A mega Istambul de Erdogan, cidade de todos os riscos
O primeiro-ministro turco, no poder há uma década, quer deixar a sua marca em Istambul, com uma série de megaprojectos de engenharia. Mas as pontes, túneis e superaeroportos planeados podem ser de mais para a cidade milenar que já foi a capital de dois impériosUns minutos debaixo de água, três estações de Metro e eis que mudamos de continente: Europa e Ásia ficarão ligadas no centro de Istambul, por um túnel submarino no Bósforo, de 1, 4 quilómetros e a 56 metros de profundidade - mas que fica a apenas 16 quilómetros de distância da falha tectónica onde os cientistas julgam que é mais provável que tenha origem o ... (etc.)

A mega Istambul de Erdogan, cidade de todos os riscos
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: O primeiro-ministro turco, no poder há uma década, quer deixar a sua marca em Istambul, com uma série de megaprojectos de engenharia. Mas as pontes, túneis e superaeroportos planeados podem ser de mais para a cidade milenar que já foi a capital de dois impériosUns minutos debaixo de água, três estações de Metro e eis que mudamos de continente: Europa e Ásia ficarão ligadas no centro de Istambul, por um túnel submarino no Bósforo, de 1, 4 quilómetros e a 56 metros de profundidade - mas que fica a apenas 16 quilómetros de distância da falha tectónica onde os cientistas julgam que é mais provável que tenha origem o grande sismo que prevêem que abalará a capital turca nos próximos 30 a 50 anos. Está marcada para 29 de Outubro a inauguração do túnel que ligará os dois continentes e transportará diariamente 1, 5 milhões de passageiros nesta cidade de 13 milhões de pessoas. Nesse dia comemoram-se 90 anos da revolução de Mustafa Kemal Atatürk, o fundador da Turquia moderna, o Estado republicano e laico, onde há uma década governa o carismático primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, conservador e islamista moderado. Apesar das suas origens conservadoras, tal como um Atatürk dos tempos modernos, impulsionou a transformação da Turquia numa economia moderna, afastando a presença tutelar dos militares, tornando-a mais semelhante às democracias ocidentais. Semelhante, mas não igual - os traços autoritários são evidentes, e mostrou-os em abundância em Junho face à contestação popular nas ruas de Istambul e noutras cidades. Antes de ser governante do país, Erdogan foi presidente da Câmara de Istambul, e parece ter dificuldade em deixar para trás esse cargo, quando esta cidade está de novo a assumir-se como um dos novos pólos centrais do planeta, um eixo entre a Europa, a Ásia e o Médio Oriente. Após a sua reeleição como chefe do Governo, em 2011, com 49, 95% dos votos, lançou a ideia de vários megaprojectos de desenvolvimento urbano com que quer deixar a sua marca na cidade em que se respira história em cada pedra da calçada - se Istambul foi a capital do Império Otomano, chamou-se já Constantinopla, a cidade capital do Império Romano do Oriente, até 1453. Antes era conhecida como a grega Bizâncio, fundada em 657 antes de Cristo. E há vestígios de ocupação daquela área que remontam até há mais de 8000 anos. "Tendo uma origem conservadora, Erdogan está a tentar recriar a glória do passado otomano. Quer deixar a sua marca como um líder neo-otomano. Todos estes grandes projectos vão nessa direcção", comenta ao PÚBLICO, por telefone, o arquitecto Murat Çetin, da Universidade Kadir Has de Istambul. Desastre ecológico Só enumerar os megaprojectos de Erdogan provoca tonturas. Um terceiro aeroporto, que será um dos maiores do mundo, com capacidade para 90 milhões de passageiros anualmente, quando abrir, em 2017. Progressivamente poderá atingir 150 milhões de passageiros, tornando-o então o maior de todos. Uma nova auto-estrada, de 260 quilómetros, que fará a ligação ao aeroporto e que ligará a Turquia ocidental à Ásia. Uma terceira ponte sobre o Bósforo, a Norte, que os especialistas em tráfego e planeamento urbano sublinham que só servirá para trazer mais carros para a cidade, como aconteceu após terem sido construídas as outras duas, em 1973 e 1985, e para que surjam novas habitações junto aos pilares da ponte. Neste caso é particularmente grave, pois a ponte será construída na floresta que é o pulmão verde de Istambul, a norte da cidade. "Istambul é uma megacidade global, que precisa de aeroportos, claro. Mas se cortarmos todas as florestas, o que é que vai acontecer à cidade no futuro? Os reservatórios de água, que são já limitados, são todos nessa área. Ao construir auto-estradas e aeroportos ali, vamos destruí-la. Atrás destas infra-estruturas vêm outras, habitação, centros de negócios. É o que aconteceu em todo o mundo", explica o arquitecto Murat Çetin. A terceira ponte foi já baptizada Yavuz Sultan Selim - o nome de um sultão que perseguiu e matou sem piedade uma minoria religiosa que continua a ser perseguida, os alevitas. Estes pediram ao Governo que mudasse o nome da ponte, mas até agora sem sucesso. Para a zona de Galata, a antiga zona comercial grega, está previsto um novo complexo portuário, e num estaleiro desactivado no Corno Dourado, propriedade do Exército, planeia-se um grande complexo com duas marinas, dois hotéis de cinco estrelas, um centro comercial e uma mesquita com espaço para mil fiéis. Erdogan sonha também com a abertura de um novo canal artificial que ligue o mar de Mármara e o Mar Negro, em alternativa ao hipercongestionado Canal do Bósforo. Os ecologistas alertam para um desastre ecológico em potência, pois o Mar Negro é como um lago gigante alimentado pelos rios Danúbio, Dniestre e Don, que apenas se pode esvaziar através do rio Bósforo. Se for aberto um canal artificial, uma ideia que o próprio primeiro-ministro diz ser "um projecto maluco", a diferença de elevação entre os mares Negro e de Mármara, que é de 30 centímetros, descerá para apenas 10, defende Cemal Saydam, da Universidade de Hacettepe, cujo trabalho é citado num artigo na publicação Al-Monitor. Os ecossistemas entrarão em colapso, com mistura de águas de diferentes níveis de sal e oxigénio, garante. Será um desastre ecológico. "Quem irá beneficiar disto? É algo que temos de analisar. A cidade irá ser penalizada, porque perderá recursos naturais, mas algumas pessoas vão ganhar, em termos imobiliários", afirma Murat Çetin. À espera do Big One A ciência actual não consegue prever quando vai acontecer um sismo - o dia, a hora, o ano. Mas os cientistas conseguem perceber onde é provável que a terra se vá mexer - embora a natureza seja sempre capaz de surpresas. Em Istambul, está-se à espera de um Big One desde 1766. O sismo não deverá exceder os 7, 5 de magnitude na escala de Richter, só que a falha tectónica onde deverá ter origem fica tão próxima de Istambul que os efeitos devem ser devastadores. "Há 68% de hipóteses de Istambul ser atingida por um sismo de magnitude 7 ou superior nos próximos 30 anos. Isto significa um risco de 2% por ano", estima Mustafa Erdik, director do Observatório Kandilli e do Instituto de Investigação Sismológica da Universidade Bogaziçi, em Istambul, num documento que enviou ao PÚBLICO. É um risco semelhante ao que correm São Francisco ou Tóquio. Istambul está habituada a sismos - já teve muitos. Alguns edifícios históricos são campeões de resistência, como Santa Sofia, em uso desde o ano 360, primeiro como igreja, depois como mesquita, agora como museu. A sua cúpula já caiu por causa de terramotos (no século IX) e a sua conservação inspira cada vez mais cuidados, mas a sua complexa arquitectura e até a mistura do cimento usado na sua construção ajudaram-na a chegar até estes tempos de transformação radical da cidade que abraça o Bósforo. Este risco sísmico faz pensar se será sensato investir em tantos megaprojectos de engenharia civil ao mesmo tempo. "Não há respostas simples", diz Marco Bohnhoff, do Centro Helmholtz Potsdam de Geofísica (Alemanha), quando confrontado com esta questão. Em Junho, o cientista alemão foi o primeiro autor de um artigo publicado na revista Nature Communications sobre a zona onde é mais provável que se venha a registar um sismo ao largo de Istambul - no mar de Mármara, a menos de 20 quilómetros do novo túnel ferroviário submarino, que usa soluções tecnológicas japonesas. "Podemos apenas definir riscos e quantificar consequências", diz. "Fui consultor do túnel Marmaray [o nome do novo túnel ferroviário submarino]. Foi concebido e construído seguindo critérios muito rigorosos, e espera-se que continue operacional mesmo com o temido "sismo de Istambul". Foi também instalado um sistema de alerta para parar o tráfego no túnel se houver um sismo grande", garante o engenheiro civil Mustafa Erdik. "Quase todas as principais infra-estruturas foram concebidas de forma apropriada e bem construídas de acordo com regras internacionais (ou posteriormente corrigidas) e espera-se que sobrevivam a um terramoto", diz Erdik. "O novo mega-aeroporto a norte da cidade fica a pelo menos 40 quilómetros da falha tectónica, por isso o risco sísmico é apenas moderado. E se for bem concebido, o novo canal artificial também pode ser seguro. "Renovação e especulação O grande problema de Istambul são os edifícios de habitação: 90% não são à prova de terramotos", diz Bohnhoff - e Erdik corrobora. A província de Istambul tem 1. 200. 000 edifícios e cerca de 13 milhões de habitantes, segundo uma quantificação de risco feita por Mustafa Erdik que serviu de base para o Plano de Segurança Sísmica de Istambul. A população explodiu entre 1970 e 2010: passou de três a 12 milhões, e o crescimento seguiu as vias de comunicação, tantas e tantas vezes com casas precárias. Após sismos destruidores em 1999, a ideia da necessidade de segurança anti-sísmica começou a ser levada a sério. Nos últimos anos, os projectos de renovação urbana avançaram em zonas do centro da cidade, com grande valor imobiliário, em que os moradores são obrigados a sair das suas casas - que são demolidas - e em seu lugar são construídas urbanizações modernas. Os antigos moradores podem comprar casas com áreas mais pequenas do que das suas casas originais, mas por vezes os preços são inacessíveis - como se conta no documentário Ekumenópolis, de 2012, que se pode encontrar no YouTube com legendas em inglês. Ou então são forçados a sair das suas casas, em áreas que hoje valem muito dinheiro, e a mudarem-se para outras zonas completamente diferentes - como aconteceu em Sulukule, onde os tradicionais habitantes ciganos foram obrigados a sair. O caso chegou aos tribunais, mas a sua mudança forçada continua. Numa lei aprovada em 2011, foi decidido que, ao longo de 20 anos, seriam demolidas cerca de sete milhões de habitações em Istambul, no âmbito da renovação urbana da cidade. "É um enorme mercado para atrair os empreiteiros - e também para aumentar a densidade populacional em Istambul. É questionável que isto seja necessário, a situação já não é como nas décadas de 1970 ou 1980, em que era urgente aumentar o parque habitacional", critica Çetin. "Embora a lei de transformação urbana tenha sido feita por causa dos terramotos, surgem dúvidas sobre a segurança de edifícios novos, até porque são áreas de grande risco sísmico", diz o arquitecto Murat Çetin. "A maioria das demolições acontece em zonas pobres e serve para afastar gente pobre de áreas valiosas. São usadas para um processo de gentrificação [aburguesamento urbano]. "Falta diálogo "Tem sido sugerido que o valor das empreitadas de reconstrução urbana é equivalente ao das perdas tidas pelas empresas de construção civil turcas nos países árabes que viveram processos da Primavera Árabe. . . ", diz Murat Çetin, avançando com as suspeitas de ligações indevidas entre as grandes empresas de construção civil, imobiliário e o partido no poder que são partilhadas pelos críticos. Sobretudo, reflectem a falta de abertura ao diálogo do Governo sobre os projectos, decididos de cima para baixo. "Há muitos actores numa cidade. Mas fazer grandes transformações numa cidade de uma só vez sugere que há grupos poderosos que podem comprar terrenos e que decidem transformá-los de uma vez só, sem intervenção dos outros agentes. Não é ético, não é sustentável social e politicamente. Nem sequer é tecnicamente correcto", diz Çetin. "Uma cidade pode ter megaprojectos, mas devem ser decididos com a participação de muitos sectores da sociedade. Não é nada disso que está a acontecer. "
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Pela Casa Da Música
Eram 109 pessoas de etnia cigana – crianças desinquietas, adolescentes embaraçados, adultos desconfiados. As técnicas – da Câmara Municipal de Matosinhos e da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos, que com elas trabalham nos bairros do Seixo e da Biquinha – iam puxando, ora umas, ora outras, para o centro de uma sala de ensaios da Casa da Música. Num lado, alunos do 3º ano do curso de dança do Balleteatro; no outro, famílias. Com o tempo, os nomes começaram a encaixar nos rostos. Primeiro estes: do coro da Igreja Filadelfia Evangélica do Seixo, em Matosinhos, tinham vindo a Taí Maia, a Mónica ... (etc.)

Pela Casa Da Música
MINORIA(S): Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
TEXTO: Eram 109 pessoas de etnia cigana – crianças desinquietas, adolescentes embaraçados, adultos desconfiados. As técnicas – da Câmara Municipal de Matosinhos e da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Matosinhos, que com elas trabalham nos bairros do Seixo e da Biquinha – iam puxando, ora umas, ora outras, para o centro de uma sala de ensaios da Casa da Música. Num lado, alunos do 3º ano do curso de dança do Balleteatro; no outro, famílias. Com o tempo, os nomes começaram a encaixar nos rostos. Primeiro estes: do coro da Igreja Filadelfia Evangélica do Seixo, em Matosinhos, tinham vindo a Taí Maia, a Mónica Farinha, a Vanessa Ribeiro. O espectáculo ia-se delineando, com vagar, pela mão de Isabel Barros (direcção artística) e Jorge Queijo (direcção musical). Alguns rostos iam-se perdendo, de Domingo para Domingo. Outros iam-se tornando familiares. Percebia-se, por exemplo, que a Taí é mulher do Graciano Cardoso, que também canta no coro, e mãe do João Cardoso, que tem 8 anos e toca bateria desde os quatro. “Romani” emergia como uma celebração da identidade de um povo, da sua música, da sua dança, da sua religiosidade, mas também como um encontro com o “outro”, que no palco seriam as 11 técnicas, os 23 alunos da Escola Profissional Balleteatro e quatro músicos profissionais. No fim, a festa encheu a Sala Suggia. Nunca uma comunidade cigana tinha pisado aquele palco. De repente, ciganos a descobrir o edifício inteiro, a andar por lugares que nunca antes tinham andado. E não ciganos a descobrir dinâmicas para lá de todas as ideias feitas. Ana Cristina Pereira
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola mulher comunidade
O que une os jogadores patológicos? Começaram a carreira a ganhar
Comparação entre jogadores patológicos que preferem o online, e os que apostam sobretudo nos casinos e bingos reais mostra que os primeiros atingem a fase da dependência cerca de dez anos antes dos segundos. (...)

O que une os jogadores patológicos? Começaram a carreira a ganhar
MINORIA(S): Asiáticos Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.8
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Comparação entre jogadores patológicos que preferem o online, e os que apostam sobretudo nos casinos e bingos reais mostra que os primeiros atingem a fase da dependência cerca de dez anos antes dos segundos.
TEXTO: São sobretudo homens. Com a excepção do poker, preferem jogos mais solitários, como as slot machines, a banca francesa, ou ainda as apostas desportivas, muitas vezes feitas à medida que decorre um jogo de futebol, por exemplo. Quantos golos vão ser marcados? Quem vai marcar o golo seguinte? Quem vai fazer falta?Tudo é motivo de aposta em tempo real nos sites da especialidade. Mas há mais características comuns aos chamados jogadores patológicos, prefiram eles os tradicionais casinos e bingos ou o computador. Desde logo, esta: entre 50% e 60% dos que participaram num estudo nacional contaram que ganharam prémios significativos nas primeiras vezes que apostaram. Já entre os chamados jogadores recreativos, sem sintomas de dependência, a percentagem dos que relatam ter tido ganhos dignos de nota nas suas primeiras experiências ronda os 14%. No jogo, a tão famosa “sorte de principiante” pode ser, afinal, uma espécie de maldição?“É um sinal de alerta para as pessoas que têm uma predisposição para a adição. É mesmo um preditor de problemas, porque o que fica registado de forma muito intensa do ponto de vista emocional é o ‘isto dá’. E se juntarmos isto aos traços clássicos de personalidade do jogador, que são a iniciativa, a grandiosidade, a vontade de poder, o ‘isto dá’ é ‘eu sou melhor do que os outros’, ‘eu sou especial e diferente’”, explica o psicólogo Pedro Filipe Hubert, que defendeu no mês passado uma tese de doutoramento onde traça o perfil dos “jogadores patológicos online e offline”. Prossegue Pedro Hubert: “Tive um paciente que era espanhol e ele contava que na Andaluzia havia uma praga cigana que era esta: ‘Espero que vás ao casino e ganhes. ’ Era uma praga, é revelador. ”Perto de 1800 pessoas responderam a diferentes tipos de questionários: um para jogadores online outro para jogadores offline, conforme o seu modo preferencial de apostar. O questionário foi colocado num site criado para o efeito. O projecto de investigação foi divulgado em jornais, revistas e televisão. Quem aderisse receberia, depois de devidamente preenchido o questionário, um diagnóstico rápido: em que fase está? Recreativa, abusiva ou patológica? Uma espécie de recompensa pelo esforço. Foram validados inquéritos de 1599 participantes, entre os 16 e os 80 anos. Destes, 26, 7% dos jogadores que jogam preferencialmente em espaços físicos, os chamados jogadores offline, foram considerados patológicos. O mesmo aconteceu com 17, 8% dos jogadores online, os que usam mais os jogos virtuais. Há um estádio intermédio, antes de se chegar ao comportamento patológico: são os chamados jogadores abusivos, “ou seja, em risco de dependência”. E quase metade dos 1600 inquiridos apresentam características que os colocam nesse estádio, o que preocupa o investigador. Jogadores recreativos, apenas 30, 1%. Pedro Hubert sublinha que este é o primeiro estudo no país que identifica e compara “os diversos elementos referentes a estas populações”. O que permitirá, desde logo, traçar melhores estratégias de prevenção. A amostra, alerta, não é contudo representativa dos jogadores portugueses em geral. “Porém, pretendeu-se alcançar a representatividade da população de jogadores patológicos em Portugal pela grande dimensão” do grupo de participantes. O Governo prepara-se para dar esta semana luz verde à nova lei do jogo online, em Conselho de Ministros. A Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa passarão a ter acesso a uma base de dados onde constam informações pessoais (como a idade e o número de contribuinte) de quem se regista nos sites online e de quem faça apostas em locais físicos. Além disso, a publicidade aos jogos é permitida, mas com mais limitações para proteger os menores e os grupos mais vulneráveis. O valor do dinheiroAlgumas conclusões do estudo de Pedro Hubert: os jogadores patológicos offline são mais velhos (média de 40 anos), os online mais jovens (média de 30). Os primeiros, mais do que os segundos (32% contra 25%), dizem já ter tido um diagnóstico de depressão. E o mesmo se passa quando se pergunta se já tiveram problemas com a justiça (10, 6% dos patológicos offline e 3, 5% do patológicos online dizem que sim). Em ambos os grupos, as tentativas de suicídio são elevadas (8% relatam já ter tentado pôr termo à vida). E o consumo de outras substâncias (álcool, drogas e tabaco), sendo, em geral, mais baixo do que o verificado em estudos feitos com jogadores noutros países, é mais elevado nos jogadores dependentes offline, o que estará relacionado com a “carreira mais longa de jogo”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens lei suicídio consumo estudo espécie
Kusturica: “Fazer filmes é como construir pirâmides”
Fazer filmes é difícil, diz Kusturica, e arriscamo-nos a perder o realizador para as framboesas. Mas esperando que isso não aconteça, vemos como o cinema era há muito, muito tempo: On the Milky Road, história de amor com Monica Bellucci. Conversa com o realizador-actor e a actriz em Veneza. (...)

Kusturica: “Fazer filmes é como construir pirâmides”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fazer filmes é difícil, diz Kusturica, e arriscamo-nos a perder o realizador para as framboesas. Mas esperando que isso não aconteça, vemos como o cinema era há muito, muito tempo: On the Milky Road, história de amor com Monica Bellucci. Conversa com o realizador-actor e a actriz em Veneza.
TEXTO: Fala-se no seu comeback – On the Milky Road, primeira longa-metragem em nove anos, estrategicamente colocada no final da competição do 73. º Festival de Veneza para sairmos daqui enganados pelo seu sabor –, mas Emir Kusturica diz que, tendo vários projectos, não sabe quando os fará e se os fará. A não ser. . . “O meu principal projecto é uma plantação de framboesas e maçãs, começarei a fazer produção biológica. . . ”“É muito difícil fazer filmes. Sou um cineasta cuja mise-en-scène é desencadeada pelo espaço, é difícil. Fazer filmes é como construir pirâmides, se levamos o cinema a sério. " No seu caso também podia ser como destruí-las. Não se trata só de criar um cenário, animá-lo antes de escolher o cantinho que vai aparecer no filme, trata-se de construir um cenário e a seguir deitá-lo abaixo porque ele não funciona. Foram três anos de rodagem, 2013, 2014, 2015, várias fases de reshooting, de recomeço. Lembras-te de Emir Kusturica? Sim, merece ganhar o Leão de OuroPrimeiro por causa de um falcão que não havia, e o filme começou a ser desenvolvido com essa ausência nas primeiras semanas. Quando chegou o falcão, Kusturica quis partir do zero. “Depois houve 47 dias de chuva, há dois anos [na região onde filmaram, na Sérvia], e não aceito rodar sem sol. Mas o mais difícil foi ser alguém que observa e é observado”, isto é, que realiza e interpreta. Kusturica, em On the Milky Road, tem o papel principal, um leiteiro que se fechou em si mesmo no início da guerra dos Balcãs, que se esqueceu de quem tinha sido, até que encontra uma mulher de passado misterioso e sem indícios de futuro (sem nome, apenas A Noiva, e é Monica Bellucci). Ele, com o seu amigo falcão, avista uma igual. História de amor, o tonitruante carrossel de música e animais (os gansos continuam a ser predilectos) vai amainando, os amantes que fogem à guerra aprendem a respirar debaixo de água – todo um maravilhoso aquático que, assegura Kusturica, não teve toque de efeitos especiais, “é tudo real” – e começa a ouvir-se o vento na lindíssima hora final do filme. Que é um comeback porque procura novo tom para uma melodia já conhecida, como se quisesse efectivamente recomeçar (esse projecto das framboesas e maçãs é inquietante, ameaça o horizonte que o filme abre; houve já quem se dedicasse ao vinho e o cinema perdeu com isso). “Sou cada vez mais fã de Chaplin e de todos os tipos que realizavam e interpretavam nos seus filmes. Como é que eles faziam, transcendendo-se de cada vez?” Ele consegue. “Quando trabalha há prazer e há sofrimento”, conta Monica Bellucci. “É a sua maneira de fazer filmes. Entrar na água fria, depois sair da água em direcção à câmara de filmar, depois regressar de novo à água fria, depois voltar à câmara. . . e quando o dia chega ao fim, ele diz: ‘Vemo-nos amanhã, vou dar agora um concerto. ’”As pirâmides. . . ou como Kusturica coloca de outra maneira, o “obsessive world of cinema”. “Os filmes são feitos com uma imagem obsessiva do mundo na nossa cabeça e no set. Na montagem, apenas podemos melhorar isso. O decisivo é a imagem obsessiva do mundo que temos na rodagem. O segredo é evitar o artificialismo, como combinar a força do plano com a elegância da expressão. Renoir, Truffaut, Tarkovsky poderiam dizer algo sobre isso. Não é por acaso que os filmes finais dos grandes mestres são algo distanciados da vida, mesmo que esteticamente bem-feitos. ” Várias vezes nesta conversa com um grupo de jornalistas em Veneza, Kusturica, 62 anos, natural de Sarajevo, fala do cinema, tal como o pratica, como arte antiga e em vias de desaparecimento. Uma das coisas imponentes e solitárias de On the Milky Road é lembrar-nos de como já foi. “Há um método americano em que se cobre a cena filmando através de cinco ângulos diferentes para depois escolher na sala de montagem. Oponho-me a isso. Cada ingrediente que se mistura no set, seja um plano curto ou um plano sequência, tem de ser filmado sabendo em que lugar o vamos colocar na arquitectura final. Montamos o filme enquanto o filmamos. E o dia é organizado de véspera. Quando chegamos de manhã ao set, tentamos concretizar com os actores o que pensámos na noite anterior, e a realidade do set dá-nos novas maneiras para concretizar o objectivo. E começamos a destruir tudo o que construímos antes. O script é blá-blá-blá, é para ser destruído. Depois chega o produtor, que tenta, por sua vez, impedir que façamos o que queremos. Temos de ser fortes a manter a nossa visão. Este filme foi um risco, poderia perder tudo, a minha vida e a vida dos outros. Com cada filme levamos toda uma equipa ao limite. Gasta-se muita energia de muita gente, pede-se muito. Fiz dez filmes, com grandes equipas, muito poucos me abandonaram antes do fim, porque sentiam que eu também me estava a gastar, com sinceridade e em nome de uma visão. Quando assim é, as pessoas seguem-nos. ”É aquilo a que Monica Bellucci chama a “autoridade natural” do realizador de O Tempo dos Ciganos (a “obra-prima” dele para ela. ) “As pessoas seguem-no como a um comandante. Nada a fazer. Tem aura. A cada cinco minutos aparecem-lhe ideias. Depois de eu estar três dias a memorizar uma cena, ele chegava com alterações, mais três frases de diálogos, minutos antes de filmar. A cabeça dele é rápida e temos de estar preparados para mudar tudo. ‘Mas Emir. . . ?’ ‘Não, não, vais ali para um canto, consegues fazer isso. ’ No meio disso, há uma parte dele que é uma criança. Ele vem de uma terra de beleza. Uma terra de violência, é claro, mas querendo acreditar que a beleza existe. É o seu lado de criança. ”Monica mergulhou na Sérvia durante três anos. On the Milky Road, como anuncia o genérico, é baseado “em três histórias reais e muita imaginação” – tendo Kusturica construído o filme a partir do que imaginou do passado da personagem que estava numa curta, o seu segmento Our Life para o filme colectivo Words with Gods (2014). “Deparamo-nos com histórias horríveis, tantas que é muito difícil, quando se é de fora, ter algum julgamento”, continua Monica. “Há tantas culturas que ali se sobrepõem, não podemos ter um julgamento, podemos apenas constatar a energia que por lá existe e que como actriz absorvi. Ali, as pessoas, para sobreviverem, precisam de outro nível de realidade. É a esta loucura e sofrimento que chega a minha personagem, A Noiva. No meio da guerra. Mas é uma líder, uma vencedora. É uma mulher difícil de encontrar. Há um mistério, não se sabe de onde vem. Sabemos que foi amante de um poderoso general que matou a mulher por causa dela, ela denunciou-o e quando ele sai da prisão quer apanhá-la viva ou morta. É uma história verdadeira. ”A acreditar em Kusturica, Monica mergulhou pela primeira vez por causa deste filme, atirou-se à água saltando de vinte metros de altura, foi desafiada a improvisar uma canção. (E chorou com cara de chorar, e cantou, e “não fez apenas isto. . . ” – e o realizador congela o rosto numa pose provocante). “Quanto temos um instrumento, devemos abrir todas as possibilidades quando o tocamos. ”Monica confirma que nunca se aborreceu. “Trabalhar com Emir é desafiador porque o script é apenas um ponto de partida, tudo se passa na rodagem. Na verdade, eu na vida prefiro um prato de pasta ao ginásio, mas com ele tive de esquecer isso. Não corri grandes riscos, mas o que se passa num filme é que somos encorajados a fazer aquilo que não fazemos normalmente na vida. Estamos para além da realidade. E com ele estamos sempre nessa dualidade de realidade e fantasia. Não nos enganemos: embora neste filme haja sempre muita coisa a passar-se, é uma experiência íntima. Há espaço para duas pessoas olharem uma para a outra. Não sou já uma mulher nova [51 anos], por isso o que me agrada é que é uma história de amor entre duas pessoas que já passaram por muito, que já viram muito, nada têm a perder, mas acontece algo de mágico. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E não acontece sexo, orgulha-se Kusturica. Que desde o início da sua carreira se vê como director de um zoo: gansos, cobras, moscas, falcões, galinhas, um urso com que a sua personagem partilha uma refeição de laranjas. “Animais e natureza, eis a minha determinação. Somos animais sociais, e o instinto que trocamos com os animais é o elemento fundamental. A personagem que interpreto é um tipo perfeitamente relaxado em relação aos medos da natureza. O urso come da minha mão, essa cena é real. Não foi coragem da minha parte, é apenas entender alguma coisa. Se lhes damos de comer, eles tornam-se nossos. ”Conhece este urso há cinco anos, era um bebé, rolavam juntos, hoje é um volume de centenas de quilos que come da sua mão. “A equipa estava assustada. . . mas há truques: quando se encontra um urso no bosque, temos de gritar. Ele aceita a autoridade de quem grita. Não se deve correr. Eles são mais rápidos. Gritem, alto, dêem-lhe uma lição. Quanto às mulheres, não sei. ”Veja aqui todos os textos sobre a 73. ª edição do Festival de Cinema de Veneza
REFERÊNCIAS:
Pussy Riot em greve de fome: “As prisioneiras da colónia nº 14 têm medo das próprias sombras”
Nadezhda Tolokonnikova, das Pussy Riot, entrou em greve de fome. Explica que o método "extremo" é o único possível num lugar onde o silêncio é imposto pelo terror. (...)

Pussy Riot em greve de fome: “As prisioneiras da colónia nº 14 têm medo das próprias sombras”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2013-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nadezhda Tolokonnikova, das Pussy Riot, entrou em greve de fome. Explica que o método "extremo" é o único possível num lugar onde o silêncio é imposto pelo terror.
TEXTO: Nadezhda Tolokonnikova, uma das duas Pussy Riot ainda presas, entrou em greve de fome. “É um método extremo” mas “a única forma de sair da situação em que me encontro”, escreve numa carta aberta em que detalhadamente denuncia as condições desumanas da colónia prisional da Mordóvia, para onde foi transferida no Outono passado. Uma situação também ela extrema, diz, perante a violência infligida a si e às outras prisioneiras, ainda mais indefesas por não serem, como ela, um foco da atenção do público. Em Agosto de 2012, as três Pussy Riot foram consideradas culpadas da acusação de hooliganismo e incitamento ao ódio religioso, por terem cantado, uma “oração punk” na Catedral do Cristo Salvador, em Moscovo, na qual criticavam a Igreja Ortodoxa russa e Vladimir Putin. Nadezhda Tolokonnikova foi então condenada a dois anos de prisão, juntamente com Maria Aliokhina e Iekaterina Samutsevich, entretanto libertada. Dentro da colónia penal nº 14, “o silêncio é imposto” pelo terror, diz nesta carta aberta publicada no jornal britânico The Guardian. As prisioneiras “têm medo das próprias sombras, vivem aterrorizadas". Não se ouvem queixas. Ou pelo menos, as queixas não atravessam os muros da prisão. Entrar em greve de fome era “a única forma” de se fazer ouvir. “A administração da colónia prisional recusa ouvir-me”, expõe. “E eu recuso baixar os braços. Não ficarei em silêncio, resignada a ver colegas da prisão a desfalecer sob a pressão de condições de escravatura. Exijo que sejamos tratadas como seres humanos. ”Nadezhda Tolokonnikova lembra que chegou aqui há um ano, vinda do centro de detenção de Moscovo, onde a colónia prisional nº14 já era tristemente célebre por dela se dizer: “Quem nunca cumpriu pena no campo da Mordóvia, simplesmente não cumpriu pena. ”Violações flagrantesNada parecia, pois, comparar-se a este lugar, onde “os níveis de segurança [prisional] são os mais altos, os dias de trabalho mais longos e as violações de direitos humanos mais flagrantes. ” Na colónia penal nº14, “ninguém ousa desobedecer”, onde o trabalho forçado ocupa dois terços das horas do dia, se dorme quatro horas e se tem uma folga a cada mês e meio. Aqui onde as mulheres podem ser espancadas por tudo e por nada – quando, por exemplo, não conseguem cumprir o nível irrealista de produção diária exigido na fábrica de uniformes da polícia onde Nadezhda Tolokonnikova trabalha. O corpo desfalece perante a brutalidade e, quando os sinais de doença surgem, as súplicas são atendidas sim, mas com humilhação e insultos. Uma prisioneira de 50 anos, que sofria de tensão alta e se sentia mal, pediu um dia para terminar o turno mais cedo e dormir uma noite completa de oito horas, conta Tolokonnikova. Em vez disso, foi insultada e acusada de ser “parasita”. Noutro caso, uma mulher cigana foi espancada até à morte, há um ano. “A administração encobriu a morte [declarada na unidade médica da prisão]: a causa oficial foi uma trombose. ”Forçar à submissãoAlgumas prisioneiras são instrumentalizadas pelos responsáveis. A mando destes ou com o seu consentimento, são elas que agridem as colegas que ficam abaixo das quotas exigidas num dia de trabalho de 16 ou 17 horas. Os maus tratos são “um método conveniente” para a administração “forçar as prisioneiras à submissão total perante os sistemáticos abusos de direitos humanos”, continua a activista, antes de descrever a “atmosfera ameaçadora, de ansiedade que invade a [sua] área de trabalho”. E os casos de mulheres que, derrotadas pela falta de sono, “pela interminável luta de cumprir quotas de trabalho desumanas”, ficam à beira do esgotamento e se agridem mutuamente, pelas mais pequenas coisas do dia-a-dia ou, fora de controlo, se autoflagelam. Nadezhda Tolokonnikova lembra-se de ter sido acolhida pelo chefe-adjunto da colónia, tenente-coronel Kupriyanov, que é na realidade, quem administra a prisão: “Devia saber que, no que diz respeito à política, sou um estalinista”, disse-lhe já depois de pressionada a “confessar a culpa”. E quando ela respondeu que apenas trabalharia o previsto no código laboral, oito horas por dia, o outro responsável da administração, coronel Kulagin, prontificou-se a esclarecer que na colónia, a regra era outra. “A nossa força de vontade é maior do que a tua. ” Violações "intermináveis"O desrespeito pelos direitos e necessidades básicas – como o repouso, a alimentação ou a higiene – são “intermináveis”, escreve Tolokonnikova. “As condições de vida e de higiene do campo são calculadas para as prisioneiras se sentirem como um animal imundo e sem direitos”, denuncia ao mesmo tempo que relata momentos em que a sua unidade perdeu o direito a um banho durante duas ou três semanas. “A administração força as pessoas ao silêncio”, diz Tolokonnikova. "Todos os outros problemas derivam deste. A administração sente-se intocável. ” A activista diz que não compreendia por que toda a gente ficava em silêncio. Até ao dia em que ela própria se deparou “com uma avalancha de obstáculos que se abate sobre quem decide falar”. E continua: “As queixas simplesmente não saem da prisão”, diz sem especificar como conseguiu publicar esta carta. Uma revolta é, porém, impensável. “Ninguém ousa desobedecer. ” A uma exposição, pedido ou queixa por escrito, como fez Tolokonnikova, através do seu advogado, a solicitar o respeito dos direitos humanos das prisioneiras, a administração prisional sobe o nível de ameaça e opressão. Em resposta pela acção individual da activista, aplica o castigo colectivo que inibe, paralisa. O efeito do castigo colectivo“É possível tolerar qualquer coisa desde que nos afecte a nós apenas. Mas o método do castigo colectivo é maior do que isso. Significa que toda a unidade ou mesmo toda a colónia é submetida ao mesmo castigo. Isto inclui, pessoas a quem entretanto nos ligamos”, escreve, dando exemplos de amigas que sofreram represálias pelas queixas expressas pela activista. Uma viu recusada a passagem a liberdade condicional por que tinha lutado durante sete anos. Outra foi “atirada” para a unidade de espancamentos diários. O tenente-coronel Kupriyanov teve o cuidado de dizer a Tolokonnikova que tudo isto acontecia por causa dela. Nesse momento, ela decidiu parar: “Pus fim ao processo de interpor queixas. ”Agora, lembra que depois de uma dessas queixas, a vida na "unidade e brigada de trabalho” se tornou “impossível”. Desde então, “a pressão não tem parado de aumentar”. “Por isso”, conclui, “a partir do dia 23 de Setembro, inicio esta greve de fome e recuso participar no trabalho escravo na colónia. E assim me manterei até ao dia em que a administração decida cumprir a lei e pare de tratar as prisioneiras como gado”. Até “sermos tratadas como seres humanos”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte lei humanos violência campo mulher prisão fome doença medo mulheres corpo animal escravatura abate ansiedade
O Algarve não é aqui
Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo". (...)

O Algarve não é aqui
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Podemos ir a pé de Alcoutim, junto a Espanha, ao cabo de São Vicente, no extremo ocidental. São trezentos quilómetros pela serra e o barrocal. Trezentos quilómetros de ar puro, ribeiros e barrancos, de aldeias abandonadas, casas em ruínas e pomares esquecidos. “Só com os caminhos e o corpo".
TEXTO: De noite, Alcoutim é só silêncio. As ruelas brancas, de casario baixo, afluem para o rio e não se ouve uma porta, uma televisão, raramente um carro. Até que, chegados à margem do Guadiana, lá vêm os sons de um jantar em família, as vozes bem altas e animadas. E de onde vêm elas? De uma casa qualquer em Espanha. Se podemos ouvi-las com toda a distinção é porque do lado de cá não se passa nada. Ou quase nada. Está tudo mais calmo desde que a estalagem fechou, diz-nos Camané, que tem um restaurante com o seu nome. Se esta viagem deve começar em Alcoutim, então que se vá de véspera e se comece por aqui, com um belo ensopado de enguia, com poejo e pão frito em azeite. Também poderia ser javali estufado, perdiz à algarvia ou coelho frito. Os veados e javalis atravessam o rio, muitas vezes para um desfecho fatal. “A caça tem tido muita procura. Dizem que aqui há a melhor perdiz vermelha” – e Camané é um dos que gosta de lhes apontar a espingarda. Avistámos uma de manhã, quando nos pusemos a caminho, logo no início da Via Algarviana. São 8h30 quando começamos esta espécie de peregrinação, sem Deus nem promessa: trezentos quilómetros a pé, de Alcoutim ao Cabo de São Vicente, atravessando as serras do Caldeirão, Espinhaço de Cão e Monchique, numa linha quase sempre paralela ao mar. Trezentos quilómetros de sossego, vistas amplas, ar puro nos pulmões. Percorrem-se em 14 dias (só tínhamos 12, por isso saltámos duas etapas) por caminhos estreitos, às vezes íngremes, outras vezes (poucas) em asfalto, sem guia nem grupo organizado, apenas seguindo todas as indicações que estão em postes, pedras ou muros. Foi por isso uma sorte ter quase sempre a companhia da Anabela Santos, coordenadora da Almargem, associação de defesa do património ambiental do Algarve, responsável pela Via Algarviana (que foi inaugurada em 2009, tentando seguir o caminho da peregrinação de São Vicente; não se sabe quantas pessoas a fazem porque qualquer pessoa pode fazê-la autonomamente, mas o milhão e meio de euros investido já foi superado pela dinamização económica local, diz a bióloga). Sem ela mal daríamos pelas preciosas orquídeas selvagens que nos surpreendem pelo caminho, ou pelas pútegas escondidas entre as folhas. Cada etapa termina numa vila, aldeia ou monte onde se encontra alojamento, come-se, arranja-se lanche e forças para o dia seguinte. Comecemos então a caminhada, um pouco antes do ponto em que avistamos a tal perdiz. Saímos de Alcoutim com o rio à nossa direita, subindo vagarosamente, sem falta de fôlego. Do lado andaluz, um castelo velho pintado de novo, todo branco. Do lado algarvio, amendoeiras abandonadas ainda com os frutos do Outono, porque ninguém se dá ao trabalho de os apanhar – não compensa o preço, sobretudo pela concorrência da amêndoa californiana. Com as oliveiras é diferente: ainda há muita gente a fazer o seu próprio azeite. Por entre o grauvaque, que é abundante, despontam os sargaços em flor, os cardos, usados para fazer coagular o queijo fresco de cabra, as marioilas, cujas folhas felpudas eram antigamente usadas para lavar a loiça (sobretudo os alguidares da matança do porco), um serapião (orquídea selvagem quase grená, rara aqui, mas mais comum na última parte da rota). Não se chega depressa a lugar nenhum, porque essa palavra não existe quando se percorre um caminho assim. Mas ainda é de manhã quando entramos em Corte Pereiras, uma pequena aldeia onde todos têm um pequeno quintal. Cabrinhas cercadas por arame, piteiras, sobreiros. Um café à beira da estrada e pouco mais. A casa de Isabel Ferreira tem galinhas à porta para nos receber e um alpendre com um banco corrido de pedra, outro de madeira, hera a subir pelas paredes. A ceramista, de 55 anos, veio de Lisboa para aqui há 18. Não foi um feliz acaso, esta era a casa dos avós do seu marido. Apesar da tranquilidade da aldeia, “aqui também há stress, um stress interior”. Anula-o todo com os bichos e flores que cria, e que vende sobretudo a estrangeiros. “Nos últimos quatro anos desapareceu toda a gente. Agora estão a voltar aos poucos”, diz. A pequena porta que dá para o seu atelier tem mais de 100 anos. Lá dentro, o forno está ligado. Imaginamos o calor que fará no Verão: “Cinquenta e tal graus, às vezes. Não se consegue aqui estar. ”Isabel Ferreira faz brincos, ganchos e taças inspiradas nas flores das estevas. Difícil era não fazer, porque a serra está cheia delas, e nesta altura do ano estão bem floridas. Salpicam os campos de branco, como se fossem flocos de neve. De perto são pequenos ovos estrelados. Mas o melhor nem é isso, que já não é nada pouco. O melhor é o cheiro que libertam e que se cola ao nariz, enquanto atravessamos barrancos e linhas de água. Este ano choveu pouco. As ribeiras estão pouco fartas. Saltam-se de um salto. Mas a serra ainda está verde. Mais uns meses e toda esta paisagem mudará de cor. Mais uns meses e o calor tornará esta peregrinação um acto de sacrifício e dor. Os caminhantes que agora se vêem muito de vez em quando terão desaparecido quase por completo. Em tudo me parece que há emigração! Já reparaste? Os homens válidos, a rapaziada, estão na França, na Austrália, na Venezuela, no Canadá. Emigraram. Abandonaram as alfarrobeiras, as amendoeiras, as oliveiras, a sua terra (…) O sargaço, o tojo, o alecrim, o carrasco, o carapeto, o aro, todo o nosso mato se desenvolve e cresce, parecendo querer mandar dizer aos lobos que voltem…"(in Conversando a vida toda, José Cavaco Vieira: Dezembro de 1967)Em Afonso Vicente há agora seis habitantes. Já chegou a haver 400. Em frente à associação recreativa estão António Silvestre e José André. Dois dedos de conversa à espera que se abra a porta, o sol a bater quentinho na cara. Balurcos, aldeia com mais movimento, fica a 12km. Mas há 30 anos que António Silvestre não vai lá. Passa a maior parte do seu tempo aqui, onde a pessoa mais nova tem 62 anos e onde há 40 não nasce ninguém (informações recolhidas nesta varanda, à espera de um café que não vem nem virá). Não repetimos as mesmas perguntas em Corte Tabelião, uma aldeia que parece um pátio, toda virada para um larguinho, com um forno comunitário onde talvez ainda se coza o pão em ocasiões especiais. Mas o cenário é o mesmo: casas totalmente fechadas, ninguém na rua, excepto um ou dois velhotes a apanhar sol. Será sempre um pouco assim, às vezes, muito assim. Aldeias abandonadas, brancas e silenciosas, com um ou outro cão a ladrar do lado de dentro dos quintais, pouco habituados à passagem de estranhos. Aldeias a cheirar intensamente a flor de laranjeira. Atravessamos pomares de que já ninguém cuida e até tiramos um ou dois frutos das árvores para matar a fome e a sede de uma só vez. Atravessamos hortas ladeadas por valados, que aqui há muita pedra. Diz-se bom dia ou boa tarde a quem quer que se cruze no caminho. Ribeira da Foupana: deixamo-nos estar nas pedras a ouvir a água a correr. Come-se fruta e sanduíches preparadas por António Faustino, do turismo rural de Balurcos, onde ficámos na noite anterior. Os pássaros que cantem e façam a agitação que quiserem, que na próxima meia hora ninguém nos tira daqui. Quem quer molha os pés, quem quer dorme em cima das pedras, quem quer fica a observar o que nos espera do outro lado da ribeira: uma subida íngreme, com o verde-escuro a acalmar o verde mais claro das colinas, umas atrás das outras. A subida é compensada pelos campos de rosmaninho em flor, extensões sem fim de roxo vivo. Entra-se nas Furnazinhas por cima, com a aldeia aos pés. Aldeia não, monte. O senhor Manel aparece na Casa do Lavrador, de João Henriques, trazendo na mão um ramo de marioilas, que fazem também um bom chá. “Seca-se e dá para o ano inteiro. ” Depois vai buscar ramos generosos de hortelã-limão e poejo. Aqui tudo se dá. João Henriques diz que em finais dos anos 1960 toda a gente emigrou para a Alemanha, França, Suíça. O seu alojamento depende praticamente só dos caminhantes da Via Algarviana: holandeses, alemães e austríacos, sobretudo, também alguns portugueses. No ano passado terá recebido umas 200 pessoas. Fez tropa em Lourenço Marques, e lá conheceu a sua mulher. Depois foi para Angola, mas decidiu partir mesmo nas vésperas da independência, “já aquilo estava a fogo em Luanda”. Trabalhou em Faro, como técnico agrícola. “Agora voltei às raízes. ” A sala onde jantamos frango guisado era onde o avô tinha os animais; na zona onde é agora a cozinha guardavam-se as rações. O alojamento tem quatro quartos e tornou-se num negócio de família. Olívia não é da família mas quase, porque faz na Casa do Lavrador tudo o que é preciso: limpezas, jantares, pequenos-almoços… Não sai de Furnazinhas há anos, nem sabe dizer quantos. Os dois filhos é que a vêm visitar. Um deles é chef no hotel de Altura onde estudou, mas dizem que ela cozinha ainda melhor que ele. Comida da serra, claro. Quando precisa de alguma coisa que não encontre cá, o marido vai a Castro Marim, na carrinha que todas as terças-feiras vem buscar quem lá queira ir. Não há posto de saúde, mas qualquer problema aparece o INEM, e mensalmente vem uma médica que mede a tensão, receita medicamentos, faz um acompanhamento geral. E há também a carrinha que traz pão, peixe, carne e alguns artigos de mercearia. Na aldeia ainda há casas em grauvaque, a que chamam pedras vivas, ou xisto, também chamado de piçarra. Mas Joaquim, marido de Olívia, pedreiro, diz que há uns 40 anos que não se fazem assim. “Dá muito trabalho. Agora é só cal. ”A casa onde António Gomes Peres trabalha é em pedra. É cesteiro desde os 11 anos, leva 60 de profissão. Tem umas canas a um canto, um pedaço quadrado de cabedal em cima da perna para não se cortar com o vime, uma cadeira baixinha onde se senta. “Não há pontas à vista”, mostra com orgulho o cesto que está a fazer. Cada cesto leva quatro canas, cada cana leva uma hora a preparar. Um cesto com tampa, destes que está a fazer agora, é um dia e meio de trabalho. Recebe até encomendas do Japão, através do projecto TASA, que recupera o artesanato tradicional com ajuda de novos designers. Mostra um papel onde estão os exemplos de cestos que a clientela nipónica pretende. “Aquele era para ir para lá mas ficou muito barrigudinho e não passou no teste. ”António Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com eleAntónio Gomes Peres saiu da aldeia para fazer a tropa em Moçambique. “Quando voltei nunca mais saí daqui. ” Quem quiser que venha ter com ele. Deu um ano de aulas em Castro Marim, mas não fez discípulos. “Aprenderam, faziam bem feito, mas ninguém continuou”. Mais sorte teve Manuel Henriques, 58 anos, que tem uma melaria umas casas adiante, onde trabalha com os seus dois filhos, David e Tiago, que depois de tirarem cursos de apicultura se dedicaram ao negócio. “Agora está na altura de tirar o pólen”, diz. A “bonança, a força das flores, já chegou, vem de leste para oeste”, explicam os homens da aldeia. E as colmeias da zona, dispersas entre os campos de rosmaninho, entram em grande actividade. Manuel Henriques tem 250 colmeias. No ano passado produziu mais de três mil quilos de mel. “Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-lo. ” Mostra os favos recheados, que podem ser mastigados directamente. Mas o seu tesouro é outro. Numa das salas da melaria está uma mesa comprida com um enorme tabuleiro cheio de pólen, retirado das estevas, e tão amarelo como o centro das flores. Outros 13 estão numa máquina feita especialmente para a secagem. “Este ano o tempo não tem ajudado: se tirar 120 quilos de pólen já é muito. ” Vende cada quilo a 12 euros. “Isto é o meu ouro”, diz orgulhoso. Entre Furnazinhas e Vaqueiros os pinheiros mansos (“projectos”, como lhes chamam por aqui, por terem sido plantados com financiamento comunitário) rivalizam com os sobreiros. O guia da Almargem indica que esta zona é sobrevoada por dezenas de espécies de aves: a toutinegra do mato, a águia d’asa redonda, o papa figos, o abelharuco. . . Mas não venham dizer a Cristina Lourenço, de 49 anos, como é tão bom ouvir o seu chilrear. “Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir gente. ”Temos o melhor mel do mundo, não tenho problemas nenhuns em dizê-loTrabalha no centro paroquial de Vaqueiros, que ocupa os idosos durante o dia, dá-lhes refeições, ajuda-os na higiene. “Para esta geração, o pão para a semana dá; para a minha, já não serve. Sinto necessidade de ter pessoas da minha idade com quem falar, de ir ao cinema. ” De vez em quando vai a Faro e a Tavira para mudar de ares e ver a movimentação. Vaqueiros é uma animação perto de tantas outras aldeias à volta (é a mais povoada da freguesia). Mas não chega a ter 60 habitantes. O número está constantemente desactualizado, porque os funerais são uma rotina. Cristina Lourenço não tem esperanças de que a situação se altere muito. “Acho muito difícil haver fixação aqui. Como não há postos de trabalho, também não há um supermercado, uma sapataria… Está mesmo tudo desertificado. Toda a gente tem família fora. ”Ela também chegou a ir. Faro, Lisboa. Depois voltou porque era aqui que o marido queria viver e havia financiamento para a agricultura. “Viemos um bocado iludidos. ”Na Casa de Pasto Teixeira, a dona Rita garante um ponto de encontro à aldeia. Fala com os estrangeiros por gestos e todos se entendem. “Não deixo ninguém ir embora sem comer nem dormir. ” Toma conta do alojamento da filha, que só vem aos fins-de-semana, como muitos dos que saíram. E faz as refeições para quem pernoita. Conta que a maior parte dos habitantes emigraram para França ou Alemanha (como foi o caso dela, que viveu dez anos perto de Dusseldorf). Quando voltam, vêm com a reforma e constroem uma casita. “Se for ver, a aldeia tem muita casinha nova e prédios bonitos. ” Mas “velhotes para contar histórias já há poucos”. “Têm morrido todos. ”Manuel José, 83 anos, também foi dos que regressou à terra. Foi em 1965 para a Alemanha com contrato e ordenado. Esteve lá quase 30 anos. Não veio rico. “Só tenho os caminhos e o corpo. ” Ou seja, não tem terra. Todas as manhãs anda duas horas por esses montes fora e é numa dessas caminhadas que o encontramos, com sobreiros a perder de vista. E diz quem sabe: “Este mês é o mais bonito, com as estevas e as tremocilhas amarelinhas todas em flor. ” O mês em que encontramos “a indizível verdura das folhas novas e tenras”, como no poema de Sophia de Mello Breyner. Quando entramos num café no Cachopo encontramos Manuel Vicente sentado ao balcão. Perguntamos-lhe se é ele o albardeiro. Diz que sim, mas que “burros agora não há muitos”. “Só os de duas patas. ” Mais tarde passaremos pela sua oficina: uma única divisão com uma janela para a rua, albardas e molins a um canto, uma pequena motorizada a outro. Nunca quis passar a sua arte a ninguém e agora que tem 89 anos também não vai ser diferente. “A malta nova já sabe ler. Quer é ter empregos. Eu não sei ler e o culpado fui eu. ” Em vez de ir para a escola, foi tomar conta dos porcos. Estou farta de ouvir os pássaros cantar, quero é ouvir carros, ouvir genteEle queria ser pedreiro, “mas o pedreiro ensinou” o primo mas não a ele. Aprendeu o ofício de albardeiro em Tavira. Bastou-lhe um mês para dominar com alguma mestria a técnica, e não era difícil arranjar clientes. “Ia pelos montes trabalhando. ” Mostra um molho de palha de centeio, com que se forram os molins: “É a mais resistente. Mas agora já ninguém semeia nada. ” Também já poucos burros há para dar uso às albardas. “Bestas havia por aí todos os dias. Agora há por aí alguma?” Haver até há, mas são as tais de duas patas. Por isso, a maior parte das albardas que Manuel Vicente faz (só durante a manhã, que é preciso descansar) são para decoração. Ainda há “quem venha de longe” fazer-lhe encomendas: São Brás de Alportel, Loulé, Portimão. “Aqui não gastam. ” As carneiras vêm de São Brás, em cima é pele de porco ou de javali, que antigamente lhe vendiam nos talhos. Fazia muitos molins para os cavalos da GNR, todos decorados, com espelhinhos e flores bordadas, como alguns que ainda aqui tem. Os tosquiadores ainda lhe vendem a rabada dos cavalos para terminar em beleza, com os pêlos apontados para o ar. Se tivéssemos sido rigorosos, teríamos deixado o Cachopo em direcção a Barranco do Velho, quase 30 quilómetros e oito horas de subidas e descidas em plena serra do Mú, ou do Caldeirão, como se preferir, com vales e linhas de água, com sobreiros e medronheiros, com vistas esplêndidas. Mas vamos de um salto para o Hotel Tia Bia, também ao encontro da serra, mas nos pratos que Nuno nos serve: croquetes de cabeça de javali, sopa de legumes com coentros e cogumelos, javali guisado com hortelã e funcho, com legumes assados, tarte de amêndoa. Um medronho a fechar. É ele e a mulher, Cátia, ambos de 36 anos, quem tomam conta do hotel e restaurante, mesmo à beira da estrada. A filha, Serena, está a tentar concentrar-se nos trabalhos de casa, feitos ao balcão. Não encontra a borracha, quer uma pastilha, perdeu o afia. . . Uns seis anos irrequietos, como os seis anos normalmente são. Damo-nos conta das poucas crianças que encontrámos até aqui. É Cátia quem conta que o hotel começou por ser um abrigo de montanha, com dois quartos e o único telefone das redondezas. Barranco do Velho é um local de passagem da EN2, que liga Faro a Chaves ao longo de 738 quilómetros, e durante a sua construção não havia muito mais onde ficar por estas bandas. “Este era o único ponto de paragem no meio do nada. Até ao Alentejo não voltava a haver nada assim. ” Dizem que a tia Bia, que mais tarde se ocupou do hotel e lhe deu nome, tinha muitos “amigos” entre os camionistas que aqui pernoitavam ou paravam para comer, conta Cátia a rir. “As pessoas de 80 anos ainda choram quando falam dela. ” Era uma mulher simpática, com personalidade forte. Nuno é de Barranco e quando, aos 17 anos, veio ajudar a servir à mesa ficou com a certeza que o seu futuro passava pelo lugar onde estava o seu passado. “Fui ganhar conhecimentos para o litoral, sempre com o encanto da serra”, conta. “No ano passado os donos cansaram-se disto e foi a minha oportunidade. ” Cátia, de Loulé, já estava encantada também, não teve sequer que a convencer. Ela era chefe de sala na Quinta do Lago, ele chef de cozinha. A dupla funciona na perfeição. De resto, os negócios da região são frequentemente familiares. “Decidimos subir, com armas, bagagens e uma filha. ”Aqui ainda se respeita o professor, a tradição, valoriza-se a boa educação, conta Cátia, enquanto o marido vai para a cozinha preparar o jantar. “Roupas novas? Não se sente necessidade de as comprar. Mas não prescindo da minha manicure em Salir!” Ganha-se menos dinheiro, sim, mas também se gasta menos e aproveita-se melhor o tempo. Mas nem sempre é fácil a vida na serra, comenta. “Há pouca dinâmica porque há pouca juventude. Os políticos falam na desertificação mas nada foi feito para que os jovens, que são quem tem novos projectos, voltassem à terra. Os de idade querem é estar sossegados. Há as casas do medronho, do pão, dos frutos secos, da cortiça, o moinho – estão construídos, têm tudo para se trabalhar, mas não há lá ninguém. ” Ela tem ideias sobre formas de dar a volta à questão: dinamizar as produções biológicas, aproximar as crianças “do que temos de melhor, porque a maior parte do Algarve é serrano”. “Havia um preconceito das pessoas do litoral em relação às da serra, mas não há nada de mais genuíno. ”O casal quer “pôr Barranco do Velho no mapa”. “Em qualquer sítio da serra é complicado para os turistas saberem o que se passa à volta porque ninguém fala inglês. Aqui já podem conversar um pouco mais. ” E a prova disso é a forma como serve animadamente o grupo de caminhantes estrangeiros que agora se senta para jantar. Robert Keukens é um ex-advogado holandês de 76 anos. Todas as primaveras e outonos põe-se a andar para algum lugar. Já foi de Sevilha a Santiago, de Oviedo a Santiago, e outros percursos em Espanha, França, Itália. “Caminhar é uma forma de vida”, diz. “Comecei a andar por viver numa zona linda, e ao fim de umas horas de passeio pensava 'que pena ter de voltar. Era bom continuar, um dia após o outro'. ” Ganha-se sossego e cabeça limpa. “Temos tempo de pensar quando se caminha assim. Não precisamos de nos preocupar com nada a não ser em ir de um sítio ao outro, comer, dormir. Não há mais problemas. ”Os 300 km da Via Algarviana não o assustam, nem à sua mulher Elizabeth. Está em condições de dizer: “A natureza é linda, as pessoas muito simpáticas, mas estou chocado com a pobreza. As aldeias são ruínas. Porque não há agricultura? As laranjas são muito melhores do que as da Holanda. Porque não exportam para lá? Eu sei que há aqui um problema de escala, mas parece que quem fica não tem iniciativa. ”Já passou tempo suficiente em Portugal para conseguir trocar algumas palavras em português e ler o jornal (dias depois iremos encontrá-lo em Messines à mesa de um café com o Diário de Notícias na mão). E também para comentar: “Gosto da forma portuguesa de ser educado. É incrível. No caminho não nos vêem até que chamemos por eles. E aí desfazem-se em atenções – mudam, como uma flor a desabrochar. ”Quase metade do caminho de Salir para Alte faz-se com a Rocha da Pena à direita. Não nos deixemos enganar pela palavra “Rocha” – é na verdade uma montanha com 479 metros de altura e centenas de espécies de plantas, incluindo orquídeas que não há em mais lado nenhum. Andamos e andamos e a Rocha da Pena sempre ali, imponente. “É um dos segredos de caminhar: uma aproximação lenta às paisagens que progressivamente se tornam familiares. É como o convívio regular que faz crescer a amizade. . . Quando andamos, nada se move, só imperceptivelmente as colinas se aproximam, a paisagem se transforma. Se formos de carro ou comboio, vemos a montanha a vir ter connosco. O olhar é rápido, vivo, crê ter compreendido tudo. Quando andamos, nada se desloca verdadeiramente: a presença instala-se lentamente no corpo. ” Fédéric Gros, no seu livro Marcher, une philosophie (Caminhar, uma filosofia) escreve que “a lentidão do caminhante não é exactamente o oposto da velocidade. É antes a extrema regularidade dos passos, a sua uniformidade. ”E para caminhar basta um corpo, espaço e tempo. “Caminhar não é um desporto”, é a primeira frase do livro. Não se fala em resultados, nem em números, nem em pontuações: “O caminhante dirá que caminho tomou, em que direcção se encontra a paisagem mais bela, a vista que se tem de certo promontório. ” Não precisamos de estar totalmente sozinhos, mas precisamos de silêncio. Num grupo de três ou quatro pessoas “ainda é possível andar sem falar (. . . ) Mais do que quatro, é uma colónia, um exército em marcha (…) Mais do que cinco, é impossível partilhar a solidão”. “Caminhar não é um desporto, mas uma vez que se começa, já não se consegue ficar parado. ”O Algarve não é aqui. Isto é, para os habitantes serranos, o Algarve é o que é para quase toda a gente: o litoral e as suas praias. A serra é outra coisa. Aqui diz-se “lá no Algarve”. Mesmo quando é uma questão de apenas vinte quilómetros. Há vários pontos do caminho de onde se avista ao longe o mar, de onde se avista “o Algarve”. Como por exemplo entre Barranco do Velho e Salir, uma zona de transição para o barrocal – a chamada beira-serra. A terra já é avermelhada e barrenta. Graciete Valério também não consegue ficar parada. Aos 81 anos continua a tomar conta da Casa da Mãe, um alojamento em Salir, – nasceu aqui, nesta mesma casa, que era da sua avó. É ela quem faz as compotas servidas ao pequeno-almoço, as rendas à volta dos guardanapos, as toalhas com bordados, de mesa e de mãos, os licores, os quadros com flores que tem na parede. . . Ainda tem tempo para responder a emails e navegar pelo Facebook, no iPad ou no iPhone. Não viveu sempre em Salir. Aos vinte anos, quando chamaram o marido para ajudar a construir o metropolitano de Lisboa, lá foram os dois. Ficaram 11 anos, até que a mãe lhe falou dos vizinhos que estavam todos a emigrar para França. “Aquilo entrou-me bem na ideia”, conta no espaço onde tem o seu escritório, sentada numa cadeira preta de rodas, girando de um lado para o outro. “O meu marido foi primeiro, com uma carta de chamada. Quando veio cá nas férias, eu insisti que queria ir com ele. ” E ninguém a deteve. Dividiram um quarto com outro casal, separados por uma cortina. “Em Lisboa já era diferente [de Salir], mas aquilo em Paris dava-me uma admiração: os moços aos beijinhos na rua. O meu marido dizia 'não olhes'!”A amiga trabalhava para a mulher de um ministro, que pôs um anúncio no jornal para lhe arranjar trabalho. “Nem queira saber os telegramas que recebi. Fiquei a trabalhar com a neta da Nina Ricci [a da casa de moda], a cuidar dos meninos dela. ” Tem a fotografia do mais novo, Adrien, ao lado das da sua família. “O miúdo dava ares a mim, ia na rua e pensavam que era meu filho. ” Acompanhava a família Ricci para onde quer que fosse – “Se eles iam para a Suíça eu ia, se iam para Itália, eu ia, se iam para Inglaterra, eu ia. ” A casa ficava no Quai Voltaire, em frente ao Louvre. O ex-Presidente Jacques Chirac foi lá algumas vezes jantar – “a polícia fechava a rua”. E no terceiro andar morava Rudolf Nureyev, um dos maiores bailarinos do século XX. “Às vezes, quando ele vinha da Opera, à meia-noite, dava ceias e eu ia ajudar a servir. ”Voltou de Paris para Salir quando uma das suas filhas engravidou. A vila continuava sem gente nem trabalho. Um francês sugeriu-lhe abrir o turismo. “Entrou-me aquilo bem na ideia, 'olha não está mal'. ” Dá dormida a 25 pessoas – muitas delas, caminhantes da Via Algarviana. “Não havia nada em Salir mas agora toda a gente aluga. Viram e invejaram-se. ”A saída de Salir é feita por hortas e pomares, uns abandonados, outros arranjados. Caminhamos sobre o maior aquífero do Algarve: Querença-Silves, 320 quilómetros quadrados de água debaixo do solo. Por isso tantas noras, poços, fontes, fontanários. Está tudo parado, esqueletos de uma época que já não voltará, mas podemos imaginar a actividade que já passou por estas bandas. Fazemos um pequeno desvio para Portela da Nave e visitamos o Idálio Ramos, da Queijaria Martins. Tem 34 anos e foi ele quem fez nascer o negócio. “Aos 13 anos comprei duas cabrinhas com o dinheiro que me davam… Vou trabalhando e vou construindo uma coisa que é minha, pouco a pouco. Todos os dias a gente faz coisas novas. ”Queijarias ilegais “há muitas, cada vez mais”, mas com tudo certinho só a sua, garante. Tem 150 cabras, mas isso não chega para a produção e ainda compra leite aos pastores – “mil litros por dia, quando é altura de haver muito”, como agora na Primavera. Na fábrica, os dois depósitos de refrigeração (dois cilindros enormes em inox) estão cheios de leite. Depois vai a cozer durante três horas e meia, até aos 90ºC, em banho-maria. Passa para panelas, para arrefecer. “Quando chega aos 50º juntamos o cardo, para coalhar. Depois, partimos a coalhada e tiramos o soro. Utilizamos uma parte para alimentar as porcas – tem muita proteína. ” De seguida enchem-se os moldes, um a um. “O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maiores. ” Mas não foi imediatamente que conseguiu que os seus queijos de cabra ficassem perfeitos. “A minha avó fazia o de ovelha mas as temperaturas são diferentes. Fomos falando com as outras pessoas mais velhotas para aprender. ”Quem entrar na queijaria não reconheceria um dos grandes problemas da zona: há entre 60 e 70 óbitos por ano para entre 10 e 15 nascimentos. Ontem houve dois funerais, anteontem outros dois… Salir é uma das maiores freguesias do país em termos de área – tem 185 km quadrados, mas apenas 2765 habitantes. Aqui “somos quatro trabalhadores, só malta jovem”. Abre as portas do estábulo e lá estão as cabritas, castanhas e brancas, a comer. São floridas sevillanas porque produzem quatro vezes mais que as algarvias e são mais dóceis, explica. “As algarvias são mais stressadas. ” Quando saímos, elas parecem querer despedir-se, começam a balir alto e bom som. Idálio abre-lhes a porta e elas correm para o exterior. “É mais difícil aturar pessoas do que aturar animais. ”Retoma-se o caminho que mais adiante se torna num largo rio de brita, porque o presidente da junta quis alargar a estrada. Anabela Santos está inconformada. Nas obras, retiraram as indicações da rota, e o percurso está descaracterizado. A Via Algarviana envolve 11 concelhos e 21 freguesias. Não foi fácil pôr todos de acordo sobre o investimento que teria de ser feito, nem é fácil garantir que todos cumprem aquilo com que se comprometeram – apesar do movimento que a Via trouxe a esta parte do Algarve –, explica a coordenadora da Almargem. O processo é igual ao que se fazia há 40 anos, ou mais. A diferença é que aqui as panelas são maioresOs medronheiros pelo caminho são uma das razões por que aqui se rivaliza o medronho com Monchique. Urze, giesta, tudo é mais rasteiro deste ponto alto, onde a vista se perde na serra e faz mais frio. Por isso as plantas não crescem tanto. Atentemos à flora: orquídea testículo de cão, bufa de sogra (um fungo enorme), tremocilha (bom para dar azoto ao terreno), flor dos macaquinhos dependurados. . . Depois da descida, uma zona de floresta. Atravessa-se um barranco, depois outro. A terra já é vermelha. Passa-se a Estrada 124 e estamos dentro no barrocal. Pomares de sequeiro, com as suas oliveiras, figueiras, amendoeiras. As alfarrobeiras são centenárias, vê-se pela grossura dos troncos, com formas contorcidas. Em Cerro de Cima, Maria Guerreira está a tirar ervas das pedras junto a uma alfarrobeira que diz ter mil anos. “É do princípio do mundo. ” Tem 83 anos, toda curvada para o chão. Nos quintais há cabaças penduradas a secar. À beira da estrada, pequeninas flores azuis: “A borragem dá coragem”, diz-se. Podemos comê-las. Os valados em calcário estão bem conservados, ainda que nunca se veja ninguém a fazer a despedrega (tirar a pedra da terra para fazer os muros). Dividem os terrenos pelos montes acima, umas linhas cinzentas, como veias. Na esplanada de um café em Benafim come-se uma bifana e metemo-nos na conversa dos agricultores na mesa ao lado, que explicam: “Com a lua nova não se pode semear. Certas coisas aguilhotam [espigam]. Cebolas: chegam a um certo ponto, aquilo espiga tudo. [A melhor lua] é o minguante. Isto são os ditados antigos. ” Outro acrescenta: “A batata pode ser semeada com a lua nova, a batata pode. Mas não pode ser colhida com a lua nova porque apodrece. ‘Tá a ver?”Para entrar em Alte é preciso passar pelas Fontes Grande e Pequena, por onde agora passeiam turistas estrangeiros já com idade avançada. Escuta-se o correr da água e imagina-se a agitação que não deve ser no Verão, com as crianças e os piqueniques. Alte é quase uma metrópole no meio da serra, com lojas, igrejas, cafés (vale a pena uma paragem na bela varanda do Água Mel, onde o dono, José Canelas tenta recuperar receitas antigas – “se as pessoas não as comerem aqui, onde é que as comem?”, diz). De onde vem este nome, Alte? Quem conta é Albertina Madeira. “Havia uma senhora morgada, dona Antónia, que vivia na Quinta do Freixo. E todos os domingos ela ia ouvir missa a Santa Margarida, uma aldeia aqui da freguesia. Havia ali uma igreja, que agora está em ruínas. Ela ajudava o padre, e ele não dizia missa sem a senhora chegar. Mas num domingo, a senhora atrasou-se imenso e o padre disse a missa. E quando ela chegou aqui a altura de Alte viu muitas pessoas virem de Santa Margarida e perguntou-lhes: 'Então, de onde vêm?', 'Ah, fomos ouvir missa. Como a senhora demorasse, o padre disse a missa'. Então ela volta-se para os criados e diz: 'Alte aqui. Aqui vai ficar uma igreja e ela será sempre de uma freguesia. ' Era 'alto aqui', mas com o passar dos tempos foi deturpado e agora só se diz Alte. ”Albertina Madeira é directora do jornal Ecos da Serra, “mas sem cultura nenhuma para isso”, ressalva. Assina os seus artigos como Serranita. O jornal, com uma tiragem de mais de mil exemplares, segue para assinantes espalhados na Europa, África, América, Austrália. Há uns cinco anos, Albertina partiu o braço, não podia fazer nada, e começou a recordar as coisas de quando era pequenina. Ou seja, as coisas de há 93 anos. “Vou escrever as minhas recordações. O que existia nesta rua, as pessoas, o que faziam, essas coisas. E agora estou nas tradições de Alte: o que se fazia no Carnaval, nas Janeiras, no 1. º de Maio. ”E o que se fazia no Carnaval? “Os moços andavam à espreita das raparigas namoradeiras para as enfarinhar. Punham farinha na boca, nos cabelos, elas viam-se aflitas. Gritavam mas no fim gostavam. Eu nunca fui enfarinhada. Às vezes queimavam pimentos e punham à porta das pessoas. Entrava uma fumarada, começava-se a tossir. 'Mas quem foi, quem não foi?' As pessoas ficavam todas marafadas, e os que estavam à esquina da rua fartavam-se de rir. ”E no 1. º de Maio? “Juntavam-se as pessoas amigas e a família e iam à Fonte Grande, passavam lá o dia. Punham as toalhas no chão e os seus bolos, a galinha cerejada, o arroz tostado – que já está cozidinho, põe-se a gema por cima, pedacinhos de linguiça e vai ao forno para ficar tostadinho por cima, é tão bom. Havia as carrasquinhas, as cavacas, o pão-de-ló, e os bolos folhados que ninguém mais sabe fazer. Em São Bartolomeu de Messines fazem mas não se compara. São trabalhosos porque faz-se a massa, em dobradinhas, depois estende-se, põe-se manteiga e banha e com um pauzinho vai-se enrolando, enrolando, enrolando e tira-se [o pau] e fica um rolo compridinho. Depois com um fio – não pode ser com a faca – vai-se cortando aos pedacinhos. Põe-se no tabuleiro, vai ao forno e são passados por açúcar com um bocadinho de água. Ai, são tão bons. Quase todas as pessoas aqui de Alte faziam. Agora, só duas sabem fazer. Só em dias de festa. ”Lê o artigo que está a preparar para o Ecos sobre o 1. º de Maio: “Namorava-se, dançava-se, cantava-se e se fosse necessário dar de corpo (sabe o que é dar de corpo? É ir verter águas, ao quarto de banho), bastava subir-se ao serro da Galvana e por detrás de alguma moita ou arbusto fazia-se de retrete. Quem não fosse prevenido com um pedaço de papel ou jornal, uma pedrinha ou folha também podia fazer das vezes de papel higiénico'. Mesmo quando era proibido comemorar o 1. ºde Maio, aqui fez-se sempre e nunca ninguém nos disse nada. Passámos ilesos. ”Sai-se de Alte com o cheiro da flor de laranjeira. O céu está negro mas dizem que hoje não chove. Pássaros a cantar, galos a cantar, uma moto a passar ao longe. Algumas casas têm sapos de loiça à porta e já sabemos o que isso quer dizer – nem sempre os forasteiros são bem-vindos, sobretudo se forem de etnia cigana. Caminha-se um pouco com a auto-estrada à direita, mais adiante pela estrada fora, com carros a passar depressa. Compensa a entrada na floresta com a ribeira Meirinho ao lado. Parece Sintra, com musgo e tudo. Com a proximidade de Messines começa a aparecer o grés, que contrasta com as paredes brancas ou por caiar. A Igreja Matriz tem a sua imponência, com a sua fachada barroca e as colunas em toros torcidos. A caminhada continua. Havendo calor, será que se resiste a um mergulho na barragem do Funcho? Um espelho de água que nos traz o céu para a terra. Colinas de pinheiros mansos, rosmaninho roxo e verde nas bermas, a esteva por florir, o medronho já a enfeitar as árvores, mas à espera do Outono para ficar maduro. Na Quinta da Vinha, no concelho de Silves, não é medronho que se produz, mas vinho. José Manuel Cabrita seguiu as pisadas do pai, talvez a filha, Andreia, siga as suas, se o acordeão não lhe tocar mais alto. É ela quem nos acompanha na visita. Conta que o pai quis recuperar uma casta algarvia que estava em desuso, a Negra Mole, mas usam também a Castelão, igualmente algarvia, entre outras. A vinha da quinta tem 6, 6 hectares mas como isso não é suficiente para a produção – para além da marca Cabrita também sai daqui vinho de outros produtores – arrendam uma área igual de vinhas próximas. Quando entramos no “laboratório”, Joana Maçanita está a fazer testes. Conta que o lote de brancos de 2015, 100% Arinto, está em estágio em barrica – “é uma coisa única”. “Decidimos não misturar [com outra casta] porque tem muita componente atlântica. É um vinho muito giro. ” Ou seja, “não é entediante”. “De vez em quando aparecem estes vinhos assim. ”Aqui o clima é mais fresco do que em várias outras quintas do Algarve, e por isso fazem a colheita em Outubro, explica a enóloga. E as uvas resultam em vinhos com uma “concentração com elegância”. Os Negra Mole “são vinhos sem cor – há uvas brancas, tintas e rosadas no mesmo cacho”. Tem altos níveis de acidez e altos níveis de álcool, com textura, mas não demasiada, explica Joana Maçanita e o também enólogo Dinis Gonçalves. Depois de as vinhas serem abandonadas, na década de 1990, muitas cooperativas fecharam. E quando a vinha voltou a ser plantada apostou-se nas castas internacionais, “nobres”, “que se deram bem por aqui”, contam. Agora, está a voltar-se às origens. “Fomos pioneiros nisso de pegar na Negra Mole. ” Foi uma aposta com retorno pouco seguro: “Nos primeiros anos, vindimámos e eu nem sabia onde pôr o vinho. Em 2012 decidiu-se meter em barrica e ficou lá esquecido, ia sendo empurrado para o lado. Dois anos depois, fomos provar: parecia Pinot Noir!” Ainda antes de chegar ao mercado, parte do vinho já estava vendido. “O senhor Cabrita alugou uma vinha só de Negra Mole. Agora é deixá-lo fazer-se sozinho, intervir o mínimo e o vinho vai-se revelando. ”A maior parte das vendas dos Cabrita são para a região, entre 10% e 15% para exportar e 3% ou 4% para Lisboa. No ano passado, saíram daqui 20 mil garrafas de branco, 15 mil de rosé e 23 mil de tinto. Um dos restaurantes onde os podemos encontrar é A Charrete, em Monchique. O dono, José Pedro, fez de uma antiga mercearia um dos pontos obrigatórios num possível roteiro gastronómico da serra. Foi com 11 anos trabalhar para a loja – “nem dormi nessa noite com a excitação de ir trabalhar para a vila!”. Em 1974, conseguiu comprá-la com o dinheiro que tinha juntado para levar para a tropa. Quatro anos depois, a mercearia passou a bar, pastelaria, restaurante, “era tudo”. “Mas fui puxando para o lado da restauração”. Sempre com a preocupação de oferecer comida local: cozido de couve, feijão com arroz e castanhas, milhos com feijão, tudo a acompanhar carnes de porco e enchidos; bolo do tacho (acompanha com medronho e melosa). Só o pão, assado por uma vizinha em forno de lenha, servido com cenouras em azeite e alho, ou lombo de porco curado em banha vermelha, já justifica uma visita. A cozinheira, Graciete, está cá desde o primeiro dia. “Antigamente as papas de milho serviam para acompanhar tudo: figos, sardinhas, água mel, torresmos, toucinho, peixe frito”, conta José Pedro. “E à noite, o cozido de couves. Ou calatroia, com feijão e toucinho, e tudo o que se tivesse à mão. ” O porco era rei, mas nem sempre havia. Ainda hoje, contam-se as luas para fazer a matança: “Não pode apanhar a transição, senão estraga a carne. ‘Com lua cheia é boa matação’”. Era a verdadeira festa de família: “Umas trinta e tal pessoas para comer. No Natal ninguém fazia nada, ninguém ligava nenhuma. ”O anfitrião fala de outras tradições da mesa, como as “batatas de cu para o ar: cozidas, com azeite, alho, orégãos e sal, tudo a servir-se directamente do tacho [e daí o nome]. As papas de milho aqui são duras e antigamente todos comiam da plengana [malga que vai à mesa]. Quando se punha pratos comentava-se que era para controlar o que as pessoas comiam. ” Não caía bem, portanto. A saída de Monchique é quase impiedosa. Faz-se a subir, primeiro pela vila, depois por meio de sobreiros, quatro quilómetros sempre em esforço. A família que habita o Convento do Desterro convida sempre a entrar para pedir moeda no final. Está tudo em ruínas, uma desolação. Monchique é mais fresco que o resto do Algarve e aqui a Primavera chega mais tarde. Há ciprestes e sobreiros mas também muitos eucaliptos – às vezes vêem-se as feridas nas colinas provocadas pelo seu abate. É devagar que se chega à Fóia para termos todo o Algarve debaixo de olho: o da serra e o da costa. Com bom tempo vê-se até Sagres. Mas mais bonito ainda é o que vem depois. O som da água a correr (há minas por toda a parte), rosas albardeiras com fartura, de um rosa exuberante, e, de repente, parece até que estamos no Douro. São os socalcos da Moita, um espaço fora do tempo. Já houve famílias aqui, agora só ruínas: de casas, da escola, de estábulos. Imaginamos crianças a correr onde agora há vacas e cabras a pastar. Imaginamos homens e mulheres montados em burros, com frutas e legumes. Imaginamos os habitantes a imaginar o que se passaria para lá das montanhas. As longas descidas também não facilitam a vida do caminhante – mas antes para baixo do que para cima. É preciso cuidado com as pedras que fazem escorregar. Na história desta Via Algarviana já houve de tudo: pés partidos, desmaios, pés em bolha, divórcios, amigos para a vida. Chegamos a Marmelete e estão dois homens a carregar uma carrinha de caixa aberta. A mercadoria cheira-se à distância. São sacas de limões luminosos. Dos quintais saem limoeiros, todos enfeitados de amarelo vivo. Há quem faça este caminho em BTT, como José Galego, 37 anos, carteiro, sentado agora à mesa do restaurante da Paula, onde nos foi servida canja de galinha e galo de cebolada, e melosa para ajudar a digestão. José Galego veio com mais cinco amigos, um de Aveiro, outro da Amadora, os outros de Moura como ele. A primeira tentativa de o percorrer foi no ano passado, mas aconteceu um imprevisto: “Sou dador de medula óssea, e na primeira manhã do primeiro dia ligaram-me do IPO a dizer que tinha compatibilidade total com um bebé. Só atendi o telefone porque um colega ficou com a bicicleta avariada e teve de parar. No dia seguinte, a bicicleta avariou outra vez e eu decidi mesmo que ia embora. ” Meses depois, a sua mulher, que estava grávida, perdeu o filho. Agora, está grávida novamente. “Foi fazer um exame e ligou hoje a dizer que está tudo bem. ”A etapa entre Silves e Marmelete foi a mais dura. “Nunca pensei demorar tanto a fazer 45 quilómetros – mais de sete horas e meia. Já fiz 120 em menos tempo. Mas isto é uma questão de superação pessoal. Se não for duro não tem piada. Tem que ter sofrimento. ”A saída de Marmelete é marcada por um vasto eucaliptal. Muitas árvores foram arrancadas e há restos de troncos, ramos e folhas no chão. É lixo sem ser lixo. Abrem-se bem os pulmões para deixar entrar o ar purificado pelo eucalipto. Ao menos isso. Aqui a esteva tem o tamanho de homens altos. Ao longo da ribeira da Vagarosa o caminho continua fresco, apesar de a manhã estar a virar tarde. O sol não está tão generoso como na véspera. E os quilómetros vão passando quase sem darmos por eles. O vale está radioso, com os seus sobreiros de porte imperial, e a passarada parece concordar porque a sinfonia é constante. É a verdadeira música ambiente. Devem estar a chamar as fêmeas para acasalar e esforçam-se ao máximo para as convencer com o seu canto. A barragem da Bravura serve para um piquenique, com as fel da terra, umas flores cor-de-rosa, a pontilhar o caminho. À volta de Bensafrim a vegetação torna-se mais baixa, com aroeiras e carrascos. Mais ainda à medida que nos aproximamos de Vila do Bispo. Os sobreiros parecem não ter tido vontade de crescer. O solo começa a ficar arenoso, o mar vai aparecendo ao fundo. É bom chegar a tempo de jantar. No restaurante Mexelhão tudo sai das mãos treinadas da dona Teresa, mas a filha já está a aprender também. Somos servidos de percebes, xerém de lingueirão, cataplana de tamboril e torta de batata-doce. Falta muito pouco para chegarmos à costa, e a costa já veio ter connosco. Este é o celeiro do Algarve, diz-se. O vento molda tudo em volta: a vegetação rasteira, as árvores todas inclinadas na mesma direcção, as pernas a quererem voar. As searas ondulam, são um imenso mar verde. As colinas ficaram para trás, agora é só planície. E de repente uma longa linha recta em direcção ao mar. O horizonte fica no fim desta estrada. Uma curva no final e lá está o farol. Mas não vamos seguir pelo asfalto. Vamos fazer uma inflexão e entrar pelas dunas. Agora, junto a uma escarpa, o mar está a um salto. Tomilho de Sagres, esteva de Sagres, tudo é “de Sagres” por ser tão rente ao chão. Uma cegonha está no seu ninho num rochedo em frente. Um bando de gaivotas levanta voo. E num instante o farol está aqui. Mais um passo. Mais outro. E até poderia ser mais um quilómetro ou dois. Mas não é preciso. Já está. Ou como se diz na serra que não é Algarve, “tem avondo”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pode muito facilmente ser confundida com uma casa normal de uma rua banal de Bensafrim. E da janela aberta até saem vozes de mulheres à conversa como numa cozinha familiar. Mas junto à campainha há uma pequena placa a dizer “fábrica”. Sara Correia, 46 anos, é a mulher das contas; a irmã, Isabel Matos, de 55, é quem põe as mãos na massa. A grande especialidade são os Dom Rodrigo: “Como nós fazemos já pouca gente faz. ” Queima-os numa frigideira de ferro para ficarem com aquela espécie de caramelizado – a mesma há 30 anos, e que nunca foi lavada. “Não se pode. ” A limpeza é feita com a calda de açúcar que, depois de atingir uma temperatura elevada, faz libertar os resíduos; tudo isso é deitado para um alguidar com água, e a frigideira fica pronta a ser novamente usada. Isabel não precisa de balança porque já tem “a medida na mão”. Espalha os fios de ovos na palma da mão, coloca um bocadinho de ovos moles com amêndoa, fecha numa bolinha, que a seguir é posta na tal calda, que às vezes tem de ser “destemperada com um bocadinho de água”, para não ficar tão forte. O lume da frigideira tem de estar bem alto. “Os famosos Dom Rodrigo do Algarve são assim e quem não fizer assim está a aldrabar. ” Mas já poucos os fazem desta maneira porque “dá muito trabalho”. Já Isabel faz 200 por hora. No Verão são 1200 por dia. “Ela é como um polvo, faz dez coisas ao mesmo tempo”, elogia a irmã. Agora acabou de recuperar uma receita antiga das queijadas de São Gonçalo. Foram três tentativas até acertar. “Nem fazemos análises ao colesterol para não nos assustarmos”, brinca Sara. As receitas são algarvias, mas as amêndoas vêm da Califórnia. “Já não há ninguém para as apanhar, está tudo ao abandono. Mas não é igual, porque a nossa tem um finzinho amargo que é logo diferente e nos doces é uma maravilha. ”Fábrica de Doces Regionais Sara Correia Rua de Sto. António, 16 Tel. : 914305812Aparecemos sem avisar em casa de Maria Nunes, tecedeira, em Monchique. Tem um enorme diospireiro à porta, e dezenas de sobreiros nas traseiras. Queixa-se que lhe falta a saúde, aos 80 anos. Mas arranja tempo para mostrar como se fia o linho e trabalha no tear. “Isto não se aprende em Coimbra, isto aprende-se mais uns com os outros. ” Já nem se lembra de quando começou a fiar e a sentar-se ao tear. “Faço desde há muito tempo. Desde os meus princípios. O meu brincar com bonecas era quase isto. Uma pessoa vai arranjando um grande caldo destes trabalhos. ” Aprendeu com a mãe, que aprendeu com as tias. Tem também duas senhoras agora a aprender com ela. “Estou muito feliz por isso porque era um sonho que eu tinha, alguém ir seguindo estas coisas que estão em dias de extinção. Se fosse muito lucrativa se calhar havia mais gente a querer aprender. Mas é mais uma questão de gosto. ”Prende o cabo da roca às calças. Enrola o fio ao fuso para mostrar como se faz. O linho parece uma madeixa de cabelo loiro, a enrolar-se à volta, como algodão doce. Junta o fio que acabou de fazer a outro já feito. “Onde é que o colei? Eu também não sei. ” Faz-se um novelo. E repete: “Isto é uma coisa que está em dias de extinção e é muito importante as pessoas conhecerem, porque daqui faz-se o pano, a toalha, o lençol. ”Vai buscar o sarilho: “Quando tiver muito fio deste vou metê-lo aqui, que é onde faço a meada. Depois é cozido, como quem coze um comer, lavado com cinza, vai a corar e fica assim com esta cor, creme. ” São os novelos que saem daqui que vão para o tear. Nem sempre trabalha em linho, às vezes usa algodão, mais barato. “Depois as pessoas não me compravam porque um estava dentro do conhecimento, outro não estava, e achava que era muito caro, porque estamos em dias de pouco dinheiro. . . Faço uns paninhos assim de linho, de tabuleiro, tenho vendido a dez euros. Mas não me paga muito, é mais o gosto de fazer aquilo. Faço os possíveis. É como se costuma dizer: ‘Onde se chega não é curto’. ”Gosta de tudo o que a serra tem para dar. “O litoral não tem a ver com a minha natureza. ” Otília Cardeira, 65 anos, é presidente da junta de freguesia do Cachopo e uma apaixonada pelo campo à sua volta. Montou um rancho, um grupo de cantares. Montou um quiosque de produtos artesanais. Montou um pequeno museu da tecelagem. É uma sala de uns 40 metros quadrados, tecto em canas e barrotes de madeira como se fazia antigamente, chão de tijoleira, teares, sacolas, alforges e cachecóis pendurados na parede, uma descrição do tratamento do linho, da planta até à peça terminada (tem um vaso à porta com alguns pés e um campo inteiro dele nas redondezas). Quando entrámos no museu, estava a trabalhar num tear, já com mais de 60 anos – o outro ao lado, com mais de 80, já está parado. “Estou no enfiamento da teia, a montar a teia. Vou fazer vários cachecóis. ” Esta é a sua terapia. “Todos os dias tenho que vir aqui fazer qualquer coisa. ” Dá formação a quem se interessar, mas poucos se interessam. “Tenho tentado passar tudo o que me ensinaram para ver se esta actividade não desaparece. Os mais jovens foram para fora. Os poucos que há eram a minha esperança. Mas fala-se tanto em apoio ao artesanato e no fim fica tudo em baldes de caldeirão. ”Ela também não nasceu ensinada. Trabalha na tecelagem desde 1986, com a Associação In Loco (de desenvolvimento local). “Para se fazer um projecto tem de haver dinheiro de lado, porque o financiamento nunca vem a horas. ” A burocracia pesa. Mesmo assim, insiste com os jovens que poderiam investir em áreas ligadas à terra. “Aqui a natureza ainda está intacta, a flora, a fauna. Temos recursos muito bons. . . Mas é preciso acordar cedo, fazer isto ou aquilo, e eles já não estão para isso. ” Estão mais virados para os computadores. “Eu também estou. Já não vivia sem isso. ” Mas há coisas que a desgostam. “A lã está a ser mal aproveitada na nossa zona. Não há quem agarre o linho, como eu agarrei: do semear até à peça. ”A escola onde Leta está a trabalhar, na Torre, próxima de Alte, é a mesma onde aprendeu a ler, escrever, fazer contas. Mas o que se passa agora na sala de aula é uma coisa bem diferente. Ao centro, há uma enorme mesa cheia de bonecos, quebra-cabeças, brincos, pulseiras, colares, tudo em madeira. Leta, ou mais formalmente, Alierte Graça, juntou-se a Ana Maria e Silvina e as três asseguram produção constante nesta oficina. Por isso lhes chamam “as moças da Torre”. A madeira dos brinquedos vem de Messines, mas para a bijuteria basta sair para o campo: ramos de urze, esteva, sobreiro, oliveira, marmelos que não chegaram a crescer, anis, laranjas, tojo, alfarrobeira… Podemos enfeitar-nos com a serra quase toda. Leta faz hoje 64 anos, mas os seus olhos azuis e pele lisa parecem desmenti-la. Só o cabelo está branco. “Eu alguma vez pintava o cabelo? Depois deixava de ser eu. ” As três mulheres contam-nos animadamente como regressaram à escola passados tantos anos. Em 1989 fizeram um curso profissional, “só para o monitor ganhar dinheiro”. “A primeira coisa foi fazer a bancada e os bancos para a gente se sentar. ” Ana Maria diz que “nunca tinha pregado um prego”. E era preciso três pessoas para fazer uma roda: uma segurava a tábua, a outra apontava a broca, a terceira puxava a manivela para baixo. “A gente fez uns comboios de encaixar e aquilo deu tanta dor de cabeça! Eram uns 15 dias sempre com o mesmo comboio. ” Agora basta um dia. No quadro de ardósia na parede estão mensagens dos visitantes, a maioria turistas estrangeiros. Há um pouco de tudo: Filipinas, Bangladesh, Madagáscar, Tanzânia, Senegal…José Salvador também é conhecido como “o homem das cadeiras de Monchique”. Os romanos é que foram os criadores destas cadeiras de tesoura, que sobreviveram até hoje. “Mas fazer o que se fazia antigamente não me diz muito. Tive que ir mais longe. ” E o que ele fez foi pôr-lhes umas costas, mais ou menos floreadas (“as costas dão um conforto”), construí-las em miniatura, ou numa versão gigante, transformá-las em mesa, ou banco, sem braços. . . “Criei trinta e tal modelos diferentes. ” Os mais especiais, ele assina. Tornou-se carpinteiro aos 13 anos e já leva 60 de ofício. “O meu pai era serrador, eu estive sempre ligado à carpintaria: oficinas, cofragens, portas”, diz. “Nasci com os dedos na madeira. ” Aos 14 ficou sem a ponta de um deles, que cortou numa serra. “A partir da década de 1960 começou-se a falar de artesanato – pensei que me havia de dedicar a este trabalho. Como as cadeiras são dobráveis, os turistas compravam-nas muito. Depois, os portugueses começaram a gostar” e os clientes aparecem agora de todo o país. O negócio já foi mais animador. “Antes eram 12 ou 13 a fazer cadeiras, agora somos dois ou três”, diz na sua oficina, enquanto encaixa a grande velocidade todas as peças que formam esta “tesoura”. “Mas ainda não deitei a toalha ao chão. ”Alcoutim: Casa dos Avós (Tel. : 967 531 064; visitaralcoutim@gmail. com) Balurcos: Casa do Vale das Hortas (Tel. : 281 547 035; 962 931 514) Furnazinhas: Casa do Lavrador (Tel. : 281 495 748 / 933 200 541 /915 929 654) Vaqueiros: Casas d’Aldeia Cachopo: Centro de Descoberta do Mundo Rural, Casas Baixas (Tel. : 289 840 860; 961 478 155) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia, EN2 (Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. : 289 489 179) Alte: Alte Hotel (Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Casa Bartholomeu (Tel. : 965 189 375/ 969 426 599; cafeacademicomessines@gmail. com) Silves: Hotel Colina dos Mouros (Tel. : 282 440 420; geralreservas@colinahotels. com) Monchique: Villa Termal das Caldas de Monchique (Tel. : 282 910 910) Marmelete: Centro de acolhimento de Marmelete (Tel. : 282 955 121 / 968 702 240; info@jf-marmelete. pt) Bensafrim: Quinta Gonçalves (Tel. : 966 672 461; geral@quintagoncalves. pt) Vila do Bispo: Hotel Mira Sagres (Tel. : 282 639 160; naturimar@gmail. com)Alcoutim: Restaurante Camané (Praça da República; Tel. : 964 108 585) Balurcos: Taberna do Ramos (EN 122 Cruzamento das 4 Estradas; Tel. : 962 803 673) Furnazinhas: Casa do Lavrador (serve jantar aos hóspedes) Vaqueiros: Casa de Pasto Teixeira Cachopo: Restaurante Charrua (Rua Padre Júlio de Oliveira, 44; Tel. : 918 465 789) Barranco do Velho: Hotel Tia Bia (EN2, Barranco do Velho; Tel. : 289 846 425) Salir: Casa da Mãe (R. de Ameijoafra; Tel. . 289 489 179; só aos hóspedes e por encomenda) Alte: Restaurante “A Cataplana” (Alte Hotel; Montinho; Tel. : 289 478 523; altehotel@mail. telepac. pt) São Bartolomeu de Messines: Restaurante Académico (Rua Cândido dos Reis, 44; Tel. : 282 339 253) Silves: Em Silves existe um grande número de restaurantes ao dispor dos visitantes. Monchique: Restaurante A Charrete (Rua Dr. Samora Gil, 30 e 34; Tel. : 282 912 142; Encerra às quartas-feiras) Marmelete: Snack-bar Restaurante Luz (Largo Coronel Artur Moreira; Tel. : 282 955 244; Aberto todos os dias) Bensafrim: Restaurante O Koala (Rua do Poço, 2; Tel. : 282 687 594; Encerrados às segundas-feiras) Vila do Bispo: Restaurante O Mexilhão (Rua 1. º de maio, 32; Tel. : 282 639 108; Aberto todos os dias)
REFERÊNCIAS:
Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra. (...)

Extremo Ocidental: Edifício em ruínas junto ao mar, com porteiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: As ruínas dos estaleiros de São Jacinto são a imagem da crise e decadência de toda a região, cuja única actividade parece ser hoje a apanha da amêijoa na ria. O saque reduziu o enorme edifício dos estaleiros a um escombro que faz lembrar uma zona de guerra.
TEXTO: Domingos Teixeira trabalha e vive nos Estaleiros Navais de São Jacinto desde 4 de Janeiro de 1977. Regressou de Moçambique em Agosto do ano anterior e, quatro meses depois, era um dos mais de 800 operários da grande empresa fundada por Carlos Roeder. Um acidente de trabalho impediu-o de manobrar as máquinas que moldam o aço, e fizeram-no porteiro, profissão que manteve toda a vida. Ainda hoje conserva a casa que lhe foi atribuída e a guarita de porteiro, logo à entrada do gigantesco edifício estrategicamente situado entre o mar e a ria. “Nunca daqui saí. Ia para onde?”, diz Domingos, 71 anos, metendo a chave na porta para guardar uma serra eléctrica. Lá dentro vêem-se alfaias de jardinagem, ferramentas, o atrelado de uma lancha. “Sempre tive o hobby da jardinagem, que agora, que estou reformado, exerço para fora, em várias casas de pessoas conhecidas. Guardo aqui tudo, a minha vida está centralizada aqui. Nunca ninguém me incomodou”. O reconhecimento e devoção para com os Estaleiros constituem quase uma filosofia de vida para Domingos Teixeira. Foi aquela empresa, que ali começou a operar em 1940, que o recebeu no país, lhe deu trabalho, casa, assistência de saúde, instrução e formação aos três filhos. Até a filha ali fez um curso de soldadura e serralharia. Não obstante ainda lhe dever 20 mil euros em salários, a empresa continua a merecer o respeito de Domingos, não nos actos de alguns dos seus agentes, mas na sua incólume reputação de entidade superior às contingências. Domingos nunca se considerou aliás o porteiro de um edifício, de uma administração, de uma entidade patronal. Ele sempre foi o porteiro de uma ideia. De uma época feliz, de uma certa concepção de dignidade, de um sentimento de solidez e de futuro. Os portões que guardava eram dessa realidade, da actividade enérgica que nunca parava, do espírito de sacrifício e de cooperação dos trabalhadores, do fundador, Carlos Roeder, e dos seus herdeiros na propriedade e gestão da empresa, João dos Santos, Jorge Pestana, Henrique Moutela, Vale Guimarães. Abandonar o seu posto seria renegar e trair um mundo que guardou toda a vida. Como se separar-se da actividade frenética dos Estaleiros fosse pior do que morrer. E a verdade é que a actividade, essa, nunca parou. Apenas mudou em tipo, estilo, protagonistas e natureza. Em São Jacinto, as praias têm uma escala diferente de todas as outras na costa portuguesa. São imensas e vazias, prolongadas por extensões de dunas, a perder de vista. Inseridas na Reserva Natural das Dunas de São Jacinto, constituem, com os pinhais e a Ria, um universo selvagem, bravo e enigmático. Há trilhos, marcados por sinais feitos de troncos, pedaços de redes e conchas, que ligam a orla da Ria aos areais junto ao mar. Caminhos na floresta, de vinte minutos a pé, furados nos arbustos, nos troncos retorcidos e nas camadas densas e esfareladas de trufas, húmus costeiro, desfeito e queimado. Não há fronteira definida entre as dunas e a praia. A imensidão branca parece levitar numa névoa quente de reverberações azuis, que mergulha na areia e a levanta. O mar é aterrador. As ondas não correm na mesma direcção, não se alinham nem sucedem de maneira prenunciada. São anárquicas, cruzam-se e atropelam-se, rebentam umas em cima das outras. O rugido do mar não vem da superfície, não brota do que se vê, mas da profundidade. Nasce de dentro da própria areia, fazendo tudo estremecer e estalar como um vulcão de vento e espuma. Chega-se aqui por uma estrada à beira da ria, numa estreita língua de terra, desde o Furadouro. Com Vila do Conde para trás, segui por estradas locais, por Mindelo, Vila Chã, Labruge, Lavra. As praias confluem com campos de cultivo. De súbito, no meio de uma falésia, junto a Labruge, avista-se a capela de S. Paio, num campo verde junto à água. E a praia de S. Paio, um lugar de beleza única. Depois do Porto, blocos de apartamentos, prédio e moradias, entre passadiços sobre a areia. Estrada Nacional 109, semáforos, filas de trânsito, oi mar sempre perto. A partir de Ovar, a estrada nacional 327. Furadouro à direita, a Ria à esquerda, até São Jacinto. Olhando em redor, vêem-se duas autocaravanas e três ou quatro tendas. É verdade que o parque não tem restaurante, nem piscina. Mas fica num amplo pinhal, entre a ria e a praia, com um caminho directo para o mar, por entre a vegetação da Reserva Natural. Seria uma base ideal para turistas da Natureza, observadores de aves, amantes de praias selvagens, de pesca, de windsurf ou kite surf. Mas onde estão eles?Toda a região, desde o Furadouro, a língua de terra que passa pela Torreira e a praia de Monte Branco, ao longo da Ria e do canal de Ovar, até às lagunas da Gafanha da Nazaré e de Ílhavo, é de uma beleza irrepreensível. É singular e variada, amena e aprazível. Mas quase não tem turismo. Estatisticamente, aumentou o número de visitantes estrangeiros em Portugal. Mas os locais escolhidos são Lisboa, Porto, Algarve e pouco mais. O resto do país, incluindo zonas que já atraíram muito turismo, no passado, está agora quase vazio. O movimento reduz-se aos veraneantes portugueses e espanhóis de fim de semana e os emigrantes de férias. “Há muitos turistas, mas são todos low cost, não quem gastar dinheiro”, diz João Gomes, gerente do parque de campismo de São Jacinto, que tem vindo a dispensar pessoal nos últimos anos, e fecha no Inverno, ao contrário do que era habitual. “Mesmo aqui no campismo, que é mais barato, tenho visto as pessoas a perguntarem os preços na recepção e irem embora, por acharem caro”. A praia de São Jacinto, uma das mais deslumbrantes do país, está quase vazia. O bar das dunas, que tinha a concessão da praia, já não abre há dois anos. São obrigados a manter, durante a época balnear, uma certa estrutura, incluindo dois nadadores-salvadores, o que não é possível, com o actual reduzida quantidade de banhistas. “Há dois problemas: A Reserva natural, que é muito limitativa, e o ferry”, diz Raul Valentim, gerente do Ondas Bar, junto à praia de São Jacinto. “Não há estrada directa para vir da zona de Aveiro para aqui, não há uma ponte. E o ferry é caro (15 euros, ida e volta). E o último barco da noite é pouco depois das 10 horas, o que impede que alguém venha aqui jantar, com calma”. João Nabais, gerente do restaurante O Terminal, não tem nenhuma esperança de que se venha a construir uma ponte sobre a Ria. “Viria de onde? Da Gafanha, da zona de Aveiro? As autoridades da Reserva nunca o autorizariam. A ponte é um sonho que nunca se vai realizar”. O Terminal situa-se na nova zona marginal de São Jacinto, inaugurada o mês passado. É um projecto Polis Litoral, co-financiado pela União Europeia, integrado no “reordenamento e requalificação da Ria de Aveiro”, e que inclui nova pavimentação da zona ribeirinha, marina, etc. “Espero que esta estrutura venha trazer mais gente a esta zona”, diz João Nabais sem muita convicção. “Em anos anteriores, havia muitos turistas franceses. Deixou de haver, e agora estão a voltar, mas ainda poucos. O movimento aqui é apenas aos fins-de-semana. No Inverno fica tudo parado. Sobrevivemos enquanto houver a boa vontade e compreensão de alguns fornecedores, que esperam pelo Verão para serem pagos”. Não havendo ponte, que romperia o isolamento da região, o ferry deveria ser mais barato, mais moderno e mais rápido. “Era preferível um barco mais pequeno, mas que fizesse a viagem mais vezes”. São Jacinto é uma zona esquecida, diz o empresário. “Tirando a Torreira, conhecida como o Algarve do Norte, tudo o resto está morto. Esta região está muito mal trabalhada em termos de turismo. Todo o esforço de promoção se concentra na faixa entre a Costa Nova e a Figueira da Foz. Nós somos o parente pobre do turismo”. Luís Figueiredo, empresário de eventos da zona de Coimbra, ficou admirado com a ausência de estruturas hoteleiras nesta região. “Não há um hotel, um complexo de apartamentos. Nada que atraia as pessoas. Como é possível vir para aqui? Ninguém conhece esta zona. Eu próprio, que sou de Coimbra, nunca aqui tinha vindo”. Luis Figueiredo quis organizar um festival de Verão na zona de Aveiro. Contactou a Câmara Municipal, que lhe recomendou São Jacinto. E começou a trabalhar, mas não tem sido fácil. O Tugafest — o festival mais português de Portugal, vai realizar-se de 19 a 23 de Agosto, com dois palcos, Quim Barreiros, José Cid, Ana Moura, Herman José e os Xutos e Pontapés, na praia de São Jacinto. Mas só duas semanas antes a divulgação começou a ser feita. “É um festival dirigido principalmente aos emigrantes, com artistas portugueses”, diz Figueiredo. “Queremos puxar ao português, ao contrário dos outros festivais de Verão. E apostamos em ter cá umas 50 mil pessoas, atendendo a que temos em cartaz os principais nomes portugueses”. Mas admite que se tiver metade desse número de espectadores já será um êxito. As entradas no festival são pagas, e “as pessoas estão habituadas às festas organizadas e pagas pelas Câmaras, que são de graça. Quase nem consegui ter uma exposição de artesanato, porque os artesãos costumam ser subsidiados pelas Câmaras. Quando lhes disse que não vinham ganhar, recusaram o convite”. Perto da data do Tugafest, aliás, há um concerto de Tony Carreira, de entrada gratuita. “É difícil ter alguma iniciativa e organizar alguma coisa, num mundo regional subsidiodependente”. Às 7 da manhã, com a maré baixa, a Ria já está cheia de gente. Na estrada da Torreira a São Jacinto ou a da outra margem, no Cais da Bestida, podem ver-se centenas de vultos mergulhados na água até à cintura, empunhando redes e ancinhos, na apanha da amêijoa. Rui, a mulher e um filho têm a sua própria zona, não longe da ponte que faz a ligação à estrada de Estarreja. É uma área de bancos de areia e covas de lodo, que eles perscrutam com as mãos. “Nunca pensei voltar a isto. É uma vida duríssima. O meu filho ajuda-me só no Verão”, diz Rui, que trabalhava num restaurante que fechou. “Andamos aqui porque não há nenhum outro trabalho na região”. Rui e a família apanham um máximo de 10 quilos de amêijoa num dia, que vendem a 3 euros o quilo a um intermediário. São uma das muitas famílias que vêm para a Ria todos os dias das 7 da manhã até ao meio-dia, quando a maré sobe. “Eu só venho apanhar para mim, para uma caldeirada”, diz João, que está reformado e já andou nos navios do bacalhau. O seu método é o mais rudimentar: quando detecta uma quase imperceptível depressão na areia, enfia o dedo indicador e, se a sua intuição não falhou, desenterra uma amêijoa. Geralmente uma “japónica”, uma espécie com manchas na concha que surgiu nas Ria nos últimos anos. Com mais sorte, apanha uma “preta”, ou mesmo uma “rainha”, que têm mais valor comercial. Conta que os intermediários que compram toda a amêijoa a vendem para Espanha. É um negócio ilegal, tal como a apanha da amêijoa, quando não se possui uma licença específica. Todos os apanhadores de amêijoa que se vêem na Ria são ilegais. Por vezes, a Guarda surge inesperadamente, na estrada da Bestida, e leva muitos deles presos. Mas a actividade compensa, mesmo com as multas, explica João, antes de se dirigir à pressa para a sua motorizada, estacionada na estrada à beira da Ria. “Não quero conversas com eles”, diz, a fugir do grande grupo que se dirige para a margem. São ciganos, que “varrem”, em grupos de 10 ou 15 elementos, grandes extensões de Ria. Usam ancinhos, redes e outras ferramentas ilegais, e, segundo João, controlam as melhores zonas. “Hoje foi um dia normal. Apanhámos uns 30 quilos”, diz Alexandre, um jovem cigano integrado num grupo de seis, descarregando a colheita do dia nuns cabazes encaixados na traseira de uma carrinha. “Toda a nossa família vive da amêijoa. Não se fica rico, mas é o que há para fazer”. Rui, que traz da água o filho de 12 anos às cavalitas, assegura que não há na região outra fonte de rendimento além da apanha de bivalves na Ria. “Hoje em dia, posso dizer que toda a região, da Murteira a São Jacinto, vive da amêijoa”. Foi em 2006 que os Estaleiros Navais de São Jacinto, com os seus 70 mil metros quadrados, situados no braço da ria que forma o canal de São Jacinto até Ovar, com acesso directo à barra de Aveiro, fecharam definitivamente as portas. Carlos Roeder, um empresário formado em engenharia na Alemanha, criou a empresa em plena Segunda Guerra Mundial. Durante o Estado Novo, os Estaleiros tiveram de lutar muitas vezes de forma desigual, pelo favorecimento oficial, devido à tendência oposicionista do seu fundador e proprietário, Carlos Roeder. Mas a empresa impôs-se pela habilidade de manobra dos seus administradores, e pela função social que desempenhou na região, através da Fundação criada por Roeder, que financiava a Saúde, refeitórios, habitação, e os estudos dos operários e seus filhos. A empresa faliu, numa confusão de dívidas, penhoras, falcatruas. Segundo Domingos, as Finanças, para recuperarem algum dinheiro, venderam tudo o que puderam, em leilões, ao desbarato. “O sucateiro Godinho é que fez os melhores negócios. Veio cá e comprou o que pôde. Comprou uma máquina de 120 mil contos por 120 contos. E mais 43 toneladas de aço para construção de navios por 40 contos”. Depois desta fase começou o saque. Como o edifício tivesse ficado abandonado, os homens da terra vieram com carrinhas roubar o que puderam. “De início tinham cá um homem a tomar conta, mas como não lhe pagavam, ele não fazia nada”. Tal como não fazia ele, Domingos, o porteiro, que deixou roubar tudo o que foi deixado no complexo de edifícios, desde mobiliário a máquinas, materiais e documentos. “Eram pessoas conhecidas, de cá da terra, que estavam desempregadas, precisavam de dinheiro para as famílias. Levaram tudo, mas não tocaram na minha casa”. Tal como acontece com os abutres, o saque teve várias fases, consentâneas com as fases da própria crise da região. Depois dos bens mais ligeiros, começaram a chegar os camiões, para carregar aço, madeiras e pedra. “Levaram um cofre de 1500 quilos, que levantaram com uma grua para um camião”, recorda Domingos, que assistiu a tudo, à porta de casa. Quando parecia já não haver nada para levar, vieram com equipamento de demolição derrubar paredes e telhados, para vasculhar todo o interior. E para recolher telhas e pedra. Há rombos nas paredes que parecem causados por bombas. Até que ficaram apenas as vigas de ferro da estrutura do edifício. “Vieram com maçaricos e máscaras, fundiram, partiram, depois prenderam as vigas a camiões e arrastaram-nas pela estrada”. O estado de destruição e ruína em que se encontra hoje o edifício é tal, que, conta Domingos, equipas de cinema têm vindo rodar filmes de terror, e os militares da unidade de São Jacinto vêm fazer treinos com simulação de situações de guerra. Domingos, apesar de tudo, nunca saiu da sua casa. Dos estaleiros, já nada existe, além do porteiro, que é também a sua testemunha e o seu historiador. “Mas quem sabe tudo sobre os Estaleiros, porque estudou o assunto, é o senhor Libério, que já morreu, mas escreveu um livro”, recomenda Domingos. A viúva de Libério Pereira, Maria José da Cunha, de 77 anos, vive numa vivenda ali perto, com os netos, ambos desempregados. “Faz hoje um ano que ele morreu”, diz ela. O marido foi torneiro-mecânico nos Estaleiros, arte que aprendeu lá. Tinha vindo da Figueira da Foz com o pai, que veio trabalhar com os militares da Marinha. Os pais de Maria José vinham de Aradas, e tinham uma tenda de pão, que fornecia também a base militar. O avô materno viera para a região para trabalhar na safra do caranguejo, que existia na ria antes de se descobrir a amêijoa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A família trabalhou, progrediu e estudou graças aos Estaleiros de São Jacinto e à Fundação de Roeder. Em demonstração de gratidão, Libério e a mulher compuseram canções e escreveram peças de teatro, que representavam na escola local. E Libério escreveu um livro, todo em verso, sobre São Jacinto e os Estaleiros. Uma espécie de epopeia, que foi editada pela Junta de Freguesia e esgotou três edições.
REFERÊNCIAS:
Nuno Lopes é um santo no inferno
Portugal e a troika. O mundo do boxe e a família. Nuno Lopes com um santo no seu inferno. Marco Martins e um tour de force ficcional a partir da violência da realidade. Chama-se São Jorge um dos grandes títulos deste ano. Estreia-se na secção Horizontes do Festival de Veneza. (...)

Nuno Lopes é um santo no inferno
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-07 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal e a troika. O mundo do boxe e a família. Nuno Lopes com um santo no seu inferno. Marco Martins e um tour de force ficcional a partir da violência da realidade. Chama-se São Jorge um dos grandes títulos deste ano. Estreia-se na secção Horizontes do Festival de Veneza.
TEXTO: Marco Martins começou a pensar num “homem perdido que se movimenta sem saber para onde”. Foi há cerca de cinco anos. “Era o que se passava na altura em Portugal: começava a falar-se de crise mas sem se saber bem do que se falava, a crise não tinha rosto. Era a ideia de alguém que olha para o que está à volta sem conseguir descodificar. O que é que ele sabe? O que é que ele projecta?”. Por essa altura, envolvia-se num projecto, Estaleiros, com 16 trabalhadores dos parados Estaleiros Navais de Viana do Castelo, a quem dava o protagonismo da peça de Samuel Beckett, À Espera de Godot. Deixando progressivamente Beckett para trás, improvisava com eles, dava-lhes espaço para falarem do trabalho e da falta dele, devolvia-lhes auto-estima e a possibilidade de suspenderem a angústia de estarem à espera das suas vidas. Tinha um cúmplice nessa improvisação com intérpretes não-profissionais, o actor Nuno Lopes (que nas conversas que mantinham lhe falava, há algum tempo, do desejo de interpretar num filme um boxeur: “Tenho ombros largos, achei sempre que era possível, que podia levar porrada mesmo”). Para ambos, Estaleiros, em 2012, foi o embate com um trabalho de matriz política e social – e para Marco, que em 2010 transformara o bairro cigano de Sanguedo, em Santa Maria da Feira, numa instalação artística (o projecto Baralha, com Beatriz Batarda), foi a perda definitiva do medo de trabalhar com não-actores, descobrindo uma forma de contar histórias a partir da matéria documental. “O país estava a mudar. Houve a aproximação à matéria documental sobre a qual nunca tinha trabalhado. Comecei a gostar muito de trabalhar com não-actores”, conta. Passaram então aí os dois, Marco e Nuno, a falar na possibilidade de um filme que documentasse estes tempos. O que é “perigoso”, sublinha Marco, fazer ficção a quente, em cima dos acontecimentos. “Mas não era possível não falar disso, da austeridade”, sublinha por seu lado Nuno. Boxe – para repescar o antigo desejo do actor – e crise? “O boxe nunca me interessou muito, é um ‘género’, não estaria muito interessado num filme sobre boxe, e havia a sombra do Belarmino [Fernando Lopes, 1964]. Belarmino e troika? Não me apetecia. " Marco deu o benefício da dúvida: foi pesquisar, ver o que acontecia. Mergulhou-se na noite do boxe, mundo depauperado povoado por figuras tocadas por uma divisão violenta, boxeurs que trabalham como polícias e seguranças e que para subsistirem fazem cobranças “difíceis” junto de quem, como eles, está em dificuldades e não pode pagar – ao fim dessa noite de pesquisa encontrava-se a ideia inicial de dar rostos aos números e à abstracção chamada crise. Nuno, por essa altura, entrava para o ginásio, para o boxe. Eis o que saiu dali: São Jorge, o filme que esta semana levará o realizador e o actor ao Festival de Veneza (de 31 de Agosto a 10 de Setembro), onde compete na secção paralela Horizontes, que dá atenção às novas correntes do cinema mundial (primeira projecção de imprensa esta quarta-feira). Nunca houve um filme como este em que eu sentisse que também era o meu bebé“Quando fui para o boxe” – na fase mais intensa de treino, seis horas por dia com crossfit, Nuno ficou a pesar mais 20 quilos –, “o que eu procurava era uma osmose. Pelo facto de estar lá, todos os dias, esperava que qualquer coisa deles se pegasse a mim. Não é questão de ‘Método’, porque o meu método varia de filme para filme. Era querer ficar inserido num determinado ambiente para que houvesse algo que se agarrasse a mim. ” Foi conversar para o problemático Bairro da Bela Vista, na margem Sul do Tejo. Ficou com “horas e horas gravadas no iPhone”, a ouvir “as preocupações das pessoas” cujas vidas são interceptadas pela violência, como se estivessem diariamente no boxe. “O grande desejo sempre o foi o de ser verdadeiro. Como estar no meio deles todos e parecer um deles?". É a essência de São Jorge. E da personagem de um boxeur que, para subsistir, para ficar com o filho, para poder ficar com a mulher, imigrante brasileira tão esmurrada quanto ele, passa do estatuto de observador do que acontece à sua volta para o de cobrador. É um tipo com dívidas que, para as pagar, ameaça quem tem dívidas por pagar. A mais forte do Nuno é uma inocência do olhar, que faz com que a personagem espere sempre alguma coisa, continue sempre a acreditar. Isto é muito bonito, e é impossível de ser escritoJorge é, e para voltar às palavras iniciais de Marco Martins, esse homem perdido que se movimenta sem saber para onde. Pouco fala sobre as deflagrações que alastram por ele dentro. Mas devolve-nos com o olhar uma visão do seu inferno. Nuno confirma a importância que teve para o seu trabalho, para além de todos os filmes de boxe que conseguiu ver, para além de Rocco e os seus Irmãos (Luchino Visconti, 1961), dos filmes do neo-realismo italiano e do cinema americano dos anos 70 “em que a personagem era mais decisiva do que a narrativa”, outro homem que olha e que, insone, nos devolve a sua cidade: o Travis Bickle de Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) – “estão ambos no inferno, de alguma maneira são santos”. Mas a personagem Jorge – e Nuno, o actor – é por isso também um intermediário, vulto que paira entre a ficção e a realidade, permitindo a aproximação de uma a outra, para chegar a essa osmose. É que Nuno está muitas vezes nos planos para permitir que os outros falem, sobre política e sobre o bairro, para deixar que o documento comunique as histórias à ficção – redistribuindo assim, perante a câmara de filmar, e sem perder a verdade, os temas que tinham sido elencados e discutidos numa fase de pesquisa com os habitantes do bairro da Bela Vista. Porque nenhum daqueles diálogos, que nasciam durante conversas improvisadas de cerca de quatro horas (“máquinas de argumento”, diz a equipa: eles falavam e a câmara registava), poderia ser “escrito” sem correr o risco de se revelar falso, como diz Nuno. Porque nenhuma daquelas personagens poderia ser “interpretada” por um actor profissional sem risco de intromissão grosseira da ficção – era esse o perigo, o do “retrato caricatural”, concorda Marco. É essa uma das singularidades deste belíssimo São Jorge: a forma como responde com ficção à interpelação da realidade. É uma proposta diferente, por exemplo, da que era trabalhada em As Mil e uma Noites, o tríptico de Miguel Gomes sobre o Portugal da crise, que, e não é apenas coincidência, também esteve nos estaleiros de Viana do Castelo. Também é concretização diferente, na forma de fazer coabitar o ficcional e o documental, dos pressupostos encontrados no projecto Estaleiros. Marco conta que enquanto se procedia à pesquisa, enquanto vibrava a matéria documental à espera de ser colhida, o argumento ia-se aventurando “para a história de uns tipos que andavam atrás de outros tipos para cobrar, e tudo à volta de uma coisa muito americana que é o dinheiro, coisa que temos sempre muito pudor em filmar – e eu queria mostrar o dinheiro”. O pressuposto documental, a pesquisa dentro do bairro, o trabalho com não-profissionais, cuja escolha foi exaustiva, para lhes dar espaço e às suas histórias, começava a ter uma tradução que podia ser contraditória, conflituosa mesmo, com um argumento mais próximo do film noir do que outra coisa – com as possibilidades do digital que Marco utiliza pela primeira vez, muitos planos puderam ser filmados sem um único projector, a imersão na noite e no onirismo foi profunda. Tratava-se, então, de fazer tudo para “conter a matéria documental na ditadura de uma ficção sem perder a vitalidade daquelas histórias”. Em tempos de “ficções do real”, a ficção, assim sem mais, pode ser o elo mais fraco. São Jorge não desiste dela. Nobilita-a – no dossier de imprensa, Marco fala no film noir, cita Robert Rossen (Corpo e Alma, 1947, com John Garfield) e Jules Dassin, cineasta que entre 1947 (Brutalidade) e 1955 (Rififi) foi poderoso a conduzir a matéria documental até um espaço cheio de marcas, as do "filme de género". São Jorge é, nesse sentido, um tour de force. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Nunca houve um filme como este em que eu sentisse que também era o meu bebé”, assume Nuno Lopes. Apesar de Alice (2005) já ter sido uma experiência com um cineasta que, segundo o actor, trabalha sem medo da colaboração (e sem medo da instabilidade da rodagem, que é a continuação orgânica da descoberta artística), São Jorge é um novo código genético para ambos. “Não querendo prever o futuro, acho que não vamos querer perder este mundo social, que conhecemos no Estaleiros, que conhecemos aqui. Até para não deixar órfãs estas pessoas. É uma forma de lhes dizer que foram muito importantes para as nossas vidas”, diz Nuno. “Não foi programado, Aconteceu. Não iria para lá, fui levado, por causa dos convites para os projectos Baralha e Estaleiros, e houve um crescimento. Passou a ser decisivo para a minha forma de pensar a representação”, diz Marco. Alice foi há uma década. Há coisas que não mudam. A forma de Marco inventar as cidades, como aventuras plásticas no desconhecido. E a fidelização de um corpo, o de Nuno, a um espaço familiar, que protege até à loucura e ao excesso. O actor diz que não sabe porque é que o realizador o vê assim, mas propõe: a família é espaço de possibilidades eufóricas, em nome dela tudo pode acontecer – num filme. Marco tem uma resposta: “Sou incapaz de olhar para um actor e esperar que ele seja igual à personagem. Mas no caso do Nuno a característica mais forte é uma inocência do olhar, que faz com que a personagem espere sempre alguma coisa, continue sempre a acreditar. Isto é o Nuno, como pessoa e como actor. O Nuno é muito coração, resolve tudo através da emoção. Isto é muito bonito, e é impossível de ser escrito. "Sobre o boxe, afinal, há poucas sequências em São Jorge. Começam já todos esmurrados.
REFERÊNCIAS:
Entidades TROIKA
A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado. (...)

A Espanha folclórica e andrógina atravessa o corpo de François Chaignaud
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: O coreógrafo e bailarino François Chaignaud e o músico Nino Laisné andaram por várias regiões espanholas à procura de tradições seculares ligadas à música e ao movimento. Daí resultou Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet que desestabiliza o lugar do feminino e do masculino. Em estreia nacional no Palácio da Bolsa, no Porto, sexta e sábado.
TEXTO: Mesmo com quatros músicos em palco, mesmo com um deles a dar tudo, e bem, no bandoneón, é difícil não centrar o olhar em François Chaignaud. Entra em cena muito suavemente, mas também muito dramaticamente, com um figurino medieval feito à medida, uma face impecavelmente maquilhada, um corpo que tanto poderia ser de homem como de mulher. O bailarino e coreógrafo francês, adepto do transformismo e que tantas vezes põe em confronto, no seu próprio corpo, as suas pesquisas enquanto historiador, é mesmo assim: nunca se sabe como vai aparecer diante de nós, mas é sempre coisa para parar o trânsito. Em 2016, no Rivoli e com o solo Dumy Moyi, vimo-lo de rabo à mostra a equilibrar pássaros na cabeça, entre outras coisas, enquanto cantava árias ucranianas do século XIX e canções medievais sefarditas, inspirado pelas cerimónias theyyam do Sul da Índia. Esta sexta e sábado no Salão Árabe do Palácio da Bolsa, no âmbito da programação do Teatro Municipal do Porto, vamos vê-lo a encarnar três personagens da mitologia espanhola em Romances inciertos, un autre Orlando, uma ópera-ballet criada juntamente com o músico e artista transdisciplinar Nino Laisné. Este espectáculo resultou de um processo de investigação e criação de quatro anos, focado nas tradições orais, musicais e coreográficas espanholas desde o século XVI. Tudo começou com uma residência em Huesca, onde François Chaignaud e Daniel Zapico, um dos músicos que viria a integrar Romances inciertos, apresentaram um performance. A partir daí, Chaignaud e Laisné viajaram por aldeias de várias regiões de Espanha “à procura de melodias e tradições seculares”. “Também trabalhámos com muitos maestros de flamenco, fandango, jota [dança folclórica espanhola]. Todos estes materiais levaram-nos a fazer Romances inciertos”, contextualiza Nino Laisné. “Esta peça nasceu também da vontade em criar um corpo completo, em que as canções e as danças estão muito próximas. Um corpo que pudesse viajar no tempo e na geografia. ”A solo ou acompanhado – muitas vezes com a coreógrafa Cecilia Bengolea, com quem tem a companhia Vlovajob Pru –, François Chaignaud sempre procurou não só fazer convergir referências e repertórios históricos heterogéneos, dos tempos medievais às danças de rua, como ensaiar diálogos íntimos entre o movimento e o canto – e em Romances inciertos subiu definitivamente a parada. Podemos dizer que está mais cantor do que nunca, e também é seguro dizer que isso lhe sai da pele. “Há uma exigência neste espectáculo que nós não queremos esconder”, afirma o coreógrafo. “Na maior parte do tempo, canto num contexto ‘hostil’, em que o corpo está inquieto e desequilibrado. ”Chaignaud é uma figura saturnina, uma presença magnética e exuberante, mas ao mesmo tempo muito real, muito próxima de nós: há uma vulnerabilidade naquele corpo em autoconstrução, entre a disciplina e a libertação, entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ele gosta de complicar, de implicar os figurinos na própria coreografia, como se fossem um segundo corpo. “Este espectáculo é um belíssimo recreio para pesquisar sobre canto e dança, simultaneamente. Adoro as dificuldades que nele existem, as oportunidades formais e, claro, o poder ficcional. ”Romances inciertos, un autre Orlando desenrola-se em três actos, cada um correspondente a uma personagem. A primeira é Donzela Guerreira, uma jovem mulher que corta os cabelos, disfarça o peito e veste-se com roupas de homem para poder lutar na guerra. Depois é a vez do arcanjo São Miguel, “cujas representações pictóricas apresentam sempre uma certa ambiguidade”, descreve Nino Laisné – nos poemas de García Lorca, esta figura é imbuída de “erotismo e androginia”. Por fim, vemos Chaignaud enquanto Tarara, uma cigana andaluza de coração partido. “Ela aparece na música sefardita antes de se ter tornado numa figura-chave do flamenco. Alguns versos fazem referência à sua provável intersexualidade. ”Há uma androginia e uma desconstrução das normas de género em comum entre estas três personagens, que de alguma forma desestabilizam o lugar do masculino e do feminino, pondo em causa a concepção de género enquanto marcador cultural e social estático. Numa altura em que se começa a falar mais sistematicamente sobre estes assuntos, Nino Laisné considera que olhar para estas figuras “das culturas tradicionais” é uma maneira de nos “lembrar” que as questões de género já andam por cá há séculos. François Chaignaud concorda. “Sinto que a perspectiva histórica do espectáculo permite reenquadrar estas questões de uma forma muito mais ampla. A fluidez de género não é uma coisa recente”, observa, referindo que procura reflectir nos seus trabalhos o seu próprio “processo de identidade”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o coreógrafo, “é muito inspirador” conectar-se com “estas manas dos séculos passados”. “A nível artístico, elas são como fantasmas que visitam os nossos corpos; politicamente, legitimam as negociações de género enquanto processo secular. Impressiona-me o facto de estas figuras serem movidas pela sensualidade e pela intensidade dos seus desejos, que as colocam numa situação de vida precária, mas que ainda assim mostram o caminho para uma acção e agência inspiradoras. ” Outra dessas “manas” é Orlando, a personagem marcante de Virginia Woolf, que apesar de não estar na peça, é evocada no título por causa de algumas “semelhanças” entre o romance de Woolf e a forma como o espectáculo está construído. “Os sonos de Orlando, durante os quais muda de identidade de género, poderiam ser aqui os momentos em que eu saio do palco por alguns minutos, que são como décadas e que me permitem reaparecer com uma identidade diferente”, aponta Chaignaud. Apesar de as questões de género estarem habitualmente presentes nas suas performances, o coreógrafo e bailarino francês diz estar muito mais interessado “na prática de danças e de músicas específicas”. Neste caso, foi beber ao ballet, ao flamenco e ao jota, às danças de corte e às danças com andas. Outro eixo central da coreografia é “os pés, os sapatos, o chão”. Dos saltos altos às andas, aquilo que usa nos pés “determina muitas das (im)possibilidades” do movimento. E isso tem também a ver com as personagens. “Ao colocarem-me constantemente num equilíbrio impossível, estes objectos espelham a procura das personagens, o sentido de risco delas. ”Mesmo que não consigamos tirar os olhos de François Chaignaud – e ele parece que nasceu para isto, para encarnar estas personagens – a verdade é que nem esta Donzela Guerreira, nem este arcanjo São Miguel nem esta Tarara existiriam sem os músicos em palco. “Isto não é um solo com quatro músicos. Os nossos cinco corpos convergem para fazer com que cada figura apareça. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra mulher homem social género corpo donzela
O cinema é um milagre
Com Na Via Láctea Emir Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração. (...)

O cinema é um milagre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Ciganos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20161231180500/http://publico.pt/1756225
SUMÁRIO: Com Na Via Láctea Emir Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração.
TEXTO: Emir Kusturica (n. 1954) é um realizador controverso que, como poucos, suscita as mais extremadas opiniões. E é assim controverso por duas ordens de razões. Por um lado as propriamente cinematográficas, pela adesão ou rejeição imediata, epidérmica mesmo, que suscitam a desmesura e imaginário figurativo dos seus filmes. E, por outro, pela sua trajectória política durante a guerra na ex-Jugoslávia e suas sequelas, bem como pelas suas idiossincracias megalómanas – e note-se que estas últimas são matérias de facto e não da subjectividade de apreciações. Kusturica destacou-se logo com Recordas-te de Dolly Bell?, Leão de Ouro para a melhor primeira obra em Veneza em 1981 e foi consagrado com O Papá Está em Viagem de Negócios, Palma de Ouro em Cannes em 1985, muito claramente duas obras de “jovem cineasta”, duas revisitações sob prisma íntimo da História da Jugoslávia comunista de Tito, os anos 60 na perspectiva de um adolescente, no primeiro filme, a de 1950 narrada por um miúdo, no segundo. O seu cinema evoluiu entretanto num sentido desmesurado que, podendo até nalguns casos estar inscrito em matérias do real e da História ou, na mesma ordem de razões, da cultura e sentir de uma comunidade específica, no caso os ciganos, é feito de excesso e “para além” do real, num “sobre-real” mesmo, quando não até taxativamente “surrealismo”. E assim se sucederam O Tempo dos Ciganos (1989), a viagem americana de Arizona Dream (1993) e dois absolutos delírios, a apoteose de Underground (nova Palma de Ouro em Cannes, 1995) e o regresso aos ciganos com Gato Preto, Gato Branco (1998). Só que…Só que ocorreu com Kusturica o horizonte negativo dos cineastas, dos artistas, que operam nesse estreito fio de risco que são a desmesura e o excesso. A Vida é um Milagre (2004) era (é) uma catástrofe também ela absoluta, e Promise me this (2007, nunca estreado em Portugal e um fracasso internacional) um “monumento” de auto-indulgência e auto-citação insuportavelmente repetitivo. Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para ainda se deixar ser surpreendido – já me ocorreu mais que um caso em que considerei um realizador já “assunto encerrado” e depois haver um filme que me levava a reconsiderar. Além disso´, e no caso concreto, com Na Via Láctea Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima, absolutamente espantosa, que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração. Este é, por demais claramente, um caso de “pegar ou largar”. Compreendo que haja rejeições veementes do filme mas por mim estou “pegado”, e não sou eu que “pego” o filme, é ele que se “pega” a mim, logo desde o assombroso primeiro plano do falcão na montanha – fica-se “colado” ao ecrã. Este é um daqueles raríssimos casos em que temos de repor a questão de base, perdida na sucessão de visões de filmes, ou até na voracidade do consumo: o que é o Cinema?O aparato e a arte cinematográfica têm uma capacidade ímpar de indagar, captar e registar os indícios do Real e da História, constituindo-se como uma experiência do mundo tanto mais relevante quanto é rápida e alargada a sua possibilidade de difusão. Mas a arte cinematográfica é também espectral e fantasmática, propiciadora de espantos e assombrações. São de algum modo, ainda que transfigurados, os dois polos existentes desde os primórdios, Lumière ou o real, Méliès ou a ilusão. E porque se repõe a questão com Na Via Láctea? Porque o filme anuncia-se, num cartão logo ao princípio, ser baseado em histórias reais, e aborda uma ineludível tragédia real, a das guerras na ex-Jugoslávia (inclusive de modo muito mais frontal que Underground, que tinha supostamente como quadro a II Guerra Mundial, embora não deixe de ser óbvia que era uma metáfora das turbulências do desmembramento do antigo país, que se torna explicito no final, com o bocado de terra que se separa e a derradeira frase, “era uma vez um país”), e todavia transcende em absoluto qualquer realismo, de modo inaudito e até “miraculoso”. Eis também o que nos conduz a uma “digressão” pela obra de Kusturica. Ele estudou na FAMU, a famosa escola de Praga, e nessa sua obra cedo se dá a ver a decisiva influência dos filmes checos de Milos Forman (antes da invasão soviética e do seu exílio), o “realismo íntimo” mas também de implicações geracionais e sociológicas dos maravilhosos O Ás de Espadas (1964) e Os Amores de uma Loira (1965), depois a dança incendiária e carnavalesca de O Baile dos Bombeiros (1972). Lembras-te de Dolly Bell? evoca irresistivelmente O Ás de Espadas e de modo mais lateral Os Amores de uma Loira, e não foi nada fortuito que a inesperada Palma de Ouro a O Papá Está em Viagem de Negócios tenha sido atribuída por um júri presidido por Forman. Só que com as personagens principais de um e outro já havia práticas ou ocorrências que, ainda que não saindo do quadro do real, eram de âmbito digamos que “para-normal”: o Dino de Dolly Bell praticava “hipnose, auto-sugestão”, inclusive com o seu coelho (começo logo no “anunciador” primeiro filme do inacreditável bestiário que Kusturica foi reunindo), o Malik de O Papá tornava-se sonâmbulo. Mas havia ainda outra recorrência. O primeiro plano do primeiro filme era um homem, o “controleiro”, o pregador do partido, com grossos óculos escuros e o encarregado que se ocupava dos miúdos era chamado de “Quatro Olhos” pelos seus espessos óculos; isso tinha também Mirza, o irmão mais velho de O Papá…. Ou seja, desde os primeiros filmes Kusturica punha em cena uma condição “reforçada” de visão, mas também distorcida, o que voltava a acontecer com o rapaz que é personagem principal do filme seguinte, O Tempo dos Ciganos, que também usa óculos muito graduados, com a particularidade acrescida de a lente esquerda estar tapada - e o Kosta interpretado pelo próprio Kusturica de Na Via Láctea reforça a visão com um monóculo!E, claro, desde os primeiros filmes havia a música, as cançonetas e os bailes, em roda-viva, que nos dois filmes de guerra, Underground e este agora, se tornam delirante dança macabra. Crucial na filmografia foi a opus seguinte, O Tempo dos Ciganos: não só o cinema de Kusturica, já para além do real, “entrava em levitação” (estado que a partir daí nunca faltaria), coma a estrutura precisamente do tempo deixava de estar comprimida e uniforme, antes havendo cenas e sequências longuíssimas que, nos seus melhores momentos, neste filme e nos posteriores, têm o caracter de alucinações hipnóticas. E começava a ser patente a proximidade com o universo de Fellini – mas disso já falaremos. Alucinações, hipnoses, sonhos (Arizona Dream se chama o belíssimo filme americano – mesmo que o realizador tenha antes achado a experiência um pesadelo), fantasmagorias – o real e o “sobre-real”, quando não ocorre ser taxativamente “surrealismo”, afirmam-se como o universo distintivo do autor. É um cinema de “visões”: se há muitas personagens com questões de vista (neste agora há um olho de vidro), os ângulos de visão multiplicam-se até ao uso recorrente da grande angular (mas como é possível filmar intensamente em exteriores com essa lente?, o que sucede em Na Via Láctea, e é um dos mais destacados prodígios ou “milagres” do filme), e há com frequência “visões”. E, em paralelo, há o continuado bestiário: o coelho, a pomba e os cães em Dolly Bell, os pombos e os cães de O Papá…, o peru e o gato do Tempo dos Ciganos, as tartarugas e o porco de Arizona Dream, o macaco, o papagaio, os gansos, etc. . , etc…em Underground, os gatos, cães, peru, patos… de Gato Preto…Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para ainda se deixar ser surpreendidoOcorre haver animais em filmes, muitos cães, cavalos, pombos e gatos sobretudo, mas nada que se assemelhe ao circo zoológico de Kusturica. Cabe sim mencionar que há dois animais que “são” personagens principais de filmes e até lhe dão título, evidentemente o burro de Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson e o falcão de Kes (1970) de Ken Loach. Um burro e um falcão, que coincidência, vem a calhar…Por muitos animais que haja em filmes de Kusturica, não há precedente para o estatuto que ele dá em Na Via Láctea ao falcão, ao burro, ao urso e à serpente, inclusive creditando-os como intérpretes no genérico final. A serpente é um caso particular. A história que a envolve (mais que uma vez aliás) é dramaturgicamente da maior importância e o realizador refere-a sempre como um dos acontecimentos reais em que se baseou, o de um soldado russo que no Afeganistão foi enrolado por uma serpente que de facto o salvou de um tiroteio. Mas a serpente não é propriamente “ensaiável” e controlável, e nessas cenas há efeitos especiais de tratamento digital. Mas os outros, com quem obviamente Kosta/ Kusturica tem uma “relação pessoal”, são mesmo animais dele, parte do “circo privado” que mantém e com o qual até se desloca. Pode-se suspeitar aliás que essa foi uma razão determinante para uma das maiores dificuldades do filme, o facto de Kusturica ser também protagonista. Mas como conseguiu ele estar atrás da câmara, com movimentos extremamente complexos e incríveis “orquestrações” de figuras e eventos, e estar ao mesmo tempo frente a ela, como actor principal?! É da ordem do prodígio, mas se é de um virtuosismo imenso não é reduzível a isso, é o espantoso “investimento pessoal” do autor neste filme. Fica-se boquiaberto e rendido – eu por mim fico. Como conseguiu ele estar atrás da câmara, com incríveis “orquestrações” de figuras e eventos, e estar ao mesmo tempo frente a ela, como actor principal?!A peculiaridade do “circo privado” leva-nos às idiossincracias de Kusturica e à sua megalomania. O narcisismo vedetista da pose de rock star com que ele andou à frente da No Smoking Band (até fez um documentário sobre ele e o grupo) é coisa menor comparado com a construção de uma cidade para a rodagem de A Vida É um Milagre, a qual, chamando-se Andricgrad, em homenagem ao Prémio Nobel da Literatura Ivo Andric, autor de A Ponte sobre o Drina (a “cidade” fica junto aos locais referidos no romance), é uma “kusturicalândia”, uma Disneylândia nos Balcãs. E que interessa isso para a consideração do seu cinema? Importa porque coloca a interrogação desse cinema não ser mais que exibicionista (o que muitas e respeitáveis pessoas acham), suscitando a tal questão da característica felliniana, inegável em Kusturica. Ora “felliniano” é coisa que não sou de todo, o que não me impede de achar que há filmes, e esses são obras-primas (Amarcord, E la Nave Va… ou a tocante homenagem ao circo que é I Clown) em que ele se “transcendeu”. “Transcendência” é um conceito que ocorre a propósito de Na Via Láctea, sobretudo depois dos dois imensos desastres anteriores. Citei dois polos do cinema, Lumière e Méliès. Cabe referir, a título de paradigmas, um outro, Dreyer e Buñuel, o ascético e crente e o surrealista e herético. O título Na Via Láctea deriva de ser pelo leite que a misteriosa mulher ordenha das vacas e entrega a Kosta que se estabelece a proximidade entre os dois, mas remete também para a desmesura cosmológica do filme, no modo como intenta criar um universo. O tão surrealizante Kusturica não podia contudo desconhecer que Na Via Láctea se chama o mais herético dos filmes daquele que é “o” cineasta surrealista, Buñuel. Não podia desconhecer, note-se, mas pelo contrário o epílogo até é com a conversão de Kosta em monge ortodoxo. Não é por esse religioso final que se invoca um paradigma com Dreyer, mas porque um prodígio maior do filme é fazer-nos “acreditar” nele, questão de “crença” portanto. Não é de modo nenhum preciso ser crente para acreditar no milagre em A Palavra de Dreyer. De outro modo de todo diferente e sem estar a fazer comparações, Na Vida Láctea é um filme que nos faz “acreditar” nele, em que o cinema pode ser “um milagre”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mais importante é a possível objeção ética ao filme como não só legitimação da posição pró-sérvia do autor (e, de resto, até da sua conversão ao cristianismo ortodoxo) como, mais grave, de branqueamento de crimes de guerra. Não é nada inocente, antes pelo contrário é motivo de perplexidade, que Kusturica tenha situado o filme na Krajina, “república sérvia” em território croata, em que houve gravíssimos crimes, ou proceda ao seu “ajuste de contas” com a intervenção ocidental nas guerras da Jugoslávia, apresentando como “a má da fita” uma brigada da SFOR (Stabilisation FORce), os destacamentos enviados pelo Nato, embora ao abrigo de uma resolução do Conselho de Segurança. Compreendo a objeção e respeito-a, mas ainda assim acho que o cerne é outro. “Esta guerra não é connosco” diz a velha aldeã, e o par da “Noiva” e Kosta não estão envolvidos na guerra, são sim cercados por ela. Não sendo nada fortuito que este seja o filme em que Kusturica enfrenta directamente as feridas das guerras na Jugoslávia, é divergente o fio da narrativa: “é possível o amor em plena guerra?”.
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