A Viagem de uma família de migrantes num livro ilustrado
Traduzido já em 14 línguas, A Viagem é o primeiro livro ilustrado da italiana Francesca Sanna. (...)

A Viagem de uma família de migrantes num livro ilustrado
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Traduzido já em 14 línguas, A Viagem é o primeiro livro ilustrado da italiana Francesca Sanna.
TEXTO: A Viagem, o premiado livro ilustrado para a infância da autora italiana Francesca Sanna sobre uma família de migrantes, é editado este mês em Portugal. Com selo da Editora 2020, a edição portuguesa tem o apoio do Alto Comissariado para as Migrações e da Amnistia Internacional, sendo editado na semana em que se assinala — dia 20 — o Dia Mundial do Refugiado. Traduzido já em 14 línguas, A Viagem é o primeiro livro ilustrado de Francesca Sanna. A obra foi lançada em 2016 e conta a história de uma família dividida pela guerra. O pai morre e a mãe é obrigada a fugir com os dois filhos, numa viagem de angústia e ansiedade em busca de segurança, espelho da realidade recente de milhares de migrantes e refugiados. "A Viagem é na verdade uma história sobre muitas viagens e começou com a história de duas raparigas que conheci num campo de refugiados em Itália. Depois de as conhecer, apercebi-me de que havia algo muito poderoso por trás da sua viagem. Comecei, então, a recolher mais histórias de migrações e a entrevistar muitas pessoas de inúmeros países", escreveu a autora no final do livro. A obra ilustrada, destinada a crianças e adultos, reúne — naquela família ficcionada — "uma colagem de todas essas histórias de vida" que a autora escutou, e inclui ainda uma investigação histórica sobre imigração, no começo do século XX. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. "Quase todos os dias ouvimos nas notícias as palavras 'migrantes' e 'refugiados', mas raramente se fala das viagens que as pessoas tiveram de fazer", sublinhou Francesca Sanna. Na página oficial, a Editora 2020 sugere um guia para leitura guiada e exploração da obra, feito pela Amnistia Internacional. Nas livrarias portuguesas não estão disponíveis muitos livros ilustrados, para os mais novos, que versem sobre migrações e refugiados. Em Fevereiro passado saiu Pássaro Que Voa, de Claudio Hochman, ilustrado por Carlota Madeira Lopes, na editora Livros Horizonte. Reúne dezenas de pequenas histórias inspiradas em relatos verídicos lidos nos jornais, histórias reais e outras ficcionadas, sempre em torno da ideia de partida de um lugar. Em 2015, saiu Com 3 Novelos (O Mundo Dá Muitas Voltas), de Henriqueta Cristina e Yara Kono, editado pela Planeta Tangerina, sobre uma família que muda de país em busca de um lugar mais livre, e em 2010 a Orfeu Negro publicou em Portugal o livro ilustrado Migrando, de Mariana Chiesa Mateos, sem texto e com dupla leitura, independentemente do lado da página em que se começa.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
“Amigo, encontra a tua família e os teus amigos e fica perto deles”
A tarde foi passada a transferir a maioria dos 629 resgatados para navios italianos, antes de começar a viagem para Valência. Paris acusa Roma de “irresponsabilidade”, Madrid de “violação da lei”, Budapeste celebra a “vitória” italiana. (...)

“Amigo, encontra a tua família e os teus amigos e fica perto deles”
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A tarde foi passada a transferir a maioria dos 629 resgatados para navios italianos, antes de começar a viagem para Valência. Paris acusa Roma de “irresponsabilidade”, Madrid de “violação da lei”, Budapeste celebra a “vitória” italiana.
TEXTO: Enquanto nas capitais da UE se trocavam acusações de “cinismo” ou “hipocrisia”, a bordo do MS Aquarius não houve descanso. A noite, a terceira para a maioria dos 629 resgatados no Mediterrâneo, foi mais agitada do que as anteriores. Com o amanhecer surgiram perguntas, repetidas (“Já sabemos quando saímos daqui?”) e novas: “Há duches?”. Não há. Divididos agora em três navios, um da Guarda Costeira e outro da Marinha italianas, mais o Aquarius, onde permanecem 106 – 51 mulheres 45 homens e dez crianças –, vão todos a caminho de Valência, uma viagem de três a quatro dias. Resgatadas durante o fim-de-semana, a maioria (400) pela Guarda Costeira italiana que as entregou à ONG franco-alemã SOS Méditerranée, que gere o navio humanitário, para agora receber de volta muitas das mesmas pessoas, ninguém sabia ao certo o que se ia passar desde domingo à tarde. Foi nessa altura que o ministro do Interior, Matteo Salvini, deu ordens para encerrar todos os portos de Itália à embarcação. Ficaram onde estavam, entre Malta e Sicília. Na segunda-feira, o novo primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, ofereceu-se para receber os 629 requerentes de asilo em Valência, mas os responsáveis recusaram a viagem de quase 1500 km com condições meteorológicas adversas e tanta gente a bordo, incluindo doentes, a esmagadora maioria a dormir ao relento no navio sobrelotado. Continua a não ser desejável, mas pelo menos é possível. A maioria das pessoas segue a bordo de outros navios, onde a UNICEF e Ordem de Malta tratarão dos refugiados e imigrantes, um grupo de muitas nacionalidades onde se incluem 123 menores não acompanhados, onze bebés e sete grávidas, e há 21 pessoas com queimaduras graves de combustível, gente a precisar de cirurgias ortopédicas ou ainda a recuperar de quase se terem afogado. Como sempre no Aquarius há uma equipa dos Médicos Sem Fronteiras (MSF): um médico, três enfermeiros e uma parteira. Durante as primeiras horas da manhã, a página de Twitter dos MSF esteve bastante activa. “Estamos à espera de um plano seguro para os 629 resgatados no Mediterrâneo. A melhor opção é desembarcá-los no porto mais próximo”, escrevia o médico a bordo. Chegada a confirmação de que teriam mesmo de seguir para Espanha, divididos entre navios e com o apoio da Marinha italiana: “Motivos políticos forçam estas pessoas, exaustas, a suportar uma viagem ainda mais longa”. Durante nove horas, na noite de sábado para domingo, o navio salvou 229 pessoas que viajavam em duas embarcações vindas da Líbia, uma delas já a afundar-se. Kevin fala de “um filme”: “Não pensava que iria sobreviver”, conta a Naiara Gortázar, uma das jornalistas a bordo. “Senhor, fique sentado, fique calmo. Vamos salvar todos, um a um. Ajude-nos a ajudar”, ouviu Kevin de Max Avis, vice-coordenador dos socorros a bordo. O estabilizador tinha-se partido e o barco podia afundar-se. “As pessoas começaram a mexer-se, todos queriam um colete salva-vidas e assim aconteceu o acidente”, conta Kevin. A embarcação cedeu e 40 pessoas tiveram de ser retiradas das águas escuras, entre gritos de terror, alguns já inanimados. Isto enquanto o Aquarius tentava responder a um segundo pedido de auxílio (era o único navio de ONG na zona). “Passámos 12 horas no mar, pensávamos que não seríamos resgatados. Deus salvou-nos. Não tinha salva-vidas. Então tiraste-me da água. Por isso estou aqui”, diz outros dos resgatados, citado por um dos membros da equipa dos MSF. Depois, o tempo começou a passar. No domingo à noite, foram os resgatados a cantar. Na noite seguinte, já eram os membros das ONG que os tentavam animar com “música de marcha”, enquanto algumas mulheres rezavam. A comida que já acabara chegou de Malta e voltou a acabar. De manhã, vieram mantimentos de Itália, fruta, croissants e algum pão. E as perguntas, como a questão dos duches que não existem num navio preparado para acolher até 550 pessoas por pouco tempo. Pela hora de almoço, os membros da SOS Méditerranée pediram a todos que se juntassem no convés. Uns em cima dos outros, lá couberam e ficaram a saber que iriam ser recebidos em Espanha, para onde viajariam naquele e noutros barcos. “No princípio, olhavam uns para outros, tentando perceber se isso era bom ou não. Depois puderam perguntas tudo mas nem sempre havia respostas”, descreveu Naiara Gortázar, num texto publicado no jornal El País. “A inquietação foi desaparecendo e via-se como o destino era recebido de forma muito distinta em função das nacionalidades. Os subsarianos estão entusiasmados, muito contentes. Para lá do futebol não sabem muito sobre Espanha, mas acreditam que terão mais oportunidades para estudar do que nos seus países”, continuou a jornalista. Já os “marroquinos e os argelinos estão profundamente preocupados, temem que os deportem”, como sabem já ter acontecido com muitas pessoas dos seus países. Finalmente, depois de almoço, começaram as operações de transferência para os outros navios. Aos maridos pedia-se para se reunirem com as mulheres – “só os casados com filhos”, repetiu-se muitas vezes para não arriscar separar famílias. “Amigo, encontra a tua família e os teus amigos e fica perto deles”, insistia Wademer Mischutin, membro da equipa de resgate da ONG franco-alemã, enquanto alguns procuravam canetas para apontar números de telefone e, quem sabe, reencontrar-se um dia em Espanha. Em Valência começa a pôr-se em marcha a operação para os acolher. Mais de 200 cidades espanholas ofereceram-se para receber alguns destas pessoas e nem todas ficarão no local de chegada. A prioridade será dada aos menores desacompanhados e a quem precise de cuidados médicos e será a Cruz Vermelha a coordenar o acolhimento imediato. Um dia depois de terem chovido agradecimentos a Sánchez por ter resolvido esta crise, enquanto Salvini, líder de um partido xenófobo e anti-imigração considerava a decisão espanhola “uma vitória” da sua política de “elevar a voz”, o verniz estalou finalmente. A nova ministra da Defesa espanhola, Margarita Robles, afirmou que Roma pode ter de enfrentar “responsabilidade penal” por ter violado a lei internacional ao recusar receber o navio. “Há um nível de cinismo e irresponsabilidade no comportamento do Governo italiano face a esta situação humanitária dramática”, afirmou aos jornalistas o porta-voz da presidência francesa, citando as palavras de Emmanuel Macron ao seu gabinete. Gabriel Attal, porta-voz do partido do Presidente francês, foi um pouco mais longe: “A posição italiana faz-me vomitar”. “Tem piada, vindo deles”, reagiu o vice-presidente Luigi Di Maio, parceiro de coligação de Salvini e líder do Movimento 5 Estrelas. “As declarações sobre o Aquarius vindas de França são surpreendentes e denunciam uma grave falta de informação sobre o que realmente se está a passar. Itália não pode aceitar lições hipócritas de países que em termos de imigração sempre preferiram olhar para o outro lado”, respondeu, em comunicado, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte. Já Salvini respondeu a todos de uma vez e numa só publicação no Twitter. “Espanha que quer denunciar, França diz que somos ‘repugnantes’. Quero trabalhar serenamente com todos, mas com um princípio: #ositalianosprimeiro”, escreveu, recuperando o slogan da campanha para as eleições legislativas de Março. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O apoio a Roma chegou de um país governado por um dos aliados da Liga, a Hungria. “Era tão deprimente ouvir durante anos que era impossível proteger as nossas fronteiras marítimas”, disse aos jornalistas o Presidente Viktor Órban. “A força de vontade regressou a Itália”. Posições aparentemente inconciliáveis a poucos dias da cimeira europeia de 28 e 29 de Junho, quando é esperado um acordo para uma política comum de imigração e refugiados. Entretanto, com o Aquarius ocupado na viagem até Espanha nos próximos dias, permanece apenas um navio de resgate gerido por uma ONG, a Sea Watch, na zona onde as embarcações vindas da Líbia costumam naufragar. Esta terça-feira, um navio da Marinha dos Estados Unidos localizou 12 cadáveres e resgatou 41 pessoas que tentavam a chegar a Itália. A ONG lamentou: “É isto que acontece se não há pessoal de resgate suficiente e não existe uma passagem segura”.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
A crise no Governo alemão nasceu na Baviera - porquê?
A crise política das últimas semanas na Alemanha nasceu na Baviera e na CSU, um dos partidos políticos com mais sucesso no mundo. (...)

A crise no Governo alemão nasceu na Baviera - porquê?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: A crise política das últimas semanas na Alemanha nasceu na Baviera e na CSU, um dos partidos políticos com mais sucesso no mundo.
TEXTO: Se perguntarem a alguém da Baviera como se define, é provável que a resposta seja primeiro bávaro, e só depois alemão. No resto da Alemanha, a Baviera também é vista como algo um pouco à parte, uma região de riqueza mas também de pessoas com os trajes tradicionais, homens de Lederhosen e mulheres de Dirndl, que são usados muito para além do festival de cerveja Oktoberfest. A Baviera é um estado federado especial na Alemanha e o seu principal partido, a CSU, tem um estatuto político único. Há mesmo quem diga que a verdadeira divisão no país é entre o Norte e o Sul (protestante/católico) e não entre a parte Ocidental e Oriental, separadas durante décadas pelo Muro. Daí que não seja totalmente espantoso que o mais recente conflito político no país tenha tido origem aqui. A Baviera tem eleições em Outubro, e a subida do partido anti-imigração AfD (Alternativa para a Alemanha) está a ameaçar a CSU (União Social Cristã), levando o partido a querer fortalecer-se na defesa da “lei e ordem” para não dar tanto o flanco à direita. Isto mesmo ameaçando um acordo de décadas com a CDU (União Democrata Cristã), da chanceler Angela Merkel. A CSU tem um estatuto hegemónico na Baviera como nenhum outro partido em nenhum outro estado federado. É mesmo considerada um dos partidos com mais sucesso do mundo: após o final da II Guerra, a CSU só ficou fora do governo uma vez, entre 1954 e 1957, liderando desde então o estado, a maior parte do tempo sem sequer ter a necessidade de formar uma coligação (de 1962 a 2008 governou sozinha). Parte do sucesso da CSU é o sucesso da Baviera, onde o slogan “Laptops e Lederhosen” mostra como a modernidade das empresas e a forte economia convive com a importância da tradição. É o segundo estado federado alemão em PIB e partilha com o vizinho Baden-Württemberg a mais baixa taxa de desemprego (3, 8% quando a média nacional alemã é 6, 3%). O que é, então, uma derrota para a CSU? O resultado de 43% das eleições de 2008 foi considerado muito mau. Foi, aliás, nessa altura que o partido decidiu que precisava de mais um líder carismático (como os históricos Franz Josef Strauss ou Edmund Stoiber), mesmo que arriscado pelo seu carácter algo imprevisível e pouco diplomata. Entrou então em cena Horst Seehofer – figura incontornável nos últimos dez anos, governador do estado até passar o cargo no ano passado numa disputa com o rival Markus Söder. Se a CSU tem este sucesso, parte deve-se ao seu acordo com a CDU. Logo após o final da II Guerra, a CDU juntou vários partidos em vários estados, mas a CSU preferiu ficar de fora. Assim, os dois têm um entendimento único em que nenhum concorre, ou faz campanha, no território do outro: a CDU em todos os estados federados excepto a Baviera, a CSU apenas na Baviera. Isto permite à CSU ser ao mesmo tempo um partido regional e nacional, mas apresentar-se como o defensor dos interesses bávaros. O seu slogan nas últimas eleições legislativas foi: “A Baviera em primeiro lugar” – a semelhança com o “America First” de Donald Trump não passou despercebida. A disputa recente tem muito a ver com isto: Horst Seehofer, o actual líder da CSU, sempre disse que a prioridade é a Baviera, e como ministro do Interior, o seu desentendimento com Merkel tinha como central uma medida a aplicar na fronteira entre a Baviera e a Áustria para fazer diminuir a entrada de requerentes de asilo (os que já estavam registados noutro país da União Europeia). Apesar desta medida dizer respeito a muito poucas pessoas – cinco por dia no máximo, admitiu o ministério em resposta a um pedido de informação do partido de esquerda Die Linke. Por outro lado, se a CSU defende os interesses locais, o partido não é só a variante regional da CDU: é um partido mais à direita. Franz Josef Strauss, durante muito tempo líder da CSU e que dá nome ao aeroporto de Munique, tinha como mantra que não poderia haver um partido legítimo à direita da CSU. A via mais centrista da chanceler alemã não é consensual nem na própria CDU (que não a desafiou abertamente enquanto Merkel era garantia de bons resultados eleitorais), e ainda menos na mais conservadora CSU. Alexander Dobrindt, o líder do grupo parlamentar da CSU no Parlamento, falou mesmo recentemente numa entrevista ao diário Die Welt na necessidade de uma “revolução conservadora” na Alemanha que se siga à “revolução das elites da esquerda”. A subida nas sondagens do partido AfD – primeiro anti-euro mas que virou para uma força xenófoba, anti-islão e de direita muito radical – fez soar os alarmes na Baviera. Com slogans de campanha como “Burqa? Preferimos burgunder” ou “Burqas? Preferimos biquinis” a AfD atacou mesmo à direita da CSU e jogou com um medo de “islamização” da sociedade. A CSU respondeu este ano com medidas como a obrigatoriedade de afixar crucifixos na maioria dos edifícios públicos. Universidades e teatros, potenciais rebeldes, foram excluídos, mas todos os restantes locais, de centros de emprego a hospitais, passando pelas esquadras de polícia, exibem agora o símbolo religioso. A CDU e a CSU têm uma longa história de entendimentos e desentendimentos, ainda que nunca nenhuma discórdia tão forte como a actual. Em 1976, Franz Josef Strauss tentou forçar a saída de Helmut Kohl numa tirada muito violenta, chamando-lhe totalmente incompetente e prevendo que este nunca venceria; seis anos mais tarde Kohl foi eleito e tornou-se mesmo o chanceler “eterno”: governou durante 16 anos, um recorde que Merkel, chanceler desde 2005, ainda não superou. Franz Josef Strauss ainda chegou a ser candidato a chanceler em 1980, a primeira vez que o candidato da CDU-CSU veio do partido bávaro, perdendo para o social-democrata Helmut Schmidt, que foi reeleito. A situação repetiu-se com o segundo e último candidato da CSU, Edmund Stoiber, que em 2002 não conseguiu bater o chanceler da altura, Gerhard Schröder. Caso a CSU decidisse acabar com o acordo de 1945 com a CDU, seria dos dois partidos, o que mais ficaria a perder: uma sondagem do instituto Forsa dizia que 54% dos eleitores da CSU na Baviera votariam CDU se tivessem esta opção. A CDU poderia obter 33% numa eleição no estado federado, segundo a mesma sondagem. Pior sinal para a CSU, na recente discórdia entre Merkel e Seehofer, 39% dos inquiridos disseram que o principal problema da Baviera era a CSU (mais do que os 30% que referiram os refugiados como principal problema). Alguns analistas disseram que Seehofer sabia que tinha os dias contados, e ainda que, quando caísse, queria arrastar Merkel com ele. Esta crise entre os dois partidos tem um lado de animosidade pessoal entre a impassível Merkel, cuja imagem de marca é a sua “pokerface” (nunca ninguém sabe o que pensa), e o desbragado Seehofer, que se define pela postura relaxada (e as farpas quer a aliados quer a inimigos). A relação entre Seehofer e Merkel não é especialmente boa há muito tempo. Ele já se demitiu por causa dela da vice-liderança parlamentar do partido em 2004, ainda era chanceler o social-democrata Gerhard Schröder e Merkel líder da oposição. Em 2016, os dois passaram meses a discordar sobre um limite máximo de entrada de refugiados no país, e mais recentemente, quando Seehofer assumiu o Ministério do Interior, sobre se o islão faz ou não parte da Alemanha. Nas últimas semanas, um novo ponto baixo. Seehofer terá dito que não consegue trabalhar com “aquela mulher”, e que Merkel só é chanceler por causa dele. Seehofer também não perdoou a Merkel a decisão de não fechar as fronteiras em 2015 quando muitos refugiados (na altura falava-se de um milhão, hoje sabe-se que o número foi 890 mil) entraram no país, e pior, de dizer que receberia todos os sírios que quisessem. A maioria das pessoas chegaram via Áustria à Baviera, onde foram recebidas por cidadãos que lhes deram as boas vindas nas estações de comboios. Mas a gestão dos refugiados foi complexa, muitos passaram meses a dormir em pavilhões desportivos escolares ou comunitários, grande parte do esforço foi feito graças ao envolvimento da sociedade civil, e o grande desafio passou de ser uma obrigação humanitária para se tornar um fardo, quer para muitos voluntários, quer para as autoridades. O espírito mudou, algo espelhado pela mudança também no diário mais vendido no país, o tablóide Bild, que passou de pró-refugiados (levou mesmo a cabo a campanha “nós ajudamos” em 2015) a crítico das ieias de Merkel: “Como a política está a falhar na crise dos refugiados”, escrevia em 2016. Logo a seguir a este volume de entradas, Merkel levou a cabo uma política de dificultar reunificações familiares de refugiados noutros locais (como a Grécia) e enviar de volta pessoas para o Afeganistão declarando-o um “país seguro” (em 2017 foram deportados 470 afegãos). Promoveu um acordo entre a UE e a Turquia, para que os refugiados não chegassem à Grécia, e muitos dos sírios no país receberam um estatuto de protecção secundária (ou seja temporária) e não de refugiado. A ideia era fazer diminuir drasticamente as chegadas à Alemanha, e resultou. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Mas esta é uma batalha pouco baseada em factos, e há, também, um problema de percepção. A criminalidade, por exemplo, baixou em 2017. Mas os poucos casos envolvendo refugiados ou requerentes de asilo (um atentado, uma violação, um assassínio) foram suficientes para deixar muitos a achar que foram ingénuos – são acusados de ser Gutmensch, “boa pessoa”, neste caso um termo pejorativo para os que são excessivamente bondosos por ingenuidade e para ganhar aprovação social pela sua benfeitoria, e normalmente também são “politicamente correctos”. Qualquer semelhança com discursos na América de Trump não são mera coincidência, e analistas criticaram fortemente Seehofer quando este disse recentemente que não era só na América de Donald Trump que havia “fake news”. Como dizia num artigo do New York Times Wolfgang Jirschik, presidente da câmara da pequena cidade de Baierbrunn, “não é preciso fazer com que a Baviera seja óptima outra vez [mais uma referência a um slogan de Donald Trump]. Já está óptima agora”. Mas o orgulho bávaro é particular dentro da Alemanha, notou ao jornal americano Klaus Reichold, historiador e especialista em folclore da Baviera. “O nacionalismo bávaro é tolerado desde 1945”, disse. “Pode-se ultrapassar o tabu alemão em relação ao nacionalismo sendo bávaro. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
O nosso corpo é aquilo que quisermos
Este domingo, em Serralves, vamos ver a artista e compositora Fatima Al Qadiri como nunca a vimos antes. No programa O Museu como Performance, apresenta Shaneera: o disco, a performance, a personagem. Uma party animal hipermaquilhada, através da qual questiona a performatividade de género e celebra a liberdade sexual. (...)

O nosso corpo é aquilo que quisermos
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Animais Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Este domingo, em Serralves, vamos ver a artista e compositora Fatima Al Qadiri como nunca a vimos antes. No programa O Museu como Performance, apresenta Shaneera: o disco, a performance, a personagem. Uma party animal hipermaquilhada, através da qual questiona a performatividade de género e celebra a liberdade sexual.
TEXTO: Foi no mínimo surpreendente, no máximo muito, muito bizarro, perceber que aquela pessoa hipermaquilhada na capa do último disco de Fatima Al Qadiri era a própria Fatima Al Qadiri. Batom amarelo-laranja, sombra prateada aplicada sem moderação, brilhantes do pescoço até à roupa. Olhar matador. Nunca a tínhamos visto assim, nunca a tínhamos sequer imaginado assim. Ela, provavelmente, também não. “É uma forma de extrema de feminilidade que eu evitei durante toda a minha vida”, diz ao Ípsilon a compositora, produtora de música electrónica e artista visual nascida no Senegal e criada no Kuwait, actualmente a viver em Berlim. “Gosto de vestir roupas de homem. Uso batom duas vezes por ano, máximo dos máximos [risos]. Foi uma transformação completa para mim. ”Esta transformação tem um nome: Shaneera, que é simultaneamente o alter ego femme diabólico e extravagante de Fatima Al Qadiri e o título do seu mais recente EP, lançado em 2017 pela Hyperdub, editora de Kode9 que alberga outros músicos altamente recomendáveis, como Burial, Laurel Halo e Jessy Lanza. É com este disco e com esta persona que a artista se apresenta no auditório do Museu de Serralves, este domingo às 22h30, no encerramento da quarta edição do programa O Museu como Performance. Vai ser muito diferente da sua última passagem por Portugal, em 2016, no Festival Neopop. Porque as coisas estão diferentes. Com este trabalho, Fatima Al Qadiri viu-se “pela primeira vez” como uma performer. “Sempre me vi enquanto compositora, nos bastidores. Agora estou a actuar, estou em palco. Foi preciso metade deste ano para perceber como fazer esta performance; como passar isto para uma coisa ao vivo. ”Fatima pôs “muito trabalho nisto” – incluindo horas e horas a ver tutoriais de maquilhagem – e “muita ansiedade”. Mas acabou tudo bem. “É tão diferente de tudo o que fiz antes e é muito desafiante psicologicamente, fisicamente e tecnicamente. ” Nunca a tínhamos visto assim, dizíamos, e também nunca a tínhamos ouvido assim: as cinco canções de Shaneera são verdadeiros bangers para a pista de dança, tiro e queda, povoadas por um hedonismo feérico e luciferino, sempre ondulante, sempre sinuoso. É volúpia que lateja nos cantos escuros de uma festa onde o relógio parou. É excentricidade e júbilo bem calibrados por “batidas ocidentais” (molda-se as batidas graníticas do grime e os socalcos do trap), “melodias árabes” com vozes a condizer e “instrumentos de percussão do Golfo [Pérsico]”, muitos deles associados à música khaleeji, mas sem pretensões de registo etnográfico (ela gosta de estar cá e lá, suspensa entre mundos). “Foi muito divertido fazer um disco totalmente para dançar. Acho que nunca tinha feito nada assim, e isso foi outro desafio técnico para mim”, assinala a autora. “Não há uma canção que seja mais calma. ” Isto é o espírito Shaneera a acontecer. “Ela tem montes de energia. É uma party animal do mal, sabes?”O termo Shaneera surgiu por brincadeira entre o grupo de amigos de Fatima Al Qadiri, no Kuwait. É uma pronunciação errada e anglicizada da palavra árabe "shanee’a", que significa “escandaloso, perverso, abominável”. Fatima e os amigos apropriaram-se deste termo e subverteram a carga negativa que lhe está associada, dando-lhe uma roupagem queer, benigna, celebratória. “Shaneera é uma personagem que é uma espécie de rainha malvada. É como um espírito do mal que te possui, mas da melhor maneira possível. Qualquer pessoa pode activar a Shaneera dentro de si. ” Apesar de a artista usar pronomes femininos quando se refere a Shaneera – sempre que pode, faz questão de “feminizar” a língua –, o termo refere-se, na verdade, a uma persona que desafia os padrões binários e naturalizados da identidade e da expressão de género, desestabilizando a cisheteronorma. “Tenho estado fascinada por esta persona há muito tempo”, revela Fatima. Essa “obsessão” (a primeira de muitas de que nos fala, sempre entre risadas generosas e piadas bem metidas) começou com os desenhos animados. “Muitos vilões são um bocado camp. São um bocado femininos, o que é super interessante. O exemplo mais presente na minha vida é o Jafar [de Aladino]. Ele é 100% Shaneera. A voz, o visual, o traço do desenho; todo o conjunto. ” Outra obsessão que levou Fatima a delinear este alter ego foi uma tendência de maquilhagem exagerada que fez furor entre muitas mulheres do Kuwait no início dos anos 2000 e que serviu de inspiração directa para o look da capa do disco e das performances. “Era a loucura”, recorda a artista. Estava em todo o lado, dos salões de cabeleireiro às ruas, até aos sectores mais burocráticos do país. “Nunca me vou esquecer daquela vez em que aterrei no aeroporto do Kuwait e em que mostrei o meu passaporte a uma agente do departamento de imigração que estava com este tipo de maquilhagem. Quase que me passei! Estava tão impressionada com o facto de ser ok uma pessoa que vê os passaportes poder estar assim. ”Enquanto no Ocidente este visual de feminilidade hiperbólica e performática é lido principalmente como uma manifestação algo transgressora característica das e dos drag queens, no Kuwait foi simplesmente o pão nosso de cada dia durante um determinado período – o que muito pertinentemente põe em causa definições hegemónicas que julgamos serem verdades absolutas (as heranças do colonialismo estão sempre ao virar da esquina). “Em árabe não temos a palavra 'drag'; o equivalente é draga. Para mim, a minha imagem na capa do disco não é sequer draga. É um feminino extremo”, afirma Fatima. Afinal, como diz a escritora e filósofa Judith Butler, o “género é performance”. “O drag é, na verdade, uma performance de género exagerada. Mas a performatividade extrema de género é, muitas vezes, a norma no Kuwait”, aponta Fatima. E, de outros modos, acaba também por ser a norma na imagética ligada às estrelas pop, nota a compositora, que representam tantas vezes “o derradeiro homem” e a “derradeira mulher” de forma profundamente essencialista e normativa. “A capa do meu disco também foi inspirada nas capas de álbuns das estrelas pop femininas, que são as mulheres mais mulheres que existem. No Ocidente começas a ver uma pequena revolução contra este binário, mas ainda é muito assim no mundo árabe. ”Todas as canções de Shaneera, o EP, são cantadas em árabe por vocalistas não-profissionais, amigos de Fatima Al Qadiri: Bobo Secret, Lama3an, Chaltham e Naygow. Um é arquitecto, outro trabalha nas finanças, a profissão de um deles tem de ficar no anonimato. À excepção de Chaltham, também conhecido por Khalid al Gharaballi, colaborador e cúmplice de longa data da artista, em duo e no colectivo GCC, todos usam nomes falsos – e ela diz-nos “que não pode falar muito sobre isso” para não os meter em sarilhos. Já bastaram os “muitos, mesmo muitos, comentários homofóbicos repugnantes” que se desenrolaram após o lançamento do disco. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. As letras, “meio improvisadas”, incluem material sacado de chats do Grindr (aplicação de encontros LGBT) e de sketches de comédia drag. Fatima queria ter feito um disco sexualmente ainda “mais gráfico”, mas teve de censurar algumas partes “obscenas” por respeito à mãe, que vive no Kuwait, para não lhe arranjar problemas. “Ela ouviu as letras e disse ‘nem pensar, minha menina!’. Não quero dar-te exemplos daquilo que cortei, vou deixar isso para a minha autobiografia [risos]. Ou para quando tiver cidadania de outro país. ”Fatima Al Qadiri sempre fez ecoar nos seus projectos as suas inquietações políticas. No álbum Brute (2016) explorava a questão da violência policial, inclusive contra o movimento Black Lives Matter, e o direito ao protesto. No EP Desert Strike (2012) processava as memórias da primeira Guerra do Golfo (1990-1991), que viu a partir da janela de casa quando tinha nove anos, enquanto se viciava em videojogos para manter alguma sanidade mental – ao mesmo tempo que “ficava obcecada” por um teclado Casio, com o qual começou a fazer música. Agora, Shaneera sacode a melancolia. É um de grito de resistência, afecto e celebração dirigido ao seu círculo de amigos – e, por arrasto, uma carta de amor às comunidades queer e não-binárias do mundo árabe, que vão ganhando cada vez mais espaço de manobra nas redes sociais. A canção Spiral e o respectivo vídeo – inspirados numa cena de dança do ventre excêntrica q. b. do filme Ayazon (2006), que se tornou “num hino queer não-oficial do mundo árabe” – funcionam como um resumo do “tema principal” do disco, diz Fatima. “Viver a vida ao máximo e estares a cagar-te para o que as pessoas pensam. ” Isto também é ser 100% Shaneera.
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Brasil. Vamos ser felizes só por teimosia
Duas semanas após a eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil olha para o que se passou. Há um poeta diz que é preciso saber chorar e o Brasil não chora. E há medo, há perplexidade, mas há sobretudo uma tristeza que atravessa escritores e intelectuais. Eles fizeram campanha contra o presidente eleito e perderam. Porquê? Aqui fala-se de um tempo de fim de ciclo. (...)

Brasil. Vamos ser felizes só por teimosia
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 6 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Duas semanas após a eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil olha para o que se passou. Há um poeta diz que é preciso saber chorar e o Brasil não chora. E há medo, há perplexidade, mas há sobretudo uma tristeza que atravessa escritores e intelectuais. Eles fizeram campanha contra o presidente eleito e perderam. Porquê? Aqui fala-se de um tempo de fim de ciclo.
TEXTO: Nicolas Behr leva o indicador direito aos lábios quando Chiquinho se aproxima da mesa com uma travessa na mão e conta que os dois costumavam escrever poemas. “Chiu!” Chiquinho finge que não ouve, que não vê. “Quer escutar? Assim: ‘Poetas e poetas, um dia eu vos poetarei’. ” Chiquinho é o dono do Beirute, um dos bares mais emblemáticos de Brasília, reduto de escritores, artistas, intelectuais. Fica na Asa Sul da cidade e cheio à hora de almoço num dia de muita chuva. Na placa, lê-se: “Beirute, desde 1966”. “Cheguei em 74”, diz Nicolas Behr, poeta, dono de um viveiro de plantas, brasileiro descendente de imigrantes alemães. Ele ri da suposta antiguidade do espaço onde é um cliente muito conhecido. Foi ali que conheceu a mulher com quem casou há 35 anos. Ela descia da bicicleta e ele disse-lhe “mais ou menos” um poema. “Era um bar da resistência. Brasília era então uma cidade muito pequena e tudo afluía aqui. Entretanto, a cidade cresceu, é mais dispersa, mas o Beirute continua mítico. E eu vendi muitos livrinhos de mão em mão aqui. Escrevia-os e fazia-os manualmente. ”Behr chegou a Brasília vindo de Cuiabá, cidade no estado do Mato Grosso. “A minha mãe veio trabalhar aqui. Fazia muito calor lá, sem grandes oportunidades. Eu tinha 15 anos. A cidade de Brasília não era a maravilha que é hoje. Não era arborizada. Eu saí do mato para viver numa maquete. Era uma cidade artificial. ”Conta que foi parar à poesia pela leitura, por estar num grupo de teatro e em movimentos muito politizados de cidadania estudantil. Foi preso duas vezes por participar em manifestações na Universidade de Brasília, em 1976 e 1977. Liam Maiakovski, Fernando Pessoa, viam filmes de Pasolini. “Pela primeira vez, uma geração de brasilienses, aqui nascidos ou não, assumiu a cidade. Nós amamos Brasília. Havia dança, música, poesia, literatura, filmes sobre Brasília. Isso foi importante para a afirmação da cidade”, conta, acrescentando que ainda seria preso uma terceira vez, em 1978, processado e levado a julgamento. A razão? “Por causa da poesia, dos livrinhos que eu fazia. Eles achavam que na minha casa havia uma central gráfica. Foram lá, não acharam e, como tinham de justificar a acção, processaram-me por posse de material pornográfico, uma coisa ridícula. Eu não tinha nada, mas diziam que os meus poemas eram pornográficos. ” Tinha acabado de fazer vinte anos. “As ditaduras são cobardes, medrosas e frágeis”, refere, a voz a tentar sobrepor-se a todas as outras vozes que, entretanto, transformaram o bar num imenso burburinho. Behr seria absolvido e tenta não mitificar esse passado. Pertence, simplesmente, à sua história. “Faço muitas palestras em escolas e os jovens tendem a ver os anos 1970 como uma época de glamour. Digo-lhes que não era bem assim, que se eles fizessem as perguntas que fazem nas escolas ia todo o mundo preso ou o director seria expulso. As pessoas ficam meio chocadas com isso, mas a gente tem sempre de desglamourizar o passado. ”Essa prisão foi há 40 anos. Nicolas Behr acaba de fazer 60 no momento em que o Brasil elege Jair Bolsonaro para a presidência do país. Para Behr e para muitos escritores, artistas, intelectuais é impossível não recuar a esse tempo. Este é um momento em que a memória surge de modo involuntário por necessidade de contextualizar o presente. Por isso, Behr vai à sua adolescência para dizer que está disposto a ser preso outra vez em nome da democracia. “Espero que não, mas se for preciso vou preso de novo. Sinto que é possível”, admite, “embora talvez seja só um bom alimento para a poesia”. Sorri. Tem um ar sereno; o tom é calmo; nos olhos, um misto de ironia e bonomia que os óculos de aros finos deixam passar. “Há um receio. Não se sabe”, continua, e afirma que não sente medo. “Na época tinha muito mais medo, não havia habeas corpus, podíamos ser presos sem mandato judicial. No novo regime não vai ser tão fácil, também não vai ser moleza, vai ser difícil; a gente também tem medo. As perspectivas não são boas, sobretudo quanto ao retrocesso de direitos adquiridos. Não sei porque é que o Brasil fez essa escolha. É uma escolha popular, mas é um retrocesso visível. ”Chiquinho traz uma travessa sem que ninguém tenha feito um pedido. “Não entendo a estratégia dele, traz esta comida para a mesa, não cobra, a gente come e não almoça!”, repara Behr, enquanto se serve, e serve quem está com ele, de carne com especiarias, arroz e farofa. Pede depois um arroz com lentilhas e cebola. Continua: “Nenhum regime, de esquerda ou de direita, gosta de poetas. Na Rússia foram maltratados por Estaline. Maiakovski foi quase forçado a se matar. Os poetas são imprevisíveis, uns chatos e não são a antena da raça. Não gosto desse conceito do Ezra Pound, acho uma bobagem. Mas o momento tem um lado muito interessante; é revelador de um Brasil que a gente não queria ver. ”Por exemplo, um Brasil que não sabe chorar. A ideia vem de outro poeta, Ricardo Aleixo, 58 anos, negro, de Minas Gerais. “Não sei bem por que motivo tendemos a ultrapassar as situações trágicas sem pranteá-las; atravessámos duas ditaduras e não as pranteámos Não choramos, vamos tocando o barco. Passámos pela escravidão negra, pela dizimação dos povos indígenas sem uma lágrima. ” A conversa também se faz à mesa, noutro bar associado à resistência, A Cantina do Lucas, um canto num edifício modernista no centro de Belo Horizonte, cidade de 1, 5 milhões de habitantes, onde Aleixo nasceu. Porque é que o Brasil não chora? “Talvez o Brasil seja muito macho”, responde. “Hoje podemos falar de uma certa naturalização da dor, do sofrimento, mas essa naturalização parece precedida de um esforço muito grande para corresponder às expectativas de sermos um povo feliz, um povo finalmente maduro, adulto. O país que se permite ser um país jovem, um país adolescente, tem um povo que tem de ser maduro e não chorar. É uma contradição. Uma das imagens emblemáticas da cultura brasileira contemporânea me parece ser o encontro de Darcy Ribeiro e Glauber Rocha [o antropólogo e escritor e o cineasta, exilados na ditadura militar] que passearam um dia os dois lamentado a sorte do Brasil. Poucos anos antes do Glauber morrer eles se abraçaram chorando o Brasil que não deu certo. Até tenho vontade de propor uma performance, de preferência em São Paulo, para chorar. Chorar o Brasil. É preciso chorar o Brasil. ”A conversa com Ricardo Aleixo acontece uma semana após a eleição de Bolsonaro. A de Nicolas Behr quase duas semanas depois do dia 28 de Outubro. Um dia que não surpreendeu nem um nem o outro no resultado que trouxe. “Como a minha tendência é ler o Brasil a partir da via negativa eu não esperava nada de diferente”, diz Ricardo Aleixo, voltando àquela noite que viveu no seu lugar de sempre: a casa. “Vivi aquela noite com uma percepção de que o abismo é muito maior. ” E dá o contexto pessoal. “Moro no bairro para onde fui com a minha família aos nove anos. Chama-se Campo Alegre. Esse nome é uma das muitas ironias do positivismo do Brasil. Veja, Campo Alegre, na cidade de Belo Horizonte, nas Minas Gerais!, tudo a apontar para riquezas. Mas o Campo Alegre é originalmente um lugar para onde foram 556 famílias entre pobres e miseráveis de Minas Gerais. Eu morava num bairro mais próximo do centro. O meu pai era baixo funcionário do Ministério da Agricultura e a ditadura militar criou, em 1969, um programa de casas populares. O meu bairro é o segundo conjunto habitacional criado em Minas. Hoje é um bairro de classe média com uma visão do mundo alterada o bastante para discriminar pessoas de bairros vizinhos. As pessoas têm muito medo das outras pessoas que moravam na favelinha. Então, a comemoração da vitória do Bolsonaro foi algo de horripilante. A minha casa fica num buraco, é uma caixa acústica. Além dos foguetes, o que mais me chocou foram os tiros, o cheiro de pólvora e sobretudo ouvir uma voz de criança de uns oito, nove anos, gritando "Ehhh Bolsnonaro!!!". Ricardo Aleixo volta às lágrimas, à falta delas, ao trauma. “Sabe, é como quando a mãe repreende uma criança apanhada a fazer algo errado e lhe diz, quando ela chora, para engolir o choro. Eu vivi numa família um pouco diferente, eu podia chorar, o meu pai chorava. De há uns anos para cá isso ficou ainda pior. Com o avanço das igrejas neo-pentecostais, o individualismo cresceu e a falta de perspectiva colectiva aumentou. É cada um por si, a meritocracia. Temos a tendência para continuar a viver a sobrevida de todos os dias, mesmo com a perda de direitos. . . A vitória de Bolsonaro, mas já antes a deposição de Dilma, parecem fruto desse imediatismo da sociedade brasileira, desse individualismo também, da falta de perspectiva colectiva, da falta de diálogo e isso tem muito a ver com as redes sociais, a possibilidade de todo o mundo dizer tudo o que quiser a qualquer momento sem mediação. E num contexto em que todo o mundo pode falar talvez ninguém possa porque ninguém ouve ninguém. ”Aleixo, como Behr, participam de um projecto chamado Artes da Palavra. É uma iniciativa do SESC, Serviço Social do Comércio, associação privada mantida pelos empresários do comércio que presta serviços ligados ao bem-estar, à educação, turismo e cultura dos familiares de funcionários do comércio como da população em geral. Tem um papel essencial junto dos grupos economicamente mais desfavorecidos de todo o Brasil. Após vencer as eleições, Jair Bolsonaro anunciou a intenção de impedir que o SESC canalize dinheiro para a cultura, o que causou espanto junto de grande parte da comunidade artística e intelectual. “Este ano já passei por 17 cidades em seis estados. Faltam quatro cidades no Rio Grande do Sul”, conta Ricardo Aleixo. “Não desperdicei nenhuma das apresentações para falar de como vejo o momento que atravessamos e que nos atravessa. A situação que vivi ao longo deste ano foi muito privilegiada, viajando para estar em lugares onde era esperado. Os meus livros já tratam das questões políticas e havia uma expectativa de que eu fosse falar dessas coisas. Como tinha um excedente de paciência porque venho sendo muito bem tratado, não tive nenhuma tensão na minha família, não soube de caso nenhum de pessoas pró-Bolsonaro, pude ter um armazenamento de energia e viver o meu luto pelo golpe [a destituição de Dilma Rousseff, em 2016], e a preparar-me para o pior. As pessoas perguntam como estou com a expectativa de que responda que estou mal como elas estão e eu digo: estou muito alegre. E estou muito alegre, mesmo. Acima de tudo porque sou alegre; a alegria é um valor para mim. Não tento disfarçar situações. ”É uma alegria que Ricardo Aleixo remete para a cosmovisão africana. “O meu ponto de vista sobre o mundo e sobre a sociedade brasileira em especial é o ponto de vista da população negra, de quem pensa que nem deveria estar aqui. Nós, negros brasileiros, tínhamos todas as razões para desistir. Quando a gente se muda para Campo Alegre, meu pai já era um pré-idoso, tinha mais 50 anos que eu e a minha mãe mais 42. Essa casa que, como a minha mãe falava, era em Campo Triste, porque não tinha pavimento, a luz falhava muito, andava-se quase um quilómetro para apanhar ónibus, era um horror — foi o único bem que meu pai e minha mãe conseguiram ter a vida inteira. É quando deixam de pagar o aluguer que conseguem realizar a entrada da minha única irmã na universidade, e é o que lhes permite aceitar a minha comunicação, aos 19 anos, que não queria mais estudar formalmente; iria ser um autodidata. A situação deles mudou tanto para melhor que puderem olhar com naturalidade a minha decisão. ‘Quero ser artista, quero ser escritor’, e a família toda trabalhou no sentido de eu poder vivenciar o meu sonho. Isso faz com que eu não tenha uma visão amarga da vida; negativa sim, do mundo, não da vida. ”Ricardo recorda então uma frase de Gramsci, a ideia de que não ter uma perspectiva negativa libera espaço na cabeça para ver o que não é ruim, o que não é derrota, o que é possibilidade. “Veja, demo-nos ao luxo de assistir passivamente à crise na Grécia como se nenhuma crise nos pudesse atacar! Essa crença de que somos um povo eleito, um país eleito, de que Deus é brasileiro! A minha posição pessoal é definida pela observação do deslocamento das pessoas negras pelo menos desde o início do século XX. O meu pai nasceu em 1911, 33 anos depois do acto técnico e administrativo que aboliu formalmente a escravidão no Brasil. Ele conheceu pessoas que foram escravizadas. O esforço dessas pessoas foi sempre o de tentar cooperar a partir do mínimo. É o que temos, cada dia é um dia em que você não morreu nem de fome nem de tristeza, naquele dia há mais uma chance. ” Daí, a alegria, “uma alegria mais importante do que a esperança, porque a esperança é devir enquanto que a alegria é aqui e agora. É a alegria, inclusive, de não ter morrido. É a alegria como graça. Estou alegre, isso ninguém me tira. Clarice Lispector tem uma frase parecida com isso que é: ‘vamos ser felizes só por teimosia’. Há muita gente querendo que nós nem saiamos mais de casa, que fiquemos só a lamentar o que nos foi tirado. ”Cita então a frase da líder camponesa Margarida Alves, assassinada em 1983 pelos latifundiários da Paraíba. “Uns dois anos de ela morrer perguntaram-lhe numa entrevista: ‘A senhora não tem medo de morrer assassinada pelos fazendeiros?’ E ela respondeu: ‘Medo nós tem, mas não usa’. O pobre é acostumado a não usar o medo que tem. ”Na outra mesa, noutro estado, o Estado Federal de Brasília, Nicolas Behr também decidiu cedo que não faria a universidade apesar de ter estado envolvido nos movimentos universitários. E também ele fala da queda do mito do Brasil enquanto país de samba, praia e futebol, o país alegre. “Descobrimos que somos um país conservador. Mas talvez seja um povo feliz, o que faz com que os políticos abusem muito. O Brasil é o país das grandes distorções”, afirma Behr quando outra voz se ouve na mesa. É a de Lúcia Helena Ribeiro, professora na Universidade de Brasília, especialista em literatura portuguesa, uma gaúcha descendente de portugueses, natural do Rio Grande do Sul e há 19 anos em Brasília. “Há uma grande falta de cidadania. ” Behr concorda. “Sim o brasileiro vota e acha que já fez a sua parte. ” Quanto ao envolvimento dos intelectuais na campanha, ao apelo que fizeram que que não surtiu o efeito desejado, o poeta afirma: “O escritor, o intelectual, não tem tanta importância mais, porque o livro também não faz parte do nosso dia-a-dia. Trinta por cento dos brasileiros nunca compraram um livro. ”Lúcia Helena fala da descredibilização das universidades junto da população. “Muitos vêem a universidade como um lugar de vagabundos, onde ninguém trabalha. Há uma campanha de demonização. Mas o intelectual também tem alguma culpa, separou-se do mundo enfiado nas suas pesquisas. ” Para Behr, “eles são não mais uma referência”. E acrescenta: “Hoje, os reverenciados são os formadores de opinião, os comentaristas, são eles que têm influência. Mas eu espero que a gente continue incomodando. ” Como se faz isso? “Escrevendo, publicando. ”Milton Hatoum, o autor de Dois Irmãos e Retrato de Um certo Oriente, amazonense de Manaus, filho de imigrantes libaneses, amigo de Behr que conheceu em Brasília, diz-nos, por sua vez: “Graciliano Ramos dizia, talvez com ironia, que as armas dos escritores são fracas: caneta e papel. Nossa voz é transmitida por um altifalante de baixa potência, cujo alcance é pequeno. Mesmo assim, vários escritores e escritoras manifestam-se em palestras, conferências, artigos na imprensa e nas redes sociais. ”Tarso de Melo, advogado, poeta, natural de Santo André, estado de São Paulo, onde nasceu há 41 anos, refere: “Os escritores podem escrever, claro, e actuar com outros escritores e, principalmente, unir-se a colectivos, formados por pessoas de diferentes áreas. Toda a forma de associação e solidariedade em que puder se engajar será muito importante a partir daqui, inclusive para aprender com as perspectivas de pessoas que não vivem no restrito circuito da literatura, da cultura, das artes. Na sua função específica, além disso, acho que cabe ao escritor rever criticamente a forma como se comunica, escrever cada vez mais com a consciência de que aquele fosso, dito acima, define a circulação e o alcance de seus textos, de suas ideias. ” Beatriz Bracher, 57 anos, outra escritora paulistana, tem um lamento. “O meu negócio é escrever e parece que escrever é a coisa mais inútil. ” Diz isto e emociona-se. “Tudo o que sei fazer não adianta nada. O que sei fazer não adianta para o que é preciso fazer. Não sei o que fazer”, emociona-se outra vez e a voz some-se. Como se não houvesse muito mais. “Um escritor pode escrever”, afirma simplesmente o carioca Bernardo Carvalho, 58 anos, autor dos romances Nove Noites ou Mongólia. A brevidade do comentário de Bernardo de Carvalho tem a ver com o dia em que a proferiu: o dia seguinte à eleição em que não escondia a tristeza. “O Brasil é um dos países mais hipócritas e contraditórios do mundo. O discurso do Bolsonaro se aproveita justamente disso. O discurso de artistas e pensadores tem pouca ressonância num país deseducado, de iletrados e analfabetos, para não falar na pobreza e na violência a que essa gente está sujeita. São mais de 200 milhões de habitantes. A tiragem média de um livro é de três mil exemplares. ” Sobre a espécie de descrédito dos intelectuais, diz ainda: “É normal que gente que vota à extrema-direita seja contra os intelectuais, não? Foi a mesma coisa nos Estados Unidos, com Trump. ” Diz que é preciso “tentar resistir como for possível”, e conta uma história pessoal de medo. “Horas antes do resultado do segundo turno, saindo de um restaurante nos Jardins [bairro de as cidade de São Paulo, onde o escritor vive] com o adesivo do Haddad na camisa, ouvi de um típico casal da burguesia paulistana, que passava na sua SUV: ‘Vai pra Venezuela, veado!’ O filho adolescente de um amigo foi ameaçado de morte por colegas de escola, uma escola frequentada por crianças da alta burguesia local, depois de ter participado da ocupação de um edifício no centro da cidade, com o movimento dos sem-tecto. É só o começo. ”Lúcia Helena também tem uma história para contar: “Uma menina foi espancada por sete alunos na universidade por andar de mão dada com outra menina. ” Behr ouve. Não há muito a dizer, apenas que o discurso de Bolsonaro “veio legitimar qualquer coisa que existia no subterrâneo brasileiro e não vinha à tona”. “Não vinha à tona por pudor, agora sentem que já podem. Já podem tudo porque se sentem protegidos pelo poder que aí vem. ”É o medo que impede outro escritor de se identificar. Ele tem medo. Também no dia seguinte às eleições diz: “Há um clima bastante tenso no ar. Parte do eleitorado do Bolsonaro já se sente dono do país, como se o resultado das urnas autorizasse uma série de actos de violência. Na noite de domingo, quando saiu o resultado da eleição, pessoas saíram armadas para a rua, para festejar a vitória; outras já se animavam a caçar petistas; negros e LGBT's começaram a ser perseguidos e provocados, e por aí vai. Ou seja, esses eleitores se sentiam acima de qualquer lei, alimentados pelo discurso de intolerância do novo presidente. Uma deputada recém-eleita do partido do presidente fez uma convocação na internet para que os estudantes filmassem as aulas dos professores universitários e as divulgassem, caso eles falassem sobre a eleição e criticassem o presidente eleito. Vários episódios isolados de violência foram surgindo aqui e ali no país. Hoje mesmo, no Congresso, os aliados do futuro presidente tentaram votar o projecto Escola Sem Partido, que busca amordaçar os professores em sala de aula, pois, na visão deles, os professores transformaram a sala de aula em espaço de doutrinação esquerdista; outro projecto que já foi colocado em pauta é a criminalização dos movimentos sociais, como MST e MSTS; o próprio Bolsonaro, em entrevista na televisão, atacou o jornal Folha de São Paulo, ameaçando cortar verbas publicitárias do seu futuro governo. Enfim, essas ameaças, esses ataques geram um clima de insegurança em relação a liberdade de imprensa a partir do próximo ano. Enfim, estou apenas relatando o clima geral. O país, que já estava tenso, está mais ainda. ”Noemi Jaffe, 56 anos, professora universitária, escritora, autora do livro O Que Os Cegos Estão Sonhando, descreve o actual momento como de dormência e perplexidade. “Há muita preocupação e angústia; a gente não sabe o que vai acontecer, as declarações de Bolsonaro são contraditórias. A equipa se contradiz muito. Será que as atitudes vão dar numa ditadura ou tudo será um pouquinho mais moderado? Mas mesmo no melhor cenário vão acontecer muitas perdas. ” Jaffe receia que a terceirização da sociedade, anunciada pelo novo presidente, leve a uma diminuição do desejo de frequentar a universidade, associada à intenção de privatizar o ensino superior. “As melhores universidades brasileiras são públicas”, salienta. “Mas a pior coisa em termos de projecto é o Escola Sem Partido [projecto de 2004 que pretende o que chamam uma escola sem doutrinação ideológica]. Isso é o fim, dá vontade de ir embora. Transforma professor e aluno em inimigos. É acabar com a educação. ” Lúcia Helena também fala desse temor e diz que não há ensino sem ideologia. Isso não significa que o professor doutrine os alunos. “No dia seguinte às eleições disse na minha aula: ‘Se alguém quiser gravar a minha aula vai ter de pagar porque eu sou cara’. ” Era a resposta a uma governante que pedia aos alunos que denunciassem, através de gravações por telemóvel, atitudes suspeitas de professores. Uma e outra professora não livram a esquerda de culpa. Lembram como Bolsonaro conseguiu atingir o brasileiro mediano para baixo, que está cansado de políticos e de violência. E Noemi sublinha o desprezo votado aos intelectuais. “A esquerda é muito marcada pela intelectualidade. O raciocínio das pessoas é: ‘Vocês teorizam, teorizam, mas não pegam duro’; é a ideia da esquerda caviar que despreza o povo. E não estão totalmente errados. A esquerda no Brasil são muitas esquerdas, mas dá para generalizar; ela se esvaziou, se desiludiu consigo mesma. Depois das manifestações de 2013 e da apropriação do que era da esquerda pela direita, a esquerda praticamente ficou anestesiada, olhando sem conseguir actuar. ” Quanto ao medo: “Estava com medo e agora não estou com tanto medo. Acho que não vai haver perseguições aos gays, por exemplo, mas vai ser uma coisa mais subtil e subliminar e quando a gente se der conta já perdeu muita coisa. Perdemos o essencial: os direitos sociais, a educação, a cultura. ”O medo, palavra repetida à exaustão. Um longo eco que atravessa o Brasil. O que quer dizer? Como pode levar à entropia? Que medo é este? “É preciso exorcizar o medo. Passei a minha juventude e parte da vida adulta sob a ditadura civil-militar, fui detido e fichado pelo DOPS [polícia política], mas nunca deixei de protestar contra um sistema opressor. Nessas eleições, quando me sentia angustiado ou acuado, lia poemas de Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, Sophia de Mello Breyner, Herberto Helder, Adonis, Wallace Stevens. A poesia é essencial ao espírito. Lia esses poetas e escrevia o segundo volume da trilogia O lugar Mais Sombrio. A escrita e a leitura me movem e comovem. Mas se for necessário ir às ruas e protestar, farei isto sem hesitar. E, sem hesitar, afirmo que os brasileiros elegeram o mais estúpido e ignorante presidente desta triste América. Esse capitão reformado é, sem dúvida, um homem bruto e oco, sem uma única qualidade ética e moral. Preferiram essa figura sinistra a Fernando Haddad, um professor competente e ex-prefeito de São Paulo. Além disso, Haddad foi um excelente ministro da Educação, sem dúvida o melhor deste país, cujo povo necessita exactamente disso: formação educacional de qualidade. ” É Milton Hatoum, triste, por reviver um passado que não queria ver ganhar corpo, outra vez. “Há uma geração muito derrotada, muito triste, uma geração que não queria passar por tudo isto outra vez”, refere Rodrigo Lacerda. “Ponho-me no lugar deles e tento imaginar. Se eu estou triste, como estarão os que sofreram na ditadura militar e agora não sabem o que aí vem?”Na ressaca da eleição, Julián Fuks sentiu a urgência de escrever. O escritor de São Paulo, autor de A Resistência, publicou um artigo no jornal britânico The Guardian onde contava o exílio dos avôs, judeus que saíram da Roménia na II Guerra Mundial devido ao anti-semitismo nazi, e depois o dos pais, que fugiram da Argentina na ditadura. Será que era agora a vez dele?, interrogava-se. “O escritor talvez não possa muito num contexto como esse. O escritor pode não mais do que qualquer outro cidadão num contexto como esse. Trava a sua batalha na esfera individual na maior parte dos casos, mas penso que tem a seu favor uma ferramenta fundamental, em particular num país que tem combatido tanto o pensamento, a palavra e a cultura de uma maneira geral. O escritor tem ao seu dispor o seu discurso, as suas palavras, a sua razão e me parece que são armas importantes neste momento. São as únicas armas viáveis e aceitáveis no momento em que o outro lado defende clamorosamente a manipulação e a distribuição de armas literais. Neste momento, o escritor só tem ao seu dispor a sua palavra e com ela pode ter bastante alcance, acredito. ”Milton Hatoum mostra um misto de cansaço e de vontade de não se acomodar. Nunca. Falou muito, escreveu muito, fez campanhas, manifestos. Como Julián Fuks ou outro escritor, Nuno Ramos. Não queriam Bolsonaro em Brasília. Mas o povo quis. Contra os intelectuais, contra toda a argumentação dos escritores. “Uma grande parte direita brasileira e certamente todos os extremistas desprezam ou até mesmo odeiam intelectuais e artistas. São pessoas a que se refere Virginia Woolf no Mrs. Dalloway, uma personagem ‘que vinha da mais imprestável das classes – a dos ricos com verniz de cultura’. No Brasil há poucos verdadeiros liberais (da direita liberal) como se vê em Portugal e em outros países da Europa. Li declarações de jornalistas e políticos da direita portuguesa. Todos criticavam a atitude fascista do capitão [Bolsonaro]. Senti inveja dessa direita”, refere Hatoum. Julián Fuks, sobre isto, diz: “Acho que há um pensamento fortemente anti-intelectual nos tempos recentes, já que essa aliança entre intelectuais e operariado no PT resultou em algo que boa parte da população agora rechaça. O que a gente vê é isso, o pensamento de esquerda e o pensamento académico também sofrem de uma queda de autoridade. E nos casos mais extremos isso se manifesta como perseguição ao próprio pensamento académico e evidente perseguição à esquerda. Nas vésperas das eleições, a gente viu uma investida jurídico-policial nas universidades para que não houvesse troca de ideias, para que não houvesse actos políticos, debates ou pronunciamentos. É uma coisa muito assustadora ver nas universidades esse anti-intelectualismo ganhando corpo de forma bem radical. Dá para ver que essa vai ser uma das fronteiras do confronto, vai ser uma das linhas de frente da defesa da liberdade de cátedra, da liberdade de pronunciamento contra, inclusive, essa noção de escola sem partido, de universidade sem partido, de uma suposta supressão da ideologia nesses espaços quando a gente sabe que essa própria supressão já é por si mesma ideológica. ”Que desafios, então, se põem neste momento ao país? Milton Hatoum responde: “O maior desafio é defender a democracia e a Constituição de 1988. Bolsonaro tomará posse em Janeiro, mas há inúmeros casos graves, verdadeiros atentados à democracia. Em Outubro, um líder sindical e dois eleitores de Fernando Haddad foram assassinados por apoiantes do capitão. Houve e ainda há agressões verbais e físicas contra professores, jornalistas, intelectuais e artistas. Vários campus universitários foram invadidos pela polícia. Há todo o tipo de violação ao estado de direito. E isto não se limita a pessoas ligadas à cultura. Além disso, a floresta amazónica e o cerrado podem ser devastados. É uma tragédia para o meio ambiente e para os povos indígenas. ”Outro desalento. Parece o sintoma comum a todos os escritores. “Nunca pensei assistir a essa crise”, afirma Rodrigo Lacerda, editor, escritor, 49 anos, natural do Rio de Janeiro, a viver em São Paulo, autor do romance Outra Vida. “Era uma crise que ameaça estourar de novo desde a destituição de Dilma Rousseff, há dois anos. O Brasil é como um ex-alcoólico, ele não pode tomar o primeiro copo de whisky ou amanhece três dias depois em Maceió. ” É outra conversa à mesa, num restaurante do centro de São Paulo, onde o escritor traça, também ele, um paralelo entre a crise profunda no mercado editorial brasileiro e o estado actual de um Brasil que escolhe alguém como Bolsonaro, por mais que esse Brasil esteja cansado da insegurança, da corrupção, do crime, da pobreza. “É preciso que o centro-esquerda e a esquerda façam uma auto-crítica. Não estamos aqui por acaso”, afirma. Beatriz Bracher vai mais longe nessa ideia: “Não houve um compromisso de esquerda, ou centro-esquerda, um acordo. Cada partido quis cuidar de si e a gente é que está tramado. Sinto-me traída pelo centro-esquerda. ”Maria Esther Maciel, professora, escritora, ensaísta também não esconde a angústia. “O momento é assustador. Nunca pensei que pudesse viver algo assim no meu país: a eleição de um presidente truculento, sustentado por fundamentalistas religiosos, que ameaça as minorias, faz apologia das armas e da tortura, é avesso a práticas ambientalistas e defende o desmatamento da Amazónia, em nome do ‘progresso’ económico. Temo pelas minorias raciais, sexuais, culturais. Temo pelos pobres. Temo pela cultura, pela educação, pela pesquisa. É o momento sombrio de um país à beira do precipício. ” É um temor semelhante ao que sente Beatriz Bracher que enumera uma série de iniciativas e de ONG’s a trabalhar no Brasil em defesa dessas minorias, ou, como também prefere dizer, dos mais vulneráveis. Com Noemi e com Esther Maciel, também refere o fosso entre elites intelectuais e o resto da população. É Esther quem sintetiza: “Infelizmente, a ignorância – seja a decorrente da falta de investimentos na educação, seja a estimulada por grupos religiosos e pelos meios de comunicação — venceu o esforço que muitos escritores, artistas, intelectuais e cientistas fizeram para impedir o avanço dessa extrema-direita no Brasil. Houve também o ódio ao ‘petismo’ que cegou grande parte dessas pessoas para os perigos da eleição de Bolsonaro. Certamente, os escândalos de corrupção amplamente divulgados pelos media contribuíram para isso, assim como o ódio e a intolerância. Soma-se a isso a campanha suja das fake news que confundiu muita gente. ”E a literatura clama pela literatura. “A certa altura do processo eleitoral, lembrei-me muito do romance de Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. Tem tudo a ver com o que acontece no Brasil hoje”, diz ainda Maria Esther Maciel, 55 anos, natural de Patos de Minas, cidade a noroeste de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais, que lembra, como durante a campanha eleitoral, os grupos reacionários se empenharam a disseminar a palavra “comunista” para designar artistas, escritores e professores. Maciel diz ainda que a partir de agora é preciso “exercitar, mais do que nunca, os poderes da imaginação e dos sentidos, para que a vida seja possível”. Ou seja, “munir-se de um pouco de utopia para enfrentar as grandes e pequenas violências que assolam a realidade presente; empenhar-se a mostrar o aqui/agora do mundo fora dos enquadramentos; ou, parafraseando Sophia, apreender a não ceder aos desastres. Ela disse ‘sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’. ”Todos, sem excepção, falam do fosso entre escritores e população. Como Milton Hatoum, que lhe acrescenta um “mas”: “Mas não podemos esquecer que muitos eleitores ‘escolarizados’ e ‘diplomados’ votaram em Bolsonaro. São pessoas ingénuas, sem discernimento político, sem a compreensão do processo histórico. Mas entre esses diplomados há também muitos oportunistas, gente que não quer perder privilégios. Por exemplo, Bolsonaro foi o único deputado que votou contra o PEC das Domésticas [nome popular dado à Proposta de Emenda à Constituição n. ° 66 de 2012 que dá novos direitos às empregadas domésticas no Brasil]. Muitos brasileiros abastados, acostumados à boa vida, querem manter empregadas mal remuneradas, sem direitos sociais e trabalhistas. Na minha infância em Manaus, muitas empregadas trabalhavam sem receber salário e eram humilhadas pelas patroas. Eram as ‘agregadas’ das famílias burguesas, personagens que aparecem nos romances de Machado de Assis e de outros escritores daquela época. Sob vários aspectos, o Brasil ainda não saiu do século XIX. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O tom de Rodrigo Lacerda traz uma serenidade triste: “Desde a redemocratização o Brasil, aos trancos e barrancos teve avanços, conseguiu travar a inflação, estabilizar a economia, que era básico para tudo o resto poder acontecer. Sobretudo no período de Fernando Henrique Cardoso e na primeira metade do governo Lula esses avanços foram sensíveis para a população. Mas depois o Brasil se acomodou e dormiu nos próprios louros e essa paralisia institucional acabou por comprometer os bons resultados. A constatação de que o bom momento tinha passado e que a gente não tinha aproveitado para fazer algumas reformas importantes, como a legislação trabalhista, que é dos anos 40, virou num jogo de culpabilização mútua e tomou uma forma que não tinha antes. A passagem do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Lula foi uma verdadeira passagem democrática, chamada festa da democracia. O Brasil teve o gostinho do que é viver uma transição de uma maneira civilizada. Mesmo pessoas que não votaram no Lula estavam felizes. Parecia que o Brasil tinha aprendido o que era democracia. Um trabalhador podia ser eleito presidente da República. Mas isso se desmoronou nos últimos anos. O fosso foi-se reabrindo. E agora estamos assim. É muito triste. ”Da mesa do restaurante de São Paulo, ainda em Outubro, ainda na ressaca mais dura, passamos para a mesa do bar em Belo Horizonte, já Novembro, outra maneira de sentir a mesma derrota. Estamos outra vez com Ricardo Aleixo num reduto de resistência. Olham-se os rostos à volta, há todas as gerações, homens e mulheres. Conversam, comem, bebem uma cerveja, uma cachaça. Os empregados de mesa parecem conhecer toda a gente. Pergunta-se a Aleixo se ali alguém votou Bolsonaro. “O dono”, responde. “Descobri o noutro dia. ” Aponta para uma fotografia na parede. “Aquele homem ali. É o senhor Olímpio, muito famoso aqui. Ele usava no peito uma tarjeta do Partido Comunista em plena ditadura. Ajudou a esconder muita gente. Este lugar foi aberto em 1962”, conta, num momento de grande vigor crítico ligado ao cinema. “Este era um dos pontos de encontro de gente como Silviano Santiago, Sérgio Sant'Ana, os músicos; o primeiro trabalho de Milton Nascimento foi aqui num bar chamado Lua Nova. Este lugar é memória viva. O senhor Olímpio tinha um modo muito próprio de lidar com a clientela. É um lugar de memória da resistência contra a ditadura militar. Caetano Veloso lançou aqui o livro Alegria Alegria. Tudo aqui está marcado pela arte e pela cultura. Ironicamente. . . o dono votou Bolsonaro. Eu continuo a vir aqui como resistência e como provocação. . . ” Muda de assunto. Aquele incomoda-o. “É hora de ser maduro. E não cometer um pecado típico do Brasil: deixar para as novas gerações a tarefa de reconstrução. A geração de hoje é feita de todos os que estão vivos hoje. ”
REFERÊNCIAS:
Como é que um artista representa um país de que não gosta?
Na Bienal de Arte de Veneza, os pavilhões dos EUA, do Brasil e da Suíça fazem-nos reflectir sobre as políticas culturais por trás das representações nacionais. Em conflito ou em consonância, os artistas cruzam-se com as identidades e mitologias dos seus países. E também fazem política. (...)

Como é que um artista representa um país de que não gosta?
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-05-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Bienal de Arte de Veneza, os pavilhões dos EUA, do Brasil e da Suíça fazem-nos reflectir sobre as políticas culturais por trás das representações nacionais. Em conflito ou em consonância, os artistas cruzam-se com as identidades e mitologias dos seus países. E também fazem política.
TEXTO: Mark Bradford, o artista norte-americano que representa os Estados Unidos na Bienal de Arte de Veneza, é como Scarlett O’Hara no filme E Tudo o Vento Levou. Apesar de lhe parecer tudo cada vez mais negro, há que ser optimista: Tomorrow Is Another Day, a última deixa do filme pronunciada por Scarlett quando o seu mundo acaba de colapsar, dá o título à exposição que um dos mais aclamados pintores norte-americanos apresenta nos Giardini, o parque de Veneza onde se encontra a maioria dos pavilhões nacionais. Depois das filas no exterior que fazem do pavilhão americano um dos mais concorridos desta bienal que abriu na semana passada em Itália, Bradford faz-nos entrar pela porta de serviço porque quer evitar a todo o custo o pórtico neoclássico que dá acesso a uma arquitectura de poder que evoca a Monticello de Thomas Jefferson ou a Casa Branca de Donald Trump. Começamos então por encontrar uma grande escultura-pintura, uma espécie de cogumelo invasor e disforme, nascido do tecto, que nos empurra para as margens e nos obriga a circular colados às paredes da galeria. Entre a pintura feita de colagens, descortinamos restos da palavra “imigrante”, só identificada entre tantas rasuras porque conhecemos o lado activista do artista, as suas preocupações com os marginalizados, os vulneráveis, nomeadamente o seu trabalho social com as populações prisionais e a sua revolta contra a situação política actual. Na sala seguinte, está o Mark Bradford mais clássico, com as suas grandes pinturas abstractas que integram técnicas de colagem, mas mesmo assim serão as mais negras até à data. Regressam também a temas antigos e espelham o início da vida do artista, quando trabalhava no cabeleireiro da mãe rodeado de mulheres negras como ela, incorporando os papelotes usados no salão para fazer permanentes. Ao centro, está outra escultura, desta vez uma furiosa Medusa, feita de tiras de papel negro, que Bradford mancha de amarelo, lavando-o com lixívia, numa das muitas alusões da exposição à mitologia clássica – mas que também não está longe de uma despenteada cabeleira de rastas. Esta Medusa que transforma aqueles que olham para ela em pedra não é porém a parte mais política de Tomorrow Is Another Day. Temos de chegar à famosa Rotunda do pavilhão americano – por onde se faz normalmente a entrada – para nos depararmos com o lado mais afirmativamente desesperado e melancólico da exposição: numa obra intitulada O Regresso de Saturno, alusiva ao deus do tempo, Bradford desfaz a cúpula por cima das nossas cabeças através de um “desenho arquitectural”, como lhe chama no desdobrável distribuído aos visitantes. Depois de ter coberto de papel negro esta zona da Casa Branca, como gosta de chamar ao pavilhão, volta a cobri-la com uma nova camada branca, desta vez um pouco transparente, para deixar os braços da Medusa regressarem e colarem-se às formas arquitectónicas, transformando o espaço numa ruína com a ajuda de Saturno. À sua maneira, Bradford refaz a Casa Branca e acerta contas com Trump, o presidente que chegou subitamente no último Inverno: “Quis que a sentissem como uma ruína, como se fôssemos a um edifício governamental e começássemos a abanar a rotunda e reboco começasse a cair. A nossa fúria fez o reboco cair das paredes. ” Ao New York Times, na mesma entrevista, expressou aquilo que o fez chegar aqui: como é que um artista negro, gay, que se afirma como “um intelectual liberal e progressista”, pode representar os Estados Unidos no estrangeiro quando já não se sente representado pelo seu governo? “Senti que muitos dos progressos que fizemos para sermos inclusivos, para termos a certeza de que os miúdos transexuais se sentiam seguros, desapareceram num ápice. Fazer este corpo de trabalho tornou-se muito, muito emotivo para mim. Senti-me a fazê-lo numa casa que estava a arder. ”É na sala seguinte que chega o dia seguinte mais optimista. Com a renovação da tradição da pintura abstracta, Mark Bradford quer mostrar “através da alquimia da esperança”, lê-se no desdobrável, “que haverá dor, mas também beleza”. Com esta série de pinturas em que não usa tintas ou pincéis, mas apenas a manipulação do papel, o artista constrói grandes baixos-relevos orgânicos, atirando papel molhado contra o suporte e prensando-o para obter a superfície mais plana a que chamamos convencionalmente pintura. Se no pavilhão dos Estados Unidos sentimos a tensão entre o artista e o país que representa, num desencontro que era imprevisível na altura em que o artista foi convidado, no da Suíça o tema é a reflexão que uma bienal composta na sua grande parte por representações nacionais pode suscitar em torno das políticas culturais e dos conceitos de identidade nacional. Mulheres de Veneza é dedicado à ausência, mal conhecida, de Alberto Giacometti (1901-1966) na história das exposições do pavilhão. Quando já passaram 50 anos sobre a sua morte, o país explora o facto de o grande artista suíço ter-se sempre recusado a expor no pavilhão nacional, mesmo depois de o seu irmão, o arquitecto Bruno Giacometti, ter construído o edifício em 1952. Giacometti via-se como um artista internacional ou transnacional e só em 1956 aceitou expor no pavilhão do seu país de adopção, a França, seis esculturas exactamente intituladas Mulheres de Veneza (o grupo pode ser visto agora na grande retrospectiva da Tate Modern dedicada ao artista). Quatro anos antes de morrer, acabou por responder positivamente ao convite da direcção da bienal e expôs no pavilhão internacional. Foi então que a Bienal de Veneza lhe deu o grande prémio de escultura. É nos trabalhos da dupla Teresa Hubbard/Alexander Birchler (há outros de Carol Bove) que a ausência de Giacometti é trabalhada de uma forma mais inquietante e comovente. O duo de artistas suíço-americano, num filme intitulado Flora, vai à procura do papel da artista norte-americana Flora Mayo na vida de Giacometti – uma amante dos tempos de estudante na Paris de 1920 que os biógrafos do artista não mencionam ou falam de raspão. Entre o documentário e a ficção, o filme reinventa a vida e a obra de Mayo, dando voz à artista já morta e a David, um filho até hoje desconhecido, numa conversa entre mãe e filho. Ao lado da grande sala onde se pode ver o filme num ecrã que passa a imagem na frente e no verso, Teresa Hubbard/Alexander Birchler refazem um busto do escultor moldado pela artista, uma obra que só se conhecia através de uma velha fotografia em que aparecem também Alberto e Flora. Flora, cuja família entra na falência em 1929, é obrigada a regressar à América e desaparece no anonimato. Mais do que uma homenagem – não há uma única obra original que possa contrariar a vontade expressa pelo artista em vida de não expor aqui –, Mulheres de Veneza é uma reflexão sobre a ausência e a invisibilidade, não só de Giacometti, mas das mulheres artistas na história da arte. Num almoço-performance nos Giardini a que assistimos em parte, o brasileiro Paulo Bruscky – que este ano terá uma retrospectiva no Pompidou e cujo trabalho inspirou o mote desta bienal, Viva Arte Viva, comissariada pela francesa Christine Macel – questionava também a noção de pavilhão nacional e lembrava que há 40 anos, quando expôs pela primeira vez na biennale, foi exactamente a convite do Pavilhão da Suíça, num gesto considerado heterodoxo na época. “Julgo que terá sido a primeira vez que um pavilhão nacional convidou artistas estrangeiros para expor”, contou aos outros convivas, explicando que o convite aconteceu no âmbito do movimento Fluxus, que nos anos 60-70 se declarou contra o objecto artístico como mercadoria. Bruscky faz parte dos 120 artistas de 50 países escolhidos directamente por Christine Macel, que é também conservadora-chefe do Centre Pompidou de Paris, para mostrar o seu trabalho na exposição transnacional, espalhada por nove pavilhões entre os Giardini e o Arsenale. No almoço, Bruscky mostrou os seus “poemas linguísticos”, feitos através de lambidelas coloridas em papel, criando poesia numa linguagem universal. “Fico feliz de estar no pavilhão internacional desta bienal, porque me recuso a representar o Brasil neste momento”, relataram mais tarde os media brasileiros. “Eu me recusaria a representar um país que acaba de passar por um golpe, com os militares apoiando o governo. Isso é uma coisa vergonhosa. ”De mãos dadas com outros visitantes, cantando numa língua incompreensível, estamos a sentir-nos um pouco hippies no Pavilhão dos Xamãs, um dos nove da exposição internacional. Seguimos o fluxo da multidão e acabámos dentro da escultura-instalação de Ernesto Neto, um dos mais relevantes artistas brasileiros da actualidade, que atrai jornalistas, câmaras de televisão e visitantes à sua colorida tenda de croché. Ernesto Neto pede para nos juntarmos numa roda quando começa a cerimónia indígena da cultura huni kuin, conduzida pelos índios com que o artista chegou à bienal. Já tinha falado aos visitantes dos poderes do ayahuasca, um chá alucinogénico que é permitido usar nas cerimónias religiosas e a que os huni kuin chamam nixi pae. “Nixi pae não é nada de droga, nunca matou ninguém. Ajuda as pessoas a receberem o conhecimento. Tem cantoria para curar, para chamar, para gerar a visão. Dentro das cantorias fala toda a parte da natureza. Fala o rio, fala a floresta…”, diz o artista em inglês, dando voz ao líder espiritual Siã Txaná Huibai, que identificamos facilmente por usar o toucado de penas maior, e que fala em português. Com a estadia em Veneza, o objectivo do líder religioso e de Ninawa Inu Huni Kui, presidente da Federação do Povo Huni Kui do Estado do Acre, é acelerar “o processo de auto-afirmação da tradição”: "Manter a nossa cultura viva, o nosso território preservado, fazer a expansão da nossa espiritualidade e [conseguirmos] nos auto-representar. "Com Neto, “um irmão que os tem ajudado a sobreviver”, planeiam mesmo elaborar uma “carta em defesa dos povos indígenas” e levar os outros artistas da bienal a assiná-la. “A exposição do artista Ernesto trouxe-nos a nós, um dos 305 povos que temos no Brasil ainda, mas as outras nações vão ficar também muito felizes”, explica ao PÚBLICO Ninawa Inu, que quer dizer “homem da floresta”. Se à primeira vista o trabalho de Ernesto Neto não mudou muito, continuando a apresentar uma dimensão lúdica, é inegável a sua tensão política quando se fala da preservação da floresta amazónica contra a pressão do agronegócio. O “irmão” Ernesto, que seguiu o seu caminho para outras entrevistas, chegou junto da comunidade huni kuin há três anos, altura em que “conectou com a jibóia” e estabeleceu com os indígenas “esta parceria contra a despossessão da terra”. Mesmo ao lado, podemos entrever o trabalho da única artista portuguesa representada na exposição comissariada por Christine Macel, Leonor Antunes, que ocupa o corredor central de uma das duas salas do Pavilhão da Tradição, também com uma grande escultura-instalação. A estes dois pavilhões, há a acrescentar outros capítulos, como o Pavilhão Dionisíaco ou o Pavilhão das Cores, numa curadoria feita a pensar nos artistas e nas suas práticas, segundo Christine Macel, e com uma mensagem que não põe o político no centro, ao contrário da bienal anterior. O Leão de Ouro da Bienal de Veneza para a melhor participação nacional foi atribuído à artista Anne Imhof e ao Pavilhão de Alemanha, cuja arquitectura fascista foi cercada com uma vedação anti-motim. Com um sabor sadomasoquista, o pavilhão só está completo à hora das performances. Não deixa de ser vertiginoso quando pisamos o vidro transformado em chão que substitui o pavimento agora elevado a 95 centímetros de altura, dando outra escala ao pavilhão, e imaginamos alguns performers presos debaixo dos nossos pés. Foi também para a Alemanha o prémio para o melhor artista da exposição internacional: Franz Erhard Walther e as suas esculturas em pano feitas para serem vestidas (tem uma antológica neste momento no Museu Rainha Sofia em Madrid, comissariada por João Fernandes). O Pavilhão do Brasil, com uma intervenção de Cinthia Marcelle, recebeu uma menção honrosa por um trabalho intitulado Chão de Caça, que tal como no espaço alemão altera a arquitectura original do pavilhão, criando um plano inclinado sobre o pavimento, onde se vão aprisionando pedras que a artista recolheu nos Giardini. O júri da bienal, presidido este ano pelo director do Museu Rainha Sofia, o espanhol Manuel Borja-Villel, justificou o prémio por a instalação criar “um espaço enigmático e instável, que não nos deixa sentir em segurança”, “afrontando a problemática da sociedade brasileira contemporânea”. Se depois do prémio, e no seguimento das declarações de Bruscky, Cinthia Marcelle não quis fazer comentários à situação política do Brasil, a artista, citada pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo, reconheceu que lhe passou pela cabeça recusar o convite para representar o seu país: “Não sou uma pessoa de muitos verbos, por isso trabalho com artes plásticas. A obra já diz tudo, só não vê quem não quer. Esse é o poder político da arte, que é um campo em acção. ” O jornal relatou que antes de abandonar a cerimónia dos prémios Marcelle recomendou rasgar a página do catálogo em que aparece o nome do presidente Michel Temer. Mas nem só de identidades que podem ser negativas vive o confronto em Veneza. A Finlândia mostra uma irreverente instalação de Nathaniel Mellors e Erkka Nissien, composta por um vídeo e uma escultura-animação, intitulada Os Nativos de Aalto, no pavilhão feito pelo próprio arquitecto Alvar Aalto (1898-1976). Os artistas abordam os clichés à volta da história da Finlândia e da identidade nacional, ao mesmo tempo que exploram temas que vão do nacionalismo à xenofobia. Toda a narrativa é mostrada num espaço feito por um dos heróis da arquitectura moderna, propondo também uma reflexão indirecta sobre a força e a sombra que estas figuras exercem sobre as gerações seguintes, criando as suas próprias mitologias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os Nativos de Aalto acaba por fazer ressonância no pavilhão português, que tal como na Bienal de Arquitectura de Veneza do ano passado regressa à ilha da Giudecca, situada mesmo em frente à praça de São Marcos, e a que se acede de vaporetto. José Pedro Croft foi o artista escolhido para representar oficialmente Portugal, com seis esculturas monumentais que usam a métrica de um edifício de Álvaro Siza (que tem em Aalto um dos seus heróis) actualmente em fase de conclusão. Feitas de vidro colorido e espelhado, as esculturas de Croft reflectem o ambiente que as envolve e propõem-se como um mediador entre o nosso corpo e a arquitectura. Partem de Siza e contribuem para a mitologia do grande arquitecto português, afinal a figura com mais projecção da arte nacional. O PÚBLICO viajou a convite da Swatch
REFERÊNCIAS:
Em Nova Iorque, com os velhotes de Ira Sachs
Dois anos depois da sua estreia internacional, Love Is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha chega finalmente às salas portuguesas. Um melodrama moderno à sombra de Ozu, McCarey e Renoir, como explica Ira Sachs, realizador que sabe que o mercado não é seu amigo. (...)

Em Nova Iorque, com os velhotes de Ira Sachs
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.118
DATA: 2016-05-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20160531194747/http://publico.pt/1732613
SUMÁRIO: Dois anos depois da sua estreia internacional, Love Is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha chega finalmente às salas portuguesas. Um melodrama moderno à sombra de Ozu, McCarey e Renoir, como explica Ira Sachs, realizador que sabe que o mercado não é seu amigo.
TEXTO: Invoquemos, em primeiro lugar, o sagrado nome de Yasujiro Ozu e das suas discretas miniaturas sobre os pequenos nadas quotidianos que fazem uma vida. Invoquemos, em segundo lugar, um melodrama de Leo McCarey realizado em 1937 desde o interior do studio-system americano, Make Way for Tomorrow, que nunca se estreou em Portugal mas que se tornou objecto de culto ao longo das décadas – Orson Welles definiu-o como “capaz de fazer chorar as pedrinhas da calçada”. É nessa linhagem que se deve inserir o filme do americano Ira Sachs que esta semana chega (finalmente!) às salas portuguesas: Love Is Strange – O Amor é uma Coisa Estranha, onde um casal idoso se vê forçado a abandonar a casa onde construiu uma vida em conjunto durante 40 anos, e a separar-se para cada um ir viver com amigos e familiares enquanto não encontram uma solução. Por Skype, a partir do seu escritório de Nova Iorque, Ira Sachs, 50 anos, realizador e argumentista, admite-se “culpado” relativamente ao uso dessas duas referências. Love Is Strange, diz, “podia bem chamar-se Make Way for Tomorrow" (literalmente, 'Abre Caminho ao Amanhã'). É um filme com uma história muito tocante e primitiva [sobre um casal idoso que se vê forçado a separar-se, indo cada um viver com um dos filhos], e muitas vezes o que encontro noutros filmes é precisamente a narrativa em que pego e que transformo. ”E Ozu, cuja Viagem a Tóquio é também uma possível citação? “Quando comecei a trabalhar no guião tive a sorte de estar a decorrer uma retrospectiva Ozu em Nova Iorque”, diz Sachs. “Vi dez ou 12 filmes ao longo de dois-três meses, e foi uma experiência muito marcante. Transformou verdadeiramente a minha visão dele, e a minha visão como cineasta. De certo modo, Ozu autorizou-me – como Tchékhov fizera antes – a concentrar-me no quotidiano, a defini-lo como um lugar dentro do qual se podem revelar as verdades profundas. O tipo de cinema que faço baseia-se num certo tipo de realismo; preciso de fazer aquilo que Jean Renoir dizia, 'abrir a janela e deixar o mundo entrar'. ”Renoir, Ozu, Tchékhov, McCarey – um mestre francês, outro japonês, um consagrado dramaturgo e escritor russo e um dos clássicos dos anos de ouro de Hollywood. É o tipo de referências que colocam automaticamente Ira Sachs num certo tipo de linhagem cinematográfica. Que não seria forçosamente o que se espera de um cineasta que tem feito carreira no circuito independente e apenas chamou verdadeiramente a atenção à segunda longa, Forty Shades of Blue (2005), psicodrama radical que nunca chegou às salas portuguesas. (Das seis longas que já dirigiu, Love Is Strange é apenas a segunda a estrear cá, após Casamentos e Infidelidades, de 2007, embora Little Men, o filme que realizou depois de Love Is Strange, já tenha distribuição garantida). Em 30 minutos de conversa, contudo, Sachs puxa outros nomes – Jane Austen, Patricia Highsmith, Sydney Pollack (o "cavalheiro” que produziu Forty Shades of Blue), Jean Eustache… “Estou mais alinhado com o cinema dramático europeu, porque Hollywood sempre teve mais tendência a ser conduzida pelo movimento narrativo e pela emoção melodramática. Eustache é uma grande influência para mim, tal como o cinema francês no geral, quer seja Tavernier ou Pialat. Acredito na trama narrativa, acredito na estrutura. Não quero reinventar a forma, e como alguém que leu muito e viu muitos filmes, as minhas estruturas seguem estéticas muito clássicas. Mas não trabalho dentro de um género, e isso complica as coisas. . . ”Love Is Strange é de algum modo um “exemplo” dessa complicação. Rodado em 2013 praticamente sem dinheiro, estreado fora de concurso em Sundance 2014, o filme fez o circuito de festivais e foi lançado nos EUA pela Sony Classics no Verão de 2014 com uma resposta invejável da crítica e John Lithgow a merecer algumas das melhores críticas da sua carreira. Mas Love Is Strange não conseguiu encontrar o seu público, caiu naquele estranho limbo do “drama adulto moderno”, e só agora, mais de dois anos depois de ficar pronto, tem estreia em Portugal (noutros países nem sequer chegou à sala, saindo directamente em DVD). Apesar do atraso, este é – um pouco à imagem das suas referências – um daqueles filmes que não parecem ser afectados pela passagem do tempo, lançamos ao seu realizador. “Não acredito que os meus filmes existam fora do tempo”, defende contudo Sachs. “São feitos num momento específico, e, tal como os romances a que reajo – e penso no Henry James, na Edith Wharton ou em Proust –, é um documento do seu tempo, do seu ambiente, do seu mundo. O que faz qualquer coisa durar é o que se lê nas entrelinhas, uma certa profundidade que vai permitir-lhe ressoar tanto no seu momento como fora dele. Mas estou sempre a tentar estar atento ao momento, ter consciência dele, ser observador. As pessoas não podem ser separadas do seu ambiente, faz parte da paisagem do filme. ”A paisagem, então, de Love Is Strange é a Nova Iorque de 2013, onde um casal idoso deixa de ter condições financeiras para viver na cidade. George (Alfred Molina) perdeu o emprego de professor de música numa escola católica onde ensinava há anos, pois a diocese não reconhece o casamento homossexual e acabou de formalizar a sua relação de 40 anos com Ben (John Lithgow), e logo a manutenção do apartamento onde moram em Manhattan se torna incomportável. Enquanto não surge um novo apartamento, Ben vai viver para Brooklyn com familiares e George, que tem alunos privados, fica a dormir no sofá de um casal amigo. É o tipo de história normal a que (excluindo a dimensão homossexual do casamento) Ozu chamaria um figo, e Sachs segue nas suas pisadas ao descentrar o filme em direcção àqueles que rodeiam Ben e George – sobretudo Elliot, o sobrinho com quem Ben vai morar, e a sua relação disfuncional com a mulher e o filho adolescente. “Este também é um filme sobre crescer”, diz Sachs, “e Ozu explorava muito essa questão das relações entre gerações. É algo que me fascina porque, aos 50 anos, sinto-me 'entre' gerações. De certo modo, estou mais próximo da personagem de Marisa Tomei [que interpreta a esposa do sobrinho de Ben], tanto em idade como no reconhecimento da distância que se cria entre os mais velhos e os mais jovens. O filme tem pontos de entrada para todas essas gerações. ”No entanto, Sachs não duvida de que o facto de Love Is Strange falar da velhice, da velhice nos nossos dias, e de ter um casal homossexual, “fechou portas” ao filme. “Mesmo dentro do cinema de autor, há assuntos que não convém escolher como temas. Não se fazem filmes sobre homens de 75 anos, não se fazem filmes explicitamente gay, não se fazem filmes sobre mulheres russas a morar em Memphis ou sobre imigrantes meio negros, meio vietnamitas… As mercadorias que interessam internacionalmente são os homens heterossexuais brancos trintões. O mercado não é nosso amigo, porque as nossas escolhas são marginalizadas. ”Sachs evoca o seu “camarada” mais próximo, Oren Moverman (realizador de O Mensageiro e Viver à Margem e argumentista de I'm Not There, de Todd Haynes), com quem co-escreveu Casamentos e Infidelidades, como um amigo próximo que tem lutas semelhantes para conseguir fazer filmes que, no papel, teriam na verdade sido muito facilmente abraçados por Hollywood noutros anos. “Se falo tanto do mercado”, explica Sachs, “é porque é o verdadeiro tema dos meus filmes. ” Como diz? “O mercado, o capitalismo são o verdadeiro tema do meu cinema; o espaço que os indivíduos vão conseguindo ganhar dentro das restrições da sociedade e da violência social. Isso não limita os filmes, é parte do material que uso para descrever momentos íntimos, dramáticos. ”Tudo isto, contudo, dentro de uma abordagem que privilegia as personagens e as suas relações. “Uma das razões pelas quais não sou reconhecido como um 'autor' é que os meus filmes procuram… enterrar o lado estético por trás da história. A estética não tem muito a ver comigo, há um tipo de ousadia no cinema de autor, 'olha aquele movimento de câmara, aquela opção formal'… Os meus filmes não, não se anunciam à distância como arte. Jane Austen diz que o amor e o dinheiro são modos de revelar as personagens; a mim o que mais me interessa é o inefável que acontece entre os seres humanos. Mas esse inefável nunca acontece isolado de um contexto de vida, de ordem social. Toda a gente tem as suas razões, como diz o Renoir na Regra do Jogo. ”
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA
Referendo ao aborto é um teste ao impulso de liberalização irlandês
Sociedade de forte tradição católica tem suavizado aos poucos a sua imagem com a adopção de políticas liberais, mas a Irlanda ainda tem uma das legislações mais restritivas da Europa no que toca ao aborto. Despenalização está nas mãos dos indecisos. (...)

Referendo ao aborto é um teste ao impulso de liberalização irlandês
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sociedade de forte tradição católica tem suavizado aos poucos a sua imagem com a adopção de políticas liberais, mas a Irlanda ainda tem uma das legislações mais restritivas da Europa no que toca ao aborto. Despenalização está nas mãos dos indecisos.
TEXTO: “O Estado reconhece o direito à vida do nascituro e, com igual salvaguarda do direito à vida da progenitora, garante através da suas leis respeitar e, na medida do possível, defender e pugnar por esse direito” – é a frase central do debate sobre o aborto, consagrada há mais de trinta anos como a 8. ª emenda à Constituição da República da Irlanda. Riscá-la ou mantê-la é o que se pede aos mais de três milhões de eleitores que esta sexta-feira vão às urnas para participar num referendo que é muito mais do que um simples voto sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez: é uma prova à determinação do percurso liberal que a Irlanda tem vindo a trilhar. Num país onde a tradição católica ainda tem uma influência muito significativa no dia-a-dia da população e cuja dimensão conservadora encontra paralelo na grande maioria dos partidos políticos e organizações civis, não é de estranhar que exista uma discrepância considerável em relação à maioria das democracias ocidentais, no que à liberalização dos costumes diz respeito. Mas o surgimento e a consolidação de grupos defensores e promotores de direitos civis e de movimentos feministas, nos últimos anos, tem causado impacto e aproximado a Irlanda dos parceiros europeus. A aprovação em referendo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015, é o resultado desse caminho e assume-se como o principal marco da chamada vaga progressista que está a crescer cada vez mais no país. O debate sobre o aborto na Irlanda consubstancia, no entanto, um cenário mais complexo que o comum, mesmo em comparação com outros países ocidentais de matriz católica. É que à luz da interpretação assumida pela doutrina irlandesa, da qual resulta que a mãe e o feto têm o mesmo direito à vida, a 8. ª emenda é, na prática, uma proibição praticamente total e inflexível do aborto e um obstáculo a uma futura regulação. Durante longos anos o debate manteve-se congelado e todas as reformas – ou tentativas de reformas – e apenas avançaram na sequência de casos dramáticos, que obrigaram os actores políticos a reagir. Nomeadamente o “Caso X” (1992), que envolveu uma decisão judicial sobre uma rapariga de 14 anos que engravidou depois de violada e que desenvolveu comportamentos suicidas, e o caso de Savita Halappanavar (2012), grávida de um feto não viável que o corpo começou a rejeitar às 17 semanas, mas que acabou por morrer no hospital ao ser-lhe ser negada um aborto. "Este é um país católico", disseram-lhe os médicos do hospital de Galway. Ainda que a legislação tenha sido suavizada por meio de referendos, emendas e reformas – como o levantamento da proibição de viagem para mulheres que querem abortar no estrangeiro (1992) ou a aprovação de excepções quando esteja em causa o risco de vida para a mãe (2013) –, a Irlanda continua a figurar no topo da lista dos países que possuem as leis mais restritivas da União Europeia no que toca ao aborto, acompanhada por Polónia, Malta e Chipre. De acordo com o Governo de Dublin, entre três a quartro mil mulheres irlandesas deslocam-se por ano ao Reino Unido para abortar. O que o Executivo irlandês vem agora prometer é que em caso de vitória do “Sim” no referendo, a 8. ª emenda será substituída por outra frase: “Diligências para a regulação da interrupção voluntária da gravidez poderão ser feitas por lei”. Em paralelo, o Governo liderado por Leo Varadkar propõe apresentar legislação que permita o aborto até às 12 semanas de gravidez e em caso de violação, incesto ou malformações fatais do feto. Os partidos Fine Gael (democrata-cristão) e Fianna Fáil (conservador) não tomaram uma posição oficial sobre o referendo e deram liberdade aos seus membros para fazerem campanha por qualquer um dos lados – o próprio Varadkar, do Fine Gael, dá a cara pelo “Sim”, dizendo que um chumbo da despenalização “enviará uma mensagem errada não apenas às mulheres mas a toda a sociedade”. Já o Sinn Féin (republicano) e o Partido Trabalhista (socialista) apoiam a legalização do aborto. Um dos sinais de que os tempos podem estar a mudar na Irlanda é apontado pela Spectator, que destaca o “debate totalmente secular” da campanha e a “ausência da Igreja Católica da luta”. À revista britânica, o padre Patrick Claffey, de Dublin, diz que a posição da igreja é “deixar os leigos falar” e colher os frutos do seu “conhecimento” sobre os perigos da liberalização do aborto. Nas primeiras semanas que se seguiram à confirmação da data do referendo todas as sondagens davam ao “Sim” à legalização uma vantagem confortável sobre o “Não”. Mas essa diferença tem vindo a esvanecer-se. Um estudo recente divulgado pelo jornal Irish Times mostra que as intenções de voto favoráveis à despenalização do aborto rondam os 44%, enquanto a rejeição aponta para os 32%. Uma diferença que pode muito bem ser mitigada com os restantes 24% de indecisos ou não-declarados – um em cada 4 eleitores. O Guardian olha para Irlanda rural e alerta para a possibilidade de um desfecho semelhante à consulta do “Brexit". Até porque a defesa do “Sim”, sustentada por grande parte da imprensa e da classe política irlandesa, pode dar a errada sensação de que a legalização da interrupção voluntária da gravidez está garantida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. John Waters, ex-jornalista e um dos rostos da campanha pró-vida, põe grandes esperanças na “maioria silenciosa” irlandesa e acredita que esta pode derrotar o “falso progressismo”. “Supostamente somos os retardados, mas na verdade estamos à frente do nosso tempo. Se mantivermos as nossas convicções e conseguirmos abafar o falso progressismo que nos assalta, um dia seremos reivindicados pela história e pelas ciências médicas”, disse, citado pela Spectator. Milhares de emigrantes – principalmente jovens – que defendem a despenalização do aborto têm viajado nos últimos dias para a Irlanda, sob o mote #HomeToVote (Ir a casa para votar), para participar numa consulta histórica, que acreditam poder vir a confirmar que o caminho da liberalização dos costumes dos últimos anos é uma tendência e não uma casualidade. Pouco depois das 22 horas desta sexta-feira, quando encerrarem as urnas, terão a sua resposta.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto direitos lei violação sexo estudo mulheres corpo casamento rapariga
Glória ao jornalismo nas alturas
O Caso Spotlight é um filme sobre o que o jornalismo foi e deveria ser. Falámos com Walter Robinson, editor da equipa do Boston Globe que em 2001 desenterrou um historial de abusos sexuais que envergonhou o Vaticano. (...)

Glória ao jornalismo nas alturas
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Caso Spotlight é um filme sobre o que o jornalismo foi e deveria ser. Falámos com Walter Robinson, editor da equipa do Boston Globe que em 2001 desenterrou um historial de abusos sexuais que envergonhou o Vaticano.
TEXTO: Phil Saviano, Patrick McSorley e Joe Crowley são três nomes de que pouco ouviremos falar a propósito de O Caso Spotlight. As interpretações de Mark Ruffalo (nomeado para o Óscar de melhor actor secundário), Michael Keaton, Liev Schreiber ou Stanley Tucci sobrepor-se-ão. O mérito da investigação jornalística que deu origem ao argumento encherá as medidas de quem vê nos media um pilar social. A ignóbil acção da Igreja Católica, que encobriu durante décadas milhares de casos de abuso sexual de menores, ocupará os demais. Phil Saviano, Patrick McSorley e Joe Crowley são o mais próximo de um conjunto de heróis que encontramos no filme de Tom McCarthy (A Estação, O Visitante). A tentação é outra: mitificar a equipa de jornalistas do Boston Globe que ao longo de oito meses, em 2001, desenterrou meticulosamente a história que envergonhou o Vaticano e pôs um ponto final na confiança, por vezes cega, que as famílias católicas depositavam nos seus párocos, bispos, arcebispos e cardeais (paremos por aqui na hierarquia clerical. . . ) e associados. Phil Saviano, Patrick McSorley e Joe Crowley — contrariando a negação bíblica de Pedro, vale a pena afirmá-los três vezes — são as vítimas de padres pedófilos representados em O Caso Spotlight. Saviano, abusado aos 11, criou um grupo de apoio e foi essencial na reunião de provas. McSorley, molestado aos 12, morreu de overdose dois anos após a publicação da história. Crowley teve com um destes predadores, aos 15, o que considerava a sua primeira relação amorosa — o que acabou por assombrar a sua homossexualidade. Walter Robinson, o editor que tinha às suas ordens os dois repórteres e o jornalista de dados da equipa Spotlight, que é interpretado por Michael Keaton, prefere tratá-los por “sobreviventes”. “Os únicos heróis no filme são os sobreviventes. Se eles não estivessem dispostos a contar as suas histórias, não teríamos grande coisa. Precisaram de muita coragem para falar publicamente”, diz ao Ípsilon por telefone, a partir dos EUA. “Nós só estávamos a fazer o nosso trabalho, parte do qual é andar aos tropeções no escuro. ”A modéstia da resposta pode surpreender quando se trata de uma série de notícias (mais de 600 publicadas entre 2002 e 2003) que revelou um dos maiores escândalos do nosso tempo e abriu uma ferida ainda por fechar no seio do Vaticano; quando se trata de um conjunto de notícias que valeu à sua equipa o Pulitzer e constituiu o maior furo jornalístico dos 140 anos de história do Globe. Mas é a resposta que se esperaria de Robinson no filme. É, aliás, a resposta que dá o próprio filme. O argumento assinado por McCarthy e Josh Singer (O Quinto Poder) mostra-nos todos os passos da investigação, sem concessões a qualquer ideia de glamour. O jornalismo é apresentado tal como é: cinzento, às vezes caqui. Há gente a discutir, a ler papéis, a beber café, a ler papéis, a analisar listas com uma régua, a ler papéis, a tirar notas, a ler papéis, a falar ao telefone, a ler papéis, a ter conversas desconfortáveis, a ler papéis, a ser hostilizada, a ler papéis — e assim sucessivamente. A crítica norte-americana, que distinguiu o filme e o argumento como os melhores do ano, é unânime no aplauso ao rigor com que O Caso Spotlight retrata a profissão. Ou, pelo menos, do que ela foi nestas circunstâncias (neste jornal, com estes jornalistas, neste tempo) e do que deveria ser sempre, apesar de todos os constrangimentos que a era digital lhe trouxe na década e meia que já nos separa de 2001. É a sobriedade do argumento — que não explora flashbacks dos crimes, nem ficciona a reacção dos padres às notícias — e o facto de se ter centrado no método da investigação que farão deste filme um clássico para jornalistas, aspirantes e interessados, subindo ao panteão em que se encontram Mundo a Seus Pés (Orson Welles, 1941) e Os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976). Discreto e inteligente , inscreve-se na longa tradição liberal do cinema americano. Nas universidades, o método desta equipa será exemplar. Walter Robinson explica o “padrão” que impôs à sua equipa: “Precisávamos de pelo menos duas vítimas e alguma outra prova corroborativa antes publicar o nome de um padre. ” Simples na teoria, difícil na prática, modelar no procedimento. (“Mas a Igreja assustou-se. Quando alguém decidia falar e nomear um padre, mesmo que fosse apenas uma vítima, a arquidiocese suspendia imediatamente esse padre e anunciava-o. Muitos nomes foram tornados públicos assim. ”)“O filme é incrivelmente preciso, retratando os passos exactos que demos para desenterrar a história”, relata Walter Robinson. “Fomos longamente entrevistados pelo realizador e pelo argumentista, e fornecemos-lhes emails e documentos originais de 2001. Deixaram-nos depois olhar para o argumento e dar sugestões. Aceitaram algumas. Eles fizeram uma imensa pesquisa. ” Tanta que o filme acaba por dar uma notícia: o Boston Globe tinha elementos para descobrir o caso há quase uma década. “Quase todos os grandes jornais obliteraram pistas do que se passava. Isso acontece, em parte, devido à pressão da produção diária de informação. Mas também porque todos considerávamos inimaginável que a Igreja fosse capaz de permitir e depois encobrir abusos de centenas de padres, envolvendo milhares de crianças”, justifica Robinson. No filme, contudo, vemos como este facto abala a posição moral dos jornalistas face aos advogados que vinham ajudando a manter os casos em segredo e os impede de ascender à condição de agentes redentores aos olhos das vítimas. A notícia que vem do cinema impede O Caso Spotlight de se transformar num dualismo hollywoodesco sem futuro. A religião é central em Boston, cidade que cresceu no século XIX com a imigração europeia, em particular a irlandesa e a italiana (a comunidade portuguesa também é significativa no estado do Massachusetts, de que Boston é a capital). A Igreja Católica é omnipresente e exerce grande influência sobre os cidadãos, da classe baixa às elites da política e do dinheiro. Talvez por isso tenha sido necessário chegar ao Globe “um homem solteiro de fé judaica que odeia basebol”, Martin Baron (Liev Schreiber), para descortinar a história. O filme é incrivelmente preciso, retratando os passos exactos que demos para desenterrar a históriaBaron assumiu a direcção do jornal em 2001. A redacção recebeu-o com desconfiança: o que é que um tipo de Tampa, Florida, poderia saber sobre Boston? Hoje, é uma lenda: Baron percebeu de uma imediato o potencial da pequena notícia que leu na secção local e, logo no primeiro dia de trabalho, pôs a equipa Spotlight a investigá-la. “É uma boa lição. Todas as organizações podem beneficiar em ter um par de olhos frescos”, diz Walter Robinson. E não poupa elogios: “Marty Baron é provavelmente o melhor director de jornais dos EUA. É um jornalista brilhante. Tem padrões muito elevados. ” (Baron dirige agora o Washington Post. )A coragem foi essencial. Primeiro, de Baron — que, mais do que desafiar a Igreja, testou a lealdade dos assinantes do Globe, maioritariamente católicos (53%), num tempo em que o jornal tinha as vendas em queda havia quase uma década. Em comparação, e apesar da história do seu pai no jornalismo, o então director adjunto, Ben Bradlee Jr. (John Slattery), filho do director que supervisionou o trabalho de Carl Bernstein e Bob Woodward no escândalo de Watergate, reagiu sempre com precaução. Convenceu-se quando viu as provas. Depois, a coragem dos próprios jornalistas. Walter Robinson percebeu que um dos seus amigos estava envolvido enquanto advogado; o seu liceu também. A repórter Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams) é ela própria católica. Levava a avó à missa todos os domingos. Não sabia como prepará-la para o que tinha para lhe contar. O jornalista de dados Matt Carroll (Brian d'Arcy James), pai de quatro crianças, descobriu a meio da investigação que era vizinho de uma espécie de casa de reabilitação de pedófilos — e não o podia revelar à família. O luso-descendente Mike Rezendes (Mark Ruffalo) é retratado como um jornalista sem vida pessoal, capaz de passar todo o seu tempo à espera de um advogado para o convencer a colaborar, ou a embrenhar-se nos arquivos judiciais à procura de documentos que um certo e obscuro entendimento entre a Justiça e a Igreja quer manter longe das suas vistas. Coragem profissional, emocional e até física. Mais a coragem dos sobreviventes. “Cada entrevista era emocionalmente muito desgastante para os jornalistas, para todos nós. Muitas vezes, fomos as primeiras pessoas com que as vítimas conversaram”, recorda Robinson. A equipa ficou tão envolvida que passou a trabalhar sete dias por semana. Mesmo quando aconteceu o 11 de Setembro em Nova Iorque e a redacção foi integralmente mobilizada para a cobertura dos ataques, mesmo aí os jornalistas continuaram a trabalhar na investigação. “Sentimos uma profunda responsabilidade em publicar a história. ”Para deixar bem clara a dimensão do problema, a perenidade dos abusos e a aparente cegueira de toda uma cidade, Tom McCarthy abre o filme em 1976. Mostra-nos o padre John Geoghan, mais tarde acusado de abusar sexualmente de mais de 80 menores, a ser desculpado por agentes da polícia, numa esquadra, depois de ter sido apanhado com uma criança. Nessa altura, o chefe local da Igreja era ainda o luso-americano Humberto Sousa Medeiros, o predecessor do responsável afastado pelo Vaticano na sequência do escândalo — o cardeal Bernard Law (a quem João Paulo II atribuiu mais tarde um posto em Roma). “Quando publicámos a história, pensámos que as pessoas ficariam chateadas connosco, mas ficaram gratas. Viam isto como um cancro que tinha de ser extirpado da Igreja”, diz Robinson. “Muitos católicos ficaram horrorizados. Tinham criado as suas crianças na Igreja e sentiram que as tinham posto em risco durante muitos, muitos anos. ” O jornalista lembra que, nas semanas seguintes, houve centenas e centenas de pessoas a telefonar para partilhar histórias — de dentro e de fora dos EUA. “Até tivemos um par de chamadas de Portugal. ”Só em Boston, o Globe desmascarou 250 padres. Um número que os jornalistas apenas perceberam ser possível depois de falar com Richard Sipe (Richard Jenkins), um psicoterapeuta que deixou o sacerdócio para se dedicar à investigação destes abusos. É ele quem lhes diz que se trata de uma questão sistemática e não de “algumas maçãs podres”. Sipe tem uma das revelações mais desconcertantes do filme: a maioria das vítimas são rapazes não por os padres serem homossexuais, mas porque é mais difícil para eles do que para elas falar sobre abusos perpetrados por homens. O segredo fica mais bem guardado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “A resposta da Igreja nos EUA foi substancial, mas persistem alguns problemas. Há dioceses onde os bispos ainda resistem”, lamenta Walter Robinson, que aplaude o “aparente” comprometimento do Papa Francisco, embora “ainda não tenha feito o suficiente”. Do ponto de vista dos horrores que revela, O Caso Spotlight estabelece pontes com As Irmãs de Maria Madalena (Peter Mullan, 2002) e Filomena (Stephen Frears, 2013). O cinema dará à história um impulso definitivo? “O filme tem um impacto extraordinariamente poderoso nas pessoas. Muito mais do que a palavra impressa que nós fizemos. Creio que tem potencial para despertar a consciência pública sobre esta matéria para um novo nível. Estamos muito satisfeitos com isso. Acreditamos que, apesar de ter tido muita atenção, este assunto merece ainda mais — porque, de facto, os problemas continuam. ”A look behind the scenes of The Boston Globe Spotlight team
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Entidades EUA
Brett Kavanaugh, um juiz criado pelos conservadores para chegar ao Supremo
A escolha do Presidente Trump para substituir o juiz Anthony Kennedy empurra o tribunal para uma maioria de direita. E tem um bónus: Kavanaugh é contra as investigações a Presidentes em exercício. (...)

Brett Kavanaugh, um juiz criado pelos conservadores para chegar ao Supremo
MINORIA(S): Migrantes Pontuação: 6 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: A escolha do Presidente Trump para substituir o juiz Anthony Kennedy empurra o tribunal para uma maioria de direita. E tem um bónus: Kavanaugh é contra as investigações a Presidentes em exercício.
TEXTO: Quando o juiz Anthony Kennedy anunciou que ia reformar-se do Supremo Tribunal norte-americano, há menos de um mês, o Presidente Donald Trump viu cair-lhe no colo uma oportunidade para oferecer aos conservadores o sonho de uma vida: aproveitar essa substituição forçada para virar o Supremo à direita de uma forma tão marcada como já não se via desde os anos 30. O primeiro passo foi dado na noite de segunda-feira com a nomeação de Brett Kavanaugh, um juiz de 53 anos criado numa incubadora de juízes conservadores lançada nos finais da década de 1980, atirado para a ribalta durante o processo de impeachment do Presidente Bill Clinton e apoiado pelos defensores da posse de armas e da luta contra o aborto. O segundo passo é mais complicado, porque não depende apenas da Casa Branca. Como a nomeação tem de ser confirmada pelo Senado, e como o Partido Republicano tem apenas 50 senadores para votar (devido à ausência de John McCain, por doença), contra 49 do Partido Democrata, o anúncio de Trump marcou também o início de uma corrida contra o tempo. Se os republicanos não se conseguirem organizar até Novembro, e se os democratas recuperarem a maioria no Senado nas eleições desse mês, o sonho dos conservadores pode vir a ser adiado. Na segunda-feira à noite, durante a apresentação do juiz Kavanaugh em directo para todo o país, a partir da maior sala da Casa Branca, Donald Trump recordou um dos poucos antecessores que costuma apontar como exemplo, dizendo que a sua escolha respeita "o legado do Presidente Reagan". "Eu não faço perguntas sobre as opiniões pessoais de um nomeado. O que interessa não é a opinião política de um juiz, mas sim se ele consegue pôr de lado essa opinião para fazer o que a lei e a Constituição exigem. Tenho o prazer de dizer, sem qualquer dúvida, que encontrei uma pessoa dessas. "Quanto tomou a palavra, o juiz Brett Kavanugh elogiou o seu antecessor, Anthony Kennedy, e esforçou-se por se apresentar como um homem respeitador da diversidade. Lembrou que a mãe, Martha Kavanaugh, foi professora em duas escolas públicas "de maioria afro-americana" nas décadas de 1960 e 1970; disse que, como juiz, a maioria dos seus assistentes "têm sido mulheres"; e agradeceu à reitora que o contratou para dar aulas na Harvard Law School: Elena Kagan, uma juíza do Supremo nomeada pelo Presidente Barack Obama em 2010. Mas o currículo de Kavanaugh dispensa apresentações, tanto para os seus defensores como para os seus críticos. Nas últimas duas décadas, este juiz nascido na capital dos EUA tem deixado atrás de si uma montanha de decisões que o definem como alguém muito mais conservador do que o homem que vai substituir. Anthony Kennedy foi nomeado por Reagan em 1987 como conservador, mas foi fugindo para o centro e acabou por assumir o papel de árbitro entre os quatro colegas mais conservadores e os outros quatro mais liberais. Com a saída de Kennedy e a entrada de Kavanaugh (se o Senado confirmar a nomeação), o Supremo deixa de assentar no centrismo de Kennedy em questões como o aborto, o casamento gay, a pena de morte ou o que ainda resta das leis de discriminação positiva. Esse equilíbrio foi abalado pela nomeação do juiz Neil Gorsuch no ano passado, após a morte de Antonin Scalia, e pode mesmo desabar se Kavanaugh for confirmado – Gorsuch substitui um juiz igualmente conservador, o que manteve o equilíbrio, mas Kavanaugh vai substituir um juiz mais ao centro, o que desequilibra a balança para o lado dos conservadores. Ainda que tenha sido nomeado por um Presidente conservador, Anthony Kennedy veio a ser decisivo para a manutenção do direito ao aborto como lei nacional, em 1992, e para a decisão de que o direito ao casamento se estende aos casais do mesmo sexo, em 2015. No mesmo ano, juntou-se mais uma vez aos seus colegas liberais numa crítica da prisão em regime de solitária, e em outras ocasiões ajudou a aprovar restrições à pena de morte. As decisões do seu substituto, Brett Kavanaugh, sobre casos relacionados com o aborto, por exemplo, são vistas pelo Partido Democrata como sinais de que o juiz nomeado por Trump irá aliar-se aos seus quatro colegas conservadores para reverter – ou esvaziar – a legalização do aborto. No ano passado, Kavanaugh negou o pedido de uma imigrante adolescente para abortar, mas os argumentos que usou deixaram também os conservadores um pouco incomodados – ao contrário de outros colegas conservadores que participaram na mesma decisão, Kavanaugh não disse que a imigrante adolescente não tem o direito constitucional a interromper a gravidez. Contas feitas, a saída de Kennedy e a possível entrada de Kavanaugh "vai alterar de forma fundamental o equilíbrio do tribunal e deixar em risco dezenas de precedentes", escreve o New York Times. É difícil dizer se as grandes decisões sobre o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou outras questões que têm dividido conservadores e liberais vão regressar ao Supremo, mas é quase certo que os vários grupos de interesse vão lutar para que partes dessas leis sejam reavaliadas – deixando-as esvaziadas e, na prática, ineficazes. E há outro aspecto que leva o Partido Democrata a querer barrar a nomeação de Kavanaugh com todas as suas forças. Apesar de ter sido um dos principais relatores do famoso relatório Starr, que levou ao impeachment do Presidente Bill Clinton em finais de 1998, Brett Kavanaugh disse em 2009 que os Presidentes deviam estar "isentos de acusações e investigações criminais enquanto em exercício, incluindo interrogatórios por procuradores criminais". Uma opinião que será certamente debatida durante o processo de confirmação no Senado, numa altura em que o Presidente Trump é alvo de uma investigação conduzida pelo procurador especial Robert Mueller sobre suspeitas de obstrução da Justiça e conluio com o Governo russo. "Acredito que os Presidentes devem ser dispensados de alguns dos fardos da cidadania comum enquanto estão em exercício. Não devemos sobrecarregar um Presidente em exercício com processos civis, investigações criminais ou acusações criminais", escreveu Brett Kavanaugh num artigo publicado em 2009 na publicação Minnesota Law Review. Se o Senado confirmar a nomeação de Kavanaugh, o Supremo passa a ser dominado por juízes conservadores de uma forma tão marcada como já não se via desde a década de 1930, disse ao New York Times Curt Levey, presidente do grupo conservador Comittee for Justice. Levey e outras figuras da direita norte-americana salientam os esforços que os conservadores desenvolveram desde a década de 1980 para que os EUA tenham agora uma geração de juízes garantidamente conservadores – antes disso, à imagem do que aconteceu com o juiz Anthony Kennedy, vários juízes nomeados por Presidentes republicanos acabavam por tomar muitas decisões alinhadas com os liberais. "Eles têm lutado contra essa tendência nos últimos 30 anos, e o anúncio feito esta noite é um grade passo na direcção certa. É a primeira vez que podemos dizer que temos mesmo um tribunal conservador, pelo menos desde a década de 1930", disse Curt Levey. E é provável que o Presidente Trump venha a ter pelo menos mais uma oportunidade para reforçar o grupo de conservadores no Supremo, uma hipótese que ganhará ainda mais força se for reeleito em 2020. Com a saída do conservador Anthony Kennedy, de 81 anos, os dois juízes mais velhos são liberais – Ruth Ginsburg, de 85 anos, e Stephen Breyer, de 79. No grupo dos cinco conservadores, contando já com Brett Kavanaugh, o mais velho é Clarence Thomas, 70, e dois deles estão abaixo dos 53 anos. Num ambiente tão polarizado como o que se vive no Congresso americano, seria de esperar que todos os senadores do Partido Republicano aprovassem a nomeação de Kavanaugh, e que todos os do Partido Democrata votassem contra. Mas as contas dos senadores dos dois lados não se resumem a fidelidades partidárias, nem todos têm doses iguais de conservadorismo – uma equação que se complica ainda mais em ano de eleições. Desde o ano passado, por iniciativa do Partido Republicano, um juiz do Supremo pode ser confirmado com uma maioria simples de 51 – antes disso era preciso uma maioria de 60 em 100. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este ano, os republicanos têm apenas 50 dos seus 51 senadores no activo porque John McCain continua afastado por doença. Isto deixa dois caminhos para a aprovação de Kavanaugh: ou o partido mantém unidos os seus 50 senadores, ou vai buscar ao Partido Democrata os votos de que precisa para anular possíveis dissidências. Apesar das dificuldades esperadas, ambos os caminhos são viáveis. No lado republicano há pelo menos três senadores em dúvida – Lisa Murkowski (Alasca) e Susan Collins (Maine) porque são apoiantes do direito ao aborto, e Rand Paul (Kentucky) e Jeff Flake (Arizona) que, por razões distintas, já se opuseram a nomeações do Presidente Trump. Mas no lado democrata também é provável que não haja unanimidade – Joe Manchin (Virgínia Ocidental), Joe Donnelly (Indiana) e Heidi Heitkamp (Dakota do Norte) aprovaram no ano passado a nomeação do juiz Neil Gorsuch e estão envolvidos este ano em lutas pela reeleição em estados onde Trump esmagou Clinton nas eleições presidenciais de 2016.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA