daí para os Coliseus, para o Pavilhão Atlântico, para os eventos de massas que são os festivais de Verão. Nas corridas Portugal fora, em inúmeras digressões, viu as auto-estradas cortarem o país, viu como os fãs de ontem continuavam presentes enquanto novos, por nascer quando os Xutos deram os primeiros passos, se juntavam em coro com a banda. Em 2003, cumpriu um sonho antigo ao tocar na primeira parte do concerto dos Rolling Stones no Estádio Cidade de Coimbra – “Foram a banda que me levou a ser músico e que me levou a tocar guitarra”, contou em Não Sou o Único. Nos anos 1980, ultrapassou um período de dependência da heroína do qual sempre falou com desassombro, sem falsos dramatismos e sem moralidade de pacotilha. Em 2001, foi internado de urgência e viu a morte de perto – mal teve alta, preparou o regresso aos palcos, que não demorou mais que umas curtas semanas. Em 2011, a persistência dos problemas hepáticos – sofria de hepatite C –, obrigou-o a um transplante de fígado e, também nessa altura, não demorou a regressar a palco – podia lá faltar ao concerto no Optimus Alive, onde iria partilhar palco com Iggy Pop & The Stooges. Em 2013, casou com Cristina Avides Moreira. Em 2014, os Xutos & Pontapés editaram o seu 13º álbum de estúdio, Puro. Este ano, quando apenas os mais próximos estavam cientes do seu estado de saúde, fez questão de subir a palco em todas as datas da digressão, com excepção de Toronto (e por imposição dos companheiros). Lembramo-nos de algo que dissera em Conta-me Histórias: “As tournées matam um bocado. Mas o que é giro é que a gente conseguiu passar por muita coisa e ainda ficamos loucos só de pensar em ir para a estrada”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Fragilizado, naturalmente menos comunicativo, tocou noite após noite. Depois da noite de despedida da digressão, emitiu um comunicado. “Como sabem, tenho andado na luta da vida com alguns problemas de saúde… Tentei e tento dar sempre o melhor de mim”, começou por escrever, revelando que iniciaria no dia seguinte um novo tratamento. “Garanto que é para ganhar. Eu sei lutar e acredito”, despediu-se. Zé Pedro ganhou. Zé Pedro, 61 anos, uma vida de rock’n’roll tatuada na paisagem e na memória de um país.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Prelúdio ao início da dança
Emmanuelle Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão. (...)

Prelúdio ao início da dança
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Emmanuelle Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão.
TEXTO: Tôzai. . . ! é o grito que, desde os bastidores, anuncia o momento inicial do bunkaru (teatro de marionetas japonês, cuja tradição popular remonta ao século XVII), e o movimento de abertura da cortina, arrastada “de oriente a ocidente” por um personagem invisível, enrolado no próprio tecido. O título da peça de Emmanuelle Huynh (França, 1963) resume o gatilho da obra e um dos seus temas criativos recorrentes: o fascínio pela cultura performativa nipónica ancestral (o teatro nô, bunkaru e kabuki) que, resistindo às atribulações do país, conhece hoje derivações que reactualizam os seus dispositivos de narração. Huynh trabalhou sobre a ideia de um tempo em suspensão: a misteriosa transição cerimonial entre “o antes” e “o início” do espectáculo. Uma cortina cinza atravessa o meio do palco durante o primeiro terço da peça; ainda o público se acomodava, e uma intérprete, de calças de treino pretas e camiseta parda casuais, parece perscrutar a cena; o seu movimento, alimenta-se do texto poético narrado em off por uma meia-voz masculina. A luz decai sobre as duas mulheres e três homens que lhe sucederão: a indumentária neutra, rompida por apontamentos coloridos, brilhos ou transparências, acentua as distintas morfologias dos corpos e seus registos gestuais. O longo prólogo, dizia a folha de sala, inspirava-se no protocolar sambaso, figura do bunkaru: a vistosa performance preliminar visa purificar a atmosfera de espíritos nocivos, energizar a actuação de bons auspícios. Coreografia:Emmanuelle Huynh (2014)Lisboa, Grande Auditório da Culturgest, 21h30Sala a um terçoA cortina é, em Tôzai…!, a personagem central. Alusão à grande pálpebra vertical que, no bunkaru sucessivamente cobre e descobre a acção teatral, abrindo profundidades no palco e as camadas do tempo narrativo. O desafio de Huynh era construir uma dança que operasse nesse limbo, entre “o que ainda não é” e o que ”já é”; descolar do seu território referencial e estendê-lo a todo o acto teatral, onde a cortina (real, simbólica) marca o espaço/tempo que distingue a representação (função tendencialmente desempenhada pela luminotecnia nas práticas performativas de hoje). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas a peça não define estratégias claras para ocupar esse lugar volátil, impreciso. Cede a trazer outros referentes que conflituam com a moldura preambular onde se queria instalar. O movimento dos bailarinos evolui para outros imaginários da dança: há, nos braços, esboços de ondulações de cisne, poses helénicas de inspiração modernista, posturas de artes marciais e sugestões animalescas do teatro asiático, meneios casuais ou o formalismo aleatório da dança pós-moderna; envereda-se, ocasionalmente, por instantes de paroxismo. As identidades performativas são, quiçá, demasiado marcadas, e a banda sonora (difusa, no limiar audível), de sonidos electrónicos, ressonâncias de shamisen tradicionais, ecos de passos e vozeares indistintos, convoca espaços paralelos, outras viagens mentais. Se pouco sobrevive do referencial de partida, tal não se seria questionável se Tôzai…! lograsse levar-nos, de modo meramente sensorial ou abstracto, até às subtilezas do espaço/tempo intercalar que quer habitar. A leitura da peça fica algo refém do discurso conceptual da Huynh. O registo errático envolve-nos, todavia, numa serenidade delicada, de sabor oriental que, nos seus melhores momentos, quase materializa o tempo suspenso, fina ansiedade e presságio, antes do espectáculo começar.
REFERÊNCIAS:
A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias. (...)

A moda e a música juntaram-se no último dia do Portugal Fashion
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mais de 34 mil pessoas passaram pelo evento de moda que esteve no Porto durante três dias.
TEXTO: No último dia da 43. ª edição do Portugal Fashion, “costurou-se” moda e música na passerelle da Alfândega do Porto, com modelos a desfilar coordenados Pé de Chumbo com Cuca Roseta a cantar ao vivo; e os Storytailors com a violinista Ian como que a orquestrar o desfile. Num dia dividido entre roupa, calçado e acessórios, que terminou com um divertido desfile de Júlio Torcato que fecha um ciclo de três décadas na moda. Na Alfândega do Porto, por onde passaram mais de 34 mil pessoas, a evocação ao fado começou logo no primeiro desfile do dia com Marta Marques e Paulo Almeida, da Marques'Almeida, com raízes em Londres, que fizeram desfilar vestidos de ganga com mangas balão, aplicações de franjas, saias pretas compridas e fluidas com folhos. O fado continuou mais ao final da tarde, com Cuca Rosetta no desfile de Alexandra Oliveira, da marca Pé de Chumbo, de Guimarães. A designer levou a desfile a colecção de Verão 2019 inspirada no desenho das palhinhas utilizadas no mobiliário, no ouro, nas formas e nas cores do Minho. Alexandra Oliveira apresentou coordenados com muita cor, feitos de seda, algodão e ráfia em texturas encorporadas que criam volumes ou leves e românticas. A designer vende para mais de 20 países. Umas horas antes, João Branco e Luís Sanchez, dos Storytailors, com banda sonora da violinista Ian ao vivo, apresentaram um desfile que foi pensado ao pormenor. “Quisemos espicaçar a imaginação das pessoas para que façam a sua própria interpretação do desfile”, diz João Branco. Os dois têm um registo de contadores de histórias com metáforas na passerelle. Para esta colecção "222", que surge na sequência das duas últimas, os designers inspiraram-se em “sinais que se lêem através da numerologia, de mensagens universais de boa fortuna, concretização”, acrescenta Luís Sanchez. Apresentaram tons pastéis rosas, brilhantes com linhas mais românticas e femininas, e outras peças com cortes que deixam revelar o corpo. Nuno Baltazar também se inspirou na música, mas de Ellis Regina e de Chico Buarque para apresentar "Tatuagem", uma colecção que é de "intervenção". "É também das mais difíceis que fiz até hoje”, desabafa por entre o frenesim dos bastidores no final do desfile. Inspirou-se na forma como os artistas reagiram à censura no Brasil. “Tudo o que está na colecção está por um motivo”, diz enquanto aponta para os cintos que os modelos levam na cintura em alusão à “censura que segurava o artista no Brasil”. O designer fez desfilar contrastes de tecidos muito estruturados, telas de algodão muito duras por oposição a tecidos leves, e ainda sedas muito luminosas com cores vibrantes. A mudança de loja para a Rua do Bolhão, na Baixa do Porto, em Junho deste ano, trouxe-lhe mais vendas, sobretudo de turistas. “Está a correr muito bem. É um Porto mais moderno, com mais energia, diferente”, descreve. E a loja online esta prestes a funcionar. Também Katty Xiomara se inspirou na arte, mas de três mulheres: a pintora Carmen Herrera, a designer gráfica Paula Scher e a arquitecta paisagista Bárbara Stauffacher. A designer levou à passerelle a colecção "BeBold" com detalhes, estampados vibrantes, contrastes de cor, aplicações e bordados e volumes. Luís Buchinho também levou a arte mas japónica, inspirou-se nas gravuras Gyotaku, um método japonês de gravura de peixes. “Surgiu no século XIX e era uma maneira dos pescadores registarem os seus troféus e depois, mais tarde, houve intervenções de artistas”, conta o designer ao PÚBLICO. Conseguiu, então, um efeito de brilho metálico semelhante ao das escamas de peixes com coordenados plissados e enrugados. O criador fez desfilar saias com estampados Gyotaku, calças de cintura alta com riscas em cores contrastantes e molas de pressão nas carcelas laterais e vestidos de Jersey. É precisamente o mercado asiático que tem mais peso nas vendas internacionais, como Tóquio, Hong-Kong e Pequim. Ainda que venda tanto em Portugal como no exterior. Já Luis Onofre fez desfilar a colecção de calçado que levou a Milão, mas com algumas alterações de cores só para o desfile de 36 modelos, dos quais seis foram masculinos. “Vermelho é o tom da estação, depois fui buscar uma tendência mexicana e inspirei-me numa concha rara do México que os Incas usavam muito para bijuteria”, conta. Com fivelas de cowboy cobertas de cristais, entre outros materiais. Um destes modelos pode custar entre 100 e 600 euros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A noite terminou com um desfile muito animado de Júlio Torcato que quis comemorar 30 anos de carreira de forma diferente, “não num formato de uma colecção para a estação convencional”, explica enquanto mostra os coordenados que pediu 30 pessoas de várias áreas modificarem. Desde os gémeos Guedes, que pintaram dois casacos com graffitis, até Mário Matos Ribeiro, fundador da ModaLisboa. O Portugal Fashion é organizado pela Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) e é cofinanciado pelo Portugal 2020. Contou com a presença do novo secretário de Estado da Defesa do Consumidor, João Torres, que reforçou a importância da iniciativa para reforçar a indústria da moda. E que “mostra ao mundo o trabalho que é feito no país” nesta área, diz ao PÚBLICO.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto. (...)

Jóias de Elizabeth Taylor vendidas por 87 milhões, quatro vezes acima do valor de licitação
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-12-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: A sua paixão por jóias sempre foi conhecida e até muitas vezes criticada. A actriz Elizabeth Taylor, que uma vez disse que a mulher só precisava de diamantes para ser feliz, tinha uma colecção única de diamantes, pérolas, esmeraldas, rubis e safiras; anéis, brincos, colares, broches e tiaras. A Christie’s levou a colecção à praça na terça-feira em Nova Iorque e, tudo junto, estava avaliada em mais de 30 milhões de dólares (21,2 milhões de euros) mas no leilão rendeu 116 milhões de dólares (87,6 milhões de euros), estabelecendo um recorde. Nunca nenhuma colecção tinha atingido um valor tão alto.
TEXTO: Elizabeth Taylor pode ter trocado várias vezes de marido, casa e carros mas nunca de jóias. A colecção foi aumentando ao longo dos anos e em nenhuma estreia de um filme, cerimónia, festa de caridade, entrega de prémios, aniversários ou até mesmo nos seus oito casamentos, a actriz apareceu sem um conjunto de jóias, na maior parte das vezes bem vistosas. Quase todas as peças leiloadas superaram em muito os valores previamente estimados. A grande estrela do leilão foi o colar do século XVI conhecido como “La Peregrina” e que foi arrematado por 11, 8 milhões de dólares (8, 9 milhões de euros). O colar decorado com rubis, diamantes e pérolas perfeitamente simétricas tinha um preço inicial de 2 milhões de dólares (1, 5 milhões de euros). Apontado como uma das peças mais cobiçadas do leilão, o anel de diamantes com um aro em platina de 33 quilates, avaliado em 2, 5 milhões de euros, oferecido em 1968 por Richard Burton a Elizabeth Taylor, foi vendido por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros). O anel que Richard Burton, apelidado de o grande amor da vida da actriz, com quem se casou duas vezes, comprou num leilão em 1968, pertenceu inicialmente a Maria I de Inglaterra e depois às rainhas espanholas Margarita e Isabel. Segundo a leiloeira, o licitador da peça é um coleccionador privado asiático. O diamante Taj Mahal, também oferecido por Richard Burton quando Elizabeth Taylor fez 40 anos, foi comprado por 8, 8 milhões de dólares (6, 6 milhões de euros), um recorde para uma jóia indiana. O primeiro lote a ser leiloado foi uma pulseira de ouro com pedras preciosas que foi à praça por 35 milhões de dólares (26 milhões de euros) e foi arrematada por 270 milhões de dólares, aproximadamente 204 milhões de euros, dando desde logo um indicativo muito positivo para o leilão. Minutos depois, um colar de marfim e ouro superou em mais de 100 vezes o valor inicial estimado de 1500 dólares (1132 euros) ao ser comprado por 314, 5 mil dólares (237, 5 mil euros). Uma pulseira de diamantes oferecida por Michael Jackson, amigo próximo da Taylor, foi leiloada por 600 mil dólares (453 mil euros), quando o preço inicial estimado era de 30 mil dólares (22, 6 mil euros). Ainda o leilão não ia a meio quando vários recordes já tinham sido batidos, incluindo o da colecção completa, que pertencia à coleccçao da Duquesa de Windsor, leiloada em Genova em 1987 por 50 milhões de dólares (37, 7 milhões de euros). O anterior recorde de uma só jóia vendida em leilão pertencia às Pérolas de Baroda, arrematadas em 2007 por 7, 1 milhões de dólares (5, 4 milhões de euros). Marc Porter, da Christie’s, disse à BBC que o leilão “foi um dos mais extraordinários de sempre”, definindo-o como uma “prova de amor mundial a Elizabeth Taylor”, que não foi esquecida durante todo o leilão que contou com várias ovações. Elizabeth Taylor, que morreu em Março deste ano aos 79 anos, já tinha expressado em vida que quando morresse desejava que os seus preciosos acessórios fossem leiloados. No seu livro de 2002, intitulado “My Love Affair With Jewellery”, onde fala sobre a sua paixão por jóias, a actriz escreve que nunca olhou para as suas jóias como troféus. “Estou aqui para tomar conta delas e amá-las. Quando eu morrer e elas forem leiloadas, espero que quem as compre lhes dê uma boa casa. ”Antes do leilão desta terça-feira em Nova Iorque, as jóias foram expostas em Moscovo, Londres, Los Angeles, Dubai, Genebra, Paris e Hong Kong. O leilão continua esta quarta-feira com a colecção de roupa de alta-costura da actriz, onde estão incluídos os dois vestidos do casamento com Burton, assim como vários vestidos Pucci, Versace e Christian Dior, especialmente criados para Elizabeth Taylor.
REFERÊNCIAS:
Étnia Asiático
O segredo de José Luís Peixoto
"Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão (...)

O segredo de José Luís Peixoto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.4
DATA: 2012-11-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: "Em Galveias, numa vila com cerca de mil habitantes no interior do Alto Alentejo, havia uma pessoa muito preocupada com a morte de Kim Jong-il, em Pyongyang." Essa pessoa era o escritor José Luís Peixoto, que em Dezembro de 2011, quando o líder norte-coreano morreu, já estava com viagem marcada para o país mais fechado do mundo. Em Abril de 2012, partiu. "Viajar é interpretar", escreveu. Mas a ficção sobre o que viu, a acontecer, ficará para mais tarde, como contou à revista 2. Agora, publicou o seu primeiro livro de viagens: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Outros "igualmente inesperados" virão
TEXTO: O que pode querer dizer um estrangeiro acabado de chegar a Pyongyang a um cidadão norte-coreano? Um guia de conversação comprado num hotel da capital dá umas pistas. Não basta aprender a dar os bons-dias. Considera-se que pode ser útil algo como: "Proponho um brinde à vida longa e à saúde do líder Camarada Kim Jong-il. " Ou: "Quero começar por visitar a estátua de bronze do Camarada Kim Il-sung para exprimir as minhas condolências. " E quem não sentirá vontade de partilhar que "Pyongyang é limpa e bela e parece ter as melhores condições de habitação do mundo"? Ou talvez algo politicamente correcto à luz do regime local: "Os Estados Unidos têm de sair do Sul da Coreia. Não têm quaisquer fundamentos para permanecer no Sul da Coreia. "De facto, para quê aprender a perguntar onde é o restaurante mais próximo se o mais que certo é o guia ter tratado disso, e de tudo o resto. A Coreia do Norte não é um local onde um turista (fará sentido esta palavra num sítio como este?) possa simplesmente ir à procura de um restauranteonde lhe apetece comer, ou decidir o que pretende fazer no resto da tarde. De qualquer forma, José Luís Peixoto não se ocupou de frases apologéticas. Não foi para isso que o escritor português atravessou meio mundo. Ou melhor: se calhar até foi, mas não para as decorar e repetir. Há muito tempo que queria ver uma ditadura de perto. Isto foi em Abril. O escritor ainda não tinha regressado e já começara a escrever o livro Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. Não costuma tirar tantas notas, mas desta vez encheu praticamente três blocos. Esta semana, em Lisboa, numa sala de reuniões da sua editora, a Quetzal, José Luís Peixoto conversa com a revista 2, sem pressas. Acabou de chegar da Índia - Goa e Bombaim - mas a entrevista obriga-o a voltar agora à Ásia Oriental e àquela experiência de há meses, quando viu de perto um "país muito extraordinário". Antes de qualquer mal-entendido, convém talvez citá-lo a partir do seu livro e esclarecer:"1 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. 2 - Sou contra todos os regimes totalitários e ditaduras. "Não tinha a ilusão de que iria escapar à realidade que tinha sido encenada para si e para os outros membros do grupo formado para a visita a que a Koryo Tours (que organiza viagens através de Pequim) chamou de "Kim Il-sung 100th Birthday Ultimate Mega Tour". Mega tour porque as visitas são normalmente de uma semana, no máximo, e esta era de 15 dias. Foi um momento de celebração em grande, em mega, por causa, precisamente, dos 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o fundador da nação. Entremos então nesse "país extraordinário", onde a separação entre a realidade e a ficção é uma linha marcada a régua, pelas mãos do poderoso departamento de Propaganda do regime agora chefiado por Kim Jong-un. A menina Kim guiou José Luís Peixoto, o escritor irá agora guiar-nos a nós. "Há uma encenação grande para quem visita, mas há uma encenação maior para quem está lá. Essa é que é a grande encenação ali. Porque aquelas pessoas vivem num país completamente fechado e é tarefa do Estado criar uma ideia sobre todo o mundo que existe lá fora, não é?"Essa tarefa obriga a que telemóveis fiquem na fronteira dentro de um saco de plástico (e em Pyongyang as chamadas para falar com os filhos, em Lisboa, custaram-lhe seis euros por minuto), tal como livros (transgrediu e levou o D. Quixote de La Mancha na bagagem) e outros objectos que possam veicular informação ocidental, num país onde apenas um grupo muito restrito tem acesso à Internet. "As pessoas não têm sequer noção do que é a realidade fora da Coreia do Norte. Por exemplo, não têm qualquer acesso a música que não seja aquela música, que é muito limitada [descreve no livro o género que celebra o regime, o Taejung kayo, em que as canções têm títulos como Iremos seguir-te para sempre; O general é nosso pai e Defenderemos o General Kim Jong-un com as nossas vidas]. Nasceram sem esse acesso e nem concebem que exista outro tipo de música. Nem concebem que existe outra realidade. "A carrinha dos visitantes estrangeiros atravessou o país: de Pyongyang à Zona Desmilitarizada (que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul, num corredor de alta tensão que atravessa toda a península coreana); de Kaesong (também no Sul), onde foi servida uma refeição pouco habitual ("Não é agradável roer ossos de cão"), a Hamhung (a segunda cidade do país) e Pujon, o ponto mais a norte do percurso. Passou ainda por Nampo para visitar a siderurgia Chollima, Sariwon e Wonsan. Pelo caminho formam-se imagens dos campos extensos, cultivados graças à mão-de-obra de centenas e centenas de pessoas agachadas, com pequenos utensílios. E de fábricas a cuspir fumo, com maquinaria pesada e a precisar ainda assim de trabalho humano duríssimo. "Aquela população está num tempo fora deste tempo", diz à revista 2. Realidade em forma de romance"É uma realidade que vem já quase com a forma de um romance, muito delimitada, com personagens-tipo muito caracterizadas: o militar, o guia, a criança pioneira", conta-nos o escritor. "Às vezes andamos numa aldeia do interior [de Portugal] e nem nos apercebemos dos elementos exteriores que ela recebeu. Na Coreia do Norte isso não acontece. Isso faz com que se viva sob uma realidade própria, estagnada. A ignorância do mundo ali sente-se em tudo. Todos os elementos foram pensados. . . Os melhores atletas da Coreia do Norte são os melhores atletas do mundo, porque a Coreia do Norte é tudo o que há. É muito pobre esse imaginário. Os elementos são sempre os mesmos. "A máquina é poderosa e mesmo os muito poucos que viajaram para o exterior não deixam de acreditar no seu Governo. José Luís Peixoto falou com guias que já tinham estado na Europa. "Algumas pessoas consideram que a Coreia do Norte é mais organizada, que existe uma vida melhor. Não sei até que ponto não se obrigam a elas próprias a ignorar uma quantidade de coisas que são a vida real daquele país. Mas é um facto que essas pessoas apontam algumas questões que são muito más, que existem na nossa sociedade e que não existem ali. Como as crianças ou as mulheres andarem sozinhas na rua, à noite, com medo de serem assaltadas ou agredidas sexualmente. Na Coreia do Norte não há essa possibilidade. As pessoas não têm esse medo. "Ali, há razões para fazer a apologia do regime: "A ignorância e a sobrevivência. Ninguém pode apontar o dedo a quem tenta sobreviver, a quem tenta que aqueles que ama sobrevivam. Isso é o que todos fazemos. " E assim como os norte-coreanos "tomam como absolutamente adquirido toda aquela informação que recebem pelas fontes do Estado e da propaganda, eu acho que nós, neste lado do mundo, também tomamos por garantido uma série de informação que recebemos e que se calhar não é tão garantida assim. Todos nós não podemos duvidar de tudo em todos os momentos. Temos de ter a segurança de acreditar em alguma coisa". São muitos os mecanismos de isolamento do "Reino Eremita". Não basta impedir a entrada de telefones ou rádios. O escritor conta-nos uma história. "Fomos aconselhados a dar um presente aos guias que falasse do nosso país. Eu levei duas garrafas de vinho do Porto. Mas avisaram-nos muito sobre as características que esse presente deveria ter: bebida, cigarros ou alguma coisa que se pudesse consumir. Houve um alemão que não sei bem o que é que deu, mas sei que o embrulhou em jornais alemães. No dia seguinte, os guias estavam completamente alterados e a devolver-lhe os jornais e a dizer para ele os levar porque eles não podiam aceitar aquilo. Os jornais, que eram o papel do embrulho. Eram jornais banais, mas esse tipo de coisas são muito ameaçadoras. "É a Propaganda que escolhe o que os norte-coreanos devem conhecer do exterior e por isso "não há verdadeiramente um conhecimento do que é o mundo fora dali. . . Quando existe alguma coisa estrangeira, é muito controlada e muito folclórica. Como, por exemplo, as danças russas. E diz-se às pessoas: "Isto é como eles se divertem na Rússia"". Sociedade militarizadaTambém é a Propaganda que escolhe o que os estrangeiros podem conhecer do país. A menina Kim, a guia desta Mega Tour, é praticamente a única voz norte-coreana do livro - sempre para lembrar os limites e as regras. Quase como se não fosse necessária outra, porque sabemos de antemão que as falas iriam ser, muito provavelmente, as mesmas - inventadas não pelo escritor, que neste livro foi fiel à realidade (já lá iremos), mas pelo regime para serem repetidas à exaustão. Museus, monumentos, locais sagrados (ou seja, relacionados com algum aspecto da vida dos grandes e queridos líderes), fábricas, montanhas e aldeias - tudo faz parte dessa grande narrativa chamada República Popular Democrática da Coreia, onde o questionamento, a existir, está totalmente silenciado. Por isso, talvez, também teve medo: quando no final, o guarda da fronteira quis ver as fotografias que tirou durante a viagem (". . . tive medo que o meu coração se ouvisse a bater", descreve) e quando no hotel Yanggakdo ("o melhor hotel de Pyongyang", com mais de mil quartos, segundo o folheto) o chamaram à recepção depois de um telefonema para Portugal. Afinal, era só uma camisola esquecida na cabine telefónica. É uma sociedade onde a ordem é uma palavra cheia e o Exército é omnipresente. "Vêem-se militares em todos os lugares, sempre, constantemente. Uma em cada cinco pessoas é militar. " É ameaçador? "Não, por ser tão presente. Eles estão muito mal apetrechados, a maior parte não tem qualquer espécie de arma, a única coisa que tem é o uniforme. Mas mesmo os civis muitas vezes se confundem com os militares pelas roupas: muitas vezes são muito próximas de um uniforme militar; e os militares também fazem muitos trabalhos civis. Na televisão há sempre a glorificação dos militares, mesmo as crianças que estão a saudar os militares quando eles passam no desfile, vê-se que elas aspiram a ser militares um dia. Não são uma força que seja sentida como opressiva pelas populações. Na verdade, essa opressão nunca se sente directamente. Nunca ninguém chama a atenção de ninguém sobre nada porque as pessoas entram nos museus a marchar, em filas organizadas. A própria movimentação das pessoas em todos os momentos é sempre muito alinhada. . . Estão sempre muito compostas. "Mais impressionante ainda é o culto cego da personalidade que se dedica aos chefes de Estado. "Tem uma repercussão no quotidiano em aspectos tão prosaicos para um visitante como a impossibilidade de dobrar um jornal com a imagem do líder, ou tirar fotografias onde fiquem cortadas algumas partes do corpo dos líderes. Têm de ser sempre fotografados de corpo inteiro", diz-nos José Luís Peixoto. "São aspectos que são de uma característica que ali é vivida de uma forma muito intensa: a absoluta impossibilidade de pôr minimamente em questão as capacidades e as qualidades sobre-humanas dos líderes. " E por líderes entenda-se a dinastia Kim, ou seja, Il-sung, o Eterno Líder, Jong-il, o Querido Líder, e agora o neto e filho, Jong-un, o Líder Supremo. O culto não se limita a inventar um milagre como o arco-íris duplo que apareceu no monte Paektu no dia em que Kim Jong-il nasceu. Nem aos retratos dos dirigentes, que são os únicos possíveis nas paredes de casa dos norte-coreanos. Ou às flores baptizadas com os seus nomes - "Cheirei as kimilsunguias e as kimjonguilias. Não cheiram a nada", lê-se no livro. Está em todos os momentos da vida pública - e privada - da população. Nos emblemas com as caras de Kim Il-sung ou (e) Kim Jong-il que têm de levar ao peito cada vez que saem de casa. "Não conheço religiões tão vividas como aquele culto. Não há nenhum escape. O culto aos líderes é total. "Como a sopa da mãeEm todo o caso, os movimentos de um ocidental não são tão controlados como o escritor previu. Ainda que a regra de não se poder andar sozinho na rua seja "de ferro, de pedra ou de qualquer outro material de rigidez sem apelo", escreveu. Tirou mais fotografias do que seria seguro e transportou sempre o D. Quixote de La Mancha. "O D. Quixote era um pouco como comer a sopa da minha mãe: encontro palavras que a minha mãe usa corrompidas. Para não falar de todos os paralelismos que é possível traçar: a encenação e a alucinação. É uma questão que colocamos a nós próprios - isto parece mesmo real. Mas a realidade é discutível. Depende muito dos sentidos e os sentidos não são nada objectivos. Dependem de coisas como bebermos a água choca do poço do Kim Il-sung" - que a guia assegurou que fortalecia o espírito, mas que ao escritor estragou algumas partes da viagem. "Esperava na verdade menos liberdade e menos contacto com as pessoas do que aquele que tive", continua. "Houve conversas interessantes (com os guias de museus, às vezes um ou outro falava inglês), que nem incluí no livro, sobre aspectos mais ligados à vida [quotidiana]: como conhecem alguém e se casam, ou sobre os rituais da morte, os funerais. Mas mesmo esse diálogo é muito oficial. A verdade é que se notava sempre a preocupação de não ficar mal na fotografia, sempre a preocupação de dizer que a Coreia é um país extraordinário, que as pessoas vivem muito bem. "Também não sentiu que houvesse ordens expressas para a população não se relacionar com os visitantes. Pôde emocionar-se com "o cuidado dispensado às crianças", lê-se. "Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional. "De volta à conversa em Lisboa: "O que eu senti é que há uma barreira enorme, que é a língua. Mas essa barreira existe na maioria dos países asiáticos. Depois, também existe o pouco hábito de contacto com os estrangeiros, o que faz com que os estrangeiros sejam muito olhados, olhados de uma forma que se sente que é curiosa e às vezes amedrontada. Mas também há uma coisa interessante: eu cheguei ontem da Índia, que é um lugar onde as mulheres têm às vezes aqueles brincos enormes, e todos aqueles adornos, e andava muita gente a ver-me as orelhas e os piercings e as tatuagens. Na Coreia do Norte, fui com camisolas de manga comprida e considerei tirar os piercings (embora não o tenha feito) porque achava que podia ser um motivo de mais estranheza e mais distância. Na verdade, cheguei lá e percebi que só o facto de ser estrangeiro já era distância suficiente. Não havia nada que fizesse com que essa distância fosse maior. Inclusivamente, havia pessoas que participaram nessa viagem que eram de outras raças, que à partida podiam causar uma estranheza maior, com tons de pele mais escuros, e isso não se notava. A estranheza era igual. E depois havia estranheza perante coisas que se calhar não tínhamos pensado, como por exemplo peso a mais. Qualquer pessoa com um pouco mais de peso era muito estranha ali porque na Coreia do Norte toda a gente é muito magra. . . [Os líderes] são um pouquinho anafados, mas na rua não se encontra uma única pessoa que tenha um pneu! Toda a gente é mesmo muito magra. Também se pode fazer todo o tipo de especulações acerca disso. A especulação de que a alimentação não é a melhor, na minha opinião, é justificada. Mesmo não andando atrás das pessoas a ver o que elas comem, dá para perceber que a alimentação é muito má. . . Existem carências grandes. "Logo no início do seu relato, José Luís Peixoto escreve que "talvez a decisão de visitar a Coreia do Norte tenha nascido do desejo de estar num lugar onde nenhuma pessoa tivesse a minha aparência. Ou talvez não". No fim, foi precisamente isso que o extenuou. Assistiu ao fogo-de-artifício das celebrações do aniversário de Kim Il-sung, a 150 metros de distância das outras pessoas do seu grupo, sentindo-se um "norte-coreano": "Depois de ser tão apontado e de me sentir tão estranho, sempre tão diferente, tive ali um descanso. Aquele alívio de por um momento não ser notado foi tão grande que senti que voltei a ser uma pessoa como as outras, que eram as que me estavam a rodear e que eram norte-coreanas", explica-nos. Nota-se esse cansaço. José Luís Peixoto assume-o. "Tinha uma epifania quase diária: estou na Coreia do Norte!. . . A primeira metade, vivia-a com grande entusiasmo, a segunda como uma condenação. Foi curioso que a partir de certa altura o objectivo de liberdade se tornasse a China [a ponte para chegar e partir da Coreia do Norte]. Ansiava por poder andar sem ter alguém atrás de mim, escolher o que ia comer, telefonar a quem eu quisesse, mandar mensagens. Sentia saudades de coisas como a publicidade. "Mais perto do jornalismoComo já dissemos: José Luís Peixoto ainda não tinha deixado a Coreia do Norte e já começara a escrever Dentro do Segredo - continuou depois em jornadas de trabalho de 15 horas no Brasil, EUA, Macau; e enviou o livro à editora a partir de Toronto (Canadá). Tinha feito várias leituras antes, tirado muitas notas durante. E desta vez, pela primeira vez, a sua escrita recorreu-se de outros elementos. "As fotografias e os pequenos vídeos que fui fazendo foram muitíssimo úteis" - "uma forma de tirar apontamentos", diz. Porque precisava de ter a certeza de que tudo o que estava a escrever correspondia ao que tinha visto. Porque sentiu a necessidade de se "aproximar do jornalismo", sobretudo da crónica. "Foi uma experiência diferente, que me deu um trabalho diferente de escrita. Se digo que o comboio era de uma determinada cor, ele era mesmo dessa cor. Num romance posso dizer que o comboio é azul porque na verdade não existe comboio. "Talvez o surrealismo deste país dispense a ficção. Ou talvez esta ainda não esteja totalmente afastada. "Posso algum dia tentar fazer. " Por enquanto, a realidade que estava à frente dos seus olhos pedia outra coisa. "Era muito importante que o texto tivesse um carácter documental, sério. Pelo tema e por aquilo que me propunha retratar. . . Nunca se tem completamente a noção do que é a verdade e do que está realmente a acontecer, porque existem versões antagónicas, e ambas às vezes parecem falhar, num ponto ou noutro. Quando colocamos alguma coisa em causa, depois sentimos a tentação de colocar tudo em causa. Por isso, muitas vezes sinto que aquela história não está completamente bem contada. A minha tentativa foi de a contar, mas apercebi-me claramente de que não estava a contar a história final e que certamente haveria muitos equívocos da minha parte. " "Não tive acesso a informação que permitisse acrescentar alguma coisa, mas senti que não havia esse livro: como é estar lá? Foi isso que me levou à Coreia do Norte. "Houve outras. "A necessidade de me afastar de mim próprio enquanto tema" para falar de uma realidade exterior. Em todo o caso, usa a primeira pessoa. Talvez nem fizesse sentido ser de outra maneira, num local onde o confronto com o outro, que passa a ser o estrangeiro, visitado pelo leitor, é tão brutal. "Também é cansativo esse confronto. Não há fuga. "A escrita também saiu do seu processo habitual porque foi espoletada pela viagem, sabendo de antemão que era isso mesmo que iria acontecer. "Vivia aquela experiência de estar lá sabendo que iria escrever sobre ela, e quando voltei, escrevi. O livro foi surgindo, mas eu tinha a intenção à partida de escrever sobre a Coreia do Norte. "Dentro do Segredo será apenas um pequeno fragmento de uma realidade para a qual não existe uma só verdade. "Eu tenho uma vivência desse país que é muito intensa e muito importante para mim, marcante, e que está expressa no livro. No entanto, não é a única, e tenho a certeza de que há muitas histórias para contar e por contar. É um país absolutamente fascinante, apesar de toda a crueldade que encerra e que me parece que é muito evidente. "No final, o escritor dirige-se a um futuro e hipotético leitor norte-coreano. Em coreano. Tradução, por favor: "Digo-lhe que aquilo que ali está é aquilo que eu pude saber neste momento e que ele está numa posição, sob um certo ponto de vista, privilegiada para saber algumas coisas mais do que eu. Mas sob outro ponto de vista, vai ter um conhecimento diferente do meu. " Ou seja, o escritor que visitou a Coreia do Norte em Abril de 2012 ajudará a completar a imagem. "Essa questão pode ser transposta para aqui, para este preciso momento: nós não temos distanciamento para fazer um retrato completo desta sociedade, onde a informação circula de forma diferente e onde às vezes nos parece que temos informação a mais, porque a [falta de] distância não nos permite ter uma perspectiva. Daqui a 50 anos possivelmente vamos ter essa perspectiva, mas vai-nos faltar o cheiro, o contacto directo dos sentidos. Neste livro, em muitos momentos, tenho a preocupação de dizer que foi assim em 2012; não porque eu ache que ele vai ser lido daqui a séculos, mas porque acredito que é um livro marcado no tempo e daqui a dez anos a situação naquele país vai ser certamente diferente, aquilo que se vai saber vai ser certamente diferente, e vamo-nos surpreender com isso. "Também nos iremos surpreender com aquilo que está para vir de viagens futuras, assegurou. "A obra total de um autor pode ser comparada a uma obra mesmo, a uma construção. Este livro abriu uma nova ala. Tenho a intenção de escrever outros livros de viagem. As crónicas [que escreve para a revista Visão] têm sido importantes. Necessariamente torno-me uma personagem. A partir deste livro, o eu já está caracterizado. "Texto publicado na Revista 2 de 18 de Novembro de 2012
REFERÊNCIAS:
A última exposição em vida de Ren Hang
Em plena eclosão criativa e mediática, o fotógrafo chinês Ren Hang morreu prematuramente. Censurado pelas autoridades do seu país, foi no exterior que criou culto com imagens que celebravam uma sexualidade livre. Em Amesterdão, no museu FOAM, está patente a sua última exposição. (...)

A última exposição em vida de Ren Hang
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 5 Homossexuais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-03-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em plena eclosão criativa e mediática, o fotógrafo chinês Ren Hang morreu prematuramente. Censurado pelas autoridades do seu país, foi no exterior que criou culto com imagens que celebravam uma sexualidade livre. Em Amesterdão, no museu FOAM, está patente a sua última exposição.
TEXTO: Encontrava-se naquele momento do seu percurso em que era nítido que ia explodir artisticamente. Não que o fotógrafo chinês Ren Hang (1987- 2017) fosse um desconhecido. Mas dir-se-ia que 2017 tinha tudo para ser o ano da consagração. Os meios de comunicação falavam dele assiduamente pelas fotos onde celebrava uma sexualidade livre, desprovida de convenções, com jovens nus interagindo com animais ou objectos do quotidiano. No mundo da arte era celebrado mas também na moda e na cultura pop lhe prestavam atenção. A editora Taschen havia publicado há semanas um volume dedicado à sua obra, algo que não é muito comum para um jovem artista de 29 anos. E em Janeiro o influente museu FOAM de Amesterdão havia inaugurado a exposição Naked, que estará ali patente até 12 de Março. E de repente, a 24 de Fevereiro, soube-se que havia morrido. A um mês de completar 30 anos, em Berlim, onde se encontrava em trabalho, suicidou-se atirando-se do vigésimo oitavo andar de um prédio. A notícia deixou o mundo da arte perplexa, como aconteceu com o compatriota Ai Weiwei, um dos artistas vivos mais influentes, que o apadrinhou. Sabia-se que sofria de depressão. Falava disso com candura, em curtas anotações, onde expunha obsessões e crises existenciais nas plataformas da Internet ou nas redes sociais. “Todos os anos tenho o mesmo desejo: morrer cedo. Espero que isso seja verdade este ano”, escreveu em Janeiro na rede social Weibo. A editora Taschen enviou, antes da sua morte, uma nota de imprensa que o descrevia assim: “É um rebelde atípico, magro, tímido por natureza e propenso a episódios de depressão. ”Tinha imensos seguidores. E a sua morte prematura poderá muito bem gerar um efeito de maior interesse pelo trabalho que deixou. Há dias uma massa de pessoas fazia uma fila para entrar no museu FOAM, em Amesterdão, apesar da chuva. Lá dentro, um espaço labiríntico, magnificamente concebido, acolhe várias exposições de fotografia, como a do japonês Hiroshi Sugimoto, mas a que desperta o maior interesse é a de Ren Hang, disposta num espaço que parece uma pequena biblioteca, com fotos de jovens nus, com gansos, serpentes, peixes ou flores, rodeadas por livros. Existe qualquer coisa de surrealista no que os nossos olhos vislumbram, mas também de experiência poética. Existe quem se demore a fixar algumas das fotos mais icónicas e até quem deixe tulipas debaixo delas, forma de homenagear o artista naquela que acaba por ser a última exposição que concebeu em vida, a par de outra exposição que está em Estocolmo no museu Fotografiska. Nas suas fotos, as raparigas têm invariavelmente a pele branca, o cabelo preto e os lábios pintados de vermelho. Poder-se-ia pensar em encenação, mas ele foi dizendo sempre que as suas sofisticadas composições correspondiam ao sabor do momento. Não havia um ideário estético definido. Mas a verdade é que a intersecção entre corpos nus, animais e os diversos espaços – o telhado de um edifício, um lago, uma floresta ou uma impessoal banheira – acabam por criar o mesmo tipo de ambiente, projectando ideias de juventude, liberdade, idílio ou romance. Nas suas composições de corpos na floresta ou na montanha e nos seus estudos das formas masculinas e femininas, não existem leituras de cariz político ou sexual, mas há nas suas imagens desejo de rebelião. Parece não haver um antes e um depois. Apenas aquele momento. Os protagonistas, as paisagens melancólicas, a natureza e o corpo humano adoptando formas esculturais. “Não creio que a nudez seja desafiante – é algo comum a todas as pessoas”, dizia há dois anos. “Gosto de pessoas nuas e gosto de sexo”, acrescentava. “Utilizo apenas a nudez pelo realismo e sentido de presença. ”Também escrevia poemas. E tal como nas fotos os temas andavam em torno da sexualidade, da identidade, do corpo, bem como do amor e da morte. Preferia fotografar amigos do que modelos profissionais, argumentando que isso lhe dava maior liberdade nas composições, que nem sempre eram as mais ortodoxas, com corpos por vezes em posições desconfortáveis. Na China, os seus livros não eram publicados. Foi preso várias vezes. Viu exposições suas serem censuradas e blogues da sua autoria serem encerrados pelas autoridades chinesas. Não viam com bons olhos o “conteúdo sexual” das suas fotos. “As ideias políticas das minhas imagens não têm absolutamente nada que ver com a China”, defendia-se ele, recusando a ideia de que faria arte politizada, ao mesmo tempo que afirmava: “[É] a política chinesa que se empenha em criar obstáculos ao meu trabalho. ”Nasceu a 30 de Março de 1987, em Jilin, na província chinesa de Changchum e aprendeu a fotografar sozinho enquanto estudava Publicidade na faculdade. Desde os 17 anos que residia em Pequim, sabendo que ali o seu trabalho nunca seria validado. Era no exterior que as suas imagens eram enaltecidas. Ao longo de cinco anos concretizou 20 exposições individuais e participou em 70 colectivas em países como os EUA, França, Israel ou Portugal (na galeria Barbados de Lisboa), ao mesmo tempo que viu serem publicadas várias edições monográficas do seu trabalho. Mas esse reconhecimento que foi crescente nunca o tranquilizou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não era apenas o mundo interior que o conflituava. Os acontecimentos políticos globais também. “O êxito? Não sei o que significa”, dizia recentemente, acrescentando que “gostava que a vida corresse sem sobressaltos, suavemente”. Os seus desejos não se cumpriram. Depois de uma trajectória meteórica que o levou a obter o reconhecimento do mundo da arte, da indústria editorial, do universo da moda e da cultura pop – chegou a colaborar com o cantor Frank Ocean na fanzine Boys Don’t Cry –, deu-se a sua morte prematura, em plena eclosão criativa e mediática. Em Amesterdão está patente a sua última exposição em vida, mas tudo indica que ainda iremos ouvir falar muito dele nos próximos anos. A sua obra visual impactante e a sua morte prematura podem muito bem servir para o nascimento de uma lenda contemporânea.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Hermès e o novo homem
Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem. (...)

Hermès e o novo homem
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.136
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Do coração da maison francesa temos vista para o que há de mais especial na moda masculina actual: produtos por medida, exclusividade, mas também para um novo mundo. O da emancipação fashion do homem.
TEXTO: Há uma caneta de ponta fina a aproximar-se de um dos preciosos lenços carré da Hermès. Cai sobre a seda tingida à mão e, sem hesitações, risca-a. Está feito. Um peso de metal mantém a vítima hirta para o próximo passo. Ludovic desenha uma linha, cingido à régua, e define o ponto de corte. As mãos experientes do costureiro da Hermès procuram agora a tesoura. Corta, a olho, entre as panteras desenhadas no carré. É um aparente sacrilégio, este ataque a uma das mais emblemáticas peças da maison francesa. Mas na verdade este risco, e este corte, simbolizam a Hermès. E em parte a viragem actual na moda masculina. Tudo isto acontece numa sala dos Ateliers Hermès, num de vários edifícios da casa de luxo que ocupam quase um quarteirão da comuna de Pantin. Ficam tão perto do Parc de la Villette que não parece que estamos para lá da fronteira oficial de Paris. Mas, como se prova na sala onde funciona o atelier de camisas à medida, ultrapassar limites não é coisa rara na Hermès. Num desses prédios, branco e indistinto, estão Ludovic, Liliane, Pierre, Sabine, Sophie ou Nadia — alguns dos 11 nomes de bastidores que criam obras únicas para clientes únicos num atelier que partiu de uma ideia de Véronique Nichanian, uma das únicas mulheres a dirigir linhas masculinas ao mais alto nível da moda parisiense. Homens de todo o mundo — e, por vezes, também mulheres, mas lá iremos — escolhem colarinhos, punhos, tecidos ou lenços, botões e suas casas para terem uma camisa perfeita e só sua. Transformam-se peças clássicas em camisas sérias ou em peças extravagantes para homens que têm o estilo como prioridade — e eles são cada vez mais, sobretudo nas grandes cidades do Ocidente e do Oriente. É um serviço procurado em todo o mundo mas que só está disponível a partir de 11 das lojas Hermès no globo. A mais próxima de um cliente português é mesmo a do centro de Paris, onde iremos a seguir nesta curta viagem pelo longo caminho que a moda masculina fez nos últimos anos. Vivemos um momento em que se fala de “menaissance”, a junção dos termos ingleses para “homens” e “renascimento”. A moda de homem está a crescer, ou mesmo a renascer, pulsante, e o interesse sobre ela também. Eles compram mais, os designers desenham mais para homem, as grandes marcas abrem lojas só para eles, a imprensa dedica-se-lhes, os blogues multiplicam-se e as maisons clássicas posicionam-se com a segurança de jogar em casa num mercado que há muito conhecem. A Hermès, fundada em 1837 e que se mantém maioritariamente familiar, é conhecida pelas raras malas Birkin, pelos lenços carré, pelos perfumes, relógios e pela moda desenhada no passado recente por nomes como o exuberante Jean Paul Gaultier ou o discretíssimo Martin Margiela. Mas também por estes serviços customizados, à medida, só para eles. “Há muitos anos tinha muitos actores, gente do cinema, cantores que me pediam para desenhar coisas únicas e especiais. Algo que fiz”, conta à Revista 2 Véronique Nichanian, que tem um cargo com um título de peso estratosférico — é a directora artística do universo masculino da Hermès e está há mais de 25 anos nesta maison que começou como uma casa de arreios para carruagens. “E um dia disse a mim mesma que seria muito interessante fazê-lo também para um senhor não conhecido mas que tinha anseios, sonhos — e meios”, reconhece. “Criei os ateliers de camisas, de malhas, de pele, para realizar encomendas especiais e excepcionais. São as encomendas particulares — o luxo está aí. Não é só poder pagar, é poder fazer coisas únicas. ”O seu quarto de século na moda masculina da Hermès — “reivindico-o”, ri-se —, nada comum em cargos que tendem a ser tão efémeros quanto as chamadas “tendências”, dá-lhe um posto de observação especial sobre a masculinidade. “O meu trabalho é como um estudo sociológico, é a evolução dos homens, dos seus desejos”, explica na sala no topo do edifício de esquina da Rue do Faubourg de Saint Honoré. “Em 20 anos, vi os homens mudar, refinar-se, sofisticar-se no bom sentido do termo — sem preciosismo. A dar mais atenção a coisas essenciais na escolha do vestuário que constituam a sua maneira de ser, que signifiquem algo e não uma vida social, uma posição social. E não só no mundo profissional, mas em geral. Estão talvez mais atentos ao seu corpo, ao seu físico. Usam cor ou peças diferentes, vejo um misturar de coisas que são do sportswear e acho isso muito estimulante porque me interesso muito pela inovação, pelas novas tecnologias e novas fibras. ”Formada em Paris e com um percurso que começou no masculino italiano da Cerruti, chegou à Hermès como directora artística do pronto-a-vestir masculino em 1988. A pesquisa de materiais é um dos seus traços distintivos. Acredita que, da borracha ao neoprene passando pelo papel, “é um terreno de experimentação sem fim e que tem ainda muitas, muitas coisas a dizer aos homens”. No seu escritório, com as paredes brancas e luz natural, há grandes boiões de vidro, como os das antigas farmácias, cheios de mechas de tecidos coloridos. Uma parede junto à secretária assume “Je Suis Charlie” num papel afixado entre amostras de tecido, papéis ou coisas “ternas e inspiradoras”. Uma jarra transborda de frésias brancas frescas. Fala do homem desafiante que é o cliente Hermès, impossível de definir numa só descrição, e da aliança entre os valores “ancestrais da marca com a modernidade, inovação, novos fios têxteis, novas tecnologias e novos tecidos” numa “mistura que se parece com a mescla da sociedade de hoje, de cores de pele, etnias, culturas diferentes”. A paisagem social mudou, o homem mudou e depois tudo passa à costura e aos ateliers. O serviço sur-mesure das camisas e fatos Hermès remonta a 1991 mas, em sintonia com a sofisticação e emancipação do gosto masculino aliado ao aumento da procura, foi muito mais recentemente, em 2011, que passou a estar disponível para todo o vestuário masculino da marca, explica à Revista 2 a coordenadora do Atelier des Chemises, Wedad Arfa. Em 1998, a moda masculina representava 38% do mercado total de vestuário; em 2013, o número subiu para os 42%, segundo a consultora internacional Euromonitor. “Historicamente, a moda tem sido o domínio da roupa feminina”, atesta Dylan Jones, editor da GQ britânica, ao site de referência Business of Fashion. O ritmo das colecções e tendências no mercado masculino era mais lento, as “mudanças muito conservadoras” e tudo parecia uma espécie de segunda liga, prossegue Jones, que também é o presidente da semana de moda London Collections: Men, fundada apenas em 2012 apesar da ligação histórica de Londres à alfaiataria. O english gentleman veste-se há séculos em Saville Row, mas o mercado só agora se agitou o suficiente para lhe criar uma montra oficial. Ainda mais fresca é a New York Fashion Week: Men’s, nascida em Abril para acompanhar as cidades-epicentro do sector — Milão e Paris. Nos últimos dois anos, o crescimento continuou. As vendas mundiais de roupa de homem aumentaram 4, 1%, valendo 91 mil milhões de euros. É um número que tem de ser lido a par dos do gigante feminino — a roupa para mulher vende sempre mais, segundo a consultora Euromonitor, mas cresce menos. No mesmo período, cresceu 2, 8% para um valor de 134 mil milhões de euros. Olhando mais para a frente, a força do mercado de moda de homem não deve parar: espera-se que nos próximos dois anos aumente 8, 3% e que o seu valor atinja os 98 mil milhões de euros em vendas. “O crescimento futuro deve ser conduzido pela Ásia-Pacífico”, diz Magdalena Kondej, da Euromonitor. No atelier de camisas da Hermès, essa segmentação é visível na duplicação do número de pessoas da equipa nos últimos anos e nos armários que pontuam a sala branca de janelas altas e vidros foscos. No meio da austeridade laboratorial das mesas de trabalho há um armário para os clientes japoneses e franceses, outro para americanos, chineses e para Hong Kong, ainda um outro para o Dubai. Tanaka. Fan. Guillaume. Yamamoto. São os arquivos por apelido onde se guardam os dossiers de todos os clientes, explica-nos Wedad Arfa, mensurados a partir de uma primeira marcação. Naquelas pastas está tudo sobre a sua vida Hermès e, em parte, sobre a sua morfologia. Todas as medidas e também todas as encomendas, para facilitar não só a recuperação de uma velha compra mas também a coordenação de uma nova — se monsieur já tem há anos a camisa xis, o futuro fato poderá ser da cor ípsilon. Nessas “consultas” são registadas 13 medidas diferentes do cliente, tantas quantos os diferentes punhos disponíveis (só colarinhos há 14). Botões exclusivos que desenham em linha um H de Hermès, com ou sem monograma bordado à mão, 1500 tecidos franceses ou italianos à escolha. Pedaços desses tecidos são guardados na pastinha do cliente durante dez anos para que se possam reparar os colarinhos ou os punhos, mais expostos à passagem do tempo. Como os homens são consumidores de maratona, as peças querem-se duráveis, com potencial de herança, que possam “atravessar o tempo”, como poetiza Véronique Nichanian. “Um bom pullover que se guarda durante anos, um blusão de pele que se conserva. Um amigo disse-me um dia: ‘Tu és uma abrandadora do tempo. ’ É um dos mais belos elogios que me fizeram e procuro inscrever de facto um outro tempo” na moda — um tempo contemplativo e resistente. O processo demora meses — uma a duas semanas para criar a tela-molde, depois quatro a seis semanas para terminar a camisa de algodão ou seis a oito semanas para finalizar uma de seda, mais uma a três semanas para a entrega ao cliente em qualquer parte do mundo. Pelo meio há provas, lavagens para que a camisa nunca, nunca se altere, ou medições minuciosas. Nadia mede uma camisa que parece estar pronta e aponta numa ficha as distâncias em milímetros entre costuras e punhos, por exemplo. Noutra mesa cosem-se as margens das casas dos botões, abertas à mão por um cinzel que golpeia de uma vez só um virginal tecido branco. Noutro posto de controlo, um fio azul está a mais na trama alva de algodão. Uma pinça ou alfinete retira-o de cena. Tudo isto parece anacrónico na era da moda rápida e da reprodução instantânea. “Na Hermès temos um tempo diferente”, frisa Véronique Nichanian. “O luxo está aí. O tempo de fazer bem as coisas para construir um saco, uma mala de viagem, um lenço de primeira qualidade, uma peça de vestuário — a partir do momento da escolha do fio têxtil, da tecedura, do desenho do tecido para realizar essa peça levo tempo para fazer exactamente o que sonho para a Hermès. ”Pierre costura à máquina um colarinho, ponto a ponto e tão lentamente que a habitual canção mecânica martelada das máquinas de costura não se ouve. É um dos raríssimos momentos em que há algo automático envolvido na confecção orgulhosamente artesanal. Nem são usados computadores. O resultado final e a vontade e possibilidade de obter estes produtos alinham-se com os seus preços. Ludovic continua de volta dos carré que serão uma camisa felina, estuda alinhamentos — as costas do animal vão ficar nas mangas. Há sete anos na marca, amanhã poderá fazer outra coisa qualquer no atelier. Pede-se-lhes “muita versatilidade”, explica Wedad Arfa. São dez ou 12 horas para fazer uma camisa de algodão, ou 17 horas se for uma camisa de seda. Uma camisa simples custará cerca de 590 euros, uma de seda pode custar entre 800 e mil euros, a que acresce o preço dos cinco carré usados para a fazer (cada um com preços a partir dos cerca de 250 euros). “Excepcionalmente, para os bons clientes”, diz Arfa, “há mulheres que têm camisas sur-mesure Hermès”. “As que vêem as camisas dos maridos”, exemplifica, notando o caso recente de “um casal que escolheu os mesmos carré” para camisas a condizer. A própria Véronique Nichanian recebe-nos no centro de Paris com as suas sandálias e calças cigarrette pretas e uma camisa de seda com tons verdes e brancos. Tudo “à moi”. Como quem diz: peças que desenhou para as colecções de homem. “Visto-me quase essencialmente em versões mini das minhas criações. Eles sabem o meu tamanho”, sorri. Os peritos e quem trabalha no sector — e mesmo o consumidor mais distraído que nota apenas que o espaço para homem nas lojas de moda rápida aumentou — identificam uma espécie de “oscilação cultural” que fez com que mais homens invistam na sua aparência. Fala-se do advento do metrossexual há quase duas décadas, da influência de séries de TV elegantes como Mad Men, do contágio das redes sociais, de blogues como o Sartorialist, das políticas de género cada vez mais variadas, abertas e miscigenadas. E de millennials, os nascidos entre finais de 1980 e inícios de 2000, uma geração flexível que se destaca em trabalhos criativos ou nas empresas tecnológicas e que não vive vidas binárias lazer/trabalho. As consultoras dizem que eles, os “yummy” — o acrónimo brincalhão de “young urban male” — gastam muito mais com roupa, e em roupa com estilo. É tudo “muito mais interessante do que quando existia o ditado de fatos clássicos durante a semana, jeans para o fim-de-semana. Esta forma de fazer zapping no vestuário para ter uma identidade própria, e uma mensagem, é apaixonante”, entusiasma-se Véronique Nichanian. Que, para o stylist português João Pombeiro, se vê na silhueta e nas peças, que também já não são assim tão binárias, e que alimentaram em parte esta emancipação fashion do homem. Skinny jeans, casacos de pele de motoqueiro, camisas compridas. São peças unissexo, tal como certas silhuetas mais soltas, como as praticadas pelos portugueses Marques’Almeida, que se prestam para o menino e para a menina. “Tivemos homens a comprar os nossos vestidos-T-shirt para usar como uma T-shirt. E os nossos calções para mulher eram bastante boyish”, disse à Revista 2 em Junho Paulo Almeida. Pombeiro, ex-bailarino clássico, é responsável pela construção dos looks de várias actrizes portuguesas, faz styling para produções de moda em revistas como a Edit ou a Bless ou para campanhas de criadores como Luís Carvalho e Nuno Baltazar. Há qualquer coisa de rock’n’roll nas suas inspirações, mas quando é preciso citar influências ou ícones de moda de homem no momento fala do omnipresente rapper Kanye West — conhecido também por desenhar moda ou por usar peças da feminina e respeitadíssima Céline —, ou no blogger espanhol Pelayo — muito ligado à moda. “Os homens são apaixonantes porque, ao contrário das mulheres, demos-lhe menos frequentemente a palavra [na moda]”, sublinha Véronique Nichanian. “E desde há quatro ou cinco anos as revistas masculinas — na verdade todas as revistas — falam dos homens, dão-lhes a palavra e eles descobriram que é esperado deles que tenham necessidade de uma vestimenta, que anseiem por roupa, que se vistam por desejo. Intelectualmente libertou-se um novo estado de celebração, uma nova atitude masculina. Mais feliz. ”Wonder Magazine, V Man, Modern Men, Fashion For Man, Another Man. Dapper Dan, Grind, 10 Men, A Man About Town ou Port Magazine, enumeramos com o blogger português João Jacinto, que acredita que há um elemento de “revolução social e sexual” nesta agitação da moda masculina. “Há muitos homens a viver sozinhos, há uma certa independência do homem em relação às escolhas da mulher, da gravata que ela compra para ele”, exemplifica. “Gay ou hetero, as marcas diversificam os seus targets, identificando esse consumidor”, diz João Jacinto, embora Pombeiro acredite que o público gay tem mais poder de compra e, por vezes, um olhar mais arrojado para peças especiais. As revistas masculinas de estilo que nos últimos anos enchem as bancas tanto são sintoma de um mercado inflamado quanto o influenciam. Este mês regressou a edição portuguesa da GQ, numa parceria entre a casa-mãe, a Condé Nast, e a editora Light House. O New York Times inaugurou em Abril a secção de Men’s Style, o cada vez mais importante site Business of Fashion criou um espaço só para o menswear e a semestral Fantastic Man continua numa espécie de pedestal mundo fora. Esta publicação holandesa é, para um dos mais influentes e frescos designers de menswear actuais, o irlandês Jonathan Anderson, “causadora de uma viragem no mercado editorial e no menswear”. “É possível ver a influência deles a coincidir com a [maior e nova] importância do menswear na indústria da moda”, disse o designer, que fez a capa mais recente, ao New York Times sobre a revista, que se destaca pelas entrevistas, fotografia e grafismo. O que lá aparece ou a forma como é apresentado tende a surgir em novos sites de venda de moda de alta gama. A Hermès, por seu turno, lançou a 8 deste mês o MANifeste, um novo site para todo o universo masculino com listas e “castelos na areia”, nas palavras de Nichanian, para chegar “com humor” e muito jogo “aos homens que talvez não tenham o tempo ou sintam timidez de vir às lojas Hermès”, mas também a “pessoas que estão longe das lojas” — é o luxo de homem a chegar-se às compras online. A tecnologia também se cinge ao pulso: em Outubro chega um novo Apple Watch Hermés. A moda feminina parece o emprego expectável para um designer que termina a sua formação. Há mais marcas, mais emprego, mais variedade. Mas talvez também mais saturação. Fazem-se mais colecções por ano (as estações intermédias de resort e pre-Fall ainda não se aplicam ao menswear), sente-se uma “autofagia” criativa, como identifica o blogger português João Jacinto, que em Janeiro de 2013 criou o Gentleman’s Journal, em contraste com “o refresh na moda masculina” nas ideias. Um sector que, para o crítico de moda Alexander Fury, “está a gerar talentos que verdadeiramente questionam o statu quo”, como escreveu na revista T do New York Times há um ano, citando novamente Jonathan Anderson, Rick Owens ou Craig Green. E alguns dos maiores nomes da moda autoral actual vêm do menswear — de Raf Simons (Dior) a Hedi Slimane (Saint Laurent). Véronique Nichanian deu por si a trabalhar em moda masculina “por acaso. E sinto-me muito afortunada”. A moda feminina “é outra coisa. Nunca fiz, talvez a faça, talvez nunca a faça”. Quando foi convidada por Jean-Louis Dumas, que presidiu à Hermès entre 1978 e 2006 (morreu em 2010), Dumas disse a Nichanian: “Tens carta branca. ” “Um sonho”, ri-se, de que ainda não despertou. “A moda masculina ainda me diverte mais. ”O mundo em que trabalha é vasto. A caminho do jardim no terraço do edifício, para onde raramente consegue fugir, espreitamos o atelier onde se fazem as muito cobiçadas selas de cavalos da Hermès, por exemplo. A francesa franzina de olhos esverdeados descreve-se como “exigente”. Quer e precisa — e são os verbos que usa — “que tudo seja perfeito” até num email que troque internamente com a sua equipa. Coordena e desenha com o estúdio que desenvolve as colecções de pronto-a-vestir, está em diálogo constante com a divisão de sapatos encabeçada por Pierre Hardy, sabe o que se passa nas sedas, nas peles. É para lá que vamos a seguir, de regresso a Pantin e aos arredores de Paris, para o atelier dedicado às peles num novo edifício Hermès recheado com pátios verdes e ensolarados. Se há matéria-prima imediatamente associada à Hermès, é a pele, a das it bags tão difíceis de comprar que geram listas de espera de anos ou filas serpenteantes nas lojas e as usadas no universo equestre que continua a simbolizar a marca parisiense. O coordenador do atelier de menswear e leatherwear é contagiantemente entusiástico — um embaixador do cool na casa do clássico. Cyril Brandenburg desdobra rolos de peles, costuradas e coloridas, encantado mesmo com o que já conhece. Mostra três cores distintas de pele de cobra — branco, cinzento e vermelho — unidas numa peça que viria a ser um casaco e com um tratamento que lhes dá a suavidade de papel de seda. Amassa-a, arrepanha-a, e ela volta sempre à forma inicial. Foi para a passerelle em Junho. Ali, ouve-se o ruído de metal a roçar no metal, para afiar as peças usadas para cortar um blusão — trabalho que demora 1h30 ou duas horas. Parece tudo mais rápido do que na camisas, mas não é. Aqui faz-se a investigação e desenvolvimento das colecções de pronto-a-vestir, entre 20 e 30 peças por estação, mas também se fazem peças à medida. E “80% do tempo é passado a estudar as peles”. Depois é “ajustar o gesto”, explica o jovem especialista em modelagem, e passar mais de uma hora só a cortar. Gira pela sala carregada — de peles, de cores mais escuras, de maquinaria mais pesada. Entre elas, uma peça tosca com cabo de madeira e metal aguçado na ponta. Tem um ar improvisado. “Estamos em 2015 e ainda trabalhamos com ferramentas assim, que parecem saídas da Guerra dos Tronos”, ri-se sobre as peças velhinhas que se herdam nos ateliers da Hermès e que não têm rival na sua eficácia. Eric faz os moldes, “é o arquitecto da peça, quem lhe dá verdadeiramente vida”. Francis trabalha na cor das peles. Augustin é um dos costureiros. Os martelos açoitam a pele para alisar uma costura. Um camisolão cinzento de pele com bordados de lã relaxa num cabide, como que a ponderar se vai para um vídeo de hip hop ou para uma estância alpina. “Gosto que arrisquemos, que arrojemos na cor, nos padrões. Não é uma casa velha. Tem idade e é uma casa antiga, mas atreve-se”, solta Brandenburg. De dentro de um saco protector macio sai um blusão cinzento-rato com o interior gravado. Na etiqueta lê-se a sua identidade — “Hermès, commande particulière”. O seu futuro dono vai ser o único no mundo com uma peça assim. “O peso, o conforto” das peças “são grandes preocupações” — e destrinça, sobre algo que para ele não é efémero, nem descartável — “porque fazemos menswear, não é bem ‘moda’”. O PÚBLICO viajou a convite da HermèsSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS: