As vidas trocadas de quatro gémeos
O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido. (...)

As vidas trocadas de quatro gémeos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O que acontece quando dois pares de gémeos idênticos descobrem que foram trocados na maternidade — e imaginam o que as suas vidas poderiam ter sido.
TEXTO: Era uma tarde de sábado no Verão de 2013. Janeth Páez e Laura Vega Garzón queriam comprar costeletas de porco para um churrasco. Janeth sugeriu que passassem por um supermercado no Norte de Bogotá, não muito longe do sítio onde a amiga vivia. William, primo do seu namorado e um rapaz muito simpático com um forte sotaque rural, trabalhava lá e era perito a cortar os bifes e pés de porco que os fregueses gostavam de cozer com feijão. Janeth tinha a certeza de que conseguiriam um bom desconto nas costeletas. Quando Laura chegou à secção de carnes, enquanto punha a conversa em dia com Janeth, ficou surpreendida por ver uma pessoa conhecida. Atrás do balcão estava um colega da empresa de engenharia onde trabalhava, a Strycon. Acenou efusivamente, mas ele mal deu por ela. “É o Jorge!”, disse Laura. “Trabalha lá no escritório. ” Jorge era um rapaz de 24 anos, muito popular na empresa, que desenhava tubos de transporte de petróleo e que trabalhava alguns pisos acima do escritório dela. Ficou surpreendida por o ver ali, a atender os fregueses. “Não é, não. É o William”, disse Janeth. William trabalhava arduamente e raras vezes deixava o balcão; só saía dali para ir dormir e seguramente não era empregado da Strycon. “É o Jorge, eu conheço-o”, insistiu Laura. Mas ele não lhe sorria de volta, o que era estranho. Passados alguns instantes, saiu de trás do balcão para um cumprimento rápido, abraçando Janeth, que o apresentou a Laura como William. Laura estava perplexa. Porque é que Jorge fingia ser outra pessoa? Talvez, pensou, tivesse vergonha de ter sido apanhado a fazer um biscate, com o avental ensanguentado e o boné branco de talhante. Janeth insistia que a amiga estava enganada, mas Laura não estava convencida. Era mais fácil acreditar que o rapaz estava a fazer-se passar por outro do que imaginar que pudessem existir duas pessoas tão parecidas. Não era só a cor de pele ou as maçãs do rosto salientes. Era a estatura física, a textura dos cabelos, o trejeito da boca e dezenas de detalhes que ela não conseguia identificar de imediato, mas que tudo somado resultava numa semelhança raríssima. Na segunda-feira seguinte, já na Strycon, Laura contou a Jorge aquele estranho encontro com o seu sósia no talho. Jorge riu e disse que, efectivamente, tinha um irmão gémeo, chamado Carlos, mas que não eram nada parecidos. Naquele instante, Jorge tinha diante de si provas suficientes que indicavam que a sua vida não era aquilo que ele pensava, que a sua família não era aquela que ele pensava. Mas há um ditado que Carlos, homem de muitos provérbios, às vezes aplicava a ele: “O pior cego é aquele que não quer ver. ”A fotografia, a verdadeUm mês depois, Laura disse à amiga que abrira uma vaga no departamento de desenho da Strycon, e Janeth conseguiu o emprego. Pouco depois, foi apresentada a Jorge e compreendeu imediatamente a confusão de Laura no talho. Os dois rapazes tinham os mesmos olhos castanhos e suaves, a mesma forma de andar saltitante, com os pés para fora, o mesmo sorriso alegre e contagiante. Janeth sentiu que não o conhecia suficientemente bem para abordar o assunto, mas mostrou a William uma foto de Jorge. O rapaz riu e mostrou a foto aos colegas do supermercado, divertido com a coincidência. Seis meses depois, Janeth mudou de emprego. Ainda assim, sempre que ela e o namorado encontravam William, questionava-se se não deveria ter falado dele a Jorge. A dúvida perseguiu-a até ao dia 9 de Setembro de 2014, quando decidiu enviar a Laura, por telemóvel, uma foto de William, para que ela a mostrasse a Jorge. Laura subiu ao andar dele, ansiosa por ver a sua reacção. Sorrindo, olhou para o telemóvel. “Mas este sou eu!”, disse, fixando ecrã. William vestia a camisola amarela da selecção colombiana, praticamente a farda nacional em dias de jogos importantes. Jorge usava com frequência uma camisola igual, o que tornava a semelhança ainda mais evidente. Um amigo passou pela sua secretária e Jorge quis ouvir a sua opinião. “Diz-me o que achas desta fotografia”, disse, passando-lhe o telemóvel. “Ficaste bem”, respondeu o amigo. “Só que não sou eu”, disse Jorge, sem conseguir tirar os olhos do telefone. Nesse dia, já não conseguiu trabalhar. Sentou-se com Laura na cozinha do escritório. Talvez o pai dele, que pouco mais era do que um visitante ocasional lá em casa, tivesse tido outro filho, que nunca revelara. Jorge começou a olhar para mais fotografias que William publicara no Facebook, agora no seu próprio telemóvel. Desconcertado, reparou numa foto de William com avental — parecia-se muito com ele próprio, nos raros dias em que tinha de vestir avental no laboratório. Viu também uma foto de William de copo na mão com um amigo. Depois, foi para o computador, para ver melhor as imagens. Voltou a clicar na fotografia de William com o amigo, com o copo de licor. Agora com a imagem ampliada conseguia ver aquilo que incrivelmente lhe escapara quando viu a foto no telefone. Aproximou-se mais, com o nariz quase a tocar no ecrã. Os cabelos do homem estavam penteados para trás como uma crista de galo e a camisa não estava com nada. Mas ali se via o lábio inferior carnudo e os espessos cabelos castanhos que Jorge conhecia bem. Os botões da camisa sofriam uma ligeira pressão de uma barriguinha que lhe era bem familiar. Jorge ficou confuso e sentiu um frio no estômago. O amigo sentado ao lado de seu sósia tinha um rosto que ele conhecia melhor do que o seu próprio: era o rosto de Carlos, o seu irmão gémeo. Jorge e CarlosDepois do trabalho, Jorge caminhou como sempre fazia até à universidade onde estudava à noite. Não conseguiu tirar os olhos das imagens do telefone. Depois das aulas, apanhou um autocarro para casa, para contar a Carlos o que acontecera. Na infância, Carlos era o gémeo que se esmerava com os trabalhos da escola e Jorge o que os copiava. Ambos se safaram. Carlos trabalhava numa empresa de contabilidade durante o dia e à noite estava também na faculdade. O confortável apartamento de dois quartos que partilhavam num bairro de classe média era já um degrau acima em relação ao lar da infância. A mãe, empregada doméstica, criou os dois filhos e a filha mais velha, Diana, numa pequena divisão de uma casa em Bogotá que pertencia à avó deles. Nunca sentiram que lhes faltasse alguma coisa. Enfiaram ali uma televisão e um frigorífico, e as escolas públicas do bairro eram boas. Mas agora viviam melhor – Jorge podia viajar para assistir a jogos de futebol e Carlos gostava de sair à noite. Os três irmãos só lamentavam que a mãe, que morrera de cancro no estômago quatro anos antes, não tivesse vivido o suficiente para que eles lhe pudessem proporcionar uma vida melhor. No autocarro, Jorge tentou pensar naquilo que iria dizer a Carlos. Já tinha falado das fotos a Diana. “Mas não fiques a provocar o Carlos com essa história”, dissera-lhe ela. Ao chegar a casa, encontrou o irmão ao telefone com uma mulher, como era seu hábito. Jorge disse-lhe para desligar. “Não me chateies”, respondeu Carlos. Esta era a dinâmica dos irmãos: Jorge importunava-o, fazia piadas, andava à volta dele, sem o largar. E quanto mais o irmão se irritava, mais Jorge se divertia. Por fim, Carlos terminou o telefonema. Jorge decidiu que tentaria manter o ambiente leve. Arrancou com uma pergunta: “O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?”Carlos começava a perder a paciência. Se ele tinha alguma coisa para lhe dizer, que dissesse de uma vez. Jorge conduziu o irmão ao quarto e sentaram-se diante do portátil, começando a clicar nas fotos, mostrando-lhe William com a camisola da selecção e outras, no talho. Carlos riu, atordoado com a estranha semelhança. Então, Jorge clicou na foto de William ao lado do sósia de Carlos, a foto em que aparecem com um copinho de shot na mão. O que é que dirias se eu te dissesse que tens um gémeo idêntico?” Carlos não parecia divertido. Jorge tentou de novo: “Acreditas em telenovelas?Ao contrário de Jorge, cuja primeira reacção fora examinar a foto mais de perto, Carlos deu um salto para trás, como se tivesse sido fortemente atingido no peito. “Quem são?”, perguntou. Estava furioso. O irmão contou a Carlos tudo que Janeth e Laura lhe tinham revelado naquele dia. Os dois jovens da fotografia tinham sido criados numa quinta remota em Santander, uma região predominantemente rural a norte, cujos habitantes tinham fama de ter um temperamento forte e um grande apreço pelas suas armas. De acordo com o Facebook, nasceram, tal como Jorge e Carlos, no final de Dezembro de 1988. Talvez, sugeriu Jorge, tenha havido uma troca no hospital — uma enfermeira pode ter trocado por engano um gémeo idêntico por um bebé do outro par de gémeos. Não disse o que aquilo significava: que um dos dois, ou ele ou Carlos, tinha nascido de outra mãe. Que provavelmente não eram irmãos gémeos nem sequer tinham um parentesco biológico. E nenhum dos dois admitiu o que ambos já sabiam: que se acidentalmente alguém entrou na família, era quase certo que esse alguém era Carlos. Que Carlos nunca se pareceu nem com Jorge nem com Diana era óbvio. Os seus irmãos tinham a constituição física delicada da mãe, as suas maçãs do rosto salientes, os seus olhos. Carlos era mais alto, de constituição robusta, tinha um nariz mais largo e a testa mais ampla. E a diferença não era apenas física: Carlos sempre se sentira um estranho na família, embora preferisse pensar em si como mais independente. Em criança, não se interessava pelas brincadeiras de faz-de-conta da mãe e dos irmãos, as vozes engraçadas que faziam durante horas, a fingir que eram outra pessoa. Desde que a mãe morreu, contactava Diana muito menos assiduamente que Jorge. Era o único da família que se importava com moda e Deus sabe que era também o único que sabia dançar. Os gémeos sempre acharam que Carlos saía ao pai, mas não o conheciam suficientemente bem para ter a certeza. Mas o seu sentimento de distância não diminuiu em nada a sua ligação à mãe. Sempre a adorou: era uma mulher forte, sem ser propriamente dura — quando ele e Jorge andavam à luta, ela batia-lhes com uma pantufa felpuda, o que sempre os fazia rir e era, provavelmente, o que ela queria. Por menos dinheiro que tivesse, ela garantiu que os filhos frequentassem uma boa escola e convenceu-os de que o futuro seria o que eles quisessem que fosse. Carlos sentia que lhe devia tudo o que conseguira até aqui. Sentado ao lado de Jorge, desligou o portátil, em silêncio. Depois, foi para o seu quarto e fechou a porta. Jorge foi atrás dele, dizendo coisas que, Carlos sabia, pretendiam consolá-lo — não importa se um de nós foi trocado, ainda somos irmãos —, mas que só o faziam sentir-se ainda mais isolado. “Olha”, disse ele a Jorge, “vamos esquecer essa história. ” Disse ao irmão para nunca mais voltar a falar-lhe nesse assunto. Naquela noite, Carlos mal dormiu. Nada daquilo fazia sentido. Como é que era possível que a sua mãe não o tivesse gerado? Ele já tinha chorado por ela. Agora voltava a chorá-la, como se a tivesse perdido pela segunda vez. Sentia-se sem chão, impotente, sozinho. Ao fundo do corredor, Jorge dormia como um bebé. William e WilberNo dia seguinte, assim que William abriu o talho, seu primo Brian — o namorado de Janeth — chegou para o seu turno de 12 horas. William, que fora rapidamente promovido a chefe de secção, estava feliz por ter contratado o primo, estudante em part-time. Em muitos aspectos, sentia-se mais próximo dele do que do seu irmão gémeo, Wilber. Brian cresceu em Bogotá, e quando William chegou à capital, em 2009, os dois passavam dias inteiros a fazer e vender bolos de milho na rua, à chuva, debaixo do sol, passando o tempo a rir e a fazer rir os clientes. Já William e Wilber eram incapazes de passar tanto tempo juntos sem se pegarem. Quando mais tarde Wilber trabalhou para William no talho, William ficava irritado por ele estar constantemente com limpezas em vez de atender os fregueses e por não lhe reconhecer autoridade. Wilber tinha humores, pensava William, e era incapaz de suportar uma brincadeira. Enquanto Brian e William organizavam a loja, Brian contou que na véspera Janeth lhe tinha mostrado fotografias de dois jovens que eram iguaizinhos a William e Wilber. William achou piada e ficou intrigado. Lembrou-se de que alguns meses antes Janeth também lhe mostrara a foto do seu sósia. Mas aquela coincidência parecia ainda mais estranha. Enviou uma mensagem a Janeth, pedindo-lhe para ver as fotos. Assim que a primeira delas chegou, William soltou um grito — “Aiiiii!” — e começou a rir. Janeth sugeria, na mensagem escrita, que talvez ele ou o irmão tivesse ficado doente em Santander e tenha sido enviado para um hospital em Bogotá. William entrou em contacto com uma tia, que lhe confirmou que sim, ele tinha sido enviado para um hospital em Bogotá logo depois do parto. Os gémeos nasceram de sete meses, e William teve problemas digestivos. A tia adiantou que foi tratado no Materno-Infantil na cidade. William contou isto a Janeth, que afirmou que iria perguntar a Jorge onde é que ele tinha nascido. Se fosse no Materno-Infantil, então tudo ficava claro: só podia ter havido uma troca. Até aquele momento, William, tal como Janeth, estava enredado no divertimento e no suspense de juntar as peças todas. Mas agora começava a ser invadido por uma onda de ansiedade. Ele sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um deles. Olhou em volta e mal conseguia distinguir os fregueses, os pedaços de carne ensanguentada, o primo preocupado. Saiu e subiu as escadas para o seu apartamento, no 3. º andar do mesmo prédio. Pôs-se a mandar compulsivamente mensagens para Janeth, para ver se ela já tinha alguma informação sobre o hospital onde Jorge nasceu. William sempre tivera um aspecto diferente do resto da família e desejara também coisas diferentes — uma vida para além da quinta. Mas nunca pôs a hipótese de ser de facto diferente — que pudesse não ser um delesMinutos mais tarde, voltou apressado à loja e mostrou a Brian a mensagem dela: Jorge e Carlos tinham realmente nascido no Materno-Infantil. “Confirmado”, disse. Depois, sentou-se num banco nas traseiras do talho e desatou a chorar. Cada pensamento desencadeava outro igualmente doloroso. Ele tinha sido arrancado de seu lugar de direito. Era um desaparecido de quem ninguém sentia falta. Como iria contar à sua mãe? Ela tinha seis filhos, mas ele é que lhe mandava dinheiro. Era ele que se preocupava quando ela ficava doente e que a animava quando estava triste, enchendo-a de abraços e beijinhos e mordidelas na orelha para a fazer rir. Sabia que a notícia lhe partiria o coração; já estava a partir o dele. Só uma vez na vida, há alguns anos, William falou duramente com a mãe. Tinha terminado o serviço militar e até se saíra bem, ganhando, entre os 92 soldados de seu pelotão, uma bolsa de estudos para se formar como suboficial, um caminho que lhe propiciaria uma educação e um salto significativo em termos de estatuto. Mas afinal os militares não podiam atribuir-lhe a bolsa, porque os pais o tinham tirado da escola aos 12 anos e ele não tinha diploma equivalente ao secundário. “Devias ter-me deixado ir à escola”, gritou com a mãe em casa, em Santander. A escola mais próxima ficava a cinco horas a pé e a família teria precisado de lhe arranjar alojamento, comprar-lhe a farda e pagar as taxas de matrícula — para não falar dos custos de não contar com o seu trabalho na quinta. Ainda assim, William achava que a mãe deveria ter encontrado uma solução, que deveria ter sido mais hábil e lutado com todas as suas forças. Ele próprio teria lutado por isso, mas, aos 12 anos, o que poderia ele fazer?Enquanto chorava sentado no banco, William era levado por sentimentos que apenas com o tempo seria capaz de articular: a preocupação e o sentimento de culpa da mãe; a oportunidade perdida de crescer em Bogotá, onde poderia ter ido à escola, em vez de trabalhar no campo, ajudando na colheita; o pesar por sempre se ter sentido diferente do resto da família, uma família que o amava, mas que ainda assim o provocava por ele não se encaixar nela. Perplexo, Brian, a seu lado, não sabia o que dizer. Não havia frases feitas para uma situação como esta. Para seu alívio, passados dez minutos, William parou de chorar e levantou-se. Sabia trabalhar e era isso mesmo que iria fazer. Voltaram para dentro e começaram a limpar o balcão e a organizar os utensílios, à espera do freguês seguinte. William acabou por enviar uma mensagem a Wilber, que naquele dia estava a trabalhar noutro talho, dizendo-lhe que tinha de ir ter com ele imediatamente. À tarde, quando o irmão chegou, William disse que precisava de lhe mostrar uma coisa — e, no telemóvel, clicou numa foto de Jorge e Carlos. Wilber percebeu imediatamente, com total clareza, o que todos os outros levaram horas a compreender. “Então nós fomos trocados?”, disse, encolhendo os ombros e incomodado com a seriedade com que William encarava a fotografia. “Não me importa quem eles são. Tu és meu irmão e vais continuar a ser até eu morrer. ”Cara a caraDe vez em quando, às vezes horas a seguir à concepção ou, em geral, vários dias depois, as forças que unem células recém-divididas, configurando-as numa única massa coesa, de algum modo cedem. Em vez de se manterem juntas num conjunto que, meses mais tarde, vai formar um ser humano e, por fim, um indivíduo, essas células dividem-se em duas entidades independentes, cada uma com as suas próprias células em frenética divisão. Elas são separadas, mas são também uma coisa só: cada núcleo de cada célula carrega o mesmo DNA. Gémeos idênticos começam as suas vidas como acidentes fortuitos, resultado extraordinário de uma falha sistémica. A formação de gémeos falsos é mais prosaica. Dois espermatozóides distintos encontram dois óvulos diferentes e dão origem a dois bebés. Os gémeos falsos não são mais geneticamente parecidos que dois irmãos quaisquer. O que é singular neles é apenas a simultaneidade: são concebidos e nascem quase ao mesmo tempo. Cada um dos quatro jovens de Bogotá foi criado como gémeo falso, com uma identidade própria. Agora, davam-se conta, cada um tinha um gémeo idêntico, fazia parte de um par perfeito. Antes ainda de os quatro se conhecerem, já estavam a alinhar-se, sem o saber, com o gémeo com quem tinham partilhado o útero. Carlos e Wilber foram cautelosos, convencidos de que ninguém deveria levar por diante aquela história — quem sabe os problemas que aquelas pessoas poderiam trazer? Pelo contrário, William e Jorge revelaram-se abertos à possibilidade de um encontro — poucas horas depois da revelação, Janeth já estava a fazer diligências para que eles se encontrassem numa praça pública, às nove da noite, assim que William fechasse a loja. Wilber, que no início resistiu à ideia de conhecer os outros irmãos, foi ficando cada vez mais curioso à medida que olhava para as fotografias e acabou por querer ir também. Por volta das três da tarde, William falou com Jorge pela primeira vez e perguntou se, além de Brian e Janeth, Wilber podia ir também. Ficou aliviado quando Jorge disse que sim. Ambos notaram que as suas vozes não eram parecidas. A de William era mais rouca e, claro, tinha sotaque de Santander. Também chamou “senhor” a Jorge, uma formalidade típica das pessoas do interior. Jorge gostou da voz dele; parecia não apenas simpático, mas boa pessoa. À medida que o momento se aproximava, William ia ficando mais nervoso e calado. Saiu do trabalho e foi cortar o cabelo. Vestiu a sua melhor camisola, preta com riscas cinzentas. Levou a arma, hábito que adquirira durante o serviço militar. Andava às voltas. Na outra ponta da cidade, Jorge também estava inquieto. Pedira ao irmão que fosse com ele, mas Carlos tinha um compromisso com uma rapariga e não quis cancelá-lo. Quando encontrou um amigo da faculdade, Jorge pediu-lhe que fosse com ele, para dar apoio moral. Na hora marcada, Jorge já estava na praça, olhando em volta. Tinha as palmas das mãos suadas e mal conseguia respirar por causa da pressão que sentia na barriga. Em poucos minutos, um grupo apareceu a caminhar na sua direcção. Lá estava William — tinha a cara de Jorge, o mesmo andar, o mesmo ritmo, com os pés para fora. Brian filmou o encontro com o telemóvel. Com o som desligado, sem se ouvir as palavras nervosas, o vídeo mostra Jorge e William numa espécie de pantomima coreografada e ritualizada. William olha fixamente para Jorge, enquanto Jorge desvia o olhar; a seguir, é William quem volta a cabeça para o outro lado, como se, intuitivamente, desse a Jorge a oportunidade de olhar fixamente para o seu rosto, o que ele, de facto, faz, analisando-o de cima a baixo. Os dois olham-se directamente nos olhos — há um momento de contacto visual que é de uma intimidade incrível e uma troca de sorrisos — e depois cada um deles olha rapidamente para o lado. Nesta troca de olhadelas um para o outro, parecem um par de apaixonados no momento em que está prestes a confessar a sua mútua paixão. Jorge recompõe-se e dirige, enfim, um olhar de avaliação a William; como mastiga pastilha elástica, o queixo não pára de trabalhar. Depois, leva a mão à bochecha, pressionando a própria carne. Sim, este sou eu. Aquela pessoa ali é ele. William está calado, apoiando-se ora numa perna, ora na outra, o que dá a impressão de estar a balançar. (“Foi como olhar num espelho e ver, do outro lado, um universo paralelo”, Jorge diria mais tarde. )Para Jorge, era claramente mais fácil encarar Wilber, o sósia de Carlos — olha-o e abana a cabeça. Wilber tinha visto as fotos de Carlos, que usava óculos. “Só me faltam os óculos!”, disse, com um risinho agudo que fez Jorge sentir outra vez aquela pressão no peito: era o riso de Carlos. Depois de ter visto como William era parecido com Jorge, Wilber ansiava agora conhecer Carlos. Jorge telefonou para o irmão, avisando que estavam a ir para lá, e o grupo apanhou dois táxis rumo ao apartamento de Jorge e Carlos. Por volta das dez da noite, Carlos ouviu o toque da campainha. Caminhou até a porta e ali ficou, paralisado: mal conseguia abri-la. Sabia que era Jorge com aqueles rapazes das fotos. Aquelas pessoas não eram apenas estranhas, eram mais estranhas que estranhos: eram personagens de uma história sobre a sua vida que ele não controlava. “Abre a porta!”, Jorge ordenou. Carlos ouviu uma risadinha. Era a sua própria, mas não vinha dele — ou talvez viesse. “Não quero”, Carlos respondeu. “Tenho medo. ” Passaram-se segundos, Carlos ria nervosamente de um lado, Wilber do outro. “Carlos, abre!”, repetiu Jorge. Não se pode tapar o sol com a peneira, costumava dizer a mãe deles. Carlos abriu a porta e o grupo entrou, como uma procissão num sonho. Ali estavam Jorge e seu sósia — um Jorge com uma camisola estranha; era Jorge, mas mais calado, sem a sua confiança. Ali estava uma mulher e um outro tipo. E ali estava ele: Carlos olhava para si próprio, uma visão modificada de si mesmo, uma fotocópia engraçada, uma piada, um pesadelo. Olhou para Wilber, o reflexo da sua imagem. Os dois se entreolharam de relance — ambos soltaram um “ai!” e viraram as costas, tapando os olhos e corando. Wilber começou a falar, mas Carlos tinha dificuldade em entender o que ele dizia. Wilber trocava o “r” enrolado por um “d” pronunciado. O defeito da fala! Carlos também o teve em criança, mas superou-o com terapia. Os quatro começaram a comparar-se, interrogando-se para descobrir as características partilhadas pelos gémeos idênticos. Quem eram os birrentos da família? Carlos e Wilber! E os mais dóceis? Jorge e William! Quem eram os mais organizados? Carlos e Wilber! E os que corriam atrás das miúdas? Carlos e Wilber! E os mais fortes? Jorge e William!Ainda assim, enquanto Jorge só via semelhanças a cada olhar que lançava a William, Carlos procurava as diferenças entre ele e seu duplo de Santander. “Olha para as nossas mãos”, disse. “Não são iguais. ” As de Wilber eram maiores, mais grossas, cheias de cicatrizes da lida com as facas do talho e com as catanas que, quando era mais jovem, usava no campo. Carlos, por outro lado, ia frequentemente à manicure — as suas unhas, como é vulgar entre os colombianos, estavam cobertas de verniz incolor. William perguntou a Jorge sobre a sua mãe biológica. Como era ela? Onde estava? Observando cuidadosamente o rosto de William, Jorge contou-lhe que a mãe deles morrera de cancro quatro anos antes. Mostrou-lhe uma foto dela ainda jovem: cabelos compridos presos na nuca, belos olhos num rosto de expressão doce e séria. Ao olhar para a fotografia, William sentiu uma nova onda de pesar e ficou em silêncio durante vários minutos. Durante a maior parte da noite, o ambiente foi positivo e de arrebatamento. Os rapazes divertiam-se revelando as hilariantes semelhanças, mais fáceis de identificar do que as diferenças. Mas para cada um deles, do outro lado da porta, pairava um profundo sentimento de perda: o tempo perdido com pais e irmãos biológicos, as oportunidades perdidas, os anos perdidos, os perdidos mitos da criação. Jorge parecia determinado a manter afastados aqueles sentimentos, pelo menos por agora. “Tudo que aconteceu”, disse ao grupo, “é que nossas famílias ficaram maiores. ” Alguém perguntou: “Equipa de futebol favorita?” E os quatro gritaram em uníssono o nome de uma equipa popular na Colômbia: “Atlético Nacional!”Por volta da meia-noite, as visitas foram embora, com a promessa de que em breve se reencontrariam. Jorge e Carlos entreolharam-se na sala vazia. Tudo continuava igual, tudo tinha mudado. “E agora, o que é que fazemos?”, perguntou Carlos. Jorge percebeu que ele tinha começado a chorar. Carlos, então, caminhou até Jorge e deu-lhe um abraço apertado. “Eu quero ser seu irmão”, disse. II ParteQuando dois é igual a umGémeos idênticos não fazem muito sentido, do ponto de vista evolutivo. Já os gémeos falsos têm o benefício da diversidade genética, o que aumenta as probabilidades de pelo menos um sobreviver a um eventual infortúnio. Mas apesar desse seu carácter inexplicável, os gémeos idênticos ajudam-nos a elucidar o entendimento mais básico de como e porquê nos tornamos naquilo que somos. Mediante o estudo da sobreposição de características em gémeos falsos (que, em média, partilham 50% dos seus genes) e em gémeos idênticos (que partilham 100% dos seus genes), os cientistas têm tentado, há mais de um século, descobrir quanto da variação que encontramos no interior de uma população pode ser atribuído à hereditariedade e quanto ao ambiente. “Os gémeos merecem uma grande atenção”, escreveu sir Francis Galton, cientista britânico que, no final do século XIX, foi o primeiro a comparar gémeos muito parecidos com gémeos não tão parecidos (embora a ciência da época ainda não diferenciasse os gémeos idênticos dos falsos). “Isto porque a sua história permite-nos distinguir os efeitos das tendências herdadas dos efeitos impostos pelas circunstâncias da vida. ”Galton, que era primo de Darwin, é conhecido tanto por ter cunhado o termo “eugenia” como pela sua análise inovadora dos gémeos (tendo concluído, em parte decorrente da sua pesquisa, que pessoas saudáveis e inteligentes deveriam receber incentivos para procriar mais). O seu sucessor científico, o dermatologista alemão Hermann Werner Siemens, realizou no início da década de 1920 os primeiros estudos com gémeos, não muito díspares daqueles que têm sido efectuados. Mas Siemens também chegou a conclusões que, durante várias décadas, contaminaram a área de investigação que ele liderou, apoiando os argumentos de Hitler a favor da “higiene racial”. Ao procurar as origens genéticas de vários traços considerados desejáveis ou indesejáveis, investigadores como ele pareciam aproximar-se perigosamente da busca por uma raça superior. Mas, apesar de períodos de muita controvérsia, o estudo dos gémeos proliferou. Ao longo dos últimos 50 anos, cerca de 17 mil traços foram analisados, de acordo com uma meta-análise conduzida pela cientista holandesa Tinca Polderman e pelo australiano Beben Benyamin, e publicada este ano na Nature Genetics. Cientistas afirmam ter identificado influência genética em características tão variadas como a posse de armas, a preferência eleitoral, a homossexualidade, a satisfação no trabalho, o consumo de café, a obediência às regras e a insónia. Para onde quer que olhassem, os investigadores concluíram que os resultados dos testes aplicados em gémeos idênticos são mais semelhantes do que aqueles aplicados em gémeos fraternos. As pesquisas apontam para a influência dos genes em quase todos os aspectos de nosso ser (uma conclusão tão abrangente que alguns cientistas concluíram que certamente haveria algum erro fatal na metodologia empregada). “Tudo pode ser herdado”, afirma Eric Turkheimer, geneticista comportamental da Universidade de Virgínia. “Quanto mais geneticamente aparentadas forem duas pessoas, mais semelhanças elas terão em qualquer aspecto que se queira examinar” – quer seja a personalidade, quer seja a preferência por programas de televisão ou a tendência política. “Mas isso pode ser verdade mesmo sem que haja algum mecanismo específico, alguma versão de um gene como o da doença de Huntington. É algo que resulta dos complexos efeitos combinados de um número incontável de genes. ”O ramo mais surpreendente da pesquisa acerca dos gémeos talvez seja aquele que envolve uma classe pequena e invulgar de sujeitos: a dos gémeos idênticos criados separadamente. Thomas Bouchard Jr. , um psicólogo da Universidade de Minnesota, começou a estudá-los em 1979, quando ficou a saber do caso de Jim e Jim, gémeos de Ohio que tinham sido reunidos naquela época, aos 39 anos de idade. Não só eram incrivelmente parecidos, como também passavam férias na mesma praia, em Miami, casaram-se com mulheres com o mesmo nome, divorciaram-se, tornaram a casar-se com mulheres com o mesmo nome, fumavam a mesma marca de cigarros e tinham por hobby construir móveis em miniatura. Parecidos tanto em personalidade como no tom de voz, era como se tivessem sido formados por inteiro na concepção, impermeáveis aos efeitos exercidos por pais, irmãos ou geografia. Bouchard pesquisou mais de 80 pares de gémeos idênticos criados separadamente, comparando-os a gémeos idênticos criados juntos e também a gémeos fraternos criados juntos e em separado. Descobriu que, praticamente em todos os casos, os gémeos idênticos, criados juntos ou não, eram mais parecidos que os fraternos, tanto em personalidade como — resultado ainda mais controverso — em inteligência. Uma descoberta inesperada na sua investigação sugeria que o efeito do ambiente partilhado por um par de gémeos — por exemplo, os seus pais — tinha pouco peso na personalidade. Os genes e as experiências únicas — como um semestre no estrangeiro ou um amigo importante — exerciam mais influência. Do ponto de vista científico, o estudo dos gémeos que não foram criados juntos tem causado problemas aos pesquisadores. Esses gémeos apresentam-se voluntariamente para participar nas investigações ou tornam-se conhecidos através dos media, mais inclinados a cobrir histórias de gémeos idênticos incrivelmente parecidos, que se casaram com mulheres com o mesmo nome e depois se divorciaram, ou que escolheram como hobby uma mesma actividade incomum. É claro que gémeos idênticos que não sejam tão parecidos têm menos probabilidades de ser identificados e reunidos. E poucos estudos com gémeos, criados separadamente ou não, conseguiram incluir irmãos de procedências radicalmente diversas. “Todos os estudos terão os seus críticos”, afirma Nancy Segal, titular da Universidade do Estado da Califórnia em Fullerton, que trabalhou com Bouchard de 1982 a 1991. “Mas estudar gémeos criados separadamente distingue melhor os efeitos da genética e do ambiente sobre o comportamento. ”Segal tem estudado gémeos chineses desde 2003 (fraternos e idênticos, criados juntos ou não). Nos seus livros, a investigadora mistura ciência com histórias de interesse humano, comprovações estatísticas com detalhes anedóticos: as gémeas idênticas criadas longe uma da outra que usavam, cada uma delas, sete anéis; ou as irmãs criadas em separado que coçavam o nariz exactamente da mesma maneira e davam o mesmo nome àquele tique. Em Outubro do ano passado, Yesika Montoya, uma psicóloga colombiana que hoje trabalha como assistente social na Universidade Columbia, viu no Facebook um vídeo de um programa da televisão colombiana (Séptimo Día) que confirmava, mediante testes de DNA, que os quatro rapazes de Bogotá formavam dois pares de gémeos idênticos. Montoya entrou em contacto com Segal, que só conhecia de nome e reputação. Depois, abordou os rapazes, que concordaram em ser objecto de um estudo. Não importa o fascínio que exerçam, os dois pares de gémeos representam uma amostra de apenas dois. Para Segal, porém, as possibilidades eram fantásticas, únicas. Ela não sabia de nenhuma outra família com tantas possibilidades de combinar pares de gémeos para análise e comparação: Jorge e Carlos, Jorge e William, Jorge e Wilber, e assim por diante. “É uma experiência dentro de uma experiência”, disse, comparando-o a matrioskas russas: abre-se uma, há outra dentro, e outra, e outra. Os gémeos sabiam que o estudo exigiria que eles se submetessem, ao longo de toda uma semana de Março, a entrevistas diversas, individuais e em pares, assim como a horas enfiados numa sala, respondendo a questionários. Haveria perguntas sobre as suas casas, as suas vidas, a sua educação, bem como testes de personalidade e de inteligência. Segal contou-lhes que estava interessada em escrever um livro sobre eles (mais tarde, Montoya colaboraria nesse projeto), e os rapazes mostraram-se entusiasmados. William impôs uma única condição para participar: insistiu que as investigadoras visitassem a casa onde ele tinha crescido, em Santander. Sem isso, nunca conseguiriam compreender quem ele realmente era. Preocupava-o, no entanto, que, se dissesse a Segal e Montoya quanto tempo levariam para lá chegar, elas desistiriam. Assim, enrolava e desconversava sempre que surgia o assunto “tempo de viagem”. Quatro ou cinco horas, William dizia, acrescentando então, como quem não quer a coisa, que uma parte tinha de ser feita a pé. Quanto tempo? Um bocadinho, respondia — talvez houvesse alguma lama também. Quanta lama? Bom, podia ser que fosse mais fácil, a partir de certo ponto, seguir viagem a cavalo. E perguntava a Segal se, por acaso, ela preferia fazer aquele trecho a cavalo. Segal, uma mulher de 60 e poucos anos que crescera no Bronx, em Nova Iorque, recusou. O poder da vontadeNo dia 29 de Março, às nove e meia da manhã, três carros entraram em La Paz, uma cidadezinha empoeirada cujas poucas ruas tinham vistas espectaculares para os Andes. O grupo — formado por Segal, Montoya, os dois pares de gémeos, intérpretes, amigos diversos e alguns familiares — já tinha passado seis horas na estrada. Pararam num bar para um pequeno-almoço tradicional, com caldo de carne e chocolate quente. Jorge e William sentaram-se lado a lado à mesa; Carlos ficou à frente deles e Wilber com as investigadoras. Enquanto todos comiam, Carlos pegou no telemóvel para mostrar uma foto dele e de Jorge. “Eu amo o meu irmão, embora só demonstre isso quando estou bêbado”, disse. “Estão a ver?” Na foto, Carlos dava um grande beijo na bochecha de Jorge. Aborrecido, William observava Carlos e pensava como Wilber era parecido: tomava o afecto do irmão como garantido e só muito raramente manifestava o seu — quando, por exemplo, achava que um dos dois podia morrer. No Exército, ambos estiveram no mesmo batalhão, e antes de entrar numa zona especialmente perigosa, Wilber, pálido, dizia a William: “Que Deus te proteja, meu irmão. Amo-te. ”William sabia que Wilber o amava. Mas, tanto Jorge como William gostariam que os irmãos com quem cresceram — Carlos e Wilber — lhes tivessem dado mais apoio, que tivessem demonstrado mais sensibilidade, como acontecia agora entre William e Jorge, que com frequência se telefonavam antes de dormir, só para dar boa-noite. Nesta altura, os quatro rapazes já se conheciam bem. Ao longo dos seis meses anteriores, saíram juntos, partilharam refeições, conversaram sobre mulheres, família, dinheiro, valores. Mesmo semanas depois de se conhecerem, ainda olhavam nervosos e espantados nos olhos do irmão idêntico. Tinham-se medido, avaliado e inspeccionado. De costas um para o outro, compararam as alturas — os que foram criados na cidade eram mais altos que os do campo. Carlos vencera Wilber numa competição para ver quem comia mais. William ganhara a todos no braço-de-ferro. Nas bancadas de um jogo de futebol, Carlos, fascinado, vira William enfiar a mão nas calças de ganga para coçar o rabo: Jorge fazia o mesmo. Uma noite, à mesa do jantar, Jorge notou que Carlos e Wilber se debruçavam no mesmo ângulo estranho sobre os pratos. Jorge sentia-se à vontade para corrigir gentilmente a gramática do seu gémeo idêntico; Carlos levava a sério a responsabilidades de ensinar Wilber a abordar uma mulher atraente num bar de Bogotá ou como beber de um só trago uma dose de tequila. Os gémeos de Santander ficaram espantados com o facto de os irmãos da cidade nunca terem disparado uma arma de fogo, falha que rapidamente remediaram num passeio pelo campo. De facto, Carlos tinha de admitir que se sentiu imediatamente à vontade com o seu irmão gémeo recém-descoberto. Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiava. Sim, entendiam-se um ao outro: o orgulho masculino quando estavam com mulheres, a reacção furiosa às provocações incessantes dos respectivos irmãos. Mas era também enervante para Carlos o que Wilber tinha dele. A própria existência do irmão gémeo refutava um conceito que lhe era caro: a percepção da sua singularidade. Tendo crescido com características tão diferentes do resto da família, Carlos sentia orgulho na sua individualidade. Agora, porém, como gémeo idêntico, integrava um raro subconjunto de seres humanos cuja replicabilidade estava embaraçosamente à mostra. Uma vez, Wilber fez um post no Facebook de uma antiga foto dele em Santander, de peito nu à beira de um rio, segurando triunfante duas galinhas que tinha acabado de matar. Com os cabelos molhados e penteados para trás como os de Carlos, o camponês da fotografia estava demasiado parecido com ele. “Tira isso daí”, disse a Wilber. “As pessoas vão achar que sou eu. ”Wilber, ao contrário de Jorge, não lhe dizia o que fazer quando ele lhe falava sobre a sua vida amorosa: apenas o ouvia e apoiavaLonge de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidente. Agora os dois usavam ténis iguais e aparavam as patilhas da mesma forma. Nos fins-de-semana, Jorge ia com frequência ao talho de William e punha-se atrás do balcão, à espera da clientela, só para passar mais tempo com o seu gémeo. De vez em quando, dormia no apartamento minúsculo de Wilber e William, deixando Carlos sozinho em casa. Às vezes Carlos consolava-se com um argumento estranho e perverso: ainda bem que a mãe já não estava ali para assistir a isto, porque ele não teria sido capaz de suportar os ciúmes que teria, caso ela acolhesse William como Jorge fizera. Carlos sabia que Jorge estava ciente daquela tristeza e que até procurava ajudar. Mas, sempre que tentavam conversar sobre o assunto, recaíam no velho hábito de se irritarem um ao outro. Para Carlos, era como se Jorge ignorasse as suas preocupações; Jorge, por sua vez, sentia-se frustrado, porque nada do que dizia era capaz de diminuir a sensação de isolamento do irmão. Mas Jorge tentava. Cerca de seis semanas após o primeiro encontro com William e Wilber, pediu uma foto a Carlos. Naquele sábado, foi a um tatuador. Já trazia no peito uma tatuagem da mãe, do lado do coração. Agora, sentava-se numa cadeira para depois de quatro horas dolorosas ter o rosto do irmão desenhado para sempre no seu corpo, a centímetros da imagem da mãe. Ao voltar para casa, levantou a camisa e mostrou a Carlos o seu retrato, sobre a pele ainda ensanguentada e inchada por causa da violência da agulha. Carlos diria mais tarde, com lágrimas nos olhos, que fora o maior presente que recebera na vida. Aquilo trouxe alguma paz. Mas no pequeno-almoço em La Paz, Carlos sentia que Jorge estava novamente a provocá-lo. Logo depois de mostrar a foto, Jorge começou a falar de um assunto delicado, que os dois já tinham discutido em muitas conversas nocturnas: o que seria de Carlos hoje, caso tivesse sido criado em Santander? “Olha à tua volta”, disse Jorge. “Achas mesmo que, se tivesses sido criado aqui, serias contabilista ou outro profissional?”Carlos recusava-se a admiti-lo. Quem poderia garantir que ele não teria arranjado uma forma de ir à escola, de se formar e conseguir um emprego na mesma empresa que, ainda recentemente, o promovera?William não disse nada, mas o seu semblante ficou rígido. Carlos não tinha a mais pequena ideia de até onde a força de vontade podia, ou não, levar uma pessoa. Ele, William, tinha essa força de vontade e procurara exercê-la de todas as maneiras na sua busca pela formação como suboficial. Primeiro, mudara-se para Bogotá, para acabar o liceu. Passou no exame, mas com uma nota baixa — oito meses de estudo árduo não chegaram para compensar todos os anos de part-times fora da escola. Embora só tenha conseguido ficar classificado para a lista de espera do curso de suboficiais, não desistiu. Fez as malas, deixou Bogotá e fez uma longa viagem de autocarro até ao quartel que oferecia o curso. Ao chegar, um comandante reconheceu-o. “Aqueles que têm perseverança, tudo conseguem”, disse-lhe. O comandante mexeu uns cordelinhos para o ajudar, mas, ao mexerem na papelada, descobriram que William já tinha dado baixa e recebera uma indemnização por uma doença contraída na altura em que fizera o serviço. A indemnização não permitia que ele se realistasse. Era o fim, não havia mais nada a fazer. Ele jamais poderia ser um suboficial. Tinha de voltar para casa. Mas o comandante não lhe dissera que quem perseverava conseguia? William ainda permaneceu cinco dias por ali, escondendo-se e misturando-se entre os soldados. Esperava que, de alguma maneira, as coisas pudessem resolver-se. Mais do que isso, não conseguia ir-se embora: partir significava desistir. No sexto dia, um oficial simpático, totalmente armado, acompanhou-o até à rodoviária e pô-lo pessoalmente no autocarro para Bogotá. William sabia que Carlos não conhecia aquela parte de sua história — e que provavelmente também não sabia que, aos seis anos de idade, William costumava caminhar cinco horas com a mãe até esta mesma cidade, La Paz, só para comprar mantimentos. Dormiam na casa de uma mulher simpática e voltavam à estrada, com os mantimentos às costas. Carlos não tinha como saber, nem jamais saberia realmente, quantas horas William, na adolescência, passara a cortar cana, a pele a arder do sol, os talos de cana-de-açúcar picando o corpo. E como carregava 25 quilos de cana de cada vez, um trabalho bruto, doloroso, árduo. Carlos vivera aqueles mesmos anos, e isso William sabia, namoriscando com as meninas numa excelente escola pública, jogando básquete e acumulando pontos de um jogo de vídeo qualquer, que ele não conhecia nem de nome. Longe de acreditar que tinha encontrado a sua metade perfeita, Carlos sentia-se mais só que nunca. Por mais que Jorge negasse, a sua aproximação a William era evidenteCarlos estava errado, William tinha a certeza disso. Às vezes, a força de vontade não chega. Se tivesse crescido em Santander, hoje não seria um contabilista em ascensão. E a insistência de Carlos em afirmar o contrário soava como um insulto a tudo o que William tivera de suportar — àquela vida que ele, na verdade, suportara em vez de Carlos. A cidade vai ao campoDepois do pequeno-almoço, os carros deixaram La Paz e entraram por estradas serpenteantes de terra e pedra, cobertas pela exuberante folhagem das palmeiras e fetos. Finalmente, por volta das onze e meia da manhã, a caravana parou perto de um grande pavilhão no meio de um relvado. Todos saíram. Era altura de caminhar. Nancy Segal empurrava uma mala de rodinhas roxa brilhante, com o material que ela esperava usar nas entrevistas e na pesquisa junto à família de William e Wilber. Ancelmo, o irmão deles, era quem agora vivia na casa, mas os pais e outros parentes também estariam lá para celebrar o aniversário de Ancelmo e rever os gémeos. Logo ficou evidente que aquele caminho não era adequado a uma mala de rodinhas. William, que no passado o percorrera carregando fardos bem mais pesados, pegou nela e levou-a aos ombros. O grupo seguia o seu caminho, subindo por uma colina. William movia-se com rapidez, apesar da mala. Disse que era forte, e que Jorge era tão forte como ele, embora dificilmente aquilo pudesse ser verdade. “Mas Carlos, não”, acrescentou. “Carlos não é tão forte. ” Em seguida, avançou mais alguns passos e, então, voltou-se para trás, como se tivesse tido uma ideia. “Carlos, porque é que não levas a mala?”, perguntou. Dirigiu-se a ele, entregou-lhe a mala e rapidamente tomou a dianteira. O caminho atravessava uma pradaria e, depois, desembocava numa descida íngreme e longa. Em minutos, era só lama — uma lama espessa e, em alguns trechos, com 60 centímetros de profundidade. Carlos, sempre impecavelmente vestido, pisava com cautela. Mas rapidamente os seus ténis Adidas ficaram submersos no lodo. Carlos sentia-se pouco à vontade, emocional e fisicamente. Desde que conhecera os gémeos, estivera duas vezes em Santander. Na primeira, para uma festa de aniversário em La Paz, comemorando o nascimento dos quatro irmãos; na segunda, numa visita aos seus pais biológicos, José del Carmen Cañas (conhecido como Carmelo) e Ana Delina Velasco, na casa onde agora moravam. Mas sentira-se desconfortável em ambas as visitas. Sabia que William achara o seu comportamento grosseiro, resistindo aos gestos simpáticos da família alargada. Mas era gente a mais — vizinhos, primos, cada um querendo tirar uma fotografia, dar um abraço ou estabelecer algum tipo de relação que ele próprio não sentia existir. Como poderia familiarizar-se com os seus pais biológicos se havia sempre uma multidão à volta? Já ao ser apresentado a Carmelo e Ana, no apartamento de William e Wilber, uma equipa de realizadores estava a filmar o encontro para um programa de televisão. Quando abraçou os pais, eles choravam copiosamente. Comovera-se ao sentir o abraço de Carmelo — nunca conheceu o seu próprio pai, que morreu não muito depois da mãe. Mas alguma coisa nas lágrimas de Ana fizeram-no sentir-se distante, calmo. Ele tinha tido uma mãe, e uma mãe muito boa. “Não chore”, disse a Ana, enxugando-lhe as lágrimas. “São os caminhos de Deus. ”O sol estava alto. Carlos avançava pela lama, que salpicava e se pegava às pernas. Foi então que ele — logo ele, Carlos, tão vaidoso com as suas roupas, meticuloso com o modo como lhe caíam, sempre a escovar com a mão as bainhas das calças para tirar algum fio imaginário — soltou um grito. O pé enterrara-se. Devagar, auxiliado por alguém da região que caminhava ao seu lado, começou a libertá-lo. Ouviu-se um ruído forte de sucção. O barro cobria-lhe a perna até bem acima do joelho. Mais de uma hora depois, suado, exausto, imundo, chegou, enfim, onde William e Wilber tinham passado a infância. A casa não tinha casa de banho, nem revestimento ou pintura, apenas paredes de madeira e um fogão a lenha com uma chaminé que saía pelo telhado. Sorrindo, Carlos aproximou-se de Carmelo e ambos se abraçaram calorosamente. Depois, ficaram em silêncio; nenhum deles sabia o que dizer. William, ao lado deles, observava Carlos e o pai. Tinha um aspecto imaculado, não fosse a lama nas botas. Vestia uma camisa roxa com riscas, especial para a ocasião. Carlos usava um boné preto de basebol com o símbolo do Batman, além de um pólo e óculos de sol. Mal tinha recuperado o fôlego, quando sentiu que lhe davam uma batidinha na cabeça: “Tira o boné e os óculos escuros”, disse William. “Tenta estar realmente aqui. ”Carlos observava Jorge, que se movimentava com à-vontade no meio daquela multidão, integrando-se na família de uma forma que ele, Carlos, não era capaz de fazer. Sentia-se incomodado com a conversa do pequeno-almoço. Jorge parecia querer arrancar-lhe uma declaração grandiosa e emocionada sobre a sorte que tivera na troca dos gémeos, sobre o destino bem mais duro que teria sido obrigado a enfrentar. Não que Carlos não tivesse reflectido muito, durante várias noites de insónias, sobre qual seria o seu futuro caso tivesse sido criado com a sua família biológica. Dois dos irmãos de William e Wilber tinham morrido novos: um deles num acidente com uma arma de fogo; o outro numa emboscada durante o serviço militar. Talvez ele nem tivesse sobrevivido, se tivesse crescido ali. Talvez fosse fácil ser um bom tipo em Bogotá. Vivendo em Santander, talvez se tivesse juntado à guerrilha, que uma década antes tinha sido muito popular, mas brutal. Na verdade, Carlos estava longe de acreditar na inevitabilidade do seu sucesso profissional — o que o preocupava era se, caso tivesse tido aquela outra vida, o seu carácter teria resistido às forças que o rodeavam. Mas não, não ia dizer tudo aquilo num pequeno-almoço, à frente de um monte de gente. Ele não era esse género de pessoa. III ParteO mito dos gémeos idênticosNo momento em que um espermatozóide penetra num óvulo, o zigoto unicelular resultante é conhecido como totipotente: é pura potencialidade. Ele traz em si a curva de uma sobrancelha, o músculo de um coração, o poder electroquímico de um neurónio; transporta o complexo manual de instruções que vai comandar a construção e a regulação de cada fibra do corpo. Mas essa célula única divide-se em duas e, instantaneamente, as luzes começam a apagar-se, a sua potencialidade diminui. Para que essa célula única se transforme num minúsculo fragmento de tecido do coração, e não num pêlo de sobrancelha, é necessário que um ou mais sinalizadores genéticos sejam desactivados. O resultado disso é a diferenciação, um processo constante de eliminação que possibilita a construção de universos biológicos complexos. Sempre que um grupo de células se divide, cada uma delas fica mais apta a tornar-se uma coisa e não outra. Quando o embrião atinge cinco ou seis dias de vida (momento em que ocorre a maioria das fatídicas divisões de gémeos), algumas dessas células vão fortuitamente para um ou outro gémeo. Isso significa que a expressão de alguns genes num dos futuros gémeos será, provavelmente e por caminhos subtis, diferente da expressão dos genes no outro gémeo. É a conjectura de Harvey Kliman, director de Investigação Reprodutiva e Placentária da Escola de Medicina de Yale. A partir do momento em que a maioria dos gémeos idênticos se separa, é bem possível que eles passem a ter uma epigenética diferente (o termo refere-se ao modo como os genes são lidos e expressos, dependendo do ambiente). Eles já são produtos distintos do seu ambiente, isto é, das condições uterinas que, de saída, fizeram deles seres diferentes. Um observador leigo ficará fascinado com a semelhança entre gémeos idênticos, mas alguns geneticistas estão mais interessados em identificar tudo aquilo que os distingue, por vezes de forma significativa. Porque é que um gémeo pode ser homossexual ou transgénero e o seu gémeo idêntico não? Porque é que gémeos idênticos, com o mesmo DNA, às vezes morrem de doenças diferentes, em momentos distintos? O ambiente em que vivem há-de diferir, mas que aspecto desse ambiente levou a sua biologia a tomar direcções distintas? Fumo, stress e obesidade são alguns dos factores que os investigadores já conseguiram associar a mudanças específicas na expressão de genes específicos. Com o tempo, esperam descobrir centenas de outros, talvez milhares. A meta-análise publicada este ano na Nature Genetics, resultado de 50 anos de estudos dos gémeos, chegou a uma conclusão sobre o impacto da hereditariedade e do ambiente nas vidas dos seres humanos. Os investigadores descobriram que, em média, cada traço ou doença particular de um indivíduo deriva 50% do ambiente e 50% dos genes, aproximadamente. Mas essa proporção simples não diz tudo sobre os nossos complicados sistemas de circuitos genéticos, o modo como os nossos genes interagem continuamente com o ambiente, sendo activados e desactivados de acordo com o estímulo e as consequências por vezes duradouras, que continuarão a existir no nosso genoma e serão transmitidas à próxima geração. O modo como os genes de um indivíduo respondem a esse ambiente — como se expressam — cria o que os cientistas chamam “perfil epigenético”. Antes de partir para Bogotá, Segal entrou em contacto com Jeffrey Craig, que estuda epigenética no Instituto Murdoch de Pesquisa Infantil, na Austrália, para perguntar se ele analisaria a epigenética de Carlos, Jorge, Wilber e William com base em amostras de saliva que ela colheria. Craig já analisou os perfis epigenéticos de 34 gémeos idênticos e falsos no momento do nascimento, recolhendo amostras do interior das bochechas. Chamou-lhe a atenção que, em alguns casos — não muitos, mas em alguns —, o perfil epigenético de um gémeo recém-nascido pode ser mais parecido com o de outro bebé qualquer do que com o do gémeo idêntico com o qual partilhou o útero materno. Diferenças estruturais no útero seriam uma explicação, afirma Craig — um cordão umbilical mais grosso para um (há, de facto, dois cordões) ou um estranho ponto de ligação do cordão à placenta. Mas Craig reconhece que poderia haver outros factores — quais é ainda especulação. Talvez uma maior distância de um dos gémeos do som constante e reconfortante do coração da mãe possa determinar uma trajectória de vida ligeiramente diferente. Segal e Craig ansiavam por conhecer os resultados dos perfis epigenéticos dos gémeos colombianos. Quais perfis, perguntavam-se, seriam mais parecidos? Os dos gémeos não biológicos que partilharam o mesmo ambiente — Segal chama-os de gémeos virtuais — ou aqueles que têm o mesmo DNA?Uma amostra composta de quatro indivíduos só pode levar a mais perguntas, não a respostas. Mas exames epigenéticos em amostras mais numerosas de gémeos criados separadamente podem, um dia, significar uma ajuda valiosa à ciência epigenética, afirma Kelly Klump, co-directora do Registo de Gémeos da Universidade Estadual de Michigan. “Não se pode observar a forma como o ambiente muda a função do genoma sem ter um genoma constante”, diz ela. “Os gémeos idênticos permitem-nos fazer isso. ”Como é muito difícil encontrar gémeos idênticos que tenham sido criados separadamente, os investigadores que trabalham com epigenética têm-se concentrado sobretudo nos gémeos idênticos que exibem diferenças. Tim Spector, por exemplo, titular de epidemiologia genética do King’s College de Londres, está a criar um gigantesco cadastro mundial de gémeos idênticos, com casos em que, por exemplo, apenas um dos gémeos manifesta diabetes ou autismo. Bouchard teve um papel fundamental para convencer investigadores, e o público em geral, de que parte significativa daquilo que somos se deve ao DNA, facto que estava longe de adquirido quando ele iniciou o seu trabalho. Spector e Craig, por outro lado, têm tentado identificar de que maneira nós nos modificamos em resposta ao ambiente. A sua questão fundamental é outra: como pode a ciência identificar genes que foram activados ou desactivados com resultados potencialmente danosos, para que possam ser revertidos? Se os estudos tradicionais com gémeos eram vistos como investigações interessadas no imutável, já os estudos epigenéticos procuram elucidar o que, em nós, está sujeito a mudança — e, mais especificamente, que mecanismos fazem essa mudança acontecer. Cair no buracoUm político local acompanhava o grupo na sua excursão a Santander. No percurso, tentou convencê-los a visitar uma atracção turística local: o segundo maior hoyo (buraco) da Colômbia, uma fossa cavernosa de 150 metros de largura e 180 metros de profundidade. Os habitantes da zona gostam de se deitar de barriga para baixo, ir arrastando até a borda, para, dali, se debruçarem sobre o abismo. Aquele buraco transformou-se numa piada recorrente entre os irmãos, e, para Yesika Montoya, a psicóloga colombiana, tornou-se também uma espécie de metáfora da experiência pela qual os gémeos estavam a passar. Ela tentava que eles identificassem os seus sentimentos em relação a tudo aquilo que tinham vivido, e parte desse esforço consistia em recordar as sensações físicas que registaram em diferentes momentos. “Senti vertigem”, disse-lhe Jorge sobre o momento em que estava à espera de William no dia em que se conheceram. “Uma pressão. Como aquela que sentimos numa montanha-russa, quando descemos. ”Montoya imaginou esse sentimento como semelhante à sensação de “cair por um buraco e não ser capaz de sentir o chão”. E acrescentou: “Nunca acaba. Mesmo quando se consegue apoiar um pé aqui ou ali, continuamos a cair. ”O tempo passado com Segal e Montoya, partilhando as histórias das suas vidas, teria necessariamente de mudar a forma como encaravam o que lhes estava a acontecer. Carlos pareceu surpreendido quando, em dada altura, Segal lhe pediu para descrever em que aspectos ele e Wilber eram diferentes. “Bem, a questão é que nós sempre olhámos para as semelhanças”, disse ele. “Nunca conversámos sobre as diferenças. ” Parecia feliz por ter, finalmente, a oportunidade de o fazer. Carlos apontou que ele gostava de mulheres mais velhas, enquanto Wilber preferia as mais jovens. Mas a resposta, é claro, era bem mais complicada. Carlos era, em traços gerais, muito parecido com Wilber; mas diferia dele numa série de detalhes infinitamente pequenos: as expressões que passavam pela sua cara, e só na sua; os pensamentos e as preocupações que lhe ocupavam a mente. Para o bem e para o mal, Carlos era mais cínico que Wilber e mais suave. Wilber, por sua vez, era mais alegre quando estava com crianças pequenas, tinha mais facilidade em soltar uma gargalhada. Jorge e William também têm diferenças óbvias. Jorge é um sonhador, um viajante incansável, um optimista que acredita que, “se damos o nosso melhor ao mundo, o mundo vai dar-nos o que tem de melhor”. O rosto de William, mais fino e mais magro, reflecte uma postura bem mais fechada. “Nada é fácil nesta vida”, comentou uma vez, um sentimento que dificilmente imaginaríamos Jorge a manifestar. Essas diferenças tinham sido aprendidas? Reflectiam, algumas delas, diferentes epigenéticas? Talvez Wilber e Jorge dispusessem de uma protecção biológica adicional pelo facto de, ao contrário de Carlos e William, terem sido criados pelas suas mães biológicas. Carlos sabia que tinha sido amado pela mãe que o criara. Mas também sabia que uma prima se tinha mudado para casa deles quando eram bebés, para que cada um dos gémeos pudesse desfrutar do tipo de contacto que, naquela altura, o hospital encorajava. A mãe carregava Jorge num canguru junto ao corpo; a prima levava Carlos. Em Maio, Carlos disse a Wilber que queria visitar a sua família biológica, mas sem a multidão de parentes, psicólogos ou equipas de televisão. Wilber passou o recado a William. Para William, era mais fácil aceitar que as inibições de Carlos naquelas viagens se devessem não tanto a uma reacção à nova família, mas ao carácter público das excursões. Num fim-de-semana de Junho em que, infelizmente, Wilber precisava de trabalhar, William, Jorge e Carlos apanharam um autocarro e foram fazer uma visita mais relaxada e privada a Carmelo e Ana. No autocarro, sentado ao lado de William, Carlos ouvia-o falar dos seus planos de concorrer a um cargo de vereador em La Paz — ele era agora uma espécie de celebridade em Santander. Carlos não nutria grande consideração pelos políticos colombianos, mas a ambição de William impressionou-o e também gostou de ele estar a ter aulas de Word. Pelas perguntas que Segal e Montoya tinham feito, descobrira que Wilber, o seu gémeo idêntico, não pretendia retomar os estudos e isso decepcionava-o, porque esperava falar com ele de outro assunto que não fosse mulheres. Esperava mais para Wilber — esperava mais de Wilber. Mas começava a achar que não o teria. Carlos sabia que Wilber queria passar mais tempo com ele. Mas também sabia que Wilber, a um certo nível, percebia que ele era uma alma solitária. Wilber tinha uma vida própria e uma nova namorada, mãe de duas crianças cujas fotos ele exibia a quem quisesse ver. Aquela experiência toda era para ele menos complicada do que para os outros três irmãos — e isso simplesmente porque, como o próprio Wilber dizia, ele não era uma pessoa muito complicada. Para Carlos, esta quarta visita a Santander foi como um recomeço. Os irmãos chegaram de manhã cedo a casa de Ana e Carmelo, depois de viajar durante a noite. Mas Carlos, gozando a beleza da paisagem, não quis descansar. Foi tomar banho num tanque de água. Ouvia o canto dos pássaros e foi um ouvinte atento do papagaio da família, “Roberto”, que tinha talento para cantar rancheras. Depois, enquanto os irmãos dormiam, foi até a cozinha. Lá estava Ana, uma mulherzinha minúscula — Carlos tinha aquele mesmo risinho dela, disseram-lhe, embora ele próprio jamais o tenha admitido — a limpar uma cabeça de cordeiro para o jantar. Ficou junto ao balcão da cozinha a fazer-lhe companhia enquanto ela trabalhava. Apercebeu-se de que era a primeira vez que estavam sozinhos. Conversaram sobre a saúde dela, as articulações doloridas, a dor nas costas. “Trabalhou tanto a vida toda”, disse-lhe, “está na altura de descansar. Os seus filhos já estão grandes. Porque é que trabalha tanto por eles?” A relação com Ana estava agora mais relaxada, mas não necessariamente mais próxima. Carlos disse a si mesmo que viria com o tempo. Jorge estava sempre a insinuar que havia alguma coisa errada com ele, por não sentir de imediato aquele vínculo poderoso, primordial, aquela força emocional da biologia e do destino que William, o gémeo idêntico de Jorge, parecia sentir em relação à mãe que nunca conhecera. Carlos questionava-se se não se teria aproximado mais de Ana caso a sua própria mãe estivesse viva, para lhe dar algum tipo de permissão. Mas talvez a coisa toda fosse bem mais simples. Talvez ele e William fossem simplesmente diferentes. Andar para a frenteAntes de dar início à sua investigação, Segal não teria ficado surpreendida se cada um dos rapazes apresentasse resultados semelhantes aos do seu gémeo idêntico, independentemente do ambiente. Mas os seus resultados preliminares mostram que, em várias características, os gémeos idênticos são menos parecidos entre si do que ela tinha imaginado. “Fiquei com um grande respeito pelo efeito exercido por ambientes extremamente diferentes”, diz ela. Talvez os resultados indiquem apenas que pessoas criadas em ambientes rurais, com pouca educação formal, encaram testes de uma maneira bem diferente do que aqueles que frequentaram a universidade. William, que administrava com competência um pequeno negócio, às vezes parecia assoberbado pelos testes. Mas Segal considerou que o caso dos jovens seria capaz de instigar novas investigações e inspirar outros investigadores a procurar mais exemplos de gémeos criados separadamente e de formas bastante diferentes. Durante a semana que os rapazes passaram a responder aos questionários de Segal, revisitaram o passado que os ajudou a fazer deles aquilo que eram. Quantos livros tinham em casa na infância? Alguma vez fumaram? Cresceram em famílias onde não se falava sobre sentimentos? Por uma semana, viveram fora do tempo, a olhar para o passado. Mas, assim que Segal fosse embora, cada um retomaria o seu caminho, avançando em direcção a um futuro desconhecido, à mercê do acaso. Às vezes falavam em morar todos juntos; William gostava de pensar que, juntos, os quatro eram mais fortes. Como membros de qualquer outra família, talvez se afastassem e voltassem a reunir-se, ou talvez dessem por eles a voltar para o conforto dos vínculos antigos. Já é invulgar crescer como um gémeo, parte de um par primordial; mas agora cada um deles dispunha de um segundo par raro, uma nova oportunidade de desfrutar de um tipo incomum de proximidade. O que poderá significar esse entrelaçamento — esse duplo emparelhamento — naquilo que cada um deles se vai tornar ou conseguirá na vida?Para comemorar o fim da pesquisa, Segal e Montoya resolveram levar os rapazes a uma famosa churrascaria de Bogotá, com uma espaçosa pista de dança. Jorge e William dançaram com Segal à vez; sorriam animadamente, girando e contorcendo-se sem prestar grande atenção ao ritmo. Carlos, sentindo-se no seu ambiente, ensinou alguns passos a Wilber. Dançavam lado a lado, não propriamente em sincronia — Carlos, com segurança, Wilber, atento aos pés e concentrado. Por vezes, erguia os olhos, como se sentisse a dança no corpo — sabia que logo aprenderia. “O Wilber tem jeito”, disse Montoya, que o observava da mesa, “só precisa de praticar mais. ” Quando os irmãos pararam de dançar e foram sentar-se para mais um trago de aguardente, começaram a flirtar com uma jovem que se tinha juntado à festa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No restaurante, Carlos sentia-se seguro, confiante, sereno. À medida que a noite avançou e bebeu mais, os seus passos foram ficando mais complexos e ousados, até que começou a exibir uma coreografia que ele e um amigo tinham inventado: numa contorção da cintura, as costas inclinam-se praticamente até ao chão, os joelhos ficam dobrados, quase a ceder. Carlos chamava àquele passo “Matrix”, em homenagem a uma manobra parecida que Keanu Reeves executa no filme para se esquivar das balas, num universo paralelo. Carlos estava de tal forma contorcido que parecia prestes a perder o equilíbrio. Wilber, William e Jorge rapidamente o rodearam, ainda a dançar, com uma expressão no rosto que resultava de uma mistura de emoções: divertimento, irritação, preocupação. Mas Carlos não estava a cair. Parecia. E rapidamente se endireitou sozinho. A dança continuou como antes. Os quatro juntavam-se e separavam-se, em diferentes pares e combinações — saíam em busca de mulheres, voltavam para trocar impressões e tomar novamente a pista de dança. Eram uma pessoa só, eram duas, eram quatro, fundindo-se, separando-se e tornando a fundir-se ao som da música pela noite fora. Exclusivo PÚBLICO/The New York Times
REFERÊNCIAS:
No rasto do vampiro
Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pess... (etc.)

No rasto do vampiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Dalton Trevisan, Prémio Camões 2012, é o mais invisível escritor brasileiro. A repórter do Ípsilon estava no seu rasto, cara na grade da sua casa irredutível, quando ele apareceu. Uma cidade-Lego, uma cidade sem país: Curitiba. Que estoure um samba a lembrar que isto é Brasil. Linhas rectas na horizontal e na vertical, torres separadas por canteiros, nove cores para lixo junto à Livraria do Chain. Foi a esta livraria, em tempos eleita a melhor do Brasil, que a editora Record mandou um fax quando o seu autor Dalton Trevisan ganhou o Prémio Camões 2012. Aramis Chain, o livreiro, serviu de correio. É das poucas pessoas que convivem com Dalton, o mais invisível escritor brasileiro. Enquanto Rubem Fonseca, célebre pela reclusão, posa para fotografias, vai à Póvoa de Varzim ser premiado e diz às pessoas que as ama, Dalton Trevisan só é fotografado por paparazzi, enviou a editora para receber o Camões e juntou um bilhete que dizia: "O melhor conto você escreve com a tua mão torta, teu olho vesgo, teu coração danado. "O seu melhor conto não será O Vampiro de Curitiba, mas convém-lhe como biografia. Quem já viu um vampiro? Eu não vim à caça, nem me ocorre vê-lo, só andar no seu rasto por Curitiba. "Quando chegar na livraria, procure a Paula, ela vai lhe mostrar a casa do Dalton", dissera Chain, ao telefone. Estava de saída, voltaria às 18h30, logo nos encontraríamos. São 17h30, sol na cara, na esquina da livraria. Lá dentro há uma prateleira para Dalton Trevisan. Quando pergunto por Paula, ela sai para o passeio. "Ainda ontem estive com ele aqui. Imprimo os emails [que lhe enviam] e deixo num envelope. "Dobramos à direita, subimos à esquina seguinte. "É aquela casa", aponta Paula. Fácil assim, um quarteirão? Ela despede-se, eu olho o nome das ruas, Amintas de Barros com Ubaldino do Amaral, a casa do outro lado: fachada cinza, cortinas pardas, janelas a descascar. Um arranha-céus reflecte no vidro, semáforos de um lado e do outro, jipes, motoboys, mulheres de óculos escuros. A cidade cresceu à volta daquela casa irredutível. Verde para os carros da Amintas, bruá de motores, fumo. Verde para os peões da Ubaldino, atravesso até à entrada da casa. É um portão com grades em cima. Então vejo um prado e quase um bosque, duas filas de árvores. Atrás de mim o trânsito, ao fundo uma torre, e no meio esta miragem verde. Estou assim, cara na grade, quando uma figura entra no meu campo de visão. É um homem de boné, um pouco curvado, mãos atrás das costas, passo firme. Caminha ao longo das árvores como se matutasse, quase falasse com ele mesmo. Vai até ao fim e volta, na mesma cadência. Cai o vermelho, cai o verde, Curitiba roda à volta do seu vampiro. Não me ocorre tirar fotografias nem esconder-me. Ocorre-me que talvez Dalton saiba que eu ia ver a casa. Chain, fiel, não lhe diria? Se disse, terá Dalton saído ao jardim para me deixar com estas perguntas?E nisto o boné desaparece em direcção à casa. Não há campainha nem batente, ainda que eu quisesse bater. Contorno a casa. Cacos de vidro e velho arame farpado no muro, uma porta de garagem. Num documentário sobre Dalton, um amigo conta que ele tem um fusca guardado, outro diz que ele detesta carros e adora andar a pé. É o vampiro flâneur, a caminho dos 88. Não vi um velho, vi um obstinado. Vegetariano"Era ele mesmo", confirma Chain, quando volta à livraria. Tem a certeza? Dalton vive sozinho? E usa aquele boné? Sim, sim e sim. Aramis Chain, 70 anos, 45 de livreiro, camisa engomada, suspensórios, mistura de alemão luterano com ucraniano ortodoxo e libanês xiita. Curitiba não tem tanto cruzamento de português com negro, é outra gente. Para complicar, Chain casou com uma chinesa, e a sua filha, que também trabalha aqui, é o lindo resultado de tudo isto. Voltemos a Dalton: como se conheceram?"Meu irmão trabalhava na TV, em contacto com as artes, e Dalton nesse tempo era advogado e escrevia em revistas, com gravuras desse artista aqui. . . " Mostra a agenda da livraria para 2013, com capa de Poty Lazzarotto. Poty foi parceiro de Dalton na mítica revista Joaquim ("em homenagem a todos os joaquins do Brasil", dizia o subtítulo), que entre 1946 e 1948 teve colaborações de Carlos Drummond, Mário de Andrade, Antônio Cândido ou Vinicius de Moraes. "Lá no centro, no fim da rua XV, tem uma quadra que é a Boca Maldita, onde se reúnem os comerciantes, advogados, pintores. O meu irmão conversava muito com ele lá. O Dalton ainda vai lá. Ele anda bastante, vai a pé umas duas vezes por dia. Está muito conservado de corpo, rosto sem rugas. É vegetariano. "Mas então convive?"Diz bom dia, boa tarde, não fala com as pessoas. " E as pessoas conhecem-no? "Você conhece um vampiro?" O que aconteceria se eu lhe falasse? "Ele ia dizer boa tarde e não ia falar mais. Ele não dá entrevistas. Vem aqui na livraria, às vezes de manhã, às vezes bem de tarde. Quando está a chover, ele espera aqui. " Com quem fala? "Comigo, e tem uma secretária, Fabiana. " A relva estava bem aparada, é ele mesmo? "Acho que deve ter um antigo jardineiro. " E se eu batesse à porta? "Não iria te atender. E é de uma educação refinada. Mas se você falar com o vampiro, o vampiro já não existe mais. "Um concerto de Bach flutua pela livraria. "Dalton aceitou o Prémio Camões com muita honra. " E vieram os prémios Machado de Assis e Portugal Telecom, tudo em 2012. De resto, ele "adora Eça de Queirós", "lê literatura em geral e muitos jornais também", de São Paulo e do Rio. "Às vezes converso alguma coisa de política e ele está a par que é uma coisa impressionante. "Depois, quando Chain repara na pilha de Daltons que comprei, faz a oferta mais inesperada: que o autor os autografe. Incrédula, explico que voo na manhã seguinte para o Rio de Janeiro. Chain insiste, liga à secretária de Dalton a dizer que tem lá uns livros para ele autografar, passa-me o telefone. Fabiana confirma que Dalton terá muito prazer em autografar os livros. Entretanto Chain já tem um plano: que a caminho do aeroporto eu pare na livraria, onde às nove da manhã uma das livreiras já terá ido a casa de Dalton recolher os livros. E vai à porta indicar-me o passeio que Dalton faz. Anoitece, boa hora para a Boca Maldita. Apocalipse jáRua XV, em direcção ao poente, como num filme. Calçada portuguesa igual a Copacabana; calçada vulgar entre paredes de espelho, graffiti, murais; de novo calçada portuguesa, com árvores tropicais, o Teatro Guaíra, a Universidade do Paraná, neo-clássica, branca, fosforescente - e em volta sempre as torres da cidade que quis ser modelo. Ordem em vez de caos e de mistura. Vieram as pichagens, os assaltos, o crack. Dalton Trevisan continuou de ouvido na porta, olho na fechadura. A sua Curitiba vai do vampiro Nelsinho a babar por carne de moça nos anos 50 à drogada que rouba por uma pedra agora, ao par de adolescentes que faz um aborto. É a cidade-rapina em que um homem morre à vista de todos, enquanto tudo lhe é roubado (Uma Vela para Dario). A cidade à beira-rio onde os bêbados lembram elefantes, lentos, disformes (Cemitério de Elefantes). Uma cidade "província, cárcere, lar" contra "a cidade irreal da propaganda", à margem de qualquer beija-mão. Ex-advogado, ex-trabalhador na fábrica de vidros da família, nem cargos no estado nem estátuas, Dalton, o desintegrado, vê Curitiba caminhar para o seu apocalipse: "O pânico virá num baile de travestis no Operário, no meio do riso; o riso não será riso, diz o Senhor, as bicharocas desfilarão diante do espelho, e não darão com sua imagem. Diz o Senhor: Eis que eu entrego esta cidade nas mãos de Baal e dos filhos com rabo de Baal, e tomá-la-ão. "Entre a Igreja Central dos Irmãos Cenobitas e a Sauna Gay Opinião, ambas suas vizinhas de rua, desfaz ambas, ácido, corrosivo, lembrando que Curitiba é a cidade onde o cônsul português Miguel José Fawor foi assassinado em 2000 por garotos de programa, ou seja, prostitutos. Voltou a acontecer dez anos depois com o escritor local Wilson Bueno. E, ao mesmo tempo, Dalton é tão capaz do mais subtil fellatio de rua entre dois homens (Boa-noite, Senhor) como de amar mais as mulheres do que o próprio Vinicius, garantindo que nenhuma é feia, nem aquela sem dentes entre os caninos, boca-banguela na via sacra de Nelsinho (Noite da Paixão, o melhor conto do vampiro). Os libertinos de Dalton conhecem os inferninhos e o próprio inferno, ele leu a Bíblia por eles. De resto, nada do que é humano lhe é estranho: cornos-mansos, ninfomaníacas, violadores em série, mulherzinhas reclamando da baba na almofada, tanto tédio, revelhas queixas. Os seus heróis não vêm da favela nem vão a Paris, são empregados, desempregados, largados na vida, na beira da estrada, gente que vendeu todas as férias que teve. Mas nada do que é humano tornou o amor estranho. O libertino conhece o rouxinol, também chamado de corruíra: "O amor é uma corruíra no jardim - de repente ela canta e muda toda a paisagem. " Ou: "Com ela sonhava e o poder mais forte dos quinze anos me levantava sobre os telhados da cidade. " Ou ainda: "Eras na vida a pomba predilecta, ó doce putinha. " Um Luiz Pacheco. Um João César Monteiro. Um Salomão dos trópicos, diante de um peito de rapariga: "Ó broinha de fubá mimoso. " Língua de arco teso, como quem tira a espinha do peixe. Escrita por extracção, rarefacção, elipse. Crepúsculo em Curitiba. Um mulato empilha num carrinho todo o papelão que juntou. Logo adiante, a Boca Maldita é uma praça cheia de cafés, o que sobrou de arte-nova, torres por cima. Continuo, rua fora, apesar de a rua já não se chamar XV. Em cada esquina um Raskolnikov? O vampiro saberá melhor. Certo é que nesta esquina vejo um retrato de Dostoiévski pousado no chão, à venda. Não sei se Dalton alguma vez escreveu "Raskolnikov sou eu", mas sei que escreveu "Capitu sou eu", e os amigos contam que ele não tem dúvidas sobre o maior enigma da literatura brasileira: Capitu (heroína de Dom Casmurro) traiu Bentinho? Machado de Assis é o herói de Dalton Trevisan (juntem-lhe Flaubert, Tchékhov e cinefilia). Na manhã seguinte paro na livraria a caminho do aeroporto. Lá estão os livros que comprei, todos assinados. E mais dois com dedicatória: oferta do vampiro.
REFERÊNCIAS:
Especial alimentação: Vamos declarar guerra ao glúten?
Devemos comer o que andamos a comer? Não há unanimidade, nem entre os cientistas, sobre muitos dos produtos que fazem parte das nossas dietas. A Revista 2 olhou para alguns deles e para estilos de alimentação que têm dado que falar. (...)

Especial alimentação: Vamos declarar guerra ao glúten?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.357
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Devemos comer o que andamos a comer? Não há unanimidade, nem entre os cientistas, sobre muitos dos produtos que fazem parte das nossas dietas. A Revista 2 olhou para alguns deles e para estilos de alimentação que têm dado que falar.
TEXTO: Logo a seguir ao Dia do Trabalhador, a exposição de produtos Sem Glúten Nem Alergénicos parou um fim-de-semana no Centro de Exposições de Meadowlands. Todos os anos, o evento atravessa o país como um espectáculo de medicina itinerante, enaltecendo-se como a maior apresentação de produtos sem glúten dos Estados Unidos. Há bandeiras presas em tendas com mensagens de boas-vindas, como “A farinha de banana-pão é a nova couve”. A farinha de banana-pão não tem glúten, tal como não tem qualquer dos outros produtos da exposição (incluindo a couve). Há batatas fritas sem glúten, molhos sem glúten, sopas sem glúten e guisados sem glúten; há pães sem glúten, croutons sem glúten, pretzels sem glúten e cerveja sem glúten. Há fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos em Itália, e fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos nos Estados Unidos. Dezenas de empresas montaram mesas com amostras de queijo, douradinhos, palitos de pão e palitos de soja sem glúten. Um homem distribui pacotes de pão ralado, feito por “mestres padeiros” com certificados de ausência de glúten e de organismos geneticamente modificados e de cozinha kosher. Há até comida de cão sem glúten. O glúten, uma das proteínas mais consumidas no mundo, é criado quando duas moléculas, a glutenina e a gliadina, entram em contacto e formam uma ligação. Quando os padeiros estendem a massa, estão a criar uma membrana que dá ao pão a sua textura elástica e permite aos chefs de pizza rodar a massa no ar. O glúten também apanha dióxido de carbono que, ao fermentar, aumenta o volume do pão. Há pelo menos dez mil anos que os humanos comem trigo e o glúten que este contém. Para pessoas com a doença celíaca — que afecta 1% da população [tanto nos EUA como em Portugal, segundo a Associação Portuguesa de Celíacos; é sobretudo herdada geneticamente] — a mais pequena exposição ao glúten pode desencadear uma reacção imunitária suficientemente forte para causar danos graves na superfície do intestino delgado. As pessoas com doença celíaca têm de estar sempre em alerta com a alimentação, aprendendo a descobrir perigos escondidos em produtos vulgares, tal como proteínas de vegetais hidrolisados e vinagre de malte. Comer em restaurantes requer uma vigilância apertada. Até a reutilização da água usada para cozer massa pode ser perigosa. Até há cerca de uma década, os outros 99% raramente pensavam no glúten. Mas, liderados por pessoas como William Davis, um cardiologista cujo livro Sem Trigo sem Barriga [editado pela Lua de Papel] criou um império assente na convicção de que o glúten é um veneno, de que a proteína se tornou no vilão da culinária. Davis acredita que até os “saudáveis” cereais integrais são destrutivos e tem culpado o glúten por tudo, desde a artrite à asma, até à esclerose múltipla e à esquizofrenia. David Perlmutter, neurologista e autor de outra das obras fundadoras do movimento sem glúten, Cérebro de Farinha: A Chocante Verdade Sobre o Trigo, o Glúten e o Açúcar — os Assassinos Silenciosos do Seu Cérebro [Lua de Papel], vai ainda mais longe. A sensibilidade ao glúten, escreve, “representa uma das maiores e menos reconhecidas ameaças de saúde da humanidade”. Quase 20 milhões de pessoas relataram ter regularmente problemas depois de ingerir produtos que contêm glúten e um terço dos adultos americanos afirma estar a tentar eliminá-lo da sua alimentação. Um estudo que analisa as tendências da restauração americana concluiu que em 2013 os clientes pediram mais de 200 milhões de pratos sem glúten ou sem trigo (também há glúten no centeio e na cevada, e uma dieta sem glúten não pode ter qualquer destes cereais). A síndrome foi baptizada como “sensibilidade ao glúten sem doença celíaca (ou síndrome do intestino irritável)”. “Há quatro anos que não como glúten e isso mudou a minha vida”, disse-me Marie Papp, fotógrafa, na exposição. “Eu tinha dores de cabeça, enjoos, dificuldades em dormir. Sei que sou intolerante porque quando desisti me senti melhor. Provavelmente, esta explicação não é suficientemente científica para si. Mas eu sei como me senti, como me sinto e o que fiz para mudar. ” Continuou: “Sou uma foodie. Há cinco anos que não comia um biscoito. E acabei de comer um aqui, sem glúten. E é óptimo. ”Para muitas pessoas, evitar o glúten tornou-se uma coisa cultural, quase tanto como uma escolha dietética, e a exposição oferece uma rampa de lançamento para um novo estilo de vida. Havia um agente de viagens especializado em férias sem glúten e uma mulher que ajudava a preparar copos-de-água de casamentos sem glúten. Um vendedor mostrava placards onde se lia: “Estou livre de trigo”, “estou livre de mariscos”, “estou livre de ovos”. Também vi um anúncio de hóstias sem glúten. O medo do glúten tornou-se tão visível que, há umas semanas, a série televisiva South Park dedicou um episódio ao assunto. South Park tornou-se a primeira cidade totalmente sem glúten do país. Agentes federais colocavam de quarentena qualquer pessoa que pudesse ter sido “contaminada” numa pizzaria Papa John’s rodeada de arame farpado. Os cidadãos eram obrigados a livrar-se dos seus alimentos pecadores e uma multidão enraivecida incendiava campos de trigo. “Independentemente da doença que vos atacou, vamos culpar o glúten”, escreve April Peveteaux no seu divertido livro Gluten is My Bicth (o mesmo nome do seu blogue). “Se você quer ou precisa de uma dieta sem glúten, bravo! Ponha um travão no malvado do glúten. . . Não tem a certeza de o ‘gluten free’ ser para si? Talvez o glúten apenas lhe cause algum desconforto, mas nunca foi diagnosticado. Então que se lixe o glúten!”O trigo fornece cerca de 20% das calorias mundiais e mais alimento do que qualquer outra fonte. A colheita de 2013, de 718 milhões de toneladas, significou praticamente 90 quilos por cada habitante da Terra. Nos Estados Unidos, o consumo de trigo parece oscilar segundo as tendências nutricionais. Aumentou estavelmente dos anos 1970 até 2000, reflectindo o crescente aumento das preocupações sobre a relação entre a carne e a gordura saturada, colesterol e doenças cardíacas. Desde então, o número de pessoas que dizem que o trigo, centeio e cevada as põe doentes aumentou, apesar de o consumo do trigo ter diminuído. O trigo é fácil de cultivar, armazenar e transportar. As propriedades químicas da farinha e da massa também o tornam versátil. A maioria sabe que é utilizado no pão, massa, noodles e cereais. Mas o trigo tornou-se um ingrediente escondido em milhares de outros produtos, incluindo sopas, molhos, condimentos, snacks, e até em carnes processadas e vegetais congelados. Quase um terço das comidas dos supermercados americanos contém algum componente de trigo — geralmente glúten ou amido, ou ambos. 90 quilos de trigo foram em média consumidos por cada habitante da Terra durante o ano de 2013A pergunta mais óbvia é também a que é mais difícil de responder: como pode o glúten, presente num produto que há milhares de anos alimenta a humanidade, ter-se tornado de repente tão ameaçador? Existem muitas teorias mas nenhuma resposta científica satisfatória. Alguns investigadores argumentam que os genes do trigo se tornaram tóxicos. David afirma que o pão actual não tem nada que ver com o pão que há 50 anos ia parar às nossas mesas: “O que mudou é que os efeitos adversos do trigo na saúde humana foram muitas vezes ampliados. . . A versão do ‘trigo’ que consumimos hoje é um produto que resulta de investigação genética. . . Você e eu não conseguimos de forma alguma as formas de trigo que cultivávamos há 50 anos, muito menos há cem ou dez mil anos. . . Temos de restringir outros hidratos de carbono para além do trigo, mas o trigo ainda se destaca como o pior dos piores. ”Perlmutter é menos restritivo: “Entre nós, 40% não conseguem processar correctamente o glúten, e os outros 60% podem estar a caminho disso. ”Apesar de os padrões de alimentação terem mudado drasticamente no último século, os nossos genes não mudaram. O corpo humano não evoluiu de forma a consumir a dieta ocidental moderna, com refeições cheias de substâncias açucaradas e hidratos de carbono refinados com elevadas calorias. Quase todo o trigo que comemos hoje foi moído para ficar uma farinha branca, que tem muito glúten, mas poucas vitaminas ou nutrientes, e pode causar aumentos consideráveis no nível de açúcar no sangue que frequentemente origina diabetes e outras doenças crónicas. Donald Kasarda, investigador no Departamento de Agricultura dos EUA, estuda há décadas a genética do trigo. Numa investigação recente publicada no Journal of Agricultural and Food Chemistry, não encontrou provas de que uma mudança nas técnicas de cultivo do trigo tenha provocado um aumento da incidência da doença celíaca. “A minha pesquisa às proteínas do trigo americano ao longo de praticamente cem anos não mostra que tenha havido um aumento quando comparamos os dados históricos com os dados recentes”, disse depois numa entrevista. Joseph A. Murray, professor de Medicina e presidente da Sociedade Norte-Americana para o Estudo da Doença Celíaca, também estudou a genética do trigo. Concorda com Kasarda. “O grão de trigo não é muito diferente do que era há 50 anos”, disse-me Murray. “Quimicamente, os conteúdos não se alteraram muito. E há uma coisa mais importante a salientar. O consumo do trigo está a baixar, não a aumentar. Não acho que este seja um problema ligado à genética do trigo. ”Mas algo de estranho está nitidamente a passar-se. Por razões que continuam por explicar, a incidência da doença celíaca quadruplicou nos últimos 60 anos. Inicialmente, os investigadores atribuíram o aumento de casos a um maior esclarecimento do público e a melhores diagnósticos. Mas nenhum deles pode responder totalmente pelo salto desde 1950. Murray e os colegas da Mayo Clinic descobriram esse aumento quase por acaso. Murray queria examinar os efeitos a longo prazo da doença celíaca não diagnosticada. Para o fazer, analisou amostras de sangue retiradas a 9000 recrutas da Força Aérea entre 1948 e 1954. Os investigadores procuravam anticorpos de uma enzima chamada “transglutaminase”; são um marcador fiável da doença celíaca. Murray partiu do princípio de que 1% dos recrutas dariam positivo, correspondendo ao nível actual da doença celíaca. Em vez disso, a equipa descobriu anticorpos no sangue de apenas dois décimos de 1% dos soldados. Depois, comparou esses resultados com amostras retiradas recentemente de grupos demograficamente semelhantes, de homens de 20 e de 70 anos. Em ambos os grupos, os marcadores bioquímicos estavam presentes em cerca de 1% das amostras. “Isto sugere que o que quer que tenha acontecido com a doença celíaca aconteceu desde 1950”, diz Murray. “O aumento afectou da mesma forma jovens e velhos. ” Os resultados apontam para que a causa seja ambiental. Ninguém consegue saber ao certo porque é que o aumento da doença celíaca foi tão rápido. Pode ser por causa da dieta moderna. Também há cada vez mais provas, em estudos com animais e humanos, que o nosso microbioma — as muitas espécies bacteriológicas que habitam nas nossas entranhas — pode ter um impacto significativo num variado leque de doenças. Mas nada disso explica porque é que tanta gente que não sofre de doença celíaca sente necessidade de abdicar do glúten. Gibson publicou as suas conclusões no American Journal of Gastroenterology, mas, juntamente com outros especialistas, pediu contenção na interpretação dos resultados, dado o estudo ser tão pequeno. Ainda assim, milhões de pessoas com sintomas vagos de distúrbios gástricos encontraram de repente alguma coisa concreta pela qual culpar os seus problemas. O mercado prosperou, mas o mistério essencial continua por resolver: porque é que subitamente o glúten se tornou tão perigoso? Talvez, pensaram os investigadores, os agricultores tenham aumentado o conteúdo proteico (e de glúten) no trigo, de tal forma que as pessoas deixaram de o conseguir digerir adequadamente. Mas o trigo não é apenas glúten. O trigo também contém uma complexa combinação de hidratos de carbono, e a equipa australiana interrogou-se se estes poderiam ser responsáveis pelo problema. Gibson e os colegas lançaram um novo estudo: juntaram um grupo de 37 voluntários que aparentemente tinham dificuldades na digestão do glúten. Desta vez, os cientistas tentaram excluir os hidratos de carbono para confirmar que a culpa seria do glúten. Gibson colocou todos os voluntários sob uma dieta que não só não tinha glúten como não tinha um grupo de hidratos de carbono chamado FODMAP, a sigla inglesa para uma série de palavras que poucas pessoas memorizarão: oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis. Nem todos os hidratos de carbono são considerados FODMAP, mas muitos tipos de produtos contêm-nos, incluindo os que são ricos em frutose, como o mel, maçãs, mangas e melão; lacticínios, como o leite e o gelado; e frutanos, como o alho e a cebola. A maioria das pessoas não tem problemas em digerir FODMAP, mas estes hidratos de carbono são osmóticos, o que significa que levam água ao trato intestinal. Isso pode causar dores abdominais, inchaço e diarreia. Quando os hidratos de carbono entram no intestino delgado sem estarem digeridos, deslocam-se para o cólon, onde as bactérias começam a desfazê-los. Esse processo provoca fermentação, e um dos produtos da fermentação é o gás. No novo estudo de Gibson, quando os sujeitos foram colocados sob uma dieta sem FODMAP nem glúten, os seus sintomas gastrointestinais diminuíram. Ao fim de duas semanas, todos os participantes afirmaram que se sentiam melhor. Depois, alguns deles receberam secretamente alimentos com glúten; os sintomas não regressaram. O estudo forneceu provas de que a investigação de 2011 estava errada — ou, pelo menos, incompleta. A causa dos sintomas parecia ser os FODMAP e não o glúten; não foram encontrados marcadores biológicos no sangue, fezes ou urina que sugerissem que o glúten causava qualquer tipo de resposta invulgar do metabolismo. Na verdade, parece mais provável que sejam os FODMAP e não o glúten a causar distúrbios intestinais, uma vez que as bactérias fermentam regularmente os hidratos de carbono e menos frequentemente as proteínas. Apesar de uma dieta sem FODMAP ser complicada, permite às pessoas eliminar temporariamente alimentos individuais e depois reintroduzi-los sistematicamente para determinar quais, se é que algum, são responsáveis pelos seus problemas de estômago. Os FODMAP não estão tão na moda como o glúten e não são tão fáceis de compreender. Mas, biologicamente, o papel que podem ter faz mais sentido, diz Murray. “O primeiro estudo, de 2011, deixou-nos entusiasmadíssimos”, conta Murray. “Fundamentalmente, dizia que as pessoas são intoleráveis ao glúten e baseava-se numa investigação bem concebida, duplamente cega. Quando as pessoas eram desafiadas com glúten, comendo os queques, adoeciam. Não percebíamos. Mas foi então que veio o segundo estudo. Nessa altura, já era quase demasiado tarde para voltar a pôr o génio na garrafa. Há milhões de pessoas por aí completamente convencidas de que se sentem melhor quando não comem glúten — e não querem ouvir nada diferente disso. ”A investigação do FODMAP, apesar de ter sido influente e tida em grande conta, envolveu menos de uma centena de pessoas, não as suficientes para comparar com o número de pessoas que abandonaram os alimentos com glúten. Vários grupos têm tentado repetir esses resultados. Mas esses estudos levam tempo. Actualmente, não há análises ao sangue, biópsias, marcadores genéticos ou anticorpos que possam confirmar um diagnóstico de sensibilidade ao glúten sem doença celíaca. Existiram alguns estudos sugerindo que pessoas sem doença celíaca têm razões para eliminar o glúten da sua alimentação. Mas a maior parte dos dados são pouco claros ou apenas preliminares. Raramente os médicos diagnosticam sensibilidade ao glúten sem doença celíaca e muitos não acreditam sequer que exista. Poucas pessoas se deixaram deter pela falta de provas. “Toda a gente está a tentar perceber o que se está a passar, mas ninguém na medicina, pelo menos não no meu campo, acha que isto compete com o número de pessoas que dizem que se sentem melhor por terem retirado o glúten da sua alimentação”, afirma Murray. “É difícil dar um número para estas coisas, mas diria que pelo menos 70% disto é moda ou desejo. Simplesmente, não há nada directamente relacionado com o glúten que esteja a afectar estas pessoas. ”Dan Barber, chef e co-proprietário dos restaurantes Blue Hill, em Manhattan e em Pocantico Hills, sugeriu-me que visitasse Stephen Jones, um geneticista molecular e director do laboratório. Barber, no seu livro mais recente, intitulado The Third Plate (o terceiro prato), descreve Jones como um salvador do trigo tradicional num mundo que transformou a maior parte das culturas em bens industriais transaccionáveis. Eu estava mais ansioso por saber o que ele tinha a dizer sobre as implicações de se acrescentar glúten extra à massa do pão, uma prática que se tornou rotineira nas padarias industriais. Jones, um homem bem constituído com modos simples, passou os últimos 25 anos a tentar perceber qual a melhor forma de fazer um pão. A quantidade de glúten acrescentado ao pão de fabrico industrial não pára de aumentar, e Jones tornou-se cada vez mais interessado em saber se esse glúten suplementar poderá ser responsável, pelo menos em parte, pelos distúrbios gastrointestinais de que tanta gente se queixa. “O meu doutoramento foi sobre a genética do volume de um pão — olhar para os cromossomas e relacioná-los com a força da massa do pão”, diz Jones, ao cumprimentar-me à entrada do centro de investigação. O aroma convidativo, ainda que incongruente, do pão acabado de fazer enche o edifício. O seu laboratório é único; poucas padarias têm farinógrafos Brabender, que Jones e a equipa usam na pesquisa pelo equilíbrio ideal de glúten e água numa massa, e para medir a força da farinha. Nem tão-pouco existem laboratórios com um forno de cozer Matador, que consegue fazer 12 pães de forma de uma só vez, fazendo circular o ar uniformemente, a temperaturas suficientemente quentes para garantir um pão volumoso com uma crosta o mais forte possível. Há milhões de pessoas por aí completamente convencidas de que se sentem melhor quando não comem glúten — e não querem ouvir nada diferente dissoApesar de todos os utensílios de alta tecnologia no Laboratório do Pão, a operação é sem dúvida antiquada, dependendo de moinhos de pedra de um tipo que não se usa há mais de cem anos, e da filosofia de que tudo aquilo que é necessário para fazer um pão integral verdadeiro e delicioso é tempo, talento, farinha, uma pitada de sal e muita água. Existem fundamentalmente duas formas de transformar a farinha em pão. A primeira é a que foi feita durante a maior parte da história humana: deixar a farinha absorver o máximo possível de água e dar-lhe tempo para fermentar, um processo que permite à levedura e às bactérias activarem a massa. Ao amassar, ligam-se as duas proteínas que formam o glúten. Até finais do século XIX, quando rolos de aço e moinhos industriais começaram a ser usados, o trigo era moído em pedras, um processo lento e impreciso. Já o aço era rápido, eficaz e de fácil manutenção, e permitia aos moleiros separar o gérmen do farelo do núcleo do trigo e depois processar rapidamente o endosperma rico em amido. Isto tornou a farinha branca. Ninguém pareceu reparar, ou preocupar-se, que ao deitar fora o resto do grão os padeiros industriais estavam a retirar ao pão as suas vitaminas, as suas fibras e quase todas as suas gorduras saudáveis. O pão branco foi visto como um luxo comportável. Tal como muitos judeus que chegaram da Rússia na viragem do século XX, o meu bisavô nunca tinha visto pão branco, mas quando viu fez imediatamente aquilo que, pelo menos na minha família, foi referido como uma “sanduíche americana”: pegou em dois pedaços do pão preto que sempre tinha comido e colocou cautelosamente uma fatia de pão branco industrial entre eles. Dizem que ficou deliciado. A equipa do Laboratório do Pão, que inclui o paciente e inventivo padeiro Jonathan Bethony, usa grãos integrais, água, sal e fermento. Nada mais. O pão de farinha integral, mesmo quando é bom, é geralmente denso e elástico, e raramente húmido; o pão de Bethony era incrivelmente fofo e leve. Contém apenas o glúten natural formado pelo amassar da farinha. A maioria dos padeiros, mesmo aqueles que jamais se aproximariam de uma máquina de mistura industrial, junta um aditivo chamado glúten vital do trigo para fortalecer a massa e ajudar o pão a levedar. (Geralmente, quanto mais alto for o teor proteico do trigo, mais glúten ele contém. )O glúten vital de trigo é uma forma potente e concentrada do glúten que se encontra naturalmente em todos os pães. Faz-se ao lavar a farinha de trigo com água até se dissolverem os amidos. Os padeiros adicionam o glúten extra para dar à sua massa mais força e elasticidade necessárias para aguentar o processo muitas vezes brutal das misturas comerciais. O glúten vital de trigo aumenta a vida na prateleira e actua como uma ligação; por ser tão versátil, as empresas de alimentação adicionam-no não apenas ao pão mas a massas, snacks, cereais, bolachas de água e sal, e para engrossar centenas de alimentos e até produtos cosméticos. Quimicamente, é semelhante ao glúten normal e não é mais ameaçador. Mas o facto de ser adicionado à proteína que já existe na farinha preocupa Jones. “O glúten vital de trigo é uma muleta”, diz. “Trata-se apenas de armazenamento e funcionalidade. Nada de sabor. As pessoas agem como se fosse magia. Mas não há magia na comida. ”Jones é um cientista cuidadoso e afirmou mais do que uma vez não ter provas de que uma crescente dependência num único aditivo pode explicar a razão pela qual a doença celíaca se tornou mais comum, ou de tanta gente se queixar de ter problemas com a ingestão do glúten. Mas ele e os colegas têm a certeza de que o glúten vital de trigo faz o pão saber a papa. “Farinha que é cortada e embalada em plástico em menos de três horas — isso não é pão”, afirma. Ele e Bethany Econopouly, uma das suas doutorandas — publicaram recentemente um artigo no Huffington Post no qual argumentam que a definição legal da palavra “pão” perdeu o significado e deveria mudar: “A FDA [organismo que regula os produtos alimentares e medicinais nos EUA] estipula que, para o pão poder ser chamado ‘pão’, tem de ser feito de farinha, fermento e um ingrediente húmido, geralmente água. Quando é usada farinha branqueada, podem ser incluídos na receita químicos como peróxido de acetona, cloro ou peróxido de benzoíla (sim, aquele que se usa para tratar o acne), mascarados sob o termo ‘branqueamento’. Ingredientes opcionais são também permitidos em produtos chamados ‘pão’: gorduras sólidas, adoçantes, soja sem casca, corantes, bromato de potássio. . . e outros fortalecedores (como agentes branqueadores e glúten vital). ”Será que milhões de pessoas poderão simplesmente estar a comer demasiado glúten vital de trigo? Não há dados para responder a essa pergunta, mas Jones não é o único a procurar entender melhor o possível impacto psicológico. Jospeh Murray, da Mayo Clinic, começou a estudar o seu efeito no sistema imunitário. Diz que “este é um componente fundamental do pão que comemos e não sabemos muito sobre ele. É muito importante percebermos o efeito, se é que existe, quando adicionamos glúten extra ao pão”. Paradoxalmente, o consumo crescente de glúten vital de trigo pode ser atribuído, pelo menos em parte, pela procura de produtos mais benéficos para a saúde. Não é possível fabricar, embalar e transportar grandes quantidades de pão integral industrial sem adicionar alguma coisa para fortalecer a massa. (Depois da minha viagem a Seattle, o primeiro pão que vi que se publicitava ter sido feito com farinha 100% integral continha muitos ingredientes. Os primeiros quatro, listados por ordem decrescente de peso e volume, eram farinha de trigo integral, água, glúten de trigo e fibra de trigo. Por outras palavras: glúten, água, mais glúten e glúten fibroso. ) Nos vídeos promocionais do Dave’s Killer Bread, uma marca de pão famosa, o fundador, Dave, fala apaixonadamente das propriedades do glúten. Imagens da fábrica mostram paletes de sacos de 22 quilos de glúten vital de trigo. “Pergunto-me quanto deste glúten adicional pode o nosso corpo digerir”, disse-me Jones quando estive no Laboratório do Pão. “Tem de haver um limite. ”Farinha que é cortada e embalada em plástico em menos de três horas — isso não é pãoNa manhã seguinte, antes de deixar Seattle, passo nos escritórios da Intellectual Ventures, a fábrica de patentes e invenções gerida por Nathan Myhrvold, antigo director de tecnologia da Microsoft. Há muito que Myhrvold é um chef amador sério e tem também sido conselheiro gastronómico do Zagat Survey. Há três anos, publicou Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking, seis volumes e 2400 páginas que rapidamente se tornaram um guia fundamental para chefs em todo o mundo. Desde então, Myhrvold e a sua equipa têm trabalhado num projecto subsequente igualmente ambicioso que para já se chama The Art and Science of Bread. O livro só estará pronto daqui a pelo menos um ano, mas Myhrvold diz que será não só a história abrangente do pão como um guia para o preparar. O chef do projecto, Francisco Migoya, pergunta-me se eu alguma vez comi glúten. Abano a cabeça. Ele coloca uma pequena bola de glúten no micro-ondas e carrega no start. Ao fim de cerca de 20 segundos, o glúten insufla como um balão, ele tira-o, coloca-o cuidadosamente num prato e serve-o. Tem a textura de torresmos. O glúten tem uma longa história culinária e tornou-se um substituto frequente da carne e do tofu. Na Ásia, onde é particularmente popular, é chamado seitan e é frequentemente cozido em vapor, frito ou assado. Naquele dia, Myhrvold não estava na cidade, mas encontrei-me com ele mais tarde. É muito opinativo e adora controvérsia. Dizer-lhe algo como “sem glúten” é como acenar uma bandeira encarnada a um touro. “Quando eu era miúdo, estava sempre a ver os especiais da National Geographic”, conta. “Muitas vezes, viajavam para locais remotos e falavam com xamãs sobre os espíritos maléficos. Era uma altura de verdadeira condescendência; a postura era a de que ‘nós é que sabemos’ e estas pobres gentes são muito nobres, mas acham que há espíritos por toda a parte. É exactamente disto que se trata esta coisa dos sem-glúten. ” Salienta que não se está a referir a pessoas com a doença celíaca, nem questiona que algumas possam ter dificuldades em digerir o glúten. “Para a maioria das pessoas, isto não é diferente de dizer: ‘Oh, meu Deus, fomos amaldiçoados. ’ Estamos a passar por uma coisa que equivale a um ataque de espíritos maléficos: o glúten vai destruir o seu cérebro, vai provocar-lhe cancro, vai matá-lo. Somos aquelas mesmas pessoas que falam com os xamãs. ”“Descobrir o efeito que uma coisa como o glúten tem na alimentação é complicado”, afirma. “Precisamos de estudos de longo prazo e não haverá uma resposta útil durante anos. Por isso, em vez de dizermos às pessoas para fazerem uma dieta sem glúten, que tal dizer — ‘Olhe, estamos a fazer uma dieta à experiência e podem passar anos até sabermos o efeito que terá’? Quanto a si não sei, mas em vez de dizer ‘coma isto porque lhe fará bem’ eu direi ‘boa sorte’. ”A moda das dietas não é nova nos Estados Unidos; é o que as pessoas fazem em vez de comer refeições equilibradas e nutritivas. Cada nova dieta tem os seus 15 minutos de fama até ser posta de parte pela dieta extraordinária que vem a seguir. Raramente são eficazes durante muito tempo. Alguns especialistas em nutrição afirmam que a preocupação actual com os produtos sem glúten lhes faz lembrar a obsessão nacional pelos alimentos sem gordura de finais dos anos 1980. Os produtos low fat estão frequentemente carregados de açúcar e calorias para compensar a falta de gordura. O mesmo acontece com muitos produtos que são anunciados como “sem glúten”. Apesar de não haver dados científicos que demonstrem que milhões de pessoas se tornaram alérgicas ou intolerantes ao glúten (ou a outras proteínas do trigo), existem provas convincentes e repetidas de que os autodiagnósticos alimentares estão quase sempre errados, particularmente quando se estendem a quase toda a sociedade. Continuamos a sentir-nos mais confortáveis em confiar em boatos e na intuição do que nas estatísticas. Desde a década de 1990, por exemplo, que o glutamato de sódio, ou MSG, tem sido vilipendiado. Mesmo agora é comum ver restaurantes chineses a publicitar a sua comida sem MSG. Os sintomas que o glutamato de sódio supostamente provoca — dores de cabeça e palpitações são os mais citados — foram descritos inicialmente como “síndrome do restaurante chinês” numa carta publicada em 1968 pelo The New England Journal of Medicine. A Internet está cheia de sites sobre as fontes “escondidas” de MSG. No entanto, após décadas de estudo, ainda não há provas de que o glutamato de sódio cause aqueles ou outros sintomas. Isto não deverá ser surpresa, uma vez que não existem diferenças químicas entre os iões de glutamato que aparecem naturalmente no nosso organismo e aqueles que encontramos no MSG que comemos. O MSG não é sequer um aditivo: existe no tomate, parmesão, batatas, cogumelos e muitos outros alimentos. A margarina é uma gordura má. Ainda assim, durante décadas os médicos aconselharam o seu consumo, em vez da manteiga, porque a manteiga está cheia de gordura saturada, que era considerada ainda mais perigosa do que a gordura da margarina. A suposição não foi testada até ao início da década de 1990, quando investigadores da Harvard School of Public Health começaram a analisar os dados do Nurses’ Health Study, que seguiu o estado de saúde de 90 mil enfermeiras durante mais de uma década. Concluiu que as mulheres que comiam quatro colheres de chá de margarina por dia tinham mais 50% de risco de doenças cardíacas do que aquelas que raramente ou nunca a comiam. Mais uma vez, a intuição seguida por tanta gente estava errada. Peter H. R. Green, director do centro da doença celíaca da Escola Médica da Columbia University, e um dos médicos mais importantes da especialidade, afirma que a oposição ao glúten seguiu um padrão semelhante e que prejudica tantas pessoas quanto as que beneficia. “Esta é uma doença sobretudo autodiagnosticada”, disse Green quando fui ao seu consultório, no New York-Presbyterian Hospital. “Na ausência da doença celíaca, os médicos geralmente não dizem às pessoas que elas são sensíveis ao glúten. Este tornou-se um dos problemas mais difíceis que enfrento na minha prática diária. ”E continua. “Recentemente, visitei um executivo reformado de uma empresa internacional. Tinha um life coach para o ajudar, e um dos conselhos que lhe deu foi fazer uma alimentação sem glúten. É o que fazem os podologistas, os quiropatas e até os psicanalistas. ” Pára, levanta-se, abana a cabeça como se estivesse prestes a dizer uma coisa que não devia, depois volta a sentar-se. “Um amigo meu disse-me que a mulher andava num psicanalista por causa da ansiedade e da depressão. E uma das primeiras coisas que ele fez foi receitar-lhe uma dieta sem glúten. Isto está a ficar descontrolado. Estamos a assistir a cada vez mais casos de ortorexia nervosa” — pessoas que progressivamente retiram diferentes alimentos esperando uma melhoria no seu estado de saúde. “Primeiro, livram-se do glúten. Depois do milho. Depois da soja. Depois do tomate. Depois o leite. Ao fim de um tempo, já não têm mais nada para comer — e tornam-se proselitistas. O pior é o que os pais estão a fazer aos filhos. É cruel obrigar uma criança a fazer uma dieta sem glúten sem que isso tenha sido prescrito pelo médico. A capacidade de os pais verem melhorias numa criança que não come glúten é ainda menor do que em si próprios. ”A atracção inicial, e o potencial sucesso, de uma alimentação sem glúten não é difícil de compreender, sobretudo para quem tem problemas de estômago. Evitar alimentos que contêm glúten ajuda a reduzir a ingestão de hidratos de carbono, pão, cerveja e outros produtos alimentares muito calóricos. Quando seguidas à risca, essas restrições ajudam as pessoas a perder peso, ainda mais se usarem produtos como quinoa e lentilhas para substituir os amidos que têm andado a ingerir. Mas eliminar o glúten pode ser complicado, inconveniente e oneroso e há informação que nos diz que as pessoas não o conseguem fazer por muito tempo. A dieta pode até ser pouco saudável. “Muitas vezes as versões sem glúten dos tradicionais alimentos com trigo são na realidade junk-food”, diz Green. E isto é algo que se percebe claramente quando damos uma vista de olhos pela composição de muitos produtos sem glúten. Ingredientes como fécula de batata, farinha de milho, tapioca são muitas vezes usadas para substituir a farinha branca. Mas são na verdade produtos com elevado teor de hidratos de carbono refinado que libertam tanto açúcar no sangue como as comidas que as pessoas andam a tentar evitar. “Os nossos pacientes entraram neste carrossel e deixaram a comunidade médica intrigada com o que se passa por aí”, conclui Green. “Sabe, as pessoas deixam-nos frequentemente amostras de produtos sem glúten no nosso consultório. E sempre que os provo arrependo-me. Fico com azia. Sinto-me nauseado. Afinal, o que está na base da alimentação? Sal, açúcar, gordura e glúten. Se quem nos alimenta retira um, mais não faz do que o substituir por qualquer outro que mantenha o produto atractivo para quem o compra. Se não sofrer de doença celíaca, então estas não são as dietas para si. ”Descobrir o efeito que uma coisa como o glúten tem na alimentação é complicado. Precisamos de estudos de longo prazo e não haverá uma resposta útil durante anosMas deparei-me com uma série de problemas. O primeiro foi técnico: não conseguia fazer o trigo levedar. Tinha decidido logo que só ia fazer pão integral, mas a combinação de grãos que eu usava simplesmente não tinha as proteínas suficientes. Muitas vezes o pão parecia um matzo castanho, por isso comecei a pesquisar na Internet e rapidamente me deparei com a solução: glúten vital de trigo. (“Se quer manter o seu pão 100% integral, o glúten vital de trigo é o seu novo melhor amigo”, lia-se numa mensagem num fórum sobre pão. “Isto é uma farinha de glúten superconcentrado e realmente ajuda a dar às massas com pouco glúten uma consistência melhor. ”) Revelou-se ser verdade. Era como injectar ar num pneu vazio. Umas poucas colheres de sopa misturadas na minha farinha e a massa tornava-se elástica e consistente e parecia um pão normal; o glúten vital de trigo tornou-se a minha varinha mágica. Gradualmente, outro problema surgiu, à medida que cada vez mais amigos diziam: “Obrigado, mas eu deixei de comer glúten. ”Contei a Jonathan Bethony, o pasteleiro do Bread Lab, a minha questão com o glúten. Depois, ele contou-me a dele: “Tornei-me pasteleiro porque achava que era toda uma forma de expressão”, afirmou enquanto amassava um pão para colocar no forno no dia seguinte. “Não parava de ouvir coisas sobre essa história do glúten, de como era tão perigoso, e isso estava mesmo a magoar-me. Comecei a perguntar-me: será que estou a tornar as pessoas doentes? Tornei-me um mensageiro da morte?” Começou a pensar em mudar de profissão. “Lembrei-me de um dia, quando estava a trabalhar numa loja de alimentos saudáveis da moda, na Bay Area”, continuou. “A minha mulher chegou a casa e afirmou: ‘Querido, tenho de te dizer uma coisa. O médico disse-me que sou intolerante ao glúten. Não posso voltar a comer pão’. ” Bethony levanta os olhos da massa. “Aguentei enquanto pude, mas rebentei. Tinha trazido um pão para casa, subi as escadas a correr e lancei-o da varanda como se fosse uma bola de futebol. ” Bethony questionava-se se deveria desistir. Mas um padeiro famoso que vivia perto encorajou-o a continuar. Ensinou-o a fazer a massa apenas com farinha integral e muita água, e a esperar muito tempo para deixar o pão fermentar. Os resultados têm sido sublimes. No final dessa semana, apanhei um avião de volta a Nova Iorque, fui para casa e deitei o meu glúten vital de trigo no lixo. Voltei a fazer o pão integral da forma como é suposto ser feito: água, fermento, farinha e sal. Vou tentar viver sem a minha varinha mágica. Mas certamente que não vou viver sem glúten. Parece-me simplesmente uma tolice. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Esta é uma doença sobretudo autodiagnosticada… Tornou-se um dos problemas mais difíceis que enfrento na minha prática diária
REFERÊNCIAS:
“Sem a prisão e a preocupação pelas minorias eu não teria ido para História”
Primeiro foi a fé em Deus, depois o choque com os homens e o sonho da escrita hipotecado por achar que teria de ser útil a uma sociedade que oprimia muita gente. O historiador António Borges Coelho saiu do seminário para as celas da PIDE onde conheceu Álvaro Cunhal e encontrou lá sua vocação. Sem a prisão nunca teria sido historiador, diz, aos 90 anos, a trabalhar em mais um volume da sua História de Portugal. (...)

“Sem a prisão e a preocupação pelas minorias eu não teria ido para História”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeiro foi a fé em Deus, depois o choque com os homens e o sonho da escrita hipotecado por achar que teria de ser útil a uma sociedade que oprimia muita gente. O historiador António Borges Coelho saiu do seminário para as celas da PIDE onde conheceu Álvaro Cunhal e encontrou lá sua vocação. Sem a prisão nunca teria sido historiador, diz, aos 90 anos, a trabalhar em mais um volume da sua História de Portugal.
TEXTO: Uma reprodução das Tentações de Bosch apresenta-se discreta numa das paredes do escritório de António Borges Coelho. A luz da manhã não chega a iluminá-la, só o campo de visão do historiador é capaz de a detectar entre centenas de livros de história, filosofia, poesia, ficção, arte e muitas fotografias de família. Bosch ao lado de Borges e de costas para a linha do mar da Parede onde vive, no canto, a que chama “o buraco” e se senta todos os dias para escrever. Aos 90 anos, o historiador, poeta, ficcionista, ex-militante do Partido Comunista, catedrático jubilado da Universidade de Lisboa que este ano o distinguiu com um prémio de carreira, é um leitor compulsivo de ficção e está a escrever o 7. º volume da sua História de Portugal. Fomos encontrá-lo a restabelecer-se de ser o centro das atenções. Prefere o silêncio dos livros, a rotina do café pela manhã, a leitura dos jornais e a concentração em tudo o que ainda tem para fazer. Falou mais do seu passado do que do seu presente, como quem faz a sua historiografia pessoal, a que o levou a ser o historiador António Borges Coelho, um homem que perdeu a fé num deus dogmático, num partido dogmático e se diz um céptico, até mesmo um manipulador. Com muito riso pelo meio. 2018 tem sido um ano especial para si. Descobriram que eu fazia 90 anos!E foi condecorado, continua a reedição da sua obra, saiu o 6. º volume da sua História de Portugal e debate-se o que é a historiografia de António Borges Coelho. Consegue defini-la?Tenho muita dificuldade em falar do meu trabalho. Nasceu um pouco fora da academia. Tive sempre uma certa atracção pela História e o primeiro contacto foi excepcional. Já contei isto, mas repito: foi na instrução primária depois de ter lido o que o [filólogo Manuel] Rodrigues Lapa fez da Crónica de D. João I, do Fernão Lopes. Fiquei encantado com aquilo. Que encanto foi esse?De tal maneira, que no exame final da 4. ª classe fiz uma crítica à Leonor Teles. Coitadinha, até gosto muito dela. A crítica baseava-se em quê?Em ela não ser fiel ao marido. Mas era a flor da época. O Fernão Lopes traça um retrato fantástico dela, dá a mulher que era e que pôs as outras mulheres a serem respeitadas pelos maridos. E mostra que era uma política activa que se passou para o lado de Castela, mas depois queria ficar rainha e pôr também o rei de Castela fora. Era uma mulher muito rica e complexa; ainda por cima bela. Não terá de ser a mulher de que podemos mais gostar, mas. . . Essa sua primeira abordagem foi moral. É verdade. Mas hoje é pouco moral. Isto é, os factos têm intrinsecamente uma moral. Se estou a falar na escravatura não preciso de dizer que a escravatura é má. Digo que o escravo ia agrilhoado trabalhar, ou que era chicoteado. Isto é péssimo, mas não preciso de dizer que é péssimo. O [Alexandre] Herculano, por exemplo, na História de Portugal, a história política, é um moralista do arco-da-velha. Olha-se sempre o passado à luz do presente. Quando hoje se lê a escravatura é difícil fugir a esse julgamento. Logo o século XVI, temos Fernando de Oliveira, um grande escritor que tinha sido frade e ido para Inglaterra, e que faz um ataque terrível à escravatura. Moralmente, eticamente. São as condições económico-sociais em que não há máquinas. A máquina é a enxada, são máquinas rudimentares; o trabalho físico do homem era essencial para reproduzir as condições da existência. E, nesse sentido, a escravatura avança. O Padre António Vieira é considerado o grande opositor da escravatura e nunca se opôs à escravatura do negro. Mesmo em relação aos índios, ele diz que nas aldeias não viviam melhor do que os escravos, porque tinham de trabalhar meio ano para os colonos e no outro meio garantir a sua subsistência, a da aldeia e a dos próprios padres. Como se deve, então, contar hoje a escravatura? A responsabilização, ou até um assumir de culpa, deve estar implícita?Não poria bem nesses termos. Há uma imagem que é do Marx segundo a qual o esqueleto do homem permite-nos escolher melhor o esqueleto do macaco. Porquê? Porque é mais complexo. A nossa realidade hoje é muito mais rica e mais complexa; podemos fazê-lo, embora com cuidado, para não transferir os nossos valores para o passado. Mas esses valores não nasceram do nada hoje. Já existiam. Outro exemplo: diz-se que a Inquisição foi fruto da época. Foi fruto da época para quem? Para as vítimas?! As vítimas iam a cantar satisfeitas? Os parentes das vítimas?! E aqueles que chegavam e sobre os quais depois se dizia que afinal eram mártires! Acontecia nos autos de fé. Porque é que a dada altura o rei D. João V não pode fazer os autos de fé no Campo das Cebolas? Porque houve um levantamento e não havia segurança para fazer o auto de fé. Passaram a fazê-lo na Igreja de S. Domingos ou ali à roda de S. Domingos. Esses valores não têm força nessa época, mas há valores que estão implícitos e começam logo. Nós hoje temos uma vista muito mais aguda para olhar em relação a esse passado, mas se partimos logo de uma atitude moral estamos a viciar e não vamos até ao fundo. Este é o seu sítio de escrita. Este é o meu buraco. Aqui trabalho bem. Quantas horas passa aqui?Depende muito. Há uns meses ainda trabalhava bastantes horas, sobretudo da parte da manhã. Normalmente vou ao café de manhã e depois estou a trabalhar até ao almoço. É a parte mais criativa. À tarde continuo e, uma parte que para mim é importantíssima, é o café depois de almoço. Dá-me moleza. Na minha idade é essencial o café. De manhã e a seguir ao almoço. Mas continuo a trabalhar até aí às cinco. Ainda trabalho umas horas. O pior é esta máquina [aponta o portátil] que me dá cabo do juízo. Escreve só ao computador?Não. Escrevo também à mão. Mas à mão, para um longo texto, já não dá; demora muito tempo; mas para afinar a prosa tiro para o papel e depois brinco com aquilo. Aqui [no computador] não se brinca, é um ajudante e mais nada. E trabalho bastante a prosa. Ainda se fosse outro tipo de prosa, mas é a prosa histórica, tem cada pastilha monumental e para lhe dar um ar minimamente aceitável dá um trabalhão. Estou muito ligado à expressão oral e o que me vem à cabeça, em princípio, não está organizado. Gramaticalmente. Aquilo sai em torrente e acabou. Depois tenho de lhe dar sentido e gramática. Mas a primeira versão do texto escrito?! Onde é que ela fica! Se estou a contar a história de um indivíduo ou um acontecimento aí a prosa é mais fácil. E, sem prejudicar a verdade da História; até lhe dá, por vezes, mais realismo objectivo. Podemos libertar-nos um pouco na prosa. Agora imagine que estou a analisar um relatório económico, que prosa é que vou meter naquilo? Tenho de pôr os números, tem de ser chato, quer eu queira quer não. Claro que posso pôr uma ou duas frases no meio para amenizar sem trair o conteúdo. Mas ampliar a visão daquele pequenino pormenor aritmético… Enfim, a escrita da História dá um bocado de trabalho. Gosto quando as coisas estão a sair, mas a informação é tão vasta, temos de nos embeber numa tal informação, quase viver naquela época, ouvir a voz da época, até a frase da época que não é igual à frase actual. E a própria palavra, por vezes, já não tem o sentido que tem hoje. Começou por dizer que não tinha começado na História da forma mais académica. Como olha para o seu trajecto de historiador?A minha abertura para a História foi em Peniche [na prisão]. Eu já tinha tirado o primeiro ano do curso de Histórico-Filosóficas e considerava que aquele relato era um bocado vazio. Tem dito isso, por exemplo, em relação à presença dos muçulmanos na Península. Isso nem sequer havia, nem sequer existiam. Para mim, era um absurdo. Como era possível, sobre uma civilização que nessa altura não era inferior em desenvolvimento à cristã? Não havia nada, não havia restos, documentos, não havia provas, nada. Isso levou-me à escrita, à tradução e à análise de um livro que me deu outro livro, Comunas ou Concelhos. Mas nunca teria sido escritor sem ter escrito o Portugal na Espanha Árabe. Pode-se dizer que sem a prisão de Peniche não teríamos o historiador Borges Coelho?Com certeza. Sem a prisão e a preocupação pelas minorias eu não teria ido para História, embora eu já viesse de uma atitude revolucionária, a olhar para os oprimidos. A saída do seminário levou-me nesse sentido. Eu, que tinha sido atraído pela figura do fundador da Ordem Franciscana, saio e sou chocado com a miséria do final da II Guerra Mundial. Saí em 1945 e aquilo chocou-me. Fui sempre muito sensível e muito aberto às minorias e ao sofrimento dos outros. Nasceu em Trás-os-Montes, em Murça. . . A terra da porca, que é mãe dos de fora e madrasta dos da terra. Como foi a sua infância?Ainda vim a Lisboa, onde tirei a 2ª classe. O meu pai era guarda-fios e migrou para Lisboa. Mas foi um contacto fantástico com a natureza. Aquela paisagem marcou-me, vale e montanha, vale e montanha, ribeira, rio, os animais. Por vezes, brutal. A luta de cães era um fenómeno quase medieval. As pessoas de lado a incitarem os cães na luta quase até à morte. Era uma paisagem forte, com uma grandeza espantosa e isso marcou-me para toda a vida. Foi aí que nasceu a sensibilidade poética?Tem muito a ver com isso. E também com a minha própria sensibilidade. E a beleza não está só na montanha; está na planície. Hoje adoro o Alentejo; acho uma paisagem espantosa. Sou menos sensível à paisagem minhota. Embora do alto do seminário franciscano onde andei se visse o Vale do Cávado até ao mar. Era um espectáculo fabuloso. Estamos a falar de uma altura em que muito pouca gente tinha acesso à educação. Vai parar ao seminário por vocação ou porque era a maneira de continuar a estudar?Na altura, alguém com boa intenção, me deu a ler As Florinhas de S. Francisco, episódios que, aos olhos de hoje, fazem lembrar a vida de um hippie. S. Francisco é quase um hippie. Aquilo caiu-me no goto, a leitura marcou-me. Que idade tinha?Uns dez anos. Acabei a 4. ª classe, mas antes tive uma professora republicana. . . primeiro tive um professor ligado ao regime e ao fascismo, e depois tive uma professora republicana, e ela queria-me tirar da ideia ir para padre. E eu respondia: "Mas não vou para esses padres, esses padres não me interessam. Vou para os outros, para o Francisco. " E lá fui. E aquele primeiro choque quando entro no seminário, à noite, a chover, em Outubro; o meu pai ficava à porta e lutou para dormir lá. E lá conseguiu. Entro no dormitório, cento e tal rapazes a despirem a roupa debaixo dos lençóis para tirarem as calças, um silêncio. . . e eu fiz uma pergunta e ficou logo tudo em pânico. Aquilo chocou-me. Aquelas imagens do Francisco com as chagas por tudo o que era sítio, nas paredes, nas portas. . . Eu vinha da montanha. Mas qual foi a minha resposta? Cristo também sofreu e temos de sofrer. E assim foi até ao quarto ano. No quinto ano já não era assim. Foi perdendo a fé. Não totalmente. Queria ir-me embora. Mas as pessoas sabiam por que é que eu tinha ido. Eu, no fundo, não tinha tido outra saída. Nós éramos seis. Os professores pediram à minha mãe para o meu irmão mais velho ir estudar. Ele foi para o liceu. Naquela altura, na minha terra, havia talvez seis pessoas no liceu em Vila Real. O segundo foi para a escola industrial. O terceiro para onde iria? Para a loja do meu pai onde se vendia tudo? Mas isso não foi o decisivo. O decisivo foi a fé. Quando contei à minha mãe ela ficou contentíssima da vida, ia ter um padre na família. Depois foi a desilusão completa. Foi expulso do seminário. Como é que isso acontece e como é que depois isso muda completamente a sua vida?Eu escrevia cartas para a família a dizer que me queria ir embora; os frades guardavam as cartas no capucho e vinham falar comigo. E eu mais outros tivemos a ideia de fugir. Quando as coisas chegaram a este extremo um dia foram-me buscar, retiraram-me do grupo, dormi separado e no dia seguinte fui enviado com a passagem para a terra e uma carta a dizer à minha mãe que as más leituras tinham dado cabo de mim. Que "más" leituras eram essas e como lhe chegavam?Eram notas dos livros que eu gostava de ler e que eram censurados. Os Maias, etc. Livros que eu gostaria de ler e nunca tinha lido. Tivemos um professor de literatura que nos leu duas coisas fabulosas: alguns contos do Torga, d'Os Bichos, e leu-nos A História da República Romana, do Oliveira Martins. Nesta segunda leitura tiraram-lhe o livro da cela e não houve mais leituras. Houve outro padre que escrevia motivos de ordem religiosa, e escrevia muitíssimo bem em língua portuguesa. E ainda houve outro por quem tive sempre uma ternura muito grande, muito velhinho, colaborador da Colecção Sá da Costa, tradutor de grego, que era um padre que já vivia noutro mundo. Os que estavam já em dúvidas iam-se confessar a ele. Ele dizia: "Diz. lá, diz lá. " E começava a estremecer, desaparecia e a dada altura acordava: "Já que não dizes nada vai-te embora. Eu te abençoo. . . " Era o padre Eusébio Dias Palmeira, poeta da natureza e, pelos vistos, um homem sabedor de grego. Que dúvidas punha na confissão?A minha primeira grande dúvida foi a da eucaristia. Logo nos primeiros anos. Íamos à missa, e quando ia comungar tinha uma tentação na cabeça a dizer "a hóstia é pão, a hóstia é pão" e ao mesmo tempo eu dizia: "Sai da minha cabeça!" Aquilo marcava-me, era a ideia do realismo. Contra a ideia do corpo de Cristo. Exactamente. Que estava ali o corpo de Cristo, em que não se podia sequer tocar com os dentes, etc. Quando saio, a leitura das provas de São Tomás [a quinque viae, ou as cinco vias que provam a existência de Deus, de S. Tomás de Aquino] é que me levam ao ateísmo. Mas, afinal, é isto que prova a existência de Deus?! Isto são falácias, são cinco falácias. Aquelas perguntas que se fazem e continuamos a fazer. Como é que o mundo apareceu? Há sempre uma série de perguntas que podemos fazer, e a explicação, mais outra explicação não esgota. Agora, a religião que dita com base nos livros sagrados deixa-me completamente. . . não é inerte. Gosto muito de ler os salmos; os evangelhos são textos moralmente magníficos, digamos. . . Quando diz que gosta muito de ler os Salmos, é literariamente?Sim. O Deus do Velho Testamento é horrível. Ezequiel ter filhos de não sei quantas mulheres! Há coisas incríveis no Velho Testamento; dizer ao pai que vá matar o filho para mostrar a sua fidelidade a Deus; destruir toda uma cidade, Sodoma e Gomorra. Aquilo é a história de um povo, e as crenças e a organização ainda no início da História; não pode ser aceite racionalmente como a base de tudo. E durante séculos, a realidade e a visão da realidade tinha que não contradizer os dogmas do Velho Testamento e do Novo Testamento, que Cristo era Deus homem, etc. São ideias que não me dizem nada. Nem perante a morte. A morte sim, quem é que não tem medo da morte? Mas estou resignado com ela. Cá a espero, aqui no buraco, se possível. No hospital não me agradava nada, mas aqui no buraco, em paz, sossegado. Diz que se sentiu ateu depois de ler S. Tomás de Aquino. Imagino que não tenha sido imediato. O que se passou na sua cabeça?Estive mais de um mês para deixar de rezar o Acto de Contrição ao deitar. Estava uma hora, duas horas sem dormir e sempre com a cabeça a martelar: e se existir? E se existir? E acabava por rezar o Acto de Contrição. . . . . . pelo sim pelo nãoExacto. Até que um dia disse "acaba lá com isso", e acabei. Até hoje. E quanta gente os rezou por mim! E que ainda hoje reza. Para eu, se não rezar o Acto de Contrição, falar menos sobre isto. É verdade. O despertar da consciência política tem a ver com a morte do homem de fé?O que tem a ver é o homem desencantado, o jovenzinho. Tinha uns 16 anos. E que começa a ler. Li A Relíquia. O primeiro livro que comprei foi do Balzac, A Mulher de Trinta Anos, imagine! Às escondidas da minha mãe. Havia uma lata enterrada no chão de onde me trouxeram A Relíquia. Essa lata é famosa. Dela também vieram os livros de Marx. Sim, e é uma coisa inteiramente verdadeira, a lata de um homem que tinha sofrido imenso com a PIDE; era pedreiro, tinham-lhe partido os dentes. Não tenho a certeza se foi ele quem me deu a ler Marx, mas é provável. Mas foi ali que li O Manifesto do Partido Comunista, que li com os rapazes do meu tempo, na minha terra. Li como quem lê um poema; uma tradução espanhola magnífica. A PIDE apanhou-a entre os livros que eu tinha. Que efeitos teve isso em si?O Partido Comunista levou-me o primeiro [jornal] Avante!; o primeiro Avante! que li foi em Murça. Começou a ser catequizado. Sim, mas vim para cá [Lisboa] e perdi o contacto, e o contacto era a leitura do Avante!; não era mais nada. Li dois ou três. Vem para Lisboa para a Faculdade. Exacto. Tive de fazer exame de admissão a Direito; fiz e entrei em Direito. Estive três meses sem dinheiro, sem emprego, sem quarto para dormir. Como é que vivia?No quarto de um amigo da minha terra. Ele estava a tirar Agronomia. Lá dormia, com grande protesto da dona da casa. E com estudantes de Medicina, um deles também da minha terra; pagavam-me sandes; apoiaram-me até eu arranjar emprego ao cabo de três meses. Eu era estudante-trabalhador. Fazer o quê?Fui para a Junta Autónoma de Estradas. É uma história com piada. Fui à Junta Autónoma e perguntei a um contínuo quem é que mandava ali. Ele disse-me que era o senhor Esteves. Perguntei de onde era. Era de Trás-os-Montes. Então dei a volta, fui a outro contínuo e disse-lhe que queria falar com o senhor Esteves; que lhe dissesse que era um rapaz de Trás-os-Montes, e ele mandou-me chamar. Eu disse-lhe que não era da terra dele, mas que era transmontano: "Estou cheio de fome, há três meses que tenho esta vida e tenho estas habilitações". Ouviu. Pediu-me para ir trabalhar no dia seguinte e que metesse os papéis para o concurso. Assim fiz e comecei a trabalhar no dia seguinte. Era um completo ignorante de trabalho de escritório. Houve o concurso, fiquei em primeiro lugar e ele não ficou arrependido. O pior foi depois, quando a PIDE foi à minha procura e eu desapareci do mapa. Estava ligado ao MUD Juvenil. Sim, liguei-me logo na faculdade. Eu era trabalhador-estudante e entrei no mundo dos jovens trabalhadores; controlei a fábrica de material de Braço de Prata. O que o atraiu? Não era só a oposição ao regime…Não. Eu era extremamente sensível ao perigo da guerra atómica mundial. Houve umas imagens que me marcaram, as de uma revista norte-americana com Moscovo bombardeada atomicamente. Imagens infernais. Eu queria ser escritor e, naquela altura, perante aquilo, perguntei-me porquê. Que vida era essa? Era preciso era lutar. Ser escritor parecia-lhe inútil?Sim. E lutar ao lado do Partido Comunista?Exactamente. No MUD Juvenil já tinha contacto com o PC, e depois fui funcionário do PC durante meio ano. Tem dito que um historiador tem de estar envolvido na política. Envolveu-se de forma activa, a sua historiografia foi marcada pelo marxismo, mas Marx não foi o único a influenciá-lo na abordagem da História. Até que ponto essa marca subsiste?A História é a história dos homens e a história dos homens envolve a política. A École des Analles, que me influenciou também muito, deu particular importância à história económica e à história social; e a história social vem também da influência de Marx. Sobre esta história do marxista e do não- marxista posso-lhe dizer que sou marxista. Mas sou, de facto, no terreno? O Marx criou um modelo de História? Tudo isso é muito complicado. O Marx influenciou-me. A luta de classes? Sim, há a luta de classes. A ideia de luta de classes não é dele, ele pô-la em primeiro plano. Isso foi fundamental no meu trabalho e é fundamental hoje. Inclusive os que negam a obra de Marx utilizam-na brutalmente para evitar os seus efeitos. Agora se tudo é Marx? Antes e depois? Que ele envolveu tudo o que veio antes e que parou ali o movimento filosófico, social e político? Isso para mim é um absurdo. Olhando para o que escrevi, inicialmente fui muito marcado, mas fui desde logo marcado pelos Analles; e pelo [Vitorino] Magalhães Godinho, que li em Peniche — não li Marx em Peniche, li-o cá fora, antes de ir para a prisão. Os leitores e os historiadores voltados para a historiografia dirão muito melhor do que eu o que foram as minhas influências. Porque as minhas influências no sentido filosófico vêm muito de trás. Eu tive uma cultura filosófica, desde os gregos aos filósofos modernos. Li menos os filósofos contemporâneos, mas da história da Filosofia, li originais, não li o que é que escrevem sobre os originais. Que moldam e moldaram o meu pensamento. O próprio Espinosa. Fui à procura da influência dele, dos cristãos novos para a cultura portuguesa, e o que encontrei mais profundamente foi a ele próprio. Já falou de Peniche como determinante, mas não falou em concreto sobre o que o levou à prisão. É uma história cheia de detalhes que ajudam a defini-lo. Fui parar a Peniche porque era funcionário do PC e porque me entraram em casa duas brigadas da PIDE. Eu vivia numa casa na Rua dos Ferreiros, a Santa Catarina, e a casa tinha uma pia para a cozinha e uma pia para os humanos; tinha na sala uma divisória onde eu tinha um divã e os donos da casa tinham um quarto e tinham a cozinha. Entraram duas brigadas aí ao meio-dia e fui levado para a PIDE. O que encontraram?Uma mala cheia de papéis, impediram-me de chegar às janelas, mas quando cheguei ao poial da porta dei os gritos mais altos da minha vida. Viva a Liberdade! Viva a Democracia! E o último: Abaixo a PIDE! E quando disse “abaixo a PIDE!”, as pessoas que iam na rua viraram costas ao sentido de marcha e diziam "está ali um maluco qualquer"; "aquele gajo enlouqueceu". E lá vou eu lá para cima, para as salas da tortura. Mas quando ia a subir a escada, as calças tinham o bolso roto e o lenço começou-me a cair pelas pernas abaixo. Eu baixei-me para o apanhar e o PIDE dá um salto. "Onde é que está a pistola?" [risos] E lá vou, para fazer estátua, permanecer em pé. Estava lá uma cadeira e eu sentei-me na cadeira. O PIDE dizia-me que eu não podia estar ali sentado. Mas eu ficava, ate que vieram mais, viram que eu estava muito verde e acabaram o princípio da estátua e mandaram-me para as celas do Aljube, onde estive seis meses seguidos numa cela da largura do meu corpo, com muito pouca luz, com um bailique que descia à noite para eu dormir. Como acha que sobreviveu a isso sem enlouquecer?Eu tive um ataque. Fiz greve de fome nas celas, fui levado para a enfermaria, na enfermaria entrei em contacto com os vizinhos do Aljube e eles aperceberam-se e puseram-me numa cela durante uma semana em que não havia sequer luz. Era sempre escuro, sempre noite. A memória é a nossa defesa. Isso é pior do que o espancamento, porque o espancamento ou é cobardia ou uma reacção de esforço e de ódio. Ali não, é o nada. Então veio a memória, e a memória tem limites que eu não imaginava. Refugiava-se na memória?Sim. Andar na cela era um passo para a frente e outro para trás [faz o movimento com os dedos da mão]. Pensava em quê?Na infância, nas mulheres que amei. É claro que havia um período em que saia da cela para despejar o balde. E foram seis meses. Depois fui para Caxias e de Caxias fui levado para o Porto onde fui julgado e condenado a dois anos e nove meses de prisão maior. Em Peniche. E estive lá cinco anos, e, ao todo, seis anos e meio no cárcere. Peniche na altura não era a prisão mais simpática. . . Não era não, era a prisão de alta segurança. Onde conheceu Álvaro Cunhal. Nessa altura, na alta segurança, estavam dois presos: o Álvaro Cunhal e o Rogério de Carvalho. E cheguei com mais três companheiros. Qual era a relação entre vós?Havia uma hora para escrever à família e um momento em que podíamos estar os seis. Quando isso acontecia havia um guarda, perguntávamos-lhe se podíamos perguntar qualquer coisa a outro. Ele pedia-nos para aguardar ou dizia simplesmente que não. Depois tínhamos a descasca da batata e a limpeza. Na limpeza podíamos falar, e havia uma hora de recreio quando não estávamos castigados ou não estava a chover. Nessa hora de recreio, podíamos falar, mas o guarda ia no meio e dizia: “Fale mais alto que eu também quero ouvir”. É claro que a gente falava e, conseguia falar mesmo sem o guarda ouvir, ou ouvindo não percebia o que estávamos a dizer. Essas conversas deram para planear uma fuga. . . Dão sempre. E deram para eu levar textos proibidos debaixo da camisola; um texto do Cunhal, por exemplo. E para levar livros de arte que ele estava autorizado a receber. Aprendi com eles alguma coisa de história da Pintura nesse sentido. A fuga de Peniche acontece a 3 de Janeiro, de 1960. Recusou-se a fugir com eles. Porquê?É verdade. Havia várias razões. Eu não queria volta à vida de funcionário do PC e tinha o meu projecto. Esse projecto definiu-se na prisão. Sim. E era escrever História e escrever para lá da História. Isto é, ser escritor. Se eu fugisse a vida teria de ser a clandestinidade, não podia ser outra. Os outros não olharam muito bem a sua opção. . . Não, não olharam. Como ficou a sua relação com Álvaro Cunhal?Ele tentou convencer-me duas vezes. Leu-me um livro que ficaria célebre, Até Amanhã Camaradas, que naquela altura se chamava A Mulher do Lenço Preto. E eu disse-lhe: "Desculpa, mas não". Ele desculpou?Mais tarde, sim. Na altura não. Ficámos isolados, os que ficaram. Completamente isolados. Há outra história, é que casa em Peniche. Já tinha namorada quando foi para lá. Já tinha uma companheira. Era uma enfermeira que lutava para que as enfermeiras tivessem autorização para casar. Como é que nasce essa história de amor e como é que ela evolui para um casamento na prisão depois de ela própria ter estado presa?Ela esteve presa quatro anos. E nem sequer era comunista. Acusaram-na de ser comunista por, no julgamento, ter defendido a situação das enfermeiras: como viviam, o que ganhavam, o horário de trabalho. Era infernal. E não podiam casar. Alguém me vem dizer: há uma enfermeira ligada a uma luta e a recolher assinaturas e a ter encontros para conseguir que aprovem o casamento das enfermeiras. Consegui um encontro com ela, no café Realto. Foi aí que a conheci e daí a namorarmos não demorou muito tempo. Só que passados poucos meses ela vai a uma sede do MUD Juvenil e quando chegou estava lá a PIDE. Foi tudo preso. Ela ainda comeu um bilhete para um jantar que ia ser feito, mas descobriram que era ela a casamenteira e ficou lá uns seis meses; armaram-lhe um processo sem pés nem cabeça e o juiz presidente do tribunal considerou que ela era comunista. Houve um grande movimento cá fora para a sua libertação e no julgamento participaram a Maria Lamas, a Maria Isabel Aboim Inglez, o Alexandre O'Neill, uma série de intelectuais e de enfermeiras. Houve inscrições nas paredes, etc. Isso só irritou ainda mais a PIDE e foi condenada a dois anos de prisão maior. Foi presa antes de si. Foi presa em 1953 e eu em 57. Quando saiu não me podia visitar. Só se fosse casada comigo. Como foi o casamento?Havia uma mesa, ela estava de um lado e eu do outro, separados. Estava o meu sogro, estavam os meus padrinhos de um lado —? o O'Neill e a Maria Amélia Padez — e estavam os meus cunhados do outro lado, que eram os padrinhos dela. O meu sogro começou a passear na sala e a dizer que não havia direito e, por fim, passaram-na para o meu lado. Lá estivemos até ao fim da refeição que o meu sogro tinha levado. Depois ela foi embora, levava uma grande companhia de Lisboa e foi dormir com a mãe nessa noite e eu fiz um poema, O Casamento Branco. Tem esse poema?Tenho. Não sei de cor. Hoje é muito difícil ficar com esses textos na cabeça, porque a História deu-me cabo da memória. É terrível. É uma sanguessuga. A memória é dominada pela informação brutal que nos cai em cima. Sai de Peniche com a decisão de ser historiador. . . E vou continuar as leituras e comecei a escrever. Escrevi quase ao mesmo tempo As Raízes da Expansão Portuguesa e A Revolução de 1383-85. Um foi censurado, o outro. . . Foi polémico. Fui ameaçado, porque havia gente conservadora que gostava do livro. [pede licença para se ausentar por uns momentos]Aqui estou outra vez, o cadáver adiado [risos][Conta a história de duas fotografias]. Aquela foi feita por uma companheira de presídio da minha mulher. Essa colega era da comissão Central do MUD Juvenil, mulher do Pedro Ramos de Almeida. Eu não tinha fotografia no julgamento, éramos 52 e o único que não tinha fotografia era eu. Ela fez-me o “boneco” e foi exactamente aquele “boneco” que apareceu depois numa fotografia colectiva. Quando decide o que vai tratar na História, opta pela fundação, pela Idade Média. Porquê?A decisão é um dos grandes problemas. É quase como o pintor que está a pintar e tem de compor, o que vai meter ali; ou o romancista. Tem de arranjar um enredo, só que em História o enredo não é inventado. Há protocolos de informação que se vão tirando dos documentos, dos depoimentos que existem mais na História Contemporânea. Depois desses protocolos é preciso começar a pensar qual é a importância para a evolução dos acontecimentos — porque a História é movimento. Nós, ao contar, queremos dar movimento e vamos pará-lo na descrição. Ao descrever, aquilo parou. E temos que ver o que é que parado traz em si a explicação do movimento anterior. É um trabalho muito complexo. Nunca está feito. Nunca. Isto é, nunca podemos dizer: isto é definitivo. Seria completamente dogmático. Claro que cair no cepticismo de que a História é puramente subjectiva é um discurso. Tem dito que é um céptico. Eu disse mesmo que era um manipulador, estou a trabalhar com as mãos. Mas não é manipulador no sentido de que vou alterar, ou quero enganar, fazer notícias falsas. Não é nesse sentido. Estamos a falar de uma ciência humana que depende muito de ciências exactas. . . A própria Física se renova, não é só a História. A metodologia avançou muito, mas o texto logo que acabou de ser escrito está morto; isto é, entrou no estado sólido. Já não está no estado líquido. Esse estado sólido vai sendo consumido, vai sendo destruído, ou envelhecido. Há sempre coisas novas que vão surgir na leitura de hoje daquilo que se escreveu no passado. Por exemplo, hoje não escreveria exactamente Comunas e Concelhos como escrevi. O que mudaria?A circunstância em que escrevi. Os livros no tempo do fascismo têm outra acutilância. Não estão zangados, mas estão com mais força na linguagem. Há épocas em que estão mais pacíficos. Não é que mude o que se quer dizer, mas estão menos zangados, digamos. Quando olha para alguns dos seus livros mais marcantes, por exemplo a Revolução de 1383-85 consegue reconhecer-se naquela altura?É um texto que continua absolutamente válido para mim passados 50 anos. Simplesmente os textos que se seguem — a discussão colectiva com as críticas que foram formuladas e a resposta a essas críticas — validam esse texto. E foi validado na década de 70, de 80 e agora não os alterei. Continuo a considerar válida aquela descrição. Hoje se fosse a escrever podia lá estar a mesma interpretação, mas a minha linguagem já não é exactamente igual. O que tem agora que não tinha?Se calhar não é tão forte como era. Era muito mais forte. Às vezes até eu me admiro. Mas um dos livros, ou ensaios que me deu muito gozo foi aquele em que conto a morte do inquisidor geral. Não me deu gozo o facto de ser neto de um homem que admiro muito na História e na cultura portuguesa, o D. João de Castro, o homem que se aproximou da concepção do método experimental moderno. É um tipo fabuloso. E este era neto. O que é que vou dar do neto? Ele era bispo da Guarda e vou apresentá-lo na hora da morte, dar os objectos que ele tinha à volta, o cuspidor de ouro, as imagens, dando-o depois como inquisidor, o que ele fez. Escrevi esse texto para um congresso sobre a Inquisição organizado por dominicanos; foi a intervenção final, estava muita gente, e aquilo levou-me a perder a memória. Acabei a intervenção sem memória. Li, e as pessoas que me conheciam mais de perto perceberam que eu não estava bem. Telefonaram para o Hospital de Santa Maria e fui para lá. Só de madrugada é que recuperei, mas houve um lapso de tempo desde as duas da tarde à madrugada do dia seguinte de que não recordo nada. Sabe porquê?Não. Neste momento há muita gente a fazer revisionismo histórico. Já tem falado sobre o assunto, já defendeu por outro lado a existência de um Museu dos Descobrimentos. . . O problema não é do museu. Não haver museu é não focarmos e não ensinarmos aos portugueses o que foi o período áureo da História de Portugal, um pequeno país, uma anedota de país, que são 89 mil quilómetros quadrados esteve na vanguarda do planeta. Chamem-lhe o que quiserem. Houve descobrimento. O Atlântico Sul foi descoberto pelos portugueses; os europeus descobriram os americanos e toda a África ao Sul do Equador, e deram a descobrir a si próprios que não se conheciam. Mas isso é o menos. O que quero é que nesse período ponham as navegações dos portugueses e o que eram as sociedades que os portugueses organizaram e toda a verdade dentro do museu. Ponham os povos contactados; como eram e como ficaram. O museu deve ter essas facetas todas. Esse museu deve existir e é essencial para uma cidade como Lisboa. Lisboa foi a cidade desta epopeia. Acabou de escrever o 6. º volume da sua História de Portugal. Já começou o 7. º?Já. Estou a acabar o [Marquês] Pombal. Já tem data?Não, nem quero datas, porque o período agora é muito mais complexo para mim. Por um lado, na universidade dei menos este período que estou agora a dar. E é o período de revoluções, o dos jesuítas e o do Pombal. É um período muito contraditório. Continua a escrever poesia?Às vezes, mas é muito raro. A minha intenção é fazer uma breve antologia dos poemas que acho mais significativos. Há alguns que não vou publicar e eram significativos. Por exemplo, um poema que foi traduzido em chinês na altura, Até Logo, dedicado à prisão e à minha mulher. "Há seis meses dissemos até logo, era uma tarde fria de Novembro, uma tarde como qualquer outra, gente regressando do trabalho, lancheiras, malas, rugas profundas no rosto. Até logo, disseste. . . " e continuava o poema. Mas esse não vou pôr. Porquê?Não sei, só se o mutilar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Sei que está cansado, não falámos da relação com Alexandre O'Neill que foi muito importante para si. . . Muito intensa. Uma das casas onde dormi no MUD Juvenil foi em casa do O'Neill. E chegaram a ter um projecto poético conjunto. Fazer poemas em conjunto. Estávamos em plena loucura, mesmo na minha clandestinidade ele foi lá arriscar. Eu pedir para ele ser meu padrinho de casamento e ele arriscou ir a Peniche. Eu tinha lido um poema dele, Toma Lá Cinco! [Encolhes os ombros, mas o tempo passa. . . / Ai, afinal, rapaz, o tempo passa! / Um dente que estava são e agora não, / Um cabelo que ainda ontem preto era. . . "] É um poema que me comoveu imensamente. E fez um poema a Cunhal. O Neruda tem um poema, A Lâmpada Marinha, dedicado a dois heróis meus naquele tempo — e ainda hoje são —, o Cunhal e o Militão Ribeiro. E eu, nessa altura, influenciado pelo poema do Neruda, escrevi um poema ao Cunhal. Em Peniche havia o ataque ao culto da personalidade, e quando eu lhe leio o poema ele diz-me: “Eh pá, podia-te dar para pior. " E eu rasguei o poema e hoje estou arrependido. Desapareceu como desapareceu outro, Crime em Braço de Prata, por causa da explosão que houve em Braço de Prata que matou uns cinco ou seis jovens do MUD Juvenil. Escrevi um poema que tem uma palavra do O'Neill. Como é que começa? “A cabeça de Ilídio está no meio do largo, a rebotalho de carne e sangue". O rebotalho é do O'Neill.
REFERÊNCIAS:
"A cadeia dos homens bons"
Durante anos foi a prisão de alta segurança de Salazar. A Cadeia de Peniche encheu-se de presos políticos, mas revelou não ser inexpugnável, acontecendo ali a fuga que mais humilhação causou ao regime: a de Álvaro Cunhal e de nove outros membros do PCP, a 3 de Janeiro de 1960. Depois da ameaça de se tornar um hotel, será um museu dedicado à resistência e à liberdade. Esta é a primeira de três reportagens dedicadas à Cadeia do Forte de Peniche e aos homens que ali estiveram presos por lutar contra a ditadura. (...)

"A cadeia dos homens bons"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Durante anos foi a prisão de alta segurança de Salazar. A Cadeia de Peniche encheu-se de presos políticos, mas revelou não ser inexpugnável, acontecendo ali a fuga que mais humilhação causou ao regime: a de Álvaro Cunhal e de nove outros membros do PCP, a 3 de Janeiro de 1960. Depois da ameaça de se tornar um hotel, será um museu dedicado à resistência e à liberdade. Esta é a primeira de três reportagens dedicadas à Cadeia do Forte de Peniche e aos homens que ali estiveram presos por lutar contra a ditadura.
TEXTO: António Borges Coelho diz que não se arrepende da decisão que tomou. “Nunca”, garante, firme. E não porque todos o tenham compreendido na altura. Longe disso. No Partido Comunista Português, de que fazia parte, houve muita incompreensão quando ele decidiu não se juntar a Álvaro Cunhal e aos outros nove membros do partido que, a 3 de Janeiro de 1960, se evadiram da Cadeia do Forte de Peniche. Ainda há dias contava ao P2 que Cunhal o tentou convencer por duas vezes a acompanhá-lo na fuga e que só bem mais tarde o desculpou pela recusa. Mas ele, que desde 1 de Outubro de 1957 ocupava um dos espaços do 3. º piso do Bloco C, inaugurado apenas no ano anterior, já decidira que queria uma vida diferente. “Eu não queria continuar a minha vida de funcionário do partido e queria, de facto, seguir uma via de investigação e de escrita, que foi a minha vida”, diz o historiador de 90 anos. Por isso, quando os dez elementos do PCP deixaram o edifício, um a um, debaixo do capote do guarda Jorge Alves, que os ajudou, Borges Coelho e três outros presos daquele piso permaneceram em Peniche. Os fugitivos encerraram-nos nas celas, que só podiam ser trancadas por fora, mas é claro que os guardas da cadeia de alta segurança não acreditaram na inocência dos que ficaram para trás. É claro que tinham de saber o que ali fora planeado, debaixo das barbas dos carcereiros. As represálias vieram logo a seguir. Mas para já ainda era noite. Aquela noite de Inverno de 3 de Janeiro de 1960, em que o jantar até fora melhorado porque havia sobras do que as famílias tinham trazido para a época natalícia. E Borges Coelho lembra-se de um gira-discos que chegara, cerca de um mês antes, ao Bloco C — uma das “melhorias” que tinham sido introduzidas, recentemente, depois de alguma pressão internacional sobre a situação dos presos políticos. “A primeira vez que o gira-discos tocou parecia música chinesa. A malta ligou os discos com uma rotação diferente e em lugar de nos darem Tchaikovsky, parecia música chinesa. Até que lá descobrimos o engano”, conta. Naquela noite sossegada, mas carregada de tensão por todos os que sabiam o que estava prestes a acontecer, o gira-discos também tocou. E continuou a tocar enquanto o guarda que estava de serviço, mas não envolvido na fuga, era sedado com clorofórmio, e enquanto Borges Coelho e os detidos que ficavam eram fechados, um a um, nas suas celas. “A luz ficou acesa toda a noite. Duas horas depois da fuga, veio o guarda republicano a render e veio o guarda prisional. Ao dar a volta e passar em frente ao refeitório, a luz estava acesa e ouvia-se o gira-discos, já com o disco pendente a rodar. Ele começa aos gritos, a chorar, a dizer: ‘Ó da guarda, fugiram os presos. ’ E os guardas republicanos, uns dez ou doze, começam a disparar as metralhadoras ao acaso. E o guarda a chorar veio espreitar as celas e ficámos aquela noite toda à espera. Veio a GNR, veio a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], vieram cães a cheirar as roupas. Da minha sala, que dava directamente para o pátio e para o porto, sentia os carros a chegar, a partir. Ao cabo de três horas, fiquei tranquilo. Eles tinham conseguido, senão o aparato tinha acabado. ”Para os que ficaram, seguiu-se a transferência para Lisboa, para novas sessões de tortura, em busca de respostas. Borges Coelho foi “para a estátua”, na sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, uma prática muitas vezes associada à tortura do sono e que consistia em obrigar o preso a permanecer horas de pé, sem qualquer apoio. Esteve seis meses encerrado nos curros do Aljube, em isolamento total. “Eles tentaram saber o que é que nós sabíamos, e era a represália, pura e simplesmente. O Salazar ficou doido. Foi um acontecimento político de alta importância. Era a cadeia da mais alta segurança e era uma direcção do Partido Comunista que era posta em liberdade. A partir daí, os jornais que chegavam eram todos cortados em notícias de natureza política e interna. Recebíamos rectângulos de jornais. ” No regresso a Peniche, todos os livros e papéis que tinha foram apreendidos. Há mais de 400 anos que Peniche convive com a sua fortaleza. Tudo o que está pintado de amarelo-forte no complexo são espaços originais dos séculos XVI e XVII. O Baluarte Redondo, conhecido pelos presos como “Segredo” e que serviu como espaço de castigo e isolamento durante alguns anos, foi concluído em 1558. Muito, muito antes de o histórico comunista António Dias Lourenço (1915-2010) dali ter fugido, a 17 de Dezembro de 1954. Quando Dias Lourenço escapou, atirando-se ao mar em pleno Inverno e nadando até à costa, ainda não existiam os blocos A, B e C. Rui Venâncio, da Câmara Municipal de Peniche, explica que entre 1934 e 1954 o Depósito de Presos de Peniche aproveitava apenas as estruturas antigas da fortaleza. “Eram edifícios bastante antigos e degradados, sem grandes condições do ponto de vista da salubridade, nem de segurança. Nesse período houve várias fugas. ”Apesar das péssimas condições do espaço, os presos, diz, tinham “alguma liberdade, não podiam sair da fortaleza, mas geriam o seu dia-a-dia, faziam as suas refeições”. Depois de 1954, tudo mudou. Fugas como a de Dias Lourenço abalavam o regime. Era preciso impedi-las. As regras tornaram-se mais apertadas e a repressão foi aumentando. Fizeram-se planos para que o depósito se tornasse uma cadeia à semelhança das que existiam nos Estados Unidos da América — moderna e segura, sem (grandes) hipóteses de fuga. Em 1956, é inaugurado o Bloco C e o “Segredo” deixa de funcionar como sala de isolamento — dois espaços com esse fim são integrados no novo edifício. Em 1961, seguem-se os blocos A e B. O parlatório, novo local de visita dos presos, em que estes estão separados por um vidro de quem os vai ver e sentados em bancos pregados ao chão, é a última estrutura a ser inaugurada, em 1967. Ficara definitivamente para trás o Depósito de Presos de Peniche, a “fortaleza” como era simplesmente conhecida, e estava concluída a Cadeia do Forte de Peniche. Ao longo de todos estes anos, e nos que se seguiram até ao 25 de Abril de 1974, houve muitas mudanças. A repressão que aumentou com o novo modelo prisional intensificou-se com o início da Guerra Colonial, em 1961, mas suavizou-se um pouco com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, para novamente sofrer alturas de grande repressão e acabar por se tornar menos dura, antes da queda do regime. A pressão internacional, a luta organizada dos presos, que se intensifica nos anos 1970, e a criação, em 1969, da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, foram moldando a vida dos prisioneiros. Em 1957, quando Borges Coelho ali chega, depois de ter sido detido no ano anterior pela PIDE, e de ter sido condenado, no processo colectivo do MUD (Movimento de Unidade Democrática) Juvenil, a dois anos e nove meses de prisão maior, com medidas de segurança “por período não inferior a seis meses”, o Bloco C era ainda uma novidade. Um espaço pensado para isolar ao máximo quem lá se encontrava, com grades no acesso ao piso, grades no acesso ao refeitório, portas maciças para cada uma das oito celas, com um óculo por onde os guardas podiam espreitar para o interior, grades ao fundo do corredor, para a zona especial de três espaços (uma cela individual, onde estava Álvaro Cunhal, e duas salas para serem partilhadas por presos, numa das quais estava Borges Coelho aquando da fuga). As janelas não davam qualquer sensação de liberdade, porque o vidro martelado impedia os presos de ver para o exterior, restando-lhes apenas imaginar a paisagem que se adivinhava pelos ruídos que ali chegavam: o bater do mar, os motores das traineiras, o grasnar sempre presente das gaivotas. Os presos ficavam fechados nas suas celas cerca de 20 horas diárias, saindo apenas para as refeições ou para o recreio, se não estivessem castigados. Mesmo aí, a presença dos carcereiros era omnipresente. “Estavam dois guardas e havia um que estava sempre no meio a passear e dizia: ‘Fale mais alto que eu também quero ouvir’. ” Visitas e troca de correspondência só com familiares directos e devidamente autorizados. Borges Coelho, que já namorava com Isaura Silva quando foi preso, não podia ter qualquer contacto com ela, por não serem casados. A família de Murça, quase nunca o visitava, dadas as dificuldades de deslocação. Os namorados tentaram ludibriar a polícia, com Isaura a enviar cartas assinadas como Maria da Conceição Borges Coelho, fazendo-se passar por tia do detido. No arquivo da PIDE constam várias destas missivas, apreendidas pelos agentes que desconfiavam dos termos demasiado carinhosos utilizados por aquela “tia” que escrevia, por exemplo, a 3 de Junho de 1957: “E à noite, nesta tua caminha, abraçavas-te muito à tua tia querida e assim ficavas. Eras como meu filho e hoje o meu amor por ti é ainda mais forte e mais belo porque sofre e eu antes preferia sofrer do que te ver sofrer. ” Ou, uma outra, escrita três dias depois: “Estou ansiosa por te abraçar e ter-te junto de mim que tu estás sempre sempre meu sobrinho querido, não há um momento que não pense em ti. ”Logo nesse ano, Borges Coelho começa a pedir autorização para se casar com Isaura. A cerimónia civil, em Peniche, acaba por acontecer a 4 de Janeiro de 1959. Praticamente um ano antes da fuga colectiva. “Eu casei em Peniche, esse foi um acontecimento. Naqueles cinco anos, não há acontecimentos. Os acontecimentos o que são? É tocar o apito, para sair da cama, tocar o apito para formar à porta da cela, para ir tomar o pequeno-almoço, tocar o apito para levantar outra vez e ir outra vez para a cela, tocar o apito para o almoço, se não estamos castigados, uma hora de recreio. E tudo isto, mecanicamente, um dia, outro dia, outro dia. Quais são as alternâncias? Os castigos. As revistas à cela. E o grande movimento que houve junto ao parlatório, com greves, com tudo. Mas o grande, grande acontecimento foi a fuga, quer acontecimento interno quer externo. ”Domingos Abrantes, 82 anos, ri-se e diz que a sua vida prisional também foi indirectamente afectada pela fuga colectiva de Peniche. Membro do MUD Juvenil desde 1953 e do PCP desde 1954, fora preso a 27 de Julho de 1959. “Nesse tempo fui para Caxias, depois para Peniche, logo a seguir à fuga, no princípio de Fevereiro. Fomos reocupar o espaço que tinha ficado vago. Era um regime de cortar à faca. Aquilo era uma coisa. . . Vingavam-se da gente. ” O histórico comunista, que viria a participar, também ele, numa das mais famosas fugas do pré-25 de Abril, diz que, da sua experiência — e ele andou por Caxias, o Aljube e Peniche —, o forte para onde foi transferido a 10 de Fevereiro de 1960 era “o pior” de todos os locais, ultrapassado apenas pelo “segredo de Caxias”, uma cela “subterrânea, sem luz, sem cama”. Neste primeiro período de detenção, Domingos Abrantes foi várias vezes transferido, de cadeia em cadeia, sem que saiba muito bem porquê. Desde o momento que foi detido nunca falou, nem sequer para dizer o nome, apesar de ter sofrido espancamentos e a tortura do sono. E o relato dos castigos a que foi sujeito revela bem o “jovem com sangue na guelra”, como ele próprio se descreve, referindo-se a este período, disposto a travar uma batalha com o sistema: punido a 26 de Outubro de 1959 “com a pena disciplinar de exercício ao ar livre por espaço de dois dias”, por ter “alterado o sossego indispensável no estabelecimento prisional onde se encontra”; punido a 5 de Fevereiro de 1960 com “proibição de visitas pelo espaço de um mês” por “haver tomado uma atitude de manifesta indisciplina, criticando os serviços do estabelecimento prisional em que se acha recolhido e dirigindo palavras ofensivas ao guarda encarregado da sua condução”; punido a 19 de Maio de 1961 com “privação de exercício ao ar livre por sete dias” por “haver tomado uma atitude de manifesta indisciplina”; punido a 29 de Agosto de 1961 com “20 dias de privação de visitas” e proibição de receber “merendas entregues por terceiros”, por “interferir em assuntos que apenas respeitam à administração interna do estabelecimento prisional”. Domingos Abrantes ri-se muito durante a entrevista na sede do PCP, em Lisboa, onde escolheu ser entrevistado. Diz que o longo período em que esteve preso durante a ditadura não o traumatizou. Mas insiste que é preciso não esquecer o que era aquele sistema prisional. Ele não esqueceu. Não esqueceu a sede da PIDE, as cadeias do Aljube e de Caxias. Não esqueceu Peniche. “Era um sistema de isolamento. Se estivesse de castigo, eram 24 horas sobre 24 horas, cheguei a estar um mês sozinho. No dia-a-dia, são 20 e tal horas de isolamento. Tem esse aspecto. Mas o regime prisional era de opressão, provocação, de violência diária, de conflitos diários, para afectar o sistema nervoso, um regime restritivo. O chefe dos guardas, que era o director real, o [Vítor] Ramos, esteve lá 20 e tal anos. Era um pide, um representante da PIDE. Na cadeia — ele tinha estado na Guerra de Espanha — gabava-se de ter pertencido aos pelotões de fuzilamento, dizia em voz alta que não devia haver presos, que era um desperdício para o Orçamento do Estado. A mentalidade. . . Um corpo de guardas que era treinado e seleccionado por ele. Um guarda que mostrasse alguma humanidade era logo. . . Uma alimentação péssima. Era todo um sistema prisional organizado para que o preso quando saísse daquela porta não tivesse vontade, o preso ia pensar duas vezes em voltar à mesma actividade. Era um sistema prisional montado para abalar as convicções que tinham levado à cadeia. Mesmo os livros. Muitas vezes era proibido ter livros e um preso sem livros é um problema sério. ”A sua primeira passagem por Peniche termina a 27 de Março de 1961. Regressa a Caxias e em 28 de Novembro desse ano é julgado como desertor pelo Tribunal Militar. Não cumpre a pena a que é condenado (três anos e seis meses de prisão) porque dias depois, a 4 de Dezembro de 1961, participa naquela que seria a última fuga colectiva do regime. Uma fuga com todos os contornos de um bom filme. “Havia uma orientação do partido que era a obrigação de procurar fugir. Era uma orientação, mas há uma grande diferença entre procurar fugir e fugir. . . ” Durante 19 meses planeou-se a fuga, que envolve um dos detidos, António Tereso, fazer-se passar por “rachado” (nome dado aos traidores, que falavam e entregavam companheiros à PIDE) e ganhar a confiança do director da cadeia. Tereso começou a tratar do carro blindado que Adolf Hitler oferecera a Salazar e que se encontrava guardado e parado em Caxias. E propõe que fujam naquele carro, meses depois de os guardas se terem habituado à ideia de o ver circular nos pátios da cadeia na viatura. No dia marcado para a evasão, apesar dos sobressaltos (um carro da PIDE chega inesperadamente ao recinto quando os presos estavam no recreio, atrasando a fuga), Tereso conduz o carro em marcha-atrás até ao recreio e, debaixo do olhar dos guardas, sete membros do PCP ali detidos entram na viatura, dando início à fuga. “Eles não reagiram”, recorda Domingos Abrantes, um dos presos que escaparam nesse dia. “Acharam que aquilo era uma coisa de garotos, uma brincadeira, que a gente tinha ocupado o carro. . . Para já, porque o Tereso era uma pessoa da confiança deles. ‘Vários fulanos que se meteram dentro do carro para gozar com a gente ou o caneco, não é?’ Nunca pensaram que ia haver fuga. ”Quando voltou a ser capturado pela PIDE, a 21 de Abril de 1965, as circunstâncias foram, por isso, diferentes da primeira prisão. Agora já não era apenas o “membro” e “funcionário” do “partido comunista português” (era assim, entre aspas e com minúsculas que a PIDE se referia ao partido ilegal nos seus documentos). Agora era também o fugitivo que humilhara o regime e, além disso, a companheira com quem partilhava a casa clandestina onde ambos viviam, no Montijo, também foi presa no mesmo dia, algumas horas antes. Domingos Abrantes e Maria da Conceição Matos foram ambos sujeitos a duras torturas. A dele, com alguns contornos que, à distância, o fazem rir, mas que naquela altura — cumprindo 16 dias consecutivos de tortura do sono, ameaças de morte, alucinações e a pressão psicológica exercida constantemente pelos agentes que lhe diziam que Conceição já tinha contado tudo (mentira em que nunca acreditou) — o deixaram “perturbado”. Foi quando começou a ser visitado, na sede da PIDE, por um homem de bata branca que lhe dizia ter uma máquina desenvolvida pelos americanos que era capaz de retirar do cérebro todos os pensamentos que lá estivessem guardados. “A certa altura, comecei a ficar perturbado. Sinceramente. Não vou dizer nada a estes bandidos e os gajos vêm cá buscar. Isto foi uma coisa que me perturbou muito. Era a última coisa que me podia acontecer. Estar ali a sofrer e não dizer nada e os gajos porem aqui uma máquina e tirar-me o que cá estava. Repare que eu estou a falar de uma pessoa que está debilitada, que tem menos condições de discernir a realidade, está sujeita a uma enorme pressão, já num estado cadavérico. ”A encenação foi levada até ao limite — carregado em braços por agentes da PIDE para uma sala num piso diferente, colocaram-lhe um capacete na cabeça, ligado a fios eléctricos. Como nada acontecia, desculparam-se com uma avaria. Tentaram o mesmo noutra altura e aí, apesar da fraqueza, o preso percebeu que a máquina era um embuste. Eles admitiram-no e devolveram-no à sala de interrogatórios, onde depositaram um colchão, informando-o de que estava proibido de se aproximar mais de meio metro daquele bem tão desejado. Foram dias de confusão, dor e alucinação, mas Domingos Abrantes ficou com uma certeza: “Nunca se perde a consciência de onde se está. ” E, mais, garante: “Quando eles falam, aquilo parece uma campainha. ‘Onde é a casa? Quem são os outros? Quem é o comité central?’ Funciona como uma campainha. É mobilizar forças e energias e, sobretudo, não mostrar medo ou perturbação, que é o fundamental. Se a pessoa mostra medo ou fraqueza, é uma desgraça. Apertam, apertam, nunca mais…”Depois desta segunda prisão, Domingos Abrantes cumpre praticamente toda a pena a que foi condenado em Peniche. Foi enviado para o forte a 2 de Junho de 1965 e só seria libertado a 23 de Março de 1973. Tal como Borges Coelho, também ele casou ali com a sua companheira, depois de ela própria ter sido libertada da prisão. O casamento, a 18 de Outubro de 1969, foi um mero acto formal, sem direito a convidados nem “boda” e que serviu, sobretudo, para que o casal se pudesse voltar a ver. O isolamento é um dos aspectos que mais refere quando fala desta prisão, apesar de dizer que até o preferia às salas, onde a vida podia ser complicada “porque as pessoas tinham os seus problemas” e os “dramas da vida” no exterior, transmitidos aos presos, “criavam um estado de ânimo difícil”. Não esquece a história triste de Dias Lourenço, de novo preso em Peniche, e assistindo à distância, sem poder intervir, ao avançar da leucemia que lhe mataria o filho de dez anos. Ou que foi a ele, Domingos Abrantes, que a PIDE pediu ajuda para contar a outro preso político, Daniel Cabrita, que a mulher se tinha suicidado. Momentos extremamente dolorosos, mas que lhe trazem à boca a palavra “solidariedade” — um dos aspectos positivos que retirou da sua passagem por Peniche. “[Nestes momentos] A solidariedade, os valores humanos aparecem ali e, sobretudo, porque vivíamos no meio de monstros, haver estes sentimentos humanos é um reconforto. Afinal, a humanidade não é só isto. ”Antes do início das obras que estão a transformar e fortaleza num museu, Mário Araújo regressou à antiga cadeia onde esteve preso cerca de quatro meses, para falar com o P2. Diz que ainda hoje não lhe é fácil entrar ali. “Este aspecto físico de que desfrutamos, eu nunca o desfrutei, porque nós entrávamos por aquela porta e os guardas prisionais e os GNR, para não exagerar, eram às dezenas”, diz. No pátio que funcionava como recreio para os detidos dos blocos A e B e de onde, durante a prisão, só conseguia ver o céu e as gaivotas que sobrevoavam a cadeia, vê-se agora o mar, pela entrada aberta. “Este ambiente hoje não é festivo, mas é calmo. É quase convidativo a entrar. Naquela altura era terrífico. Chegávamos à entrada e éramos logo revistados. Alguns tinham de tirar as calças e virar o rabo e tal. É uma tentativa de humilhação, nós tínhamos de ser fortes. Estávamos trabalhados para isso, tínhamos mentalidade para aceitar essas coisas, mas que era uma tentativa de humilhação infame, é verdade. E estas coisas que são pequenos aspectos da vida prisional não chegam a toda a gente. Os testemunhos cada vez vão sendo menos, as pessoas vão sendo menos, as pessoas vão passando por esta vida. ”Há coisas difíceis de explicar, continua o homem da Cova da Piedade, de 83 anos, como o que faz a um homem ficar privado da paisagem e alimentar-se apenas de sons. “À noite, as traineiras que iam para o mar faziam tac-tac-tac. Era comovente. E a chegada. Era como se estivéssemos lá e fizéssemos aquela viagem de ida e volta também na traineira. Isto para quem ouve esta narração parece uma coisa de somenos, mas eram momentos que nós guardamos, ainda hoje. Aquilo era uma coisa que tocava. Criava em nós sensações de liberdade exterior que não tínhamos, não se via nada. O que víamos aqui era o céu e as paredes. ”E, às vezes, caranguejos que aterravam no pátio, nos dias de tempestade. “A partir de Setembro e até Dezembro, Janeiro, o mar agitava-se de uma maneira feroz. Vocês vão ver a distância entre este espaço aqui e a muralha, e a água vinha e trazia caranguejos vivos que vinham bater aqui [no pátio do recreio]. O que eram as ondas… E por baixo [do bloco A] isto é do género da Boca do Inferno. Os pedregulhos que estão por ali são revoltos pela água e batem por baixo, onde a gente dormia… Onde a gente tinha a cama, o dormir era acidental. Em pleno Inverno, as condições eram terríveis. ”Ainda hoje, inconformado, Mário Araújo diz que foi preso por ter ajudado “a montar uma escola”. Apesar de, na altura da sua prisão, em 1967, já pertencer ao PCP, foi em Peniche que desenvolveu os seus conhecimentos políticos. “Estive [aqui] com o amigo Adelino Pereira da Silva, que me politizou, aqui nestes recreios. Podíamos falar dois, não podíamos falar três, mas arranjávamos sempre maneira, até pela correspondência nas mortalhas, pelos livros, nas lombadas, essas coisas. E este Adelino informou-me o que era o partido, enraizou-me o partido”, conta. Se já “havia fascínio”, diz, ali ganhou suporte para as suas convicções. Quando Mário ali chegou, Adelino Pereira da Silva já se encontrava em Peniche desde 24 de Março de 1964. Acompanhado por Mário, José Pedro Soares e Clemente Alves — dois outros ex-presos políticos, que ali estiveram nos anos 1970 e cujas histórias serão contadas na próxima edição do P2 — também ele percorre os espaços que foram o seu universo durante quase seis anos. Mário encolhe os ombros: “O Adelino é um manancial de vivências dentro da cadeia. Ele não escreve, não quer escrever. São sentimentos, são vivências…”Adelino não escreve, mas conta, quando lhe perguntam. Basta que queiram ouvir. Conta, por exemplo, que, em criança, a casa dos seus pais já servia de apoio para reuniões da direcção do PCP e que era um vaivém de “tios e tias” que entravam e saíam, como Pires Jorge ou Dias Lourenço. E que assim que entrou para o partido, em 1959, tinha então 20 anos, a primeira tarefa que lhe deram, sem que sequer o sonhasse, estava relacionada com a fuga colectiva de Peniche. “Foi ir tirar a carta de condução”, diz. Na clandestinidade, responsabilizou-se pela montagem de várias tipografias clandestinas e, no final daquele ano, dizem-lhe que vá dar, finalmente, uso à carta que o partido o ajudara a obter em duas semanas. “O Pires Jorge diz-me: ‘Vais ter uma tarefa que é, vais fazer os trajectos, vês as alternativas todas, entre Lisboa e Peniche’. ” Só quando aconteceu a fuga, é que o jovem funcionário do PCP percebeu o que andara a fazer. “O resto é conhecido”, sorri. Adelino Pereira da Silva montou uma casa na clandestinidade com a companheira designada pelo partido, Alice Capela, e acabam a viver como casal. Quando ele é preso, a 31 de Janeiro de 1963, já tinham um filho em comum, de quase três anos. Tinham mudado de casa naquele dia, por suspeitarem de que estariam já sob vigilância, mas Adelino insistiu em regressar à antiga morada para ir buscar alguns papéis que lá deixara. Alice pressente o pior e tranca a porta, não o quer deixar sair. “Não vais porque eu tenho um pressentimento de que vais lá ficar”, disse-lhe ela. “Andei ali a rabiar atrás dela até que lhe consegui tirar a chave e fui mesmo. ” A PIDE prendeu-o quando metia a chave à porta do antigo apartamento. Em Dezembro desse ano, Alice e a mãe dela também são detidas e a criança acompanha-as. Passa cerca de três meses entre os muros de Caxias, antes de, perante as ameaças da PIDE de que o pequeno Alfredo seria entregue a um orfanato, acaba por ir viver com um tio. Por esta altura, já Adelino sofrera pesadas torturas, no vaivém entre o Aljube e a António Maria Cardoso. Espancamentos, 14 dias de tortura do sono, com uma curta interrupção para descansar ao fim do sétimo, tortura psicológica, com a audição de gravações de choros de criança e gritos de mulher, que imaginava serem Alice e Alfredo. Numa carta que envia a uma tia, em Junho de 1963, e que a PIDE guarda no seu ficheiro, deixa antever o sofrimento a que fora sujeito, ao escrever, referindo-se ao seu estado de saúde: “São precisamente tais complicações, estas e outras que vão surgindo, que nos podem encurtar a vida. Embora a devamos defender com todas as nossas forças, isso não nos deve assustar, de maneira alguma. Devemos ser calmos e ter sangue-frio, quer nestas quer noutras situações difíceis! Há dias em que me vejo obrigado a meter na cama. Dão-me tonturas, perco o equilíbrio, tendo já caído algumas vezes, quando não consigo ou não tenho tempo de amparar-me. Começam as pontadas fortes e agudas nos pulmões e coração, ao mesmo tempo subindo também a temperatura. Quando isto sucede, fico completamente esgotado, dado o esforço físico que tenho de fazer. Mas isto passa. Com calma vai. Não passa num mês, passa num ano, mas há-de passar!”Adelino só seria julgado a 13 de Fevereiro de 1964, sendo condenado a três anos de prisão maior e medidas de segurança. Durante o julgamento tenta ler uma declaração de quase 17 páginas que é uma verdadeira acusação ao regime a apologia do PCP, e é levado “à porrada para o calabouço do tribunal”. Entra na Cadeia do Forte de Peniche no dia 24 de Março e, em Abril, é de novo julgado, sem sequer estar presente, por falsificação e uso de documentação falsa. O cúmulo jurídico das duas condenações salda-se em quatro anos. Vai cumprir, contudo, quase seis, graças às medidas de segurança. No forte colocam-no na cela 4 do pavilhão B, em regime de “observação”. “Quando chego aqui sou despojado de tudo. Sou enfiado ali e a única coisa que me dão são os sapatos e a roupa que trazia vestida. Não tinha nada para escrever, nada para ler. Nada. ” O período de “observação”, que deveria durar seis meses e durante o qual o preso estava impedido de comunicar com os outros detidos, prolongou-se, no caso dele, por mais de cinco anos. Para se distrair, construiu dois jogos de xadrez com miolo de pão e jogava sozinho, horas a fio. Mas a proibição de contactar com os companheiros detidos era contornada nos raros momentos em que se cruzavam — no recreio, à hora das refeições — e Adelino acabou por assumir uma das tarefas mais importantes dentro da cadeia: as comunicações. As mensagens podiam ser coladas com sabão no tanque onde os presos iam lavar a roupa. Ou dentro de uma peça de roupa a secar no estendal. Ou deixadas escondidas nas zonas que partilhavam, como o refeitório ou o quarto de banho. Ou atiradas dentro de bolinhas de miolo de pão (Dias Lourenço também usara miolo de pão para disfarçar os cortes que ia fazendo na porta do “Segredo”, quando dali fugira) no recreio. Para o exterior, minúsculos papéis preenchidos com letra ainda mais microscópica eram escondidos em peças de roupa ou em cigarros. Ele, que não fumava, começou a fumar, para ter acesso às mortalhas em que escrevia mensagens. O primeiro lápis que recebeu, ainda no Aljube, foi dentro de um cigarro. Às vezes, os guardas apanhavam estas mensagens, seguindo-se os castigos. E estes, recorda Adelino, podiam acontecer por qualquer razão. Ou porque os presos decidiam partilhar comida que a família lhe enviara — o que nesta altura era proibido —, porque diziam algo que não deviam ou por algum comportamento que desagradava aos guardas durante as visitas. “Nós éramos castigados constantemente”, diz. Adelino chega a Peniche já depois do início da Guerra Colonial, quando a repressão na cadeia aumentou. E a luta dos presos se intensificou. Houve levantamentos de rancho, quando os presos se recusavam a comer. “Fizemos um durante três dias, recusávamo-nos a comer porque a comida era intragável. A sopa, por exemplo. Aquilo não era sopa. Espetava-se a colher e ela ficava de pé. E o cheiro era intragável. O peixe normalmente era aquele chicharro que eles não queriam, que vinha da lota. Aquilo cheirava a fétido que tresandava e começámos a protestar. ” E houve verdadeiras sessões de gritaria colectiva de “temos fome, temos fome” e “melhores condições prisionais”, que chegaram a ser acompanhadas por familiares e moradores de Peniche no exterior da cadeia. Tudo combinado para acontecer em simultâneo, graças ao sistema clandestino de troca de mensagens. A 6 de Abril de 1966, casa-se com Alice por procuração. O documento que oficializa o acto dá-o como residente na Cadeia do Forte de Peniche e ela na Cadeia de Caxias. Só depois do casamento puderam começar a corresponder-se. Quando saiu em liberdade condicional, a 10 de Outubro de 1969, Alice tinha sido libertada apenas no mês anterior. Ele saiu sozinho, mas, como era dia de visita, apanhou boleia para Lisboa. António Borges Coelho também saíra sozinho e não esquece esse momento. “Fui o primeiro preso a sair depois da fuga. Quando cheguei à porta, antes de atravessar aquela ponte de saída, uma mulher de pescadores aproximou-se de mim. Eu vinha com duas malas que carregava, estava o chefe dos guardas e os guardas à porta e perguntou-me o que estava a ver, o que estava a acontecer. ‘Está a sair, não está?’ Estou. ‘Então deixe-me dar-lhe um abraço. ’ Ali, nas barbas dos guardas, foi dos grandes abraços da minha vida. Digo-vos sinceramente: nessa altura, tinha dificuldade em atravessar um largo. Desequilibrava-me. Estava de tal maneira habituado aos cinco anos a lá estar metido que não conseguia atravessar calmamente um largo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mário Araújo tinha uma comitiva à espera. Atrasaram-se um pouco, mas, quando ele já desesperava, “apareceram umas dez ou doze pessoas, em três ou quatro carros”. Para trás ficava a cadeia que ainda hoje lhe provoca “um estremecer de sentimentos, uma amálgama de sensações, que é indizível”. Há sempre coisas novas que lhe vêm à memória. Pequenas histórias. Como aquela da menina que, enquanto a mãe visitava o marido detido em Peniche, ficou no exterior a passear com o avô, sem saber que o pai estava ali dentro. Olhando a enorme estrutura do forte perguntou o que era aquilo. “O avô diz-lhe: ‘aquilo é uma cadeia. ’ E às duas por três, a menina: ‘Uma cadeia assim tão alta? É uma cadeia dos homens maus, ali os homens são maus’. ” O avô, recorda o velho resistente, deu-lhe a resposta que foi depois partilhada através do vidro do parlatório com o pai da criança e transmitida aos companheiros: “Não, aquela é a cadeia dos homens bons. ”
REFERÊNCIAS:
O Japão volta a ser recebido na Ajuda, mas desta vez sem D. Luís na sala do trono
As relações diplomáticas entre Portugal e o Japão voltam a ter o Palácio da Ajuda por cenário, 150 anos depois de a primeira delegação nipónica ali ter estado. Exposição condensa cinco séculos de uma história partilhada repleta de maravilhamento e tensão. Acaba a 27 de Março. (...)

O Japão volta a ser recebido na Ajuda, mas desta vez sem D. Luís na sala do trono
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: As relações diplomáticas entre Portugal e o Japão voltam a ter o Palácio da Ajuda por cenário, 150 anos depois de a primeira delegação nipónica ali ter estado. Exposição condensa cinco séculos de uma história partilhada repleta de maravilhamento e tensão. Acaba a 27 de Março.
TEXTO: Esta é uma história com 500 anos que se escreve em dois grandes capítulos, separados por um longo interregno. Esta é a história das relações entre Portugal e o Japão contada em versão condensada e numa exposição que reúne biombos, lacas, mapas, porcelanas, dicionários, armaduras e espadas de samurai. Contando com empréstimos de várias instituições públicas e de coleccionadores privados, Uma História de Assombro. Portugal-Japão Séculos XVI-XX leva ao Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, uma segunda embaixada nipónica, depois de por ali ter passado, há pouco mais de 150 anos, a primeira. O rei D. Luís, que se vira forçado a assumir o trono na sequência da morte prematura do irmão, D. Pedro V, tinha acabado de casar com uma princesa italiana, Maria Pia de Sabóia, quando recebeu na Sala do Trono os representantes do governo do Japão. Esta delegação estava a fazer um périplo pela Europa, passando pelos países com quem tinha reatado relações diplomáticas, no caso de Portugal interrompidas há mais de 200 anos. “É o momento da reabertura do Japão ao Ocidente, muito graças à intervenção dos Estados Unidos. E Portugal beneficia dessa conjuntura internacional, reatando laços que tinham sido quebrados de forma violenta com a expulsão dos missionários do território japonês, em 1614, e depois com a saída forçada de todos os portugueses, os comerciantes, no final da década de 1630”, diz Alexandra Curvelo, historiadora que divide o comissariado científico desta exposição com Ana Fernandes Pinto, ambas investigadoras da Universidade Nova. “Há registos na imprensa da época desta visita, da ida da delegação ao Teatro de São Carlos e da audiência régia, em pormenor. ”Na bagagem, lembra um dos textos do catálogo que acompanha esta exposição da Ajuda, escrito pela conservadora de mobiliário da casa, Maria José Tavares, os enviados nipónicos traziam muitos presentes para o jovem rei português, que nesse ano de 1862 honrava o Tratado de Paz, Amizade e Comércio que D. Pedro V celebrara com o Japão dois anos antes. Muitos estão agora à vista de todos na Ajuda e alguns deles, como a espectacular armadura e os arreios de cavalo, pela primeira vez. Espadas com trabalhos ornamentais, pinturas, biombos, tinteiros e ricas sedas foram oferecidos ao monarca por um importante governante já retirado, o taicum Tokugawai. Mais tarde, em 1864, D. Luís recebe do xogum Tokugawa, um poderoso chefe militar, uma nova remessa de prendas em que às espadas e têxteis nobres se juntam “uma escrivaninha, dois pares de jarras, uma poncheira e um vaso de porcelana, uma figura de cristal representando um homem, uma mesa de escrita e duas caixas de diversos jogos”, escreve Tavares. Os presentes eram tantos e tão especiais que, nas obras de remodelação do palácio, na década seguinte, D. Luís manda fazer uma sala para os acomodar, um espaço que a exposição procura recriar e que, sendo no essencial japonês, mais tarde se passa a chamar, ironicamente, Salinha Chinesa. A este período de reencontro, que começa em 1860 e que na exposição se centra na dita salinha e nos presentes para o rei de Portugal, segue-se o da fase da diplomacia cultural que marca os últimos núcleos de Uma História de Assombro, abrangendo o período que vai de 1903 a 1952. Neles se pode ver — em documentos escritos e iconográficos — como os portugueses que visitaram o arquipélago e ali trabalharam olharam para esse “novo Japão” e para a sua importância crescente na geopolítica mundial. Neles se pode ver como os japoneses — académicos e coleccionadores — olharam para a memória histórica da presença portuguesa no seu território e a resgataram. É aqui que se pode encontrar um biombo nanban da primeira metade do século XIX filiado nos realizados nos séculos XVI e XVII em que se representa a chegada dos portugueses a um porto japonês. Nanban, explica-se no catálogo, porque são obras de arte que contêm representações de nanban-jin ou “bárbaros do sul”. Com a chegada dos portugueses no século XVI, a palavra de origem chinesa nanban, que no Japão começou a ser usada para designar os povos da Ásia do sudeste, passou a ser aplicada aos povos do sul da Europa (ingleses e holandeses tinham direito a outro termo — eram kómó-jin ou “homens de cabelo vermelho”). “O que queremos mostrar com esta exposição é que a relação que se estabeleceu há quase 500 anos entre japoneses e portugueses, que começou por ser marcada pelo tal assombro, o maravilhamento, e por uma tensão crescente que depois termina naquilo a que o ocidente chamou martírio e na expulsão de missionários e comerciantes, nunca impediu que se estabelecesse um diálogo entre estas duas culturas que se influenciaram mutuamente, como podemos ver pela arte, pelos relatos de viajantes e missionários, e até pela cartografia”, explica Alexandra Curvelo. Os atlas presentes na exposição — quer em suporte físico, quer em imagens projectadas em dois dos muitos ecrãs que fazem parte da estrutura de Uma História de Assombro — são um reflexo da forma como o encontro de portugueses e japoneses no século XVI produziu muito conhecimento. “Os portugueses foram um elo absolutamente decisivo para o mapeamento do território japonês. Só depois da chegada dos primeiros missionários e comerciantes é que começam a circular na Europa mapas mais completos do Japão. ”Sublinhando que a presença portuguesa no arquipélago desde a chegada da primeira nau (c. 1542-43) até à expulsão dos últimos comerciantes (1639) nunca é assegurada por fortes guarnições militares mas por missionários e homens de negócios, a comissária volta a falar de mapas para ilustrar o “diálogo proveitoso” entre as duas culturas: “Quando os portugueses chegam não está fixada uma cartografia do arquipélago, mas eles não partem do zero. Há uma série de tradições e de conhecimento local que lhes é útil, embora a cartografia japonesa fosse até ainda muito mística, muito ligada à espiritualidade budista. ”Fixando-se sobretudo na Ilha de Kyushu, a terceira maior do arquipélago japonês, “território de contacto de várias culturas”, os missionários portugueses — primeiro e em exclusivo os da Companhia de Jesus e, mais tarde, também os franciscanos — levam outra espiritualidade na bagagem. “O encontro com os japoneses no século XVI é o encontro do Japão com o ocidente, o encontro do Japão com o cristianismo, que depois passa a ser perseguido e que só deixa de ser proibido em 1873. ”Os jesuítas vão nas naus de mercadorias e são apresentados aos grandes senhores da guerra japoneses pelos comerciantes. Rapidamente, diz Curvelo, estes religiosos percebem que só aliando-se aos mercadores estarão em condições de assegurar a sobrevivência da missão. E fazem-no. “Esta aliança aos comerciantes levanta muitas questões éticas até em Roma, mas acaba por ser vista como um mal necessário. É por isso que a Igreja dá aos jesuítas grande margem de manobra para se envolverem no negócio. ”A Companhia de Jesus recebia uma percentagem da troca da seda chinesa pela prata japonesa e alguns dos seus padres assumiam posições estratégicas. “João Rodrigues, um jesuíta que foi para o Japão muito novo e rapidamente aprendeu a língua, estando entre os que contribuíram para o primeiro dicionário português-japonês e sendo autor de uma obra importante sobre a língua [Arte da Lingoa de Japam, 1604], era um dos agentes do comércio em Nagasáqui. ”Nagasáqui, aliás, é cedida à Companhia de Jesus e transforma-se num centro da cristandade, com igrejas em pedra de grande porte, passando em pouco tempo, também graças à presença chinesa, de modesta comunidade piscatória a cidade cosmopolita. “Nagasáqui é a cidade mais cosmopolita do Japão desde a chegada dos portugueses até que o comodoro Perry, da Marinha americana, entrou com os seus navios na baía de Tóquio, em meados do século XIX”, abrindo alguns portos do arquipélago ao comércio com os Estados Unidos. “Os jesuítas tornaram-se tão importantes no território que acabaram por ser perseguidos, assim como qualquer franciscano ou japonês fiel ao cristianismo”, lembra Curvelo. Numa fase delicada da política no arquipélago, que correspondeu à primeira unificação do território, a Companhia de Jesus era vista como um possível contrapoder. “Os grandes senhores feudais começam a achar que a capacidade de mobilização dos jesuítas pode ser uma ameaça. E o próprio cristianismo é proibido porque é visto como potencialmente disruptivo, causador de tensões sociais que podem pôr em causa a unidade do Japão. ”Os missionários acabam expulsos e muitos são castigados publicamente. Alguns ganham até estatuto de mártires ao serem crucificados ou queimados na fogueira. “Estas execuções a que a Igreja no Ocidente chamou martírios eram vistas no Japão como punições públicas aplicáveis a vários tipos de crimes. Se formos ver, não são diferentes dos castigos impostos pela inquisição na Europa. ”Na exposição da Ajuda há várias reproduções digitais de gravuras e documentos que atestam essas punições públicas e objectos ligados aos castigos e aos mártires. Entre eles estão os relicários de dois dos primeiros 26 cristãos crucificados em Nagasáqui em 1597, ainda antes da ordem de expulsão (1614). Ainda assim, a comissária conclui: “A tensão, mais do que a violência, foi o que marcou a relação do Japão com o cristianismo, com os jesuítas e outros missionários. ”Biombo de duas folhasJapão, século XVII-XVIII? Colecção Privada, Lisboa. Biombo realizado no Japão muito provavelmente já após a expulsão dos Portugueses (1639), atestando a persistência desta nova temática pictórica na pintura japonesa e a curiosidade que este exótico continuou a exercer. Par de estribosJapão, final do século XVI/ início do século XVII. Colecção particularCada estribo apresenta uma cruz vazada, testemunhando a aliança de alguns grandes senhores japoneses com a missão cristã. Núcleo de peças do Hirado City Ikituski Folk Museum:Virgem com o Menino e dois santos, Santo Inácio de Loyola e São Francisco XavierJapão, c. 1926. Hirado City Ikitsuki Folk Museum. Shima-no-yakata, JapãoDeste núcleo da Virgem fazem parte objectos venerados por comunidades de cristãos ocultos (kakure kirishitan) e guardados em segredo por um dos seus elementos. De feição variada, incluem os omaburi, pequenas cruzes de papel que depois de tocadas por água purificada serviam de ligação com o sagrado, sendo guardadas em caixas de madeira (otenpensha). Outras peças têm por base a imagem de uma divindade com uma criança ao colo, remetendo para a iconografia da Virgem com o Menino, que se aproxima também de Kannon, bodhisattva budista associada à compaixão. Carta redigida por Tokugawa Iemochi ao rei de PortugalJapão, 1862. Arquivo Histórico Diplomático – Ministério dos Negócios EstrangeirosDocumento que remete para o reatar das relações diplomáticas entre Portugal e o Japão já no contexto do período de abertura do Japão ao estrangeiro, datada de dois anos após a assinatura do Tratado de Paz, Amizade e Comércio entre os dois países. Em 1862 chegou a Portugal a Embaixada japonesa que foi recebida pelo rei D. Luís I. Armadura japonesa de SamuraiSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Japão, séc. XVIII – XIX (primeira metade). Palácio Nacional da AjudaCom a Embaixada japonesa de 1862, chegaram à Corte portuguesa vários presentes cuja memória material perdura na dita Sala Chinesa do Palácio da Ajuda. De entre os vários presentes, destaca-se o conjunto de arreio e uma sela de cavalo de elevado valor artístico, assinado por um mestre em selas ao serviço do terceiro xogum, Tokugawa Iemitsu (r. 1623-1651).
REFERÊNCIAS:
Ípsilon: Portugal: este país de maravilhas existe
Entre o Verão de 2013 e o Verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal filmando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Portugal, país das maravilhas. Como na canção de Leonard Cohen (“We are ugly, but we have the music”), somos feios mas temos as histórias. (...)

Ípsilon: Portugal: este país de maravilhas existe
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entre o Verão de 2013 e o Verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal filmando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Portugal, país das maravilhas. Como na canção de Leonard Cohen (“We are ugly, but we have the music”), somos feios mas temos as histórias.
TEXTO: Nos dois últimos filmes de Quentin Tarantino, o cinema tem-se vingado da História, contando a sua própria versão dos acontecimentos. Os nazis mataram milhões de judeus? Em Sacanas Sem Lei, Hitler é morto numa sala de cinema em chamas. A escravatura é o pecado original da América? Um negro reduz uma plantação de escravos a um banho de sangue em Django Libertado. Entre o Verão de 2013 e o Verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal filmando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Pode dizer-se que inventou um método: um pequeno grupo de jornalistas contratados pelo realizador vasculhou acontecimentos e fait-divers em toda a imprensa, fazendo, de seguida, a sua própria investigação e reportagem; Gomes e a equipa do filme iam para o terreno quase imediatamente, reagindo aos acontecimentos reais a quente, e com ficção. O resultado é surreal, e nem sempre isso se deve à ficção. O que é mais surreal, animais que falam, um assassino que é aclamado pela população como um herói, homens que têm pássaros em casa e os ensinam a cantar, a troika em cima de camelos?O que Miguel Gomes – realizador de Aquele Querido Mês de Agosto e de Tabu – alegadamente não sabia quando acabou de rodar é que tinha feito não um filme mas três. Um filme triplo que chega às salas de cinema com semanas de intervalo entre cada uma das partes. Cada volume é autónomo, auto-suficiente, mas lança o desejo de ver o próximo como nos folhetins. As Mil e Uma Noites, assim se chama este blockbuster artesanal e inventivo, por se inspirar na estrutura do livro homónimo: o filme não é uma adaptação, apesar de ter a sua própria Xerazade como cronista do reino. Mas, como se vê logo no primeiro volume, Xerazade é Miguel Gomes: é a sua cabeça que está a prémio porque filmar assim, sem rede, como se fosse uma aventura, só pode ser perigoso. Realização:Miguel Gomes Actor(es):Crista Alfaiate, João Pedro Bénard, Isabel Muñoz CardosoRealização:Miguel Gomes Actor(es):Crista Alfaiate, Bernardo Alves, Chico Chapas, Carloto Cottaé uma trilogia com pavor da fixidez, em permanente mutação, um laboratório de estilos narrativos e cinematográficos. Cada filme tem a sua própria tonalidade, como se pressente pelos títulos:(, esta semana nas salas), (, estreia a 24 de Setembro), (, a 1 de Outubro). O primeiro prepara o espectador, explicando-lhe o projecto; o segundo fecha-se sobre almas penadas e solitárias – se a personagem principal deé a comunidade, o colectivo, para onde fugiu toda a gente?; o terceiro é redentor: depois de passar por vários estados – a perda, a combatividade, a recriminação, a impotência, a derrota – o país vê-se ao espelho e descobre que sobreviveu. É aqui, neste capítulo final, que o acto de vingança é explicitado. Não se pode dizer que o que o filme retrata pertence à História – da última vez que olhámos, ainda éramos um país depauperado, desempregado e desdentado – nem Gomes propõe, como Tarantino, uma versão alternativa. Mas ganha espessura a sensação que paira ao longo de todo o projecto: Portugal, país das maravilhas. Como na canção de Leonard Cohen (), somos feios mas temos as histórias. Depois da paródia, das piruetas, da catarse, da neurose, o tour de force emocional do filme parece estar neste grupo de marginais, alguns deles ex-reclusos, habitantes de guetos sociais, que criam passarinhos em casa e os ensinam a cantar. Eles existem, de facto, o cinema não os inventou: Chico Chapas, Ribeiro, Mestre, Quitério e o seu tentilhão perneta. Dois dias depois de ter estreado o Volume 2 em Paris, Miguel Gomes reencontra-os no Grupo Recreativo Cultural Onze Unidos – o azulejo com a palavra UNIDOS desapareceu –, colectividade com vista para Chelas (Lisboa), para a foto de família solicitada por um semanário. Gomes e Ribeiro bebem minis ao balcão, Mestre e Chico Chapas bebem leite com chocolate. Emblema do Benfica tatuado no meio do peito, entre cabelos brancos, cara e corpo secos, Chico Chapas pedalou desde Moscavide para aqui chegar. No filme de Miguel Gomes, faz de si próprio, um reconhecido passarinheiro, e ainda interpreta um assassino em fuga (inspirado em Manuel Palito) num western do Volume 2. Uma jornalista do Le Monde vem a Portugal entrevistá-lo para a estreia do terceiro volume em França. Chapas também vai entrar num filme francês. Gomes e a sua comitiva de passarinheiros seguem para Camarate, onde têm mesa posta numa outra colectividade (“Colectividade vem a passar momentos complicados, por isso pedimos aos nossos associados que regularizem as cotas”, lê-se num comunicado à entrada). Chapas veio de bicicleta, mais uma vez, os outros de carro. Antes de almoço, Ribeiro lidera o cortejo até ao seu viveiro de pássaros, com uma centena de tentilhões recém-apanhados. Pelo caminho, Miguel Gomes eleva as expectativas: “Vocês estão com muita sorte de ele vos deixar tirar fotografias lá dentro. Isto é a caverna do Ali Babá. ”A entrevista que se segue começou com um bitoque e minis num salão de jogos em Camarate e terminou na esplanada de uma pastelaria das Avenidas Novas em Lisboa: vendo despontar a tarde – e a namorada numa outra mesa – Miguel calou-se. Quando percebi que seriam três filmes – descobri isso na montagem –, escrevemos o título de cada volume da:, e o. Havia essa noção de que estávamos a flirtar com um modelo industrial que não era o do filme. Mas o que aconteceu foi que estive um ano a filmar, combinei um determinado número de semanas – quase que o cumpri, passei só em duas semanas, acho que eram 14 e passaram a ser 16. E o resultado de 16 semanas de rodagem deu origem a três filmes. Desconfiava que havia qualquer coisa que se podia passar porque achei que desta vez estávamos a trabalhar mesmo muito. E depois percebi que isso devia-se ao facto de estarmos a fazer três filmes e não um. De facto, a baleia é qualquer coisa com um lado espectacular – sobretudo num episódio com trabalhadores desempregados a falar da sua situação. São coisas que habitualmente não associamos, dois regimes de representação de cinema muito diferentes. Há uma relação entre o facto de a personagem desse episódio ser cardíaca e aquilo que ela ouve, entre o estado de saúde dele e o estado do país. É como se o coração dele pudesse rebentar a qualquer momento. A tensão sobe depois de ele falar com alguém e finalmente o que explode não é o coração dele mas a baleia. A cada história da Xerazade, havia essa negociação entre o real e o imaginário. Nalguns casos essa relação de forças é muito violenta, como nesse episódio, : a baleia explode e a seguir um desempregado fala durante dez minutos para a câmara. Noutros as coisas estão mais misturadas. Achei que o filme seria mais rico se essa relação entre o imaginário e o real estivesse sempre em mutação. O que é violento é a passagem de uma coisa à outra. Há ali um grande corte. Normalmente não associamos esse tipo de coisas. E pode ser mais violento para o espectador fazer essa ligação. Se me está a perguntar se uma explosão de uma baleia no sonho de uma personagem de ficção tem as mesmas propriedades que o depoimento de um desempregado, acho que não. Acho é que, dentro de um regime de um filme, uma coisa pode dar força à outra. Aquela explosão só existe porque existem os desempregados a falar. São eles que fazem explodir a baleia. Navegaram completamente à vista. Quando se iniciou o filme, não havia o financiamento todo, começámos a rodagem com uma parcela – não consigo dizer quanto, mas tínhamos muito menos de metade do que o filme custou. Havia quase uma questão de urgência por causa de tentar apanhar as coisas da realidade que se estavam a passar. E os produtores decidiram arriscar e começar sem ter o filme financiado. Para mim, foi quase o equivalente daquilo que nós também nos propúnhamos: iniciar um filme sem saber qual era a sua estrutura. Sabíamos que tínhamos um determinado período e um escritório com uma série de pessoas preparadas mas também estávamos no escuro. E a produção resolveu fazer a mesma coisa. Este filme teve muito mais dinheiro do que eu alguma vez tive devido ao facto de oter corrido tão bem, sobretudo em França. Desta vez conseguimos ter quase todos os financiamentos que existem no circuito a nível europeu. E tivemos outras coisas: um milionário suíço chamado Michel Merkt decidiu investir a nível pessoal no filme. Sabíamos que se tivéssemos menos dinheiro teríamos de filmar coisas menos caras. Sobretudo, filmar menos histórias. Mas como correu bem, acabámos com três filmes. Havia a possibilidade de se fazer um filme muito grande ou a possibilidade de mandar muitas histórias para o lixo. Mas acho que os produtores perceberam que essa era uma não-opção. Porque a justa medida daquela nossa experiência de cinema tinha sido a de um ano e o ponto de partida era a estrutura das, que não é propriamente um livrinho. A edição que tenho também está organizada em três volumes, eu mostrei-lhes os livros para eles comprovarem (risos). Para além disso, percebi que cada filme podia ter uma autonomia, uma tonalidade específica. As histórias que aparecem no Volume 2 são as mais elaboradas, mais dramáticas, têm uma força muito grande. Do ponto de vista do cinema estão mais bem defendidas, são menos descosidas do que outras, por exemplo, noÉ aquilo de que falava: que na negociação entre o real e o imaginário, por vezes as coisas estão mais ligadas, outras vezes há essa violência de passar do real para o imaginário de forma mais visível. E eu também queria isso. Num filme único eu teria tendência para misturar as histórias docom as doe de equilibrar mais as coisas. Percebi nessa altura que não, que termos algo tão musculado como oe algo tão caótico como oseria mais interessante do que tentar equilibrar as histórias ou que cada volume fosse uma variação em relação ao anterior. A produção reagiu com um certo pânico: a pós-produção de três filmes é mais cara, e depois como é que se estreia uma coisa destas. . . O filme coloca questões a toda a gente. Os jornalistas, desde Cannes, andam um pouco perdidos, sem saber como hão-de fazer a cobertura deste filme. A Variety mandou-nos um mail a dizer: “Depois de várias horas de discussão, chegámos à conclusão que vamos ter três críticos para cada um dos filmes. Um crítico vê só o primeiro volume, o outro vê o primeiro e o segundo volumes, e o último vê todos. ” Quando a Variety tem reuniões para decidir como fazer a cobertura de um filme, é porque ele de facto propõe uma maneira de ver diferente. Uma coisa que me diverte, quando mostro oou o, é perguntar quem é que viu os outros; há sempre uns que não viram os anteriores. Eu até gostava de no DVD ter um modo. Mas obviamente aquilo é demasiado longo para caber tudo num disco, portanto não dá. Embora este percurso – do um para o dois, e do dois para o três – conte uma história, para mim. Não acho que o filme seja uma crítica. É outra coisa, que um jornalista não pode fazer: não pode inventar baleias que explodem, não pode fazer essas coisas. O cinema pode juntar essa dimensão que é interdita ao jornalismo. A administração proibiu qualquer jornalista de lá entrar. O filme começa com os trabalhadores no cais porque a única maneira que eu tinha de aceder a eles era enfiar-me num barco. Falámos com eles para estarem presentes àquela hora e naquele ponto, metemo-nos num barco e filmámos da maneira que pudemos filmar, por água. Estávamos dentro dos estaleiros, mas não estávamos em terra. Mas, sim, a questão do jornalismo e a forma como se dão noticias aparece logo nos primeiros minutos do filme: vê-se a câmara a desligar, tudo aquilo a ser desmontado, os jornalistas a sair do terreno e continua-se a ver as pessoas lá dentro a andar, o que reforça essa sensação de toca e foge. Dou-lhe um exemplo, o episódio do Simão Sem Tripas: toda a gente reconhece que é a história do Manuel Palito. Quando a Maria José Oliveira, jornalista, esteve a investigar essa história, falou com o padeiro que se encontrou com o Palito e ele explicou exactamente como é que o Palito lhe pagou com uma nota de 20 e qual foi o troco. Esse momento está no filme. As questões práticas de fazer um troco a um assassino à solta, esse lado mais banal da realidade dá uma dimensão tão surreal aos filmes que não sei se escreveria uma coisa assim só da minha cabeça. . . O filme não precisa de fazer prova dos factos. Os jornalistas eram algo entre a equipa de realização e a equipa de produção. Obviamente sabiam e aceitaram que muito desse trabalho seria invisível porque depois seria completamente transformado pela ficção. Mas se eu não os tivesse o filme seria diferente. Não. Foram existindo guiões diferentes. Que tinham formas muito diferentes também. Desde uma página ou duas a descrever uma série de situações possíveis, quase listagens, até histórias muito escritas. Se os actores no episódio[] mudassem frases eu normalmente dizia “corta” porque queria que eles dissessem exactamente aquilo que estava escrito. Quando trabalhámos na história do Galo [] não me passava pela cabeça dizer à dona do galo o que ela tinha de falar; sugeria-lhe assuntos, situações, e trabalhávamos, fazíamos vários takes. É um processo em que existe menos capacidade de antecipar os resultados, é esse o risco. Entre aquilo que posso ganhar com o facto de as coisas estarem menos preparadas e haver esta abertura para encontrar coisas inesperadas no plateau, e aquilo que tenho a perder em termos de segurança, vou calculando as margens de risco a cada momento: quantos dias de rodagem restam, se posso acrescentar mais alguns dias de rodagem e cortar noutro lado, caso algo corra mal. . . Há uma gestão que se vai fazendo. Isso obriga-me a reagir às coisas e é esse movimento que para mim é importante. Nunca tive storyboards, planificações. Neste caso a coisa complicou porque há momentos em que não há argumento. E estava a fazer parcelas de um filme que não conseguia ver na totalidade. Mas não sei se consigo fazer filmes doutra maneira. Definimos um grupo de actores – seis homens e seis mulheres – de gerações diferentes e com registos e universos diferentes, para tentar ganhar a maior elasticidade possível. Eles sabiam que podiam nem sequer entrar no filme. Íamos trabalhar com aquilo que os jornalistas nos fossem oferecendo e portanto não podíamos antecipar isso. Eles tinham apenas de ir informando a produção dos compromissos que iam tendo. Alguns deles não entraram no filme; outros entraram várias vezes. Sim. Por isso é que eu fujo no início. Porque obviamente no circo eu sou o palhaço. O que me interessa mesmo com este método é: qual é a maneira de ganhar a maior elasticidade possível? Ou seja, conseguir filmar bem uma manifestação de polícias e filmar uma coisa com camelos e a Rueff e o Samora? Se a estrutura for muito rígida – no funcionamento, no número de pessoas que participam – tudo isso vai ser contraproducente para rodagens muito diferentes. Sim, se calhar é isso: uma companhia de circo itinerante que está preparada para largar lastro quando tem de ser e para se reforçar quando tem de ser. Que me levassem à fuga não. Mas este método, de reagir a quente àquilo que íamos encontrando, chegou a um ponto quase limite que muitas vezes gerava angústias e tensões na equipa. No cinema gasta-se muito tempo a esconder a estrutura dos filmes, o dispositivo. A coisa que acho mais necessário fazer nos meus filmes é atirá-la à cara dos espectadores. Fazer com que o espectador partilhe os dados para que ele possa fazer o caminho pelo filme. É qualquer coisa que deve surgir no início, para mim. A ideia da fuga e da equipa a procurar-me surgiu num dia em que não tinha nada para filmar. Eu ia entrevistar pessoas dos estaleiros que não podiam naquele dia. Sendo um filme sobre o trabalho, a equipa oferecia uma espécie de contraponto: os trabalhadores do estaleiro de Viana do Castelo queriam trabalhar mas não podiam porque iam perder o emprego; a minha equipa seria impossibilitada de trabalhar porque o realizador iria entrar em pânico e fugir. Nessa altura não tinha pensado nisto como um prólogo. Aliás, numa primeira versão, essa parte esteve no final do primeiro volume. O filme terminava comigo enterrado na areia a dizer: “Se me pouparem a vida, conto uma história maravilhosa”. E isso lançava oTem razão, há esse lado de ajuste de contas nesse episódio, , mas mesmo essa catarse acaba mal: termina precisamente no ponto de partida. Mesmo as histórias que têm uma relação mais directa com acontecimentos reais, em que os intervenientes dessas histórias aparecem no filme a fazer deles próprios, deslizam para um outro território que tem a ver com ficção assumida. Por exemplo, a história do galo condenado à morte: o galo foi umque foi explorado pelas televisões. Nós aparecemos em último, a propor à Fernanda, dona do galo, fazer um filme. E acho que se tem a sensação, quando a Fernanda está a falar com os vizinhos, com as várias pessoas daquela comunidade, que é alguém que é um não-actor e que está a contar verdadeiramente a sua história: apareceu-lhe um polícia à porta a dizer que, por ordem judicial, ela tinha três dias para matar o galo. E depois a ficção consegue criar o clímax que na realidade não aconteceu: pode pôr o galo a falar. Um galo que fala é a mesma coisa que o realizador que foge: são tudo artifícios mas que podem contar verdades. Verdades sobre a angústia desta rodagem. Ou, no caso do galo, sobre o falhanço de diálogo. Se a personagem principal do filme também é a comunidade, a grande questão é como as pessoas se organizam dentro dessa comunidade, como é que falam, que tipo de diálogo podem ter. É preciso um galo falar para que algumas coisas fiquem claras. No segundo volume, as únicas ligações funcionais são feitas por um cão. De resto, é tudo bastante disfuncional. . No cinema gasta-se muito tempo a esconder a estrutura dos filmes. A coisa que acho mais necessário fazer nos meus filmes é atirá-la à cara dos espectadores. Fazer com que o espectador partilhe os dados para que ele possa fazer o caminho pelo filmeEste filme teve muito mais dinheiro do que alguma vez tive devido ao facto de o Tabu ter corrido tão bem, sobretudo em FrançaExactamente. Nesse caso, interessava-me trabalhar a relação entre o público e o íntimo. Que nesse episódio é levada a um extremo. É quase só homens que se vê, cada plano tem milhares de polícias e há um contraste enorme com a voz daquela chinesa que fala baixinho e que conta coisas muito privadas – e que vem de facto da ficção, apesar de estar contaminada por coisas concretas. é para mim um episódio muito importante por causa dessa relação entre o individual e o colectivo. Aquele sindicalista [Adriano Luz] está obcecado em fazer um ritual com toda a gente e poder levá-los no dia 1 de Janeiro a entrar no mar. . . Normalmente as obsessões são individuais, não é? Mas depois chegamos àquele final onde os Magníficos desaparecem e ficamos com uma multidão a segurar a bandeira de Portugal. Ao longo do filme vamos conhecendo personagens solitários, bastante excêntricos, mas nessa excentricidade há uma afirmação e uma individualidade que depois estabelece relações com o colectivo. Por isso é que para mim foi tão importante terminar com aquela comunidade de pessoas tão obsessivas que são os passarinheiros. A ocupação deles é singular, formam uma espécie de sociedade secreta com rituais próprios. Ao mesmo tempo, pertencem a um grupo maior que é o proletariado na região de Lisboa. Isso permitiu-me entrar num mundo marginal, quase paralelo àquilo que é a organização da sociedade dominante onde estamos todos, e ao mesmo tempo fazer um retrato de uma classe social. Sem dificuldade: apenas apontando a câmara, entrando nas casas deles, vendo-os a tratar dos tentilhões. Ao filmar alguém que trabalhava no computador para recriar cantos de pássaros ou filmar alguém numa casa onde em cada compartimento existem dez pássaros e portanto é uma chinfrineira enorme, senti estava a filmar uma coisa que não é aquilo que nós tomamos por realidade. E que essa dimensão surreal estava inserida de uma forma tranquila dentro da realidade. Se será o mais documental? É aquele em que faço menos para poder ter o lado do imaginário e o lado paralelo de realidade porque ele já está lá. . . Decidi fazer esse filme no dia em que vi no YouTube um concurso com aqueles tipos, muitos deles com um ar bastante duro, de minis na mão e em silêncio total; a única coisa que se escutava eram os aviões que passavam e o canto dos pássaros. Isso tocou-me muito. Senti esse lado maravilhoso – “coisas de pasmar”, como diz a Xerazade ao rei – na diferença que existia entre aquilo que é habitual esperarmos daqueles corpos e aquilo que se passava. Esse contraste existia já, era só pôr a câmara e filmá-los. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há um problema em muitos dos filmes que querem ter uma atitude de intervenção política, e que trabalham com classes sociais desfavorecidas, em que existe um caminho a seguir que está muito desenhado, um caminho para o progresso. O facto de estas pessoas existirem num universo paralelo acaba por oferecer uma espécie de resistência poética ao modelo de sociedade dominante. Mesmo que não estejam a fazer grande coisa para mudar as suas condições de vida, e não sejam politicamente activos, aquela comunidade tem um lado político por se oferecer como alternativa. Não consigo reduzir as coisas a uma fórmula. Talvez por causa do meu gosto pelos paradoxos, acho que quando filmo algo estão lá sempre duas coisas opostas. Está lá uma ferocidade enorme e ao mesmo tempo uma nostalgia quase passiva de quem já não pode fazer nada. E uma não exclui a outra. Tentei que as histórias das Mil e Uma Noites fossem mudando a imagem que tinha ficado da anterior e dentro de cada segmento há sentimentos muito contrários. Sou incapaz de tirar uma síntese em que as coisas sejam inequívocas. Não no sentido em que o filme me transformou. Tenho a sensação de que este filme foi suficientemente longo para que houvesse coisas que fossem mudando. Às vezes estava mais enfurecido com as coisas que ouvia e reagia de forma mais violenta, outras vezes de uma forma mais conformada, mais desiludida, com a impressão de que havia pouco a fazer. É quase como mudar de humor.
REFERÊNCIAS:
Depois do título mundial, Inês Henriques tenta o título europeu
Portuguesa é uma das 19 atletas inscritas nos 50km marcha dos Campeonatos da Europa de atletismo, que se realizam na manhã desta terça-feira. (...)

Depois do título mundial, Inês Henriques tenta o título europeu
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento -0.05
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portuguesa é uma das 19 atletas inscritas nos 50km marcha dos Campeonatos da Europa de atletismo, que se realizam na manhã desta terça-feira.
TEXTO: Depois de um título mundial com recorde do mundo (que já não é seu), Inês Henriques pode voltar a fazer história no atletismo. Nesta terça-feira, a partir das 7h35 da manhã, a marchadora do CN de Rio Maior parte como principal favorita na prova dos 50km marcha dos Campeonatos da Europa de atletismo, que se estão a realizar em Berlim. Será a primeira vez que a prova mais longa do atletismo será disputada por mulheres em Europeus, um ano depois de ter havido uma prova feminina de 50km marcha nos Mundiais de Londres, que também foi uma estreia na competição. Se nos Mundiais do ano passado, eram apenas sete a competir (terminaram sete), com Inês Henriques a ser a primeira campeã mundial da distância com um tempo de 4h05m56s, já serão 19 as atletas a marchar nas ruas de Berlim. A portuguesa tem o melhor tempo de inscrição entre o grupo, uma marca que deixou de ser recorde mundial em Maio passado no Campeonato do Mundo das Nações – a chinesa Liang Rui é a actual recordista, com 4h04m36s – mas que está muito acima dos recordes das atletas europeias. A atleta com o segundo melhor tempo de inscrição é a espanhola de origem húngara Julia Takacs, com 4h13m04s. Tal como aconteceu nos Mundiais de Londres, as mulheres vão correr ao mesmo tempo que os homens, sendo que a prova masculina irá contar com dois portugueses, João Vieira, medalha de prata (2010) e de bronze (2006) na prova de 20km, e Pedro Isidro. Mas nem só de marcha se fará a presença portuguesa no segundo dia dos Europeus de Berlim. Na jornada da manhã, Eliana Bandeira (peso), Vítor Ricardo Santos (400m) e André Pereira (3000m obstáculos) estarão em acção nas respectivas qualificações, enquanto à tarde, Samuel Barata estará na final directa dos 10. 000m. Quem já tem a garantia de uma presença na final da sua disciplina é Tsanko Arnaudov. O lançador do Benfica garantiu a qualificação para a final do peso, que se realiza nesta terça-feira, lançando a 19, 89m na segunda tentativa no grupo B de qualificação, uma marca que ficou longe da marca pedida (20, 40m), mas mais que suficiente para colocar o português nascido na Bulgária entre os 12 que estarão na final (só quatro conseguiram a qualificação directa). Menos sorte teve Francisco Belo, que, a lançar no Grupo A, fez 19, 66m ao terceiro ensaio, ficando a apenas quatro centímetros do último dos repescados, o luxemburguês Bob Bertemes (19, 70m). Depois de nem sequer ter passado à final nas duas últimas grandes competições (Jogos Olímpicos 2016 e Mundiais 2017), Arnaudov volta a conseguir o apuramento, ele que conquistou uma medalha de bronze nos Europeus de Amesterdão há dois anos. O lançador do Benfica garante tranquilidade para a final desta terça-feira, tal como aconteceu na qualificação, mas não está obcecado em repetir o pódio de 2016: "Este lançamento foi tudo menos raiva. Os melhores lançamentos são quando há mais fluidez, mais descontracção e velocidade. Quando há raiva e ganância não se vai tão longe. Este foi com os pés bem assentes no chão. A final é para preparar como uma competição como as outras. É oportunidade para fazer três lançamentos e o direito para ter mais três. Para encarar com mais tranquilidade ainda, não pelas medalhas. "O primeiro dia dos Europeus também correu bem à equipa de velocidade, com os quatro portugueses a passarem às meias-finais dos 100m. Yazaldes do Nascimento, Carlos Nascimento e José Pedro Lopes passaram todos à segunda ronda do hectómetro masculino. Yazaldes do Nascimento ganhou mesmo a sua série (a 2. ª), com 10, 33s, enquanto Carlos Nascimento fez o mesmo tempo para ficar em segundo da quinta série. Lopes foi terceiro na terceira série, com os seus 10, 38s a permitirem-lhe ser repescado para as meias-finais desta terça-feira, que se correm a partir das 18h30. A final dos 100m masculinos será a última prova do dia, marcada para as 20h50. No hectómetro feminino, Lorene Barzolo também conseguiu apurar-se para as meias-finais, tal como acontecera em 2016. A experiente velocista do Sporting foi apenas quinta na sua série, mas o tempo que fez (11, 51s) permitiu-lhe ser repescada para as meias-finais desta terça-feira (18h05), com a final marcada para as 20h05. Quem não conseguiu a qualificação foi Diogo Mestre, que foi apenas sexta da sua série nos 400m barreiras, com o tempo de 52, 65s. Resultados100m (M) Yazaldes Nascimento (qualificado)100 m (M) José Pedro Lopes (qualificado)100 m (M) Carlos Nascimento (qualificado)400 m bar (M) Diogo Mestre (eliminado)Peso (M) Francisco Belo (eliminado)Peso (M) Tsanko Arnaudov (qualificado)100 m (F) Loréne Bazolo (qualificada)Programa de 7 de Agosto7h35 Inês Henriques 50km marcha (final)7h35 J. Vieira e P. Isidro 50km marcha (final)9h10 Eliana Bandeira Peso (qual. )9h35 Vítor Santos 400m (qual. )10h40 André Pereira 3. 000m obst. (qual. )18h05 Loréne Barzolo 100m (meias-finais)18h30 Yazaldes do Nascimento, Carlos Nascimento e José Lopes 100m (meias-finais)19h20 Samuel Barata 10. 000m (final)19h33 Tsanko Arnaudov Peso (final)Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. 20h30 Lorène Barzolo 100m (final)*20h50 - Yazaldes do Nascimento, Carlos Nascimento e José Lopes 100m (final)**em caso de qualificação
REFERÊNCIAS:
“O mindfulness não é uma panaceia para problemas psicológicos ou psiquiátricos”
Eline Snel criou um método para crianças dos 5 aos 12 anos que está a ser posto em prática em escolas europeias, mas não só. O objectivo é que as crianças ganhem consciência de si e se tornem mais focadas e controladas. (...)

“O mindfulness não é uma panaceia para problemas psicológicos ou psiquiátricos”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-06-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Eline Snel criou um método para crianças dos 5 aos 12 anos que está a ser posto em prática em escolas europeias, mas não só. O objectivo é que as crianças ganhem consciência de si e se tornem mais focadas e controladas.
TEXTO: Eline Snel trabalha há 20 anos como terapeuta e desenvolve programas de meditação e de mindfulness. É fundadora da Academy for Mindful Teaching, em Leusden, Holanda, onde dá formação nestas áreas, também dá formação a futuros médicos e professores. Há uns anos aceitou o repto de criar um programa para crianças em contexto escolar. Agora, o desafio são os adolescentes. A avó de nove netos viaja pelo mundo – da América Latina a Hong Kong, passando pela Europa – a dar formação e conferências. Na manhã deste sábado esteve em Lisboa, num encontro com pais, professores e psicólogos no Externato Marista. Na sua mala traz alguns manuais desenvolvidos para os cursos que lecciona, para professores e psicólogos, e materiais como uma boneca em crochet, semelhante à ilustração da capa do seu livro, uma menina sentada à chinês, num tapete, com uma rã – foi-lhe oferecida na Turquia, orgulha-se. Senta-te quietinho como uma rã é o título do seu livro, editado pela Lua de Papel, e é também o animal que gosta de usar como exemplo para os mais novos perceberem o que é o mindfulness. Debruçada sobre a sua mala vermelha procura uma caixa, de onde tira um globo de neve, agita-o e mostra-o ao PÚBLICO. Só se vê a neve, que em vez de branca é dourada. Pouco a pouco percebemos que há uma rã, semelhante à do livro, sentada no centro do globo. A nossa mente é como a neve enquanto esta não cai completamente no chão, confusa e que não nos deixa ver o essencial, com a ajuda do mindfulness é possível ver o batráquio, calmo, com um sorriso largo e um ar generoso. “Nas escolas, o mindfulness é uma necessidade para termos crianças saudáveis”, defende. O que mudou, nos últimos anos, para que as nossas crianças estejam tão irrequietas, tenham problemas de hiperactividade e dificuldade de concentração?Quando comecei a trabalhar com professores, estes confessavam sentir uma enorme diferença entre as crianças, de há 20 ou 30 anos para cá. As crianças estão inquietas, ansiosas e em stress. Os tempos mudaram muito rapidamente e as crianças sentem muita pressão, assim como se sentem sobrecarregadas de trabalho. É uma loucura como na Holanda há crianças com apenas 10 anos de idade com sintomas de burnout. Sentem pressão para serem o quê?Para serem mais inteligentes, para terem êxito, para serem melhores. Ouvem: “Trabalha mais, tens de alcançar mais, faz isto melhor, tens de ter boas notas, caso contrário nunca terás um bom trabalho. . . ” Ouvem-no dos pais e dos professores. Porque sentem essa pressão, as crianças ficam ansiosas e, por isso, precisam de praticar mindfulness?Essa é uma das razões. A outra é que as crianças têm sentimentos muito fortes como a tristeza, o medo, a raiva – claro que a felicidade também –, e não sabem lidar com eles. Lembro-me de a minha mãe, quando eu era criança, mandar-me para o quarto: “Vai para cima e quando conseguires agir com normalidade podes descer. ” O que se passa é que muitas crianças não conseguem lidar com emoções fortes e é isso que as ensinamos a fazer [nas sessões de mindfulness]. Outra razão é a seguinte: muitos professores pedem aos alunos para se concentrarem, mas não os ensinam, apenas o dizem. E os miúdos não têm ideia do que é que isso significa e como é que se faz. Mas nós, com essas idades, tínhamos ideia de como é que se fazia?Também não. Mas hoje a pressão para alcançar algo é muito mais alta do que nessa altura. Nós também não sabíamos como fazê-lo e é interessante perceber como é que lidávamos com isso, mas hoje os miúdos não sabem concentrar-se, nem observar o seu mundo interior e estou convencida, não sou a única, que quando não estamos em contacto com o nosso mundo interior não podemos ser bem sucedidos no mundo exterior. É óbvio que quando não sabemos que existe um sentimento e esse pode provocar uma reacção exterior, quando não sabemos o modo como isso acontece então não sabemos porque o fazemos, desconhecemos o efeito da nossa reactividade. Portanto, com o mindfulness os miúdos aprendem a ser menos reactivos, que não precisam de reagir de imediato, mas que podem descobrir onde os sentimentos estão no seu corpo e depois de uma pausa, responder de maneira calma. A pesquisa mostra que partes importantes do nosso cérebro se alteram com a meditação, tal como mudam depois de situações de stress. Portanto, sabemos que o stress não ajuda a aprender e se a criança estiver focada aprende melhor, a sua memória melhora. Não é um desafio pôr crianças que estão cheias de energia, a correr de um lado para o outro, sentadas, quietinhas como rãs, e concentradas?Nas escolas onde estou a trabalhar, fazem isto uma vez por semana, meia hora. E diariamente durante dez minutos. As crianças demonstram um enorme interesse porque continuam muito próximas do seu ser natural. Eles sentem que isto é muito importante. Quando me pediram para desenvolver exercícios para crianças foi essa a questão que me coloquei: como conseguir sentá-los? Mas depois fui para as escolas e pedi aos miúdos para me darem a sua opinião sobre a experiência e eles queriam continuar e achavam que uma vez por semana era pouco. O que descobriram é que tinham uma necessidade esquecida que era a de chegar à calma, de estar calmo, e perceberam-no. Gostam. Estamos a fazê-lo não só na Holanda, mas em França, na Suíça, por exemplo, nas escolas, as crianças almoçam em silêncio, isso traz-lhes calma e permite-lhes descansar. É muito interessante que, depois do almoço, podem voltar a trabalhar porque descansaram. E têm melhores resultados académicos?Não é esse o objectivo, mas é o que está a acontecer porque as suas mentes acalmam, descansam e regressam ao trabalho. Os professores usam o globo de neve com a rã para que os alunos percebam que a nossa mente está distraída com todo o tipo de coisas que acontecem à nossa volta, mas se estivermos em silêncio, então tudo se torna mais claro e a nossa mente é capaz de aprender, de não reagir de imediato, de ser mais generoso. Com o mindfulness as crianças também aprendem a ser generosas. Pedir-lhes para desligar do mundo exterior e concentrarem-se sobre si mesmas não é estar a educar crianças egoístas?É precisamente o contrário e por isso é que uso a rã como metáfora porque quando a olhamos com muita atenção percebemos que está sentada muito quieta, mas que as suas pernas saltam muito alto, tal como a nossa mente – podemos estar aqui sentadas e a nossa mente estar muito longe –, e não exclui o mundo exterior porque quando uma mosca aparece, a rã apanha-a. Ou quando há perigo de um pássaro a comer, a rã salta para longe. Portanto, não ensinamos as crianças a excluir-se do mundo, mas a incluir e a incluirem-se a si mesmas. Quando as crianças se familiarizam com os seus sentimentos e, simplesmente, os sentem, também compreendem os sentimentos dos outros em seu redor. Por exemplo, quando outro está muito zangado, uma criança que faça mindfulness pode dizer-lhe: “Pensa como a rã, respira por uns momentos e acalma-te. ” Ensinamos-lhe a estarem mais próximas dos outros que estão em stress ou a sofrer de ansiedade e ajudá-los de imediato. É terapêutico?É um treino. A terapia tem sempre um objectivo e aqui não há esse propósito. Os professores dizem-me que através deste treino não se tornaram melhores professores, mas são melhores seres humanos. Ou seja, são pessoas que estão realmente em contacto com as crianças e não estão simplesmente preocupados em dar a matéria. Podemos saber muitíssimo bem como ensinar Matemática ou Geografia, mas se não virmos que temos crianças tristes porque os pais estão num processo de divórcio, então perdemos algo muito importante na educação. Um bom professor não é, por definição, um ser humano cuidador porque está sobrecarregado com um trabalho muito exigente, que se preocupa apenas em cumprir o programa, sem tempo para si próprio e para ver, realmente, as outras pessoas. E este é o cerne do mindfulness, a que preferimos chamar treino da atenção ou treino da consciência. No livro, além dos exercícios para a prática do mindfulness, há a preocupação de ensinar os pais a serem pais?Sim, como ensinamos os professores a ser melhores seres humanas em contexto de sala de aula, também há a mesma preocupação com os pais. Precisamos de aprender a ser pais, não basta o amor?O amor basta quando está tudo bem, mas quando há um filho que sofre de alguma coisa – autismo, hiperactividade, cancro –, então são precisas ferramentas que nos ajudem a lidar com miúdos que não conseguem estar sentados, fogem da mesa de jantar, não se conseguem concentrar, gritam. E quando os pais também gritam, não ajudam a criança nem a relação. Portanto, enquanto pai ou mãe, é importante aprender a ter calma e a compreender que temos todo o tipo de sentimentos, que não podemos expressá-los de imediato, que muitos dos pensamentos que temos não são verdadeiros – os desastres que imaginamos não vão acontecer, são apenas medos. Então, em vez de os mandarmos para o quarto, como fazia a sua mãe, dizemos-lhes: “respira”?Às vezes sim. Ajuda quando se agarra a criança até que se acalme e depois falar sobre os seus sentimentos. Perguntar-lhe em que parte do corpo está a sentir a raiva. O mindfulness não é uma panaceia para problemas psicológicos ou psiquiátricos. Os pais precisam de ter alguma sabedoria e bom senso para perceber do que é que os seus filhos precisam, se é necessária ajuda médica. Mas, na minha opinião, todos os pais beneficiam da prática da meditação porque nos mantém longe de estarmos constantemente preocupados, das mágoas, dos sentimentos confusos e mostramos às crianças que sabemos para onde ir. É importante que as crianças comecem a confiar nos seus pais, sintam que são vistas, sentidas e ouvidas pelos seus pais. Todos devíamos praticar mindfulness?Não digo todos, mas este é um treino que em termos académicos está muito estudado. Nunca houve tanta investigação sobre os benefícios da meditação, em termos físicos, mentais e emocionais, como actualmente. É um treino, que nos permite conhecermos-nos melhor. A conhecermos os nossos sentimentos e como estes estão ligados às nossas reacções físicas. Não é apenas meditação. O mindfulness contribui para o nosso bem-estar ou para a nossa saúde?Não se pode separar uma coisa da outra. A nossa saúde está muito relacionada com o nosso bem-estar. Há pessoas que estão muito cansadas e não estão atentas a esse cansaço, mas não se sentem bem; e se estiverem demasiado cansadas durante demasiados anos poderão acabar por ficar doentes. Por isso, está tudo ligado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há um interesse crescente e a sociedade começa a exigir que o mindfulness faça parte dos currículos escolares. Por exemplo, na Holanda já há em várias escolas. Diariamente 7500 crianças fazem mindfulness, mas já há noutros países. Temos 2000 formadores nesta área, com formações de dois anos, são sobretudo psicólogos, terapeutas, professores. Em Portugal, a Ordem dos Médicos está preocupada com as terapias alternativas, a Ordem dos Psicólogos com o coaching e pedem a intervenção do Governo. Têm medo de perder o seu ganha-pão?O argumento é que são terapias que podem ser um risco para a saúde. Já passamos por isso na Holanda, mas hoje é tão comum que as seguradoras pagam essas terapias, incluindo tratamentos de mindfulness. Os médicos estão a ser formados nesta área, faz parte do currículo, assim como do dos futuros pedagogos. Eu ensino nas universidades porque me foi pedido. É um obstáculo quando queremos mudar, há sempre desconfianças, por isso, é um caminho que têm de se fazer. Devagar. Quando é preciso mudar o sistema, é preciso mudar a nossa mente e isso é o mais difícil porque temos sempre a certeza que estamos certos.
REFERÊNCIAS:
A cozinha (também) é um espectáculo
São vizinhos, concorrentes e amigos. José Avillez, Henrique Sá Pessoa e Ljubomir Stanisic alimentam o coração de Lisboa, colocando o Chiado nos roteiros gastronómicos internacionais. O PÚBLICO juntou-os à mesma mesa. A conversa saiu bem temperada, com picante. (...)

A cozinha (também) é um espectáculo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-03-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: São vizinhos, concorrentes e amigos. José Avillez, Henrique Sá Pessoa e Ljubomir Stanisic alimentam o coração de Lisboa, colocando o Chiado nos roteiros gastronómicos internacionais. O PÚBLICO juntou-os à mesma mesa. A conversa saiu bem temperada, com picante.
TEXTO: Para que um combate de chefs decorra de forma leal, é preciso escolher terreno neutro. A solução foi retirar Henrique Sá Pessoa, Ljubomir Stanisic e José Avillez da sua zona de conforto, ou seja, das imediações do Chiado. Levámo-los ao Centro de Artes Culinárias, no antigo Mercado de Santa Clara, um belo espaço onde a presença de um fogão poderia, quem sabe, estimular a conversa. O fogão acabou por não ser necessário e o facto de os três já se conhecerem de longa data foi suficiente para condimentar o diálogo. São os três quase da mesma idade: nenhum deles fez ainda quarenta anos. As marcas que criaram impuseram-se: a Alma, de Sá Pessoa, o Belcanto, obra de Avillez, e a irreverência 100 Maneiras, de Ljubomir. Ljubo, para os amigos, é o mais exuberante, como se há-de perceber ao longo da conversa. Está em Portugal desde 1997, fugido da guerra que destruiu a ex-Jugoslávia. José Avillez é o mais ponderado. Tem cinco restaurantes no Chiado e as duas estrelas Michelin que conquistou para o Belcanto fazem dele o mais reconhecido chef português. Henrique Sá Pessoa é o mais discreto e o que chegou há menos tempo ao Chiado. Curiosamente, é a ele que um grupo de turistas sérvios reconhece, quando, no final da entrevista, nos sentamos numa esplanada para tomar um café, por entre a algazarra da Feira da Ladra. Viram-no no programa que Anthony Bourdain gravou há uns anos em Lisboa. Ljubomir traduz o diálogo com os dois casais que se despedem prometendo, evidentemente, passar pelo Chiado. Sendo vizinhos, visitam-se mutuamente?Ljubomir Stanisic – Visitamos. José Avillez – Não nos visitamos tanto como desejávamos porque acabamos por trabalhar sempre mais do que desejaríamos. Henrique Sá Pessoa – E temos os mesmos horários, normalmente até fechamos nos mesmos dias. LS – Mas há visitas, sim. Ao Zé, visito-o duas vezes por ano. E já chega, se não fico farto dele. [risos]JA – Tem de ser com moderação. LS – Ao Henrique vou duas ou três vezes porque combinamos mais tomar copos fora do restaurante. Estamos todos um pouco, pff. . . Fartos? Ia dizer fartos. LS – Ia. É aquela coisa: tenho que ser muito sincero. Quando se vai visitar o restaurante de um colega, ou o colega está preocupado porque estamos ali a comer, ou nós estamos preocupados para não fazermos muita merda. Se vou a um restaurante, quero descontrair, quero estar à vontade. Vão aos restaurantes uns dos outros em trabalho?HSP – Não. JA – Vamos relaxar. LS – Tangas!JA – É óbvio que há sempre uma certa preocupação. Só quando estamos a comer em casa é que não estamos a analisar. Para além de cozinheiros também somos restauradores, sempre com atenção aos outros negócios. LS – É mais por aí. Estamos sempre a reparar em coisas. HSP – Às vezes até no sentido de dar uma opinião construtiva. Se tenho uma opinião do Zé ou do Ljubomir em relação a algo que possa ter corrido menos bem, é um feedback que se toma em consideração. Onde é que fica a ideia de concorrência?HSP – Quando mudei para o Chiado, a primeira coisa que me disseram foi: “vais para o território do Zé”. O Zé foi, aliás, a primeira pessoa a quem liguei, quando fechei o contrato de arrendamento. LS – És um gajo educado. Mas é normal, isso faz-se assim. HSP – É uma questão de educação, de respeito. E ele foi a primeira pessoa a dizer-me: “ainda bem que vens para cá, somos mais”. LS – Isto hoje em dia é muito mais saudável. Estamos a falar da zona do Chiado, centro de Lisboa, onde estamos os três numa área de 500 metros de distância. Os clientes também circulam nessa área e nunca se fartam. Em Amesterdão, em Madrid, em Barcelona, os grandes restaurantes são todos nas boas zonas, onde as pessoas circulam, e dão-se todos bem. JA – Partilhamos imensos clientes. LS – Todos. Os portugueses e os estrangeiros que vêm cá em viagens de férias e gastronomia. É natural. JA – Faz parte. São restaurantes que as nossas equipas recomendam. O que é que vos distingue uns dos outros?HSP – O que distingue o Ljubomir, está mais ou menos explícito, não é?! [risos]. JA – Não precisa de apresentações. LS – Que estúpido, pá [risos]. O que é que distingue a vossa cozinha?JA – O que nos distingue é o nosso percurso. Viagens, experiências diversas, influências de família, do país onde nascemos, a cidade. HSP – O que o Zé está a dizer é fundamental. Por mais irreverente que um cozinheiro seja - pelo look, pelo marketing pessoal - é sempre o percurso em termos de aprendizagem que vai definir a sua cozinha. Mas o que é que fazem de diferente, em concreto?HSP – Por exemplo, a passagem do Zé pelo El Bulli influenciou-o, obviamente. A minha carreira começou em Londres e, não tendo trabalhado directamente para o Marco Pierre White, acabo por ter uma cozinha mais baseada na cozinha clássica. Depois, a minha passagem pela Austrália deu-me ali uns asian hints porque tive contacto com ingredientes que há 20 anos, ou há dez, não eram comuns, muito menos em Portugal. Agora, é claro que não tenho a cozinha mais vanguardista, a cozinha mais moderna. JA – Temos em comum uma cozinha de sabor. LS – Grande resposta [risos]. Mas é verdade. Bom, bom. JA – São cozinhas diferentes. É verdade, tenho algumas influências “el bullianas”, mas são detalhes. O que é comum nos nossos vários restaurantes é que são gulosos, apetece comer, apetece repetir. Às vezes há uma tendência para uma cozinha muito mais de show off e demonstrativa, mas quando se põe aquilo na boca, deixa a desejar. O sabor, a textura é muito importante quando estamos a falar do que é boa ou má cozinha. Por contraponto àquela ideia de irmos a um restaurante de alta cozinha e sairmos de lá a perguntar “onde é que vamos jantar a seguir?”JA – Isso é muito por causa das quantidades. Há o mito da nouvelle cuisine, que punha muito pouco no prato. É um bocadinho de desconhecimento da realidade. E uma brincadeira. HSP – Não conheço ninguém que saia insatisfeito. LS – Isso já não existe. LS – Existiu na cabeça das pessoas que não tiveram cultura gastronómica para conseguirem opinar. Há dez anos tinha para aí 50 por cento dos meus amigos a dizerem-me: “não vou ao teu restaurante porque aquilo é tudo muito pequenino”. É pequenino, o caralho, são dez pratos! Dez pratos com 150 gramas cada um. Faz as contas. Tens calorias para o dia todo. Comes mais do que numa tasca, numa travessa. E enriqueces o palato. A cozinha do Zé é uma cozinha mais arriscada. O último menu que comi no Zé: nozes, avelãs, peixe, e muito mais na base do azeite. O fornecedor de manteiga dele deve estar todo fodido. Ele deve estar a consumir um terço da manteiga que consumia há cinco anos. No Henrique notei uma grande diferença do Alma actual para o de Santos. Naquele último ano em Santos, onde ia frequentemente, perdeu a alma. Embora nunca tenha comido lá um prato que não estivesse bem, o que é uma grande característica do Henrique. Aquilo está sempre bem. O que é ter alma na cozinha?LS - Ter alma na cozinha é eu e tu estarmos a falar e de repente, pumba. Isto é ter alma na cozinha, uma coisa que te dá um spunch. Este último menu do Henrique que comi, para mim foi estrondoso. Continua com três produtos, não põe nem mais uma merda no prato, mas de repente começas a levar. Estes dois senhores à minha frente são vedetas da cidade. São os três vedetas. LS – Eu sou o palhaço. Ainda sou o gajo de Leste. O maluco. JA – Um palhaço vedeta [risos]. HSP – Acima de tudo, o que é importante na concorrência é essa constante evolução de se querer dar sempre o melhor. Neste ano e meio em que estive sem Alma estava desaparecido. O Ljubomir disse e bem: o meu último ano de Alma já era um Alma desmotivado, desgastado, um bocado sem direcção. Já queria mudar para a zona do Chiado há cerca de três anos. A localização é determinante?LS – Estou a morrer há anos para mudar lá do Bairro Alto e não consigo encontrar o espaço adequado. É um restaurante que factura para caralho e estou farto dele. Entro lá dentro, a cozinha [levanta-se e exemplifica]. . . HSP – Tens a cozinha mais pequena do mundo. LS – Saem quinhentos pratos por dia daquela merda. Sinto isto todos os dias. Cozinho na mesma, o sabor é o mesmo, mas é aquilo que o Henrique está a dizer: tem de haver uma relação com a energia que se cria e que aquilo te transmite. JA – Isso é muito importante. LS – Este [apontando para José Avillez] está a partir o restaurante todo, a fazer obras, porque já deve estar farto daquela merda. JA – Era uma necessidade. Há uma vontade de evoluirmos e por vezes percebemos que com as condições que temos não conseguimos. As obras no Belcanto são basicamente isso: estamos sempre cheios, com 20 pessoas na cozinha a atropelarem-se. Onde é que fazem as vossas experiências para novos menus, em casa ou no restaurante?HSP – Um misto das duas. LS – Na maior parte das vezes faço experiências no Alentejo. Tenho uma casa em Milfontes, dos pais da minha mulher. Levo os meus cozinheiros comigo, para lá. Da última vez dei uma faca a cada um e passámos 24 horas numa praia sem nada, a não ser um garrafão de cinco litros de água. Fomos a Brejo Largo, uma praia deserta. Só com uma faca e um garrafão de água?LS – Isso para mim já foi o dia-a-dia, porque vivi assim durante um ano na guerra. Tinha uma faca, uma arma e a minha mãe ao lado. Tens de te alimentar. Comem-se muitas raízes do mato, raízes de todo o tipo de árvores, avelãs. Era a alimentação que fazíamos na altura. Para esse retiro, na praia não levaram fósforos para fazer fogo?LS – Tínhamos isqueiros, claro. Todos tinham tabaco. São todos fumadores. Tabaco e ganza. [risos] Quanto aos objectos, levámos uma faca, um tacho, para fazer um foguinho, mais nada. A coisa mais básica, mais simples. E então começámos a apanhar tudo o que havia. A primeira reacção é que ninguém quer ir directo para a água. Começa-se a apanhar de fora, começa-se pelo funcho do mar. Depois tomilho. Começam-se a apanhar ervas. Depois cebolas selvagens, que não dá para comer directamente, têm de ser lavadas. É preciso cozinhá-las para serem comestíveis. Depois dá-se um mergulho, depois o ouriço, depois algas. Pescaram?LS – Não levámos canas. Quando a maré vazou tirámos uns camarõezinhos pequeninos. À noite voltámos para casa. Comemos um pouco de algas, um pouco de ouriço, lapas. Levámos tudo para casa e começámos a criar receitas únicas ali na praia. Uma delas chama-se mesmo Brejo Largo. E está no menu do restaurante?LS – No verão está no menu. Aquele é o sítio onde gosto mais de ir. Obviamente que 80 por cento das criações são feitas na cozinha do restaurante. HSP – Eu, agora, para o Alma, montei um estúdio quase clandestino num espaço do meu sócio, num shopping. Era um armazém onde as pessoas me viam todos os dias: “o que é que este gajo está aqui a fazer?” Um armazém que ele tinha e que me emprestou, no Dolce Vita Tejo. Montei lá uma cozinha básica e estive ali fechado, com o meu sub-chef, o meu braço direito já de há 12 anos, durante cinco meses. Íamos às compras todos os dias, muito vezes ao Jumbo. LS – Claro, eram os produtos que tinhas. HSP – Fazia todos os dias um plano do que é que queríamos experimentar e trabalhávamos até acertarmos. JA – Eu é muito mais no restaurante do que em casa. A casa é muito para a família, as crianças. Quando é para cozinhar em casa é para não pensar em responsabilidades. HSP – Franguinho assado. JA – Às vezes elaboro um bocadinho mais, sendo mais tradicional. Mas mais nas férias. Gosto de ir aos mercados e de cozinhar quando estou mesmo descontraído. Mas crio muito na cabeça. Aproveito muito as viagens longas de avião, alturas em que estou mais sozinho, para pensar. Depois levo as coisas já muito delineadas para o fogão. E resulta sempre?JA – Não resulta sempre mas na maior parte das vezes resulta, honestamente. LS – Um gajo já tem um dicionário na cabeça. Um dicionário?JA – Um dicionário de sabores. Sabemos que isto é ácido, que aquilo combina bem com o doce. E por isso conseguimos fazer as combinações mentalmente e só depois ir experimentar. Quando são ingredientes novos, isto de descobrir na praia, aí é outra coisa. Mas quando estamos a falar de ingredientes mais comuns, só temos de arranjar um conceito para um prato, uma história, a partir daí, com as técnicas que conhecemos, com os sabores que conhecemos. E depois fazem-se de vez em quando coisas mais arriscadas a ver se resultam. LS – Mas na maior parte das vezes resulta porque a nossa cabeça é uma caixa de informação impressionante. Posso perguntar a qualquer um dos dois pela untuosidade de queijos diferentes como o mascarpone, o Philadelphia, todos os que têm as mesmas características, e eles conseguem definir em segundos qual a diferença no céu-da-boca. JA – O que passa mais rápido na boca, o que fica. LS – Provamos as coisas tantas vezes, e temos tanto conhecimento que já misturamos as coisas na cabeça, como diz o Zé. É fácil. HSP – Também me revejo muito naquilo que o Zé diz. Quando começo a querer mexer na carta tenho um processo de uma ou duas semanas a ler muitos livros, a pesquisar muito a Internet. Mas não estou à procura de nada de concreto, estou só a ver, quase como se estivesse a injectar o cérebro com informação que depois começo a processar e a dissecar. Quando se passa à acção, na cozinha, já se tem uma espécie de guideline, quase como se fosse um guião daquilo que se quer fazer. E o que é que vos guia, é o conceito ou são os ingredientes?HSP – Depende do prato que se está a criar. JA – Varia. Às vezes é o conceito, claramente. LS – A história começa sempre antes. A história é fundamental. Todos contamos histórias, como eu te contei esta do Brejo Largo. É importante viver essa história também para o cliente. HSP – O cliente quer saber. LS – E nós próprios temos de ter confiança naquilo que fazemos, temos de sentir as coisas. Elas têm de bater no peito. Se não se tiver vivido um produto, um ingrediente, uma receita, não se tem história sobre eles. É muito importante vivê-la, senti-la connosco próprios. Como o Zé disse há pouco, há bué de produtos que não resultam. Tive um com que estive às voltas durante dois meses, já começava a atirá-lo ao chão: aquele pepino do mar, chinês. Tentei todo o tipo de coisas, vácuo, assado, a vapor. Não fui informar-me directamente, pela leitura, como é que funciona, queria encontrar uma maneira de o cozinhar. Esquece. Ao fim de uma semana já me apetecia enfiar aquela merda na boca do fornecedor. “Não quero mais”. Mas queria, contra mim próprio. E descobriu o que fazer com ele ou não?LS – Depois descobri, obviamente. E saiu bem. Tive de me ir informar, tive que ler um livro de cozinha chinesa tradicional. Escaldam aquilo duas vezes antes da cozedura. Tudo tem o seu processo. Vocês não são só cozinheiros, são empresários; passam mais tempo na cozinha ou à frente da folha de Excel?LS – Na cozinha, foda-se! Na folha de Excel?! Há secretárias para isso, já somos rock stars. HSP – Na folha de Excel, não passo muito. JA – Eu também não, mas divido muito o meu trabalho com o escritório. Há semelhanças entre a alta cozinha e o mundo do espectáculo?JA – Se pensarmos em termos de expressão artística há, com certeza. Tenho alguma dificuldade em dizer que a cozinha é uma arte, mas é claramente uma expressão artística, pelo menos. Como o mundo do espectáculo, é entretenimento, também. As pessoas querem histórias, como diz o Ljubomir. JA – As pessoas não pagam para se ir alimentar. Noventa e nove por cento dos clientes que vão aos nossos restaurantes não vão lá para se alimentar, por terem fome. Infelizmente ainda há muita fome no mundo, nós estamos fora dessa equação, na perspectiva da nossa cozinha. As pessoas vão para passar um bom momento, para comerem bem. E pode ser tanto em termos de entretenimento directo, pela gastronomia, como até pelo serviço, pela música, pela gente gira à volta. LS – Pela companhia que trazem com eles. JA – É o momento. O espectáculo é isso também. Cada um dos três já é, à sua maneira, uma rock star, como dizia há pouco o Ljubomir. LS – Sim, somos, é verdade. JA – Temos protagonismo. LS – Mas começa a ser um pouco exagerado. Isto tornou-se uma coisa muito popular, toda a gente quer saber da cozinha. HSP – A televisão acima de tudo. LS - Ainda bem, graças a Deus, por isso é que temos emprego. Isso tem só vantagens ou também tem desvantagens?JA – Também tem algumas desvantagens. LS – Tem umas cenas que são desvantagens. No outro dia estava a viajar na TAP para São Tomé e Príncipe, na classe económica, onde o bilhete custa 900 euros. Chega uma senhora e diz-me: “Chef, quando levantar voo, não se preocupe, passa para a primeira classe. Gosto muito de si”. JA – Essa parte é vantagem. [risos]LS – “Acabei de tomar um Xanax, vou dormir sete horas desmaiado, a babar-me. Não vou desfrutar um caralho. ” Essa cena de rock star…JA – É importante para promover a nossa profissão. E depois quem faz bem feito é bom. A única coisa mesmo negativa nisto é haver quem vai à boleia para fazer mal. Há mais de 100 anos o Oscar Wilde dizia que há três maneiras…HSP – E a falta de privacidade; mas isso é controlável. JA – Isso tem a ver com a nossa exposição mediática directa. LS – Ou se está pronto para ela ou não se está, claro. HSP –Tem a ver com o facto de, aqui, dificilmente se conseguir ser anónimo. O Zé vai jantar a um restaurante e a partir do momento em que passa a porta com a mulher, com os filhos, já toda a gente sabe. LS – É o preço que se paga pela fama. JA – Normalmente tratam-me com muito carinho, acima de tudo. Mas eu queria saber o que é que disse o Oscar Wilde. JA – “Há três maneiras de fazer a diferença na sociedade: chocar a sociedade, entreter a sociedade, ou alimentar a sociedade”. E hoje em dia um cozinheiro faz essas três coisas. Também choca?JA – Também choca. Quando o Adriá faz a múmia, um prato de 96 ou de 98, que era só uma espinha de salmonete, pequenina, frita, enrolada em algodão doce, a fazer lembrar os mantos das múmias, aquilo choca. Está a mexer com o mundo dos mortos. Pessoas a servirem beterraba dentro de uma seringa que tem que se injectar não sei onde para comer, pá, há choque. HSP – Vais ao Diverxo do David Muñoz e tens gajos a servirem com as unhas pintadas, vestidos de pijama. Choca. JA – Um com o coração, outro com o pulmão, cada um era um órgão porque completava uma pessoa. Tem porcos com asas a voarem por cima do restaurante. HSP – Mas é o que ele diz: ninguém te obriga a ir lá, se não gostas não vais. Mas isso já não é gastronomia, já é mesmo espectáculo. LS – É o mundo do espectáculo. HSP – Nada daquilo fazia sentido se depois a comida fosse uma merda. Agora, se a comida depois é maravilhosa, é muito bom. JA – E é muito bom, não é?HSP – Ele diz: “Quero criar uma experiência única. Não gosto de ser igual aos outros, gosto de ser diferente e irreverente. ” Aquela é a filosofia dele, goste-se ou não. JA – A comida tem uma particularidade: toda a gente come por isso toda a gente é treinador de bancada automaticamente. O mundo dos vinhos também sofreu muito isso. A história dos copos: o Borgonha, o Bordéus. A malta antes de saber de vinhos já percebia mais dos copos do que do vinho que estava a beber. E na cozinha isso acontece muito; começam logo a fazer-se grandes análises. Toda a gente fala do David Muñoz e se calhar só cinco por cento das pessoas que falam dele é que foram ao restaurante e foram ver de facto o que ele faz. LS – É das pessoas mais humildes que conheci. HSP – Houve muita coisa de que não gostei no restaurante. Alguma vez vou deixar crescer uma crista e vou atirar fígados à parede e ver sangue a voar? Não é a minha imagem. O gajo cria todo um mundo, cenas à David Lynch. JA – As pessoas procuram posicionamentos. HSP – Da mesma forma que o Marco Pierre White foi talvez o primeiro chef rock star britânico, conhecido por criar ambientes muito pesados na cozinha. JA – Álcool, drogas, mulheres. Tem uma foto linda de duas mulheres lindas e ele a empratar. LS – O gajo tinha o dealer na cozinha. HSP – O livro dele tem cada história: vai ao escritório, encontra uma cliente nas escadas e come a cliente na casa de banho [risos]. JA – Comer, até se podia aplicar no restaurante, mas não. HSP – Perguntam: “Ah, mas o Marco Pierre White pensou que o estilo dele ia ser assim?” Não. Nós somos os três mais ou menos da mesma idade, trabalhamos na mesma cidade, mas temos estilos completamente diferentes. Qual foi a coisa mais radical que já fizeram na cozinha? No caso do Ljubomir sei que foi espetar um garfo na mão de outro cozinheiro. LS – Na semana passada espanquei um gajo. Isso é história. LS – Juro pela saúde dos meus dois filhos. Apanhei um gajo a roubar-me no restaurante. Tenho sempre histórias destas. Parece que tenho íman para esta merda. Apanhei um empregado a roubar. Estava com 600 euros em produtos na mochila dele. Uma caixa de carabineiros, leitões. Atirei-lhe com uma cadeira. E espanquei-o, fodi-o todo. Veio a polícia municipal - desculpem, senhores agentes - bateram na porta e não os deixei entrar. Estava no meu direito de espancar o gajo que me estava a roubar [risos]. JA – Depois de uma história destas eu nunca fiz nada. Já fiz uma directa na cozinha. Foi o máximo que fiz, mais nada [risos]. HSP – As cozinha são ambientes pesados. LS – Pesados e alegres. HSP – Exactamente. LS – Das cenas mais bonitas que há é pinar na bancada da cozinha, quentinha [risos]. Agora estão-se todos a rir. Nunca ninguém pinou na puta da cozinha, na bancada? Foda-se! São é uns betos que têm medo de dizer isso [risos]. JA – Um dia quero ser político, não posso dizer coisas que me comprometam. Não é verdade, não quero nada. LS – Não queres que te apontem o dedo amanhã. JA – Por acaso tinha lido um artigo do Ljubo que dizia isso, que a coisa que ele mais gostava era de pinar na cozinha. LS – É lindo, meu. JA – Ele já fica com essa. HSP – Eu já tive momentos tensos na cozinha. Já mandei uma pilha de pratos a um chefe de sala. Isso é um prejuízo. HSP – O prejuízo ali não era meu. Desde que tenho um restaurante meu nunca mais fiz isso [risos]. Pedi para o gajo limpar os pratos uma vez, duas vezes, três vezes. Começámos o serviço com os pratos sujos, agarrei nos pratos e mandei-os para cima dele, pronto. Não sei se foi a atitude correcta. JA – A coisa mais radical que vivi não foi directamente minha. Grito muito pouco, sou muito calmo, mas vou engolindo e há dias em que preciso mesmo… O serviço no Belcanto tinha começado a correr pior, a malta andava mais desconcentrada. Um dia, às nove da manhã, na reunião que temos sempre antes do serviço, faço um daqueles discursos de dar cabo de todos, a bater na mesa. Houve dois gajos que desmaiaram no meio do discurso, com o stress. LS – Estás a gozar!JA – Um desmaia e outro gajo olha para ele, assusta-se e também cai redondo. Achei que me tinham posto antrax na ventilação da cozinha. Comecei a evacuar a malta [risos]. Ainda hoje me lembro do dia, um dia cinzento. LS – Mas espera, meteram-te alguma coisa no ar condicionado?JA – Não, pá. Um desmaiou de tensão. O outro assustou-se ao ver o primeiro gajo a desmaiar; falta de pequeno-almoço, cansaço. Aquelas coincidências. Acho que foi o mais estranho que me aconteceu. LS – Vê lá, este gajo manda dois ao chão. Estamos a brincar?! Radical é o Avillez. JA – Mas só com palavras, não usei as mãos. HSP – É normal quando a nossa formação, quase toda, foi em ambientes pesados. LS – A minha é francesa, é sempre a berrar. HSP – Eu estive em Londres e andávamos literalmente à porrada na cozinha. Depois íamos todos beber copos a seguir. É inevitável, esse tipo de ambiente?JA – Não, eu não me dou bem. Não consigo trabalhar numa cozinha com esse tipo de tensão. HSP – Hoje em dia isso já não é tão permissível. LS – Pois não [risos]. O Ljubo e o Avillez foram sócios. LS – Separámo-nos exactamente por esta razão. Eu era uma besta do caralho. JA – Este gajo queria atirar óleo à cara de um gajo que cozinhava pior. Já imaginava o outro gajo todo queimado. Doía-me o coração. LS – É por causa disso: ele é estável, é calmo, resolve as coisas com mais diálogo. HSP – Eu também confesso que não lidava muito bem com esse ambiente. A questão é que a tolerância vai aumentando. Na primeira cozinha onde trabalhei havia um ambiente muito, muito pesado. O meu chefe era uma espécie de Gordon Ramsay. Mas ao mesmo tempo era um gajo muito justo, à medida que se ia conquistando ele ia abusando de nós cada vez menos. Havia uma espécie de trial period onde estávamos sob fogo. Passado esse período já não se metia connosco. A questão é que quando se tem este ambiente acaba por se fazer o mesmo ao gajo novo que entra na cozinha. Passamos a ser nós os abusadores. E entra-se num círculo vicioso. Até que fui para a Austrália e tive lá a minha primeira grande mudança em termos comportamentais. Quando fui para a Austrália, saído de Londres e desse ambiente, ameacei o gajo que estava na minha bancada: “Ou fazes isso bem ou parto-te a boca toda” [risos]. E o sub-chef chamou-me: “Meu amigo, aqui o processo não funciona assim. ” E lá me fui acalmando. JA – Para terem uma ideia - e aqui o Ljubo até se vai rir - eu tinha multas por palavrões na cozinha [risos]. Para o Ljubo quanto mais palavrões disserem mais cotados são os gajos na cozinha dele [risos]. Tem a ver com maneiras de ser. Mas o Ljubo é um gajo educado, trabalhei com ele e sei. Aprendi muito e profissionalmente cresci muito com ele. E conheço a mãe dele…LS – Oh, pá, lindo, estou todo arrepiado. [risos]JA – Gosta de dizer palavrões, é desbocado mas é uma pessoa educada. Eu tenho muita malta a trabalhar comigo que começa na cozinha aos 16, 17 anos, e sou um bocadinho pai deles. Por isso gosto de dar uma formação. E então era preciso pôr um euro no mealheiro por cada palavrão. LS – Tu e o Joachim Koerper [responsável pelo Eleven], sabes disso?JA – O Koerper faz o quê?LS – É igual na cozinha. Com ele eram notas de cinco euros. HSP – Eu estava lixado, digo muitas asneiras. LS – O Koerper cobrava o dinheiro a todos no final e iam jogar póquer para gastarem aquele guito [risos]. Mas aí já podiam dizer asneiras. JA – O David, que é o meu braço direito, se calhar ainda é mais fundamentalista do que eu nisto dos palavrões. E não permito nunca a ninguém ameaçar de porrada seja quem for; é uma coisa que não me cabe na cabeça. Foi por isso que deixaram de ser sócios?JA – Não. Temos perfis diferentes, estávamos em alturas diferentes da nossa carreira. Tive uma proposta para ir para fora, na altura, e achámos que era o melhor a fazer. O vosso perfil, em muitos aspectos, é totalmente antagónico. LS – Totalmente. JA – Curiosamente demo-nos mal nalgumas coisas mas demo-nos bem noutras. E mantivemos, apesar de termos criado algumas rupturas em algumas áreas, uma certa cumplicidade. LS – Sim, mas tivemos que passar por uma quarentena, vai-te lixar. JA – Sim, faz parte. O tempo cura tudo. LS – O tempo cura tudo. E não é por mal. Lembro-me que tive uma namorada linda para caraças, óptima, mas separei-me dela. Ela deu-me com os pés, caralho! Demorei um ano até conseguir olhá-la na cara. É normalíssimo. Passámos pela nossa quarentena. JA – Sim, e de facto temos um perfil diferente. Agora, há muitas coisas que o Ljubo respeita em mim, muitas que respeito nele, e convivemos. Estamos aqui à mesma mesa sem dar biqueiros um ao outro. LS – E sem nos ameaçarmos. JA – Até porque ele faz kickboxing, eu não ia correr esse risco [risos]. HSP – Acima de tudo, voltando à razão pela qual estamos aqui, estamos todos no mesmo bairro e sentimos que estamos no mesmo barco. Cada vez mais sentimos que, juntos, contribuímos muito mais para a evolução da cidade como destino gastronómico do que separados. LS – Actualmente temos um embaixador do caraças. Isto sem estar para aqui com coisas bonitas. Tenho que dizer asneiras, faz parte. O Zé tornou-se muito o embaixador de nós todos, o gajo que tem a maior bandeira. Por causa das estrelas Michelin?LS – Não, é por causa da gestão. É o gajo que tem o pau maior [risos]. E ajuda muito todos os outros, é a realidade. Pode-se gostar mais, pode-se gostar menos, estar tranquilo ou não estar, mas é muito importante haver sempre uma grande bandeirola para todos. Para puxar por nós, para trabalharmos mais. E há um aspecto muito importante aqui: é a gestão. Este gajo é o melhor gestor na cozinha que já conheci na minha vida. Ele [Henrique] é péssimo. Eu sou um nabo. Ser cozinheiro e gestor, não existe quase nenhum. Gestor no sentido de fazer boas compras, de não haver desperdício?HSP – Ter um negócio rentável. LS – Saber guiar o negócio. É o melhor exemplo que tenho ao nível dos chefs. JA – Isso é muito importante para depois conseguirmos fazer aquilo de que gostamos na cozinha. Quem tem menos essa competência uniu-se a pessoas que a têm. O Ljubo e o Henrique acabaram por arranjar sócios que têm essas competências. LS – Eu não tenho, contratei um contabilista, expulsei os sócios todos. O contabilista é que é óptimo. Agora um desafio: dou três ingredientes diferentes a cada um para vermos o que fariam com eles. Avillez: caranguejo, cogumelos e azeite. JA – Fazia um creme de caranguejo com umas trompetas salteadas e um fiozinho de azeite. Bosque, mar, terra. O cruzamento terra/mar, mas em que o sabor da terra em vez de ser carne, seria o sabor dos cogumelos. E com as trompetas da morte, que é um cogumelo que me é muito querido. Henrique: bacalhau fresco, beterraba e molho de ostras. HSP – Aí estava em casa. [risos] Fazia um bacalhau curado em beterraba com um picle de beterraba e incorporava o molho de ostras nesse picle. Mas uma coisa meio crua. O bacalhau é um peixe muito sensível. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ljubo: tamboril, feijão verde e vinho da Madeira. LS – Lindo. ‘Tá-se muita bem. Tamboril é dos peixes que eu adoro, simplesmente salteado em manteiga. Não sei se a redução de vinho da Madeira resultava com tamboril, mas acho que sim. Talvez com o tamboril um pouco marinado em vinho da Madeira e depois salteado e curado em manteiga. Molho reduzido, umas especiarias para ganhar mais o anisado. Ficava óptimo. E o feijão verde ao vapor, o mais simples do mundo. Para terminar, que ementa proporiam para a cerimónia de posse do novo Presidente da República?LS – O Marcelo Rebelo de Sousa, sendo um tio de Cascais, provavelmente ele e o Zé conhecem-se bem, e se calhar os filhos do Marcelo são amigos do Zé. Eu só sei do que ele não gosta. Não é para ofender mas fazia-lhe muitas entranhas: uns corações e uns fígados fritos, que são do caraças. Fazia-lhe uma ementa na base das entranhas mas acabava com certeza absoluta com uma coisa de que ele gosta: uma saladinha fresca de alface e tomates. [risos]JA – Sei que ele gosta muito de pastel de nata. LS – Estou a brincar, fazia a minha cozinha. JA – Eu, se calhar, tentava fazer qualquer coisa portuguesa, com as nossas influências. Tive oportunidade de ser convidado para o palácio de Belém quando vieram cá os então príncipes de Espanha, hoje reis de Espanha, e fiquei um bocadinho frustrado, na altura, com o menu que foi servido. Devia ter tido mais dignidade, para mostrarmos mais a nossa gastronomia, os nossos produtos. Esses momentos são muito importantes para mostrarmos o que temos de melhor. HSP – Muitas vezes ainda não há essa atenção, mesmo em viagens oficiais. As pessoas que têm esse poder de decisão acabam, muitas vezes, por não aproveitar os “Ronaldos” do país.
REFERÊNCIAS: