Fidel Castro (1927-2016): A morte muito antes do sonho
Viveu como falava: aos borbotões, com gestos largos, a explicar a sua ideia de revolução, que uns seguiram, outros não, e uma parte deixou a meio. O último herói do socialismo ou o último pirata das Caraíbas, agora tanto faz, porque morreu muito antes do sonho. (...)

Fidel Castro (1927-2016): A morte muito antes do sonho
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.05
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Viveu como falava: aos borbotões, com gestos largos, a explicar a sua ideia de revolução, que uns seguiram, outros não, e uma parte deixou a meio. O último herói do socialismo ou o último pirata das Caraíbas, agora tanto faz, porque morreu muito antes do sonho.
TEXTO: Agora, sim, é verdade: Fidel Castro morreu. Talvez só para quem não gostava dele – porque para outros continua a viver, entre a incredulidade e a lenda. Na mais extensa das entrevistas que deu, a de cem horas, em 2005, ao antigo director do Le Monde Diplomatique Ignacio Ramonet, ele próprio antevia esta irrealidade: “No dia em que eu morrer de verdade, ninguém vai acreditar. Poderia andar como o Cid, o Campeador, que mesmo morto era levado a cavalo para vencer batalhas!” (Fidel Castro – Biografia a duas Vozes). Mas morreu mesmo; e ninguém o deverá levar para mais nenhuma batalha, porque as teve de sobra, e disso se falará de hoje em diante até que a História arrefeça. Ainda é muito cedo. Um dos primeiros companheiros de jornada, Max Lesnick, descreveu-o uma vez como “jacobino, rebelde, radical”. Modos de ver. Ramonet retratou-o de uma maneira mais moderada: “Não é nem o monstro que certos meios de comunicação ocidentais descrevem, nem o super-homem que às vezes alguns meios de comunicação cubanos apresentam. É um homem com princípios éticos e morais rigorosos, que leva um modo de vida muito austero e frugal. ”Uma coisa é certa: Fidel, mesmo nascido num berço de ouro, voltou as costas à condição de filho de um fazendeiro, Ângel Castro, natural de Láncara, na Galiza, para desafiar vários líderes populistas da sua juventude, de Batista a Batista, passando por Grau San Martín ou Socarrás, e 11 presidentes norte-americanos durante cinco décadas – Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho e Obama –, em nome de uma ideia de revolução. Que amadureceria – ou que empobreceria, conforme as opiniões – com o tempo, a idade e os ciclos da história, para acabar num país onde os direitos económicos e sociais não quereriam saber dos direitos civis e dos políticos – como é a Cuba actual. Um aviso: a maior parte dos autores que foram à fonte para beber a verdade sobre a vida do líder cubano ou tiveram de aceitar filtros, como Cláudia Furiati (Fidel Castro – Uma Biografia), que deveu parte dos seus apontamentos a gente da maior confiança do regime, ou revisões do entrevistado, como Gianni Miná, Frei Betto, Tomás Borge ou Ramonet. Fidel Alejandro Castro Ruz nasceu em Birán, um lugarejo rústico do Oriente, no dia 13 de Agosto de 1927, mesmo que na ilha não se queira que tenha nascido nesse dia e mês, mas um ano antes (daí ser noticiado que morreu aos 90 anos). Isto porque, não podendo, por falta de idade, frequentar o grau a que tinha direito por mérito próprio no Colégio de Belén, o pai conseguiu que o registo civil aldrabasse a escrita para o garoto se poder inscrever. Pelo menos foi o que averiguou Furiati. Motivo aparente da controvérsia: 26 é o número fetiche do regime, por causa do 26 de Julho de 1953. Nasceu de Dom Ângel e de Lina, com quem o pai passou a viver e se casaria mais tarde, depois de se divorciar de Maria Argota, cresceu no meio das selvajarias próprias dos garotos da terra e da idade – tinha, por exemplo, um gosto particular em operar pássaros e outros animais com lâminas de barbear –, tornou-se exímio no manejo de armas; e, com o tempo, um atleta sem competidores à altura, principalmente quando chegou aos 1, 85 metros – no basebol era o melhor, fosse pitcher ou right. Aluno de escolas jesuítas, era aplicado. Estudava até desoras, decorava páginas só de lhes passar os olhos, estava sempre entre os melhores. Era forte em Psicologia, História, principalmente da Revolução Francesa, e um apaixonado de Rousseau e Diderot, mas também bom nos números. Tinha uma mania estranha: depois de ler uma página, rasgava-a e deitava-a fora. Um livro de 500 acabava em cem. A vida política, Fidel Castro inicia-a na Universidade de Havana, onde entra no dia 27 de Setembro de 1945, na Federação dos Estudantes Universitários (FEU), repartindo a militância com o estudo de Direito. Cuba era nesse tempo um alvoroço, cheia de zaragatas, golpes, conspirações, gangsterismo, comércio de favores, bordéis com clientes certos: os Marines. Era um país à procura do amor-próprio, refém da Emenda Platt, que desde 1901 o acorrentava aos Estados Unidos. A anacrónica base de Guantánamo veio daí. Não é nem o monstro que certos meios de comunicação ocidentais descrevem nem o super-homem que às vezes alguns meios de comunicação cubanos apresentamÉ nesses anos, na FEU, que se molda, na luta pela direcção dos estudantes, ou contra o sistema, na altura representado por Grau, alvo do seu primeiro discurso público, ou insignes bandidos como Salabarría ou Masferrer, que eram uma espécie entre os polícias e os pistoleiros. É nesses anos que mergulha na vida e nas memórias do “apóstol” José Martí, Bolívar, Antonio Jose de Sucre. É nesses anos que sobe, desce e discursa, já então aos borbotões, na Escalinata, de acesso à escola. E é por esses anos também que anda com uma pistola entalada no cinto das calças, que conhece Lesnick, Alfredo Guevara e outros que o hão-de acompanhar. No meio de conjuras, flyers, jornais clandestinos e programas radiofónicos de curta duração, lá acaba o curso e abre um escritório em Havana, onde defende causas de operários em Melena del Sur ou de camponeses em Santa Cruz del Norte, frequentemente sem levar nada. Tem uma ideia fixa: derrubar Batista. No dia 26 de Julho de 1953, a coberto da paródia do carnaval cubano, o Movimento tenta a sorte, em Santiago, contra os quartéis de Moncada e Bayamo. Morrem três atacantes, 87 serão presos, torturados e mortos. O tiro de partida falha. Fidel e outros, apanhados numa cabana, a dormir, e o irmão, vão para Boniato, a seguir para a da Ilha dos Pinheiros, de onde sairão mas para serem julgados, assumindo ele a própria defesa durante duas horas num trecho que se transformará num libelo contra o regime – A História Me Absolverá. Amnistia, exílio no México, a casa de María Antónia, o encontro com um jovem argentino que andava a conhecer o mundo, um tal Guevara, que começava ou acabava as frases com "che", que tanto pode ser o nosso "pá", como "olá" ou "caramba"; treinos físicos em inocentes ginásios e de tiro em quintas emprestadas, mil fintas aos agentes de Havana; e um iate chamado Granma, a cair de podre no porto mexicano de Tuxpan. Fidel Castro já levava algum lastro político. Participara no Bogotazo, em 1948 – na verdade, por acidente, pois ia para um encontro com Jorge Gaitán, que nunca conheceria –, tentara uma aventura contra Trujillo, o ditador dominicano, e contra Moncada, e comprara em Nova Iorque, onde foi com Hilda, já divorciado de Mirta, um livro extraordinário: O Capital. Agora era tudo ou nada. Numa madrugada de Novembro de 1956, o barco, de 12 metros e com uma capacidade máxima para 25 pessoas, largou a abarrotar de presuntos, laranjas, leite condensado e 82 homens. Uma semana depois chegava às costas de Cuba, com a ajuda, entre outros, de um mapa que o Movimento 26 de Julho conseguira de um navio português. Desembarque, pântanos, mosquitos, combates, emboscadas de toca-e-foge, Sierra Maestra; a entrevista a Herbert Mathews, do New York Times; baixas, fuzilamentos. No torvelinho, Célia Sánchez, tão próxima dele como da revolução. E Havana, no último dia de 1958. O repórter ficou encantado. Desmente a morte do chefe do M-26, que a propaganda batista espalhava aos sete ventos, e descreve-o como um campeador: “A sua personalidade é cativante. (…) É fácil compreender porque os seus homens o adoram. (…) À primeira vista, fisicamente e como personalidade, é um homem educado, de uma dedicação fanática à causa, um homem de ideais, coragem e qualidades notáveis de liderança. As suas ideias de liberdade, democracia, justiça social, necessidade de restaurar a Constituição, realizar eleições, estão bem arraigadas. (…) O programa é vago, com disposições generalizantes, mas traz uma nova proposta para Cuba, radical, democrática e (…) anticomunista”, escreve, comparando o entrevistado e Bolívar, Lincoln e Robin Hood. Mathews escreveu a quente. A Sierra Maestra não era Sherwood. Havana aproxima-se de Moscovo, os Estados Unidos eriçam-se; vem o embargo, no futuro revisto e aumentado, uma sucessão de episódios que marcaram a ilha e o mundo, a Baía dos Porcos, em 1961, a crise dos mísseis um ano depois, a exportação da revolução, a morte de Che na Bolívia, atentados, a aventura angolana, enquanto mesmo assim tomava forma uma sociedade que erradicaria o analfabetismo e faria da saúde um direito elementar, bem como a habitação. E por fim a partida da História com que Fidel não contava: a derrocada dos regimes comunistas do Leste europeu, a perda dos principais compradores do açúcar cubano, o “período especial”, a onda de balseros de 1994, a aflição económica, apesar das receitas turísticas e das remessa dos emigrantes, no grito com que sempre – e desde então ainda mais – terminava os seus intermináveis discursos: “Patria o muerte!”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No dia 26 de Julho de 2006, em resultado de uma doença feita segredo de Estado, Raúl substituiu-o na presidência, o que levou alguns observadores a esperar um abrandamento da repressão, talvez uma abertura. Nada. Depois de um longo período de convalescença, com novos rumores sobre a sua morte, começou a receber chefes de Estado estrangeiros, alguns deles amigos, como o venezuelano Hugo Chávez, a escrever crónicas no Granma, sobre o Iraque, o Afeganistão, o ambiente, a globalização, a influenciar a política do país, até porque continuava a ser primeiro secretário do PCC, e a aparecer em público. Em Miami, o Nuevo Herald deu-se por fim conta que não ia haver nenhuma mudança com nome disso. Raúl começou entretanto a mudar pouco e aos poucos. Em 2011, num congresso histórico do PCC, adoptou uma série de medidas de abertura económica. Em 2014, aproveitando o espaço aberto com a retirada de cena de Fidel, Barack Obama passa seis meses a negociar com Cuba em segredo. No final desse ano, os dois países retomam relações e em Março último Obama visita Havana, uma estreia para um Presidente dos EUA desde 1928. Raúl demonstrou assim a sua natureza pragmática, surpreendendo o mundo. Mas, sim, Fidel Castro, morreu. Vários adivinharão uma reviravolta política como um ciclone das Caraíbas. Outros, como Ramonet, que todos os ajustamentos serão calmos. “O que é que acontecerá quando desaparecer, por causas naturais, o Presidente cubano? É óbvio que se produzirão mudanças, já que ninguém na estrutura do poder (nem o Estado, nem o partido, nem as Forças Armadas) tem a sua autoridade. Alguns analistas vaticinam que, como aconteceu na Europa do Leste depois da queda do Muro de Berlim, o regime actual será prontamente derrubado. Enganam-se”, escreveu o jornalista, em 2006, no prólogo das cem horas com Fidel, explicando que os regimes comunistas europeus eram impostos do exterior e detestados por uma parte importante da população, que não era o caso de Cuba. A palavra agora aos que lá vivem.
REFERÊNCIAS:
Carvalhais, um baile de tradições e natureza
Aninhados entre serras e ribeiros, os ritmos do quotidiano de Carvalhais e Candal ainda se deixam marcar pelos compassos da natureza, das tradições e da memória. Agora, um novo festival quer resgatar esse património regional e acrescentar danças populares dos quatro cantos do mundo. Para bailar em Agosto e desvendar uma região para o ano todo. (...)

Carvalhais, um baile de tradições e natureza
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Aninhados entre serras e ribeiros, os ritmos do quotidiano de Carvalhais e Candal ainda se deixam marcar pelos compassos da natureza, das tradições e da memória. Agora, um novo festival quer resgatar esse património regional e acrescentar danças populares dos quatro cantos do mundo. Para bailar em Agosto e desvendar uma região para o ano todo.
TEXTO: António Francisco conhece bem a cascata de moinhos que desce a ribeira de Contença, no Parque Florestal do Pisão, concelho de São Pedro do Sul. Os pais eram “proprietários de dois quinze avos” de um dos edifícios de granito, que é o mesmo que dizer que “de quinze em quinze dias eram os usufrutuários” do pequeno moinho. E ele, “umas vezes com mais vontade do que outras”, lá vinha, ainda miúdo, ajudar os pais, com sacas de milho ou ferramentas para picar as mós. Às vezes, deixavam-no subir à antiga casa do guarda-florestal, onde o irmão mais velho trabalhava a lavrar os lameiros. E o que ele gostava de andar por ali a brincar, conta-nos agora entre os carvalhos da propriedade, entretanto transformada em Bioparque, com área de campismo, piscina, zona de arborismo, slide e parque de merendas, entre outras valências. Dos moinhos, António conhece cada pedaço de madeira e de pedra que os faz funcionar. Mas confessa: “Nunca quis ser moleiro. ” Toda a vida foi carpinteiro e é a madeira que lhe abre o sorriso no rosto. “Entre esta caleira e aquela vão pelo menos uns 60 anos de distância”, compara António, apontando para o tronco de árvore que, suspenso na horizontal, conduz a água aos rodízios do moinho. Aquela lá ao fundo já foi António que talhou a madeira e a instalou no lugar. Há cerca de um ano e meio regressou aos moinhos para trabalhar como responsável pela manutenção e pelas visitas guiadas aos turistas, durante as quais põe as mós a laborar. Dos 13 edifícios concentrados ao longo da ribeira, seis foram integralmente recuperados e estão aptos a operar, mas a matéria-prima não dá para mais de três. “Há duas famílias aqui na região que têm plantações e que me trazem o milho para moer. Mas a quantidade não chega para ter mais a funcionar”, lamenta. Outrora a broa foi base da alimentação das populações rurais da região. Só na freguesia de Carvalhais, a que pertence Pisão, existia mais de uma centena de moinhos junto aos cursos de água. Com a mudança dos hábitos alimentares, o advento dos moinhos eléctricos e o sucessivo abandono das terras, no entanto, as plantações deixaram de chegar para nutrir tantos moinhos e a prática caiu em desuso no século XX. Os últimos, recorda, pararam na “década de 1980”. Os edifícios, aninhados entre a sombra do arvoredo e o entusiasmo da ribeira, pulando dos rochedos para formar pequenas lagoas, compõem agora um dos pontos de visita obrigatória da grande Rota da Pedra e da Água, que se estende ao longo de sete concelhos da região. O nosso percurso, no entanto, é bem mais curto. Atravessamos uma pequena ponte de madeira para espreitar uma cascata e a flora envolvente. “Aqui encontramos em abundância o feto real, ou fentelha, que é utilizado nas procissões”, indica agora Paulo Pereira, botânico e músico. Ao longo dos passeios dos próximos dias, será tão natural vê-lo enumerar cada planta pelo nome científico como ouvi-lo improvisar uma melodia num dos instrumentos de sopro que traz sempre na mochila. À beira do riacho, aponta para umas pequenas flores entre a vegetação: são violetas-do-rio, de pétalas mais claras, quase brancas. O reencontro com a natureza e com as tradições da região é uma das componentes essenciais do Tradidanças, um festival que teve “o ano zero” em 2017 e que este ano regressa a Carvalhais no início de Agosto. Além dos bailes, dos concertos e das oficinas de dança e de desenvolvimento pessoal, parte da programação é dedicada ao património cultural e paisagístico. Todas as manhãs, por exemplo, haverá “viagens” de tradição e de natureza, com visitas a povoações ou percursos pedestres, que podem incluir degustações, oficinas ou momentos musicais. Já no recinto do festival, serão organizados laboratórios sobre ofícios tradicionais, como “broa e moinhos de água” ou “mel e cera”. O objectivo é que o festival funcione também como uma “montra” daquilo que a região tem para oferecer, surgindo como uma “base para se desenvolverem actividades ao longo do ano” que estimulem não só o turismo como o envolvimento da comunidade local, com retorno económico para as empresas que operam na região. “O [festival] Andanças fazia muita coisa durante aquela semana, mas depois ia [embora] e não havia mais nada o resto do ano”, compara José Carlos Almeida, presidente da Junta de Freguesia de Carvalhais e de Candal e presidente da Associação Turística e Agrícola da Serra da Arada (ATASA), que organiza o Tradidanças. O novo festival nasce sobretudo para recuperar a herança deixada pelo Andanças, que se realizou aqui durante 15 anos, primeiro no parque da Fraquinha, em plena serra da Arada, depois no sopé da montanha, junto à povoação de Carvalhais. Após um ano de semi-interregno, o festival organizado pela PédeXumbo mudou-se para Castelo de Vide em 2013 e é lá que decorre desde então. “Tínhamos as infra-estruturas, o know-how das pessoas que estavam habituadas a organizar o festival e o saudosismo do Andanças, que saiu daqui de um dia para o outro”, enumera o autarca. “Quisemos recuperar de alguma forma o nome e pegar nessa mística toda. ”“Acho que é a primeira vez que ainda vejo narcisos na serra nesta altura do ano”, espanta-se Paulo Pereira, ao apontar delicados tufos de flores amarelas à beira da estrada. Vamos a caminho de Arada, povoação entretanto abandonada que dá nome à serra que fecha o horizonte. O Inverno prolongado teima em atrasar a natureza e os mantos de urze e de carqueja só agora começam a florir, tingindo timidamente os cerros de roxo e de amarelo. Para lá da janela, mil-folhas de xisto crispam a subida até que, num cotovelo de estrada, a paisagem arredonda-se em blocos de granito. Torres de pedras sobrepostas destacam-se entre a vegetação rasteira. São as típicas mariolas, contam-nos, erguidas pelos pastores para servirem como pontos de referência geográfica. Os últimos habitantes saíram de Arada há cerca de dez anos, deixando ao abandono a pequena aldeia de vistas fartas sobre os montes que se estendem até à serra da Estrela. Em 2016, um incêndio levou parte do que restava. “Quando começámos a recuperar as casas foi já com a ideia de fazer alguma coisa para turismo”, revela José Carlos Almeida. A ideia, conta o autarca, é “adquirir a aldeia toda”. Mas, para já, as ruínas que estão a ser recuperadas vão dar lugar a 12 unidades de alojamento (entre quartos e apartamentos), um fumeiro e uma cozinha com forno comunitário. Junto ao desfiladeiro, está também a nascer uma piscina. O projecto deverá ter a primeira fase concluída até à Páscoa do próximo ano. Ou a segunda fase, se contarmos como primeiro passo a queijaria e o rebanho de cabras que o pastor conduz encosta acima. Uma vez mais, Paulo põe-nos a olhar para plantas que de outra forma escapariam à nossa atenção. Algumas flores de centáurea lusitana aqui (subespécie endémica portuguesa da família dos cardos) e, acolá, erva das sete sangrias, com as suas pétalas arroxeadas. Um pouco mais à frente, já no Retiro da Fraguinha, descemos até à turfeira que se estende junto a um ribeiro para observar narcisos-das-turfeiras ou martelinhos (espécie endémica do Noroeste da Península Ibérica), urze-das-turfeiras, molinia, tojo menor e esfagno, o ingrediente principal na constituição de uma turfeira, um ecossistema em habitat encharcado do tempo das glaciações, que tem uma fauna e flora únicas e que está hoje em dia confinado a pequenos refúgios nas montanhas. Foi aqui, nos relvados da Fraguinha, que se realizou a primeira edição do Andanças no concelho de São Pedro do Sul, depois de dois anos em Évora. Paulo Pereira não só fazia parte da organização como veio dele a ideia de criar em Portugal um festival dedicado às danças populares, depois de conhecer um conceito semelhante em França no início dos anos 1990. Os caminhos entretanto afastaram-se mas Paulo regressa agora com o Tradidanças, não só no apoio à organização do festival como enquanto músico, com duas bandas que marcam presença no cartaz, Bule-Bule e Malva. Depois do almoço, para desmoer os pratos de cabrito e de vitela, descemos a encosta por um percurso pedestre até Póvoa das Leiras. O caminho inicia-se na Fraguinha, onde nos abeiramos de uma pequena barragem onde se “pesca à mosca”, para depois acompanharmos o ziguezague de uma levada de granito, que guia a água das nascentes até aos terrenos agrícolas. Lá em baixo, no vale, o ribeiro do Paivô raramente desaparece por completo do cenário, formando pequenas cascatas e lagoas ao longo do caminho. A povoação do Candal já se avista do outro lado, com as suas casas cercadas pelo verde vivo das escadarias de leiras. Um cenário semelhante à Póvoa, neste lado do vale, confirmamos ao chegar. No Candal, há broas redondas a sair do forno e música à nossa espera. Luísa, Ana, Custódia, Marcolina e Emília trazem um longo reportório de modas da terra. Entoam testemunhos das vivências da aldeia, dos amores e desamores, das agruras do campo e do trabalho nas minas, da devoção católica. “Quando era pequenina era cantar, cantar, cantar”, recorda Luísa Campos, a mais velha das cantadeiras. Cantavam no minério, nas ceifas, nas desfolhadas. “Era uma alegria. ” Os dois filhos emigraram há muito para França, assim como grande parte da população de Candal. Custódia também por lá andou muitos anos mas regressou à terra natal entretanto. Aos 87 anos, Luísa ainda trabalha no campo e desfia mezinhas e rezas para todos os problemas com a sabedoria de quem teve de fazer farmácia e medicina com aquilo que tinha em redor. Além do coro na missa, as cinco cantadeiras dão voz à tradição popular sempre que surge uma oportunidade. Queixam-se da falta de mais eventos, no Candal e pelas povoações fora, onde gostavam de ir partilhar a herança de um tempo que já não volta. Em Agosto, pelo menos uma das viagens do Tradidanças deverá passar pelo ritmo das cantadeiras. Porque o património imaterial que carregam não tem de desaparecer com o passado. De 2 a 5 de Agosto, o campo de futebol de Carvalhais vai transformar-se no recinto do festival Tradidanças, com um palco para concertos diários, tendas para oficinas de dança, bailes e sessões de relaxamento e de desenvolvimento pessoal, barraquinhas de comida e de artesanato, um espaço dedicado às famílias e uma fogueira para aquecer as histórias que se contarão noite dentro. Durante as manhãs, o programa divide-se em passeios pelo património cultural e paisagístico do território da União de Freguesias de Carvalhais e de Candal. A partir da tarde, há oficinas e concertos no recinto. No dia 3, por exemplo, os Galandum Galundaina trazem as sonoridades tradicionais do Nordeste transmontano, enquanto os Terrakota sobem a palco no dia seguinte para uma viagem pelos ritmos quentes de África, Caraíbas e Oriente. Destaque ainda para as danças tradicionais dos quatro cantos do mundo, que marcam forte presença no cartaz. Bailes populares portugueses, danças minhotas, cabo-verdianas e dos Balcãs, forró brasileiro, muitos passos latinos e Bollywood prometem levantar pó no recinto de terra batida. Haverá ainda concertos ao final da tarde na igreja matriz de Carvalhais, oficinas de instrumentos musicais e de tradições regionais, artes de rua e contadores de histórias, entre outros. O festival conta ainda com zona de campismo e cantina. Tradidanças De 2 a 5 de Agosto de 2018 Carvalhais – São Pedro do Sul Preços: Os bilhetes diários custam 5€ (quinta, sexta e domingo) e 8€ (sábado). Já a entrada para os quatro dias custa 15€ até dia 1 de Julho, aumentando 5€ a partir dessa data. Há descontos para jovens, habitantes locais e parceiros do festival. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Restaurante S. Tiago Integrado nos Cursos Técnicos de Restauração da Escola Profissional de Carvalhais Carvalhais Horário: abre apenas quinta-feira ao jantarRetiro da Fraguinha Restaurante e Parque de Campismo - Fraguinha (Candal) Tel. : 912 397 733 E-mail Site Coordenadas GPS: N40º49’57’ / S008º09’31’Estação de Artes e Sabores Avenida José Vaz, 2 – São Pedro do Sul Tel. : 232 728 198 FacebookBioparque – Parque Florestal do Pisão Tel. : 967 183 022 E-mail Site Coordenadas GPS: 40°47’59. 2”N / 8°07’48. 2”WPreços: noite no parque de campismo a partir de 5, 50€ (tenda) e bungalows desde 65€/noiteCasa d’Avó Pisão Tel. : 965 819 817 Preços: a estadia na casa (para um máximo de 12 pessoas) custa 135€/dia, 400€/semana ou 700€/quinzena; enquanto obungalow para quatro pessoas custa 80€/dia, 350€/semana ou 650€/quinzena e o bungalow para seis pessoas custa 90€/dia, 380€/semana ou 650€/quinzena. Os bungalows estão disponíveis apenas a partir de 15 de Junho. Casa da Mota Aldeia da Mota Tel. : 232 798 202 Site Preços: quarto duplo a partir de 50€/noiteRecantos da Montanha Calçada do Aido, 6 – Candal Tel. : 232708055/ 968041708/ 968285700 E-mail Site Preços: quarto duplo a partir de 65€/noiteHotel do Parque Rua do Serrado – Termas de São Pedro do Sul Tel. : 232 723 461 E-mail Site Preços: quartos individuais a partir de 43€ por noite e duplos a partir de 65€A Fugas viajou a convite da ATASA – Associação Turística e Agrícola da Serra da Arada
REFERÊNCIAS:
A rua do azulejo da cidade-museu vivo
Em Ovar, há cerca de 800 fachadas azulejadas identificadas, mais de metade das quais no centro da cidade. É uma espécie de tapeçaria urbana, com um apogeu religioso: a Igreja de Válega, que refulge ao pôr-do-sol. Ouro sobre um arco-íris. (...)

A rua do azulejo da cidade-museu vivo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Ovar, há cerca de 800 fachadas azulejadas identificadas, mais de metade das quais no centro da cidade. É uma espécie de tapeçaria urbana, com um apogeu religioso: a Igreja de Válega, que refulge ao pôr-do-sol. Ouro sobre um arco-íris.
TEXTO: É a casa de chegada, contudo o cansaço é esquecido, a curiosidade vence a hesitação e poucos terão sido os que não deixaram um azulejo pintado para ir ao forno. Na sala da Escola de Artes e Ofícios de Ovar, última etapa da viagem pela “Rua do Azulejo”, os improvisados pintores chegam-se às mesas, as chacotas são distribuídas, os frascos de tinta (azul e amarela) e o papel vegetal dispostos. As regras foram partilhadas durante o passeio, mas, pelo sim, pelo não, recuperam-se: não tocar no azulejo (se não fica marcado); começar a pintar da cor mais clara (neste caso, o amarelo) para a mais escura (o azul); seguir as indicações das estampilhas (duas, como o número de cores a utilizar) para as colocar na posição correcta. Misturar bem a tinta e escorrer o pincel. O grupo da Universidade Sénior de Vila das Aves vai replicar a técnica de decoração de azulejos que mais viu no passeio temático de hora e meia por Ovar, a estampilhagem. É uma técnica semi-industrial muito utilizada para pintar azulejos de fachada, os mesmo que alteraram o cenário local entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX. As fachadas azulejadas de Ovar impressionaram tanto o primeiro director do Museu Nacional do Azulejo, Rafael Salinas Calado, que este a proclamou “cidade-museu vivo do azulejo”. “Ovar conserva um grande número de revestimentos azulejares de fachada, que se articulam com outro tipo de ornamentação cerâmica, como pinhas e balaústres…”, descreve a investigadora Maria Rosário Carvalho. “Arriscaria dizer que é o conjunto mais bem preservado em Portugal e é por isso um testemunho de enorme importância. ” É claro que Ovar não tem mais azulejos do que Lisboa, Porto ou Aveiro, por exemplo, mas tem uma quantidade e uma diversidade azulejar que a concentração e a escala da própria cidade potenciam — e, então, cada rua é como uma sala de museu. Os sacos plásticos amarelos podem não ser o mais prático para caminhadas, ainda que urbanas; contudo, como ir a Ovar sem provar (e levar) o pão-de-ló? E assim cá estamos na casa de partida para a “Rua do Azulejo”, o Largo da Casa do Povo, sacos na mão, pão-de-ló de boca-em-boca — e azulejos olhos dentro. Este é um projecto de passeios temáticos, criado em finais de 2015, que acontecem durante todo o ano: no Verão, entre meados de Junho e meados de Setembro, há uma agenda (e muitos visitantes estrangeiros, espanhóis e franceses, sobretudo); no resto do ano é por marcação (e um mínimo de seis pessoas). Sempre com experiência de pintura de azulejos no final (os azulejos podem ser levantados posteriormente). Sempre gratuitos. Serviço de Turismo Tel. : 256 509 153; 930 409 207 E-mailAlguns historiadores acreditam que a odisseia dos azulejos em Ovar está ligada à emigração para o Brasil na transição entre os séculos XIX e XX. De volta a casa, os emigrantes queriam afirmar a sua riqueza e o uso do azulejo como elemento decorativo das fachadas cumpria bem esse papel — estava na moda e era ostensivo. Não só isso como ainda tinha vantagens práticas de resistência e de durabilidade no revestimento de fachadas, o que a cinco quilómetros do mar não é uma questão de somenos. Tanto assim é que o azulejo em Ovar se encontra em fachadas burguesas, eruditas, mas também vernaculares, apenas porta, janela e azulejo. E podem distinguir-se diferentes períodos só pelo olhar, como aprendemos: os mais antigos, de meados de oitocentos, são normalmente os azuis ou azuis-amarelos, pintados “à mão livre”; no final do século XIX crescem para 15 centímetros e ganham mais cores; já no século XX, a Arte Nova e a Art Déco imiscui-se com cores fortes e elementos vegetalistas e florais. Mais complicado seria memorizarmos os padrões e guarnições — a sua diversidade é também um caso de estudo. O grupo divide-se após a apresentação geral, para tornar mais ágil a visita. Não saímos do largo sem confrontar duas fachadas, uma pré-industrial, azul e branca, e outra industrial com decoração nas platibandas — o que chama mais atenção a um olhar leigo é o estado de conservação: esta última, a Casa de S. Lourenço, está decrépita, enquanto o primeiro, onde funciona a Foto Lisboa (sucessor do Photo Amador, o primeiro estúdio fotográfico de Ovar), resplandece. Um já foi intervencionado e o outro não. Aqui, fazemos rewind: se Ovar tem hoje o projecto de itinerários temáticos “Rua do Azulejo” é porque antes houve, e há, um Atelier de Conservação e Restauro de Azulejo (ACRA). É o único atelier municipal do país e está ao serviço do concelho — literalmente, na recuperação de fachadas históricas (azulejos do século XIX e primeira metade de XX) — que agora tem uma área de requalificação prioritária — o centro da cidade, no eixo formado pela Praça da República, o Largo Mouzinho de Albuquerque e o Largo Família Soares Pinto. Os azulejos são restaurados ou reproduzidos e colocados nas fachadas de forma gratuita; há ainda benefícios financeiros para os proprietários que decidam recuperar os imóveis, dos quais foi proibida a remoção de azulejos. E incentivos para manter todo o estilo da fachada, portas, janelas e ferro forjado incluídos, não apenas a cerâmica: uma fachada Arte Nova (uma das poucas integralmente neste estilo) é apontada “como exemplo do que deve ser feito”. E, então a exploração: uma fachada de azulejos pombalinos, normalmente usados no interior, que, datada de 1823, será um dos primeiros exemplares de revestimento azulejar de fachada em Ovar; um dos raros edifícios com azulejaria relevada (século XIX) e um outro com decoração em estampagem — juntamente com a estampilhagem são as três técnicas de decoração que encontramos neste passeio. Já vimos uma fachada-publicitária, das primeiras semi-industriais em Ovar e que está agora a necessitar de muitas obras para recuperar os azulejos que imitam porcelana, conhecemos o padrão crochet e andámos de cabeça no ar a olhar as balaustradas de cerâmica vidrada que decoram as fachadas mais opulentas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na capela de Santo António, numa extremidade da Praça da República (antiga do Comércio: estamos na margem da rua que foi durante muitos anos a única estrada a ligar Porto e Aveiro) detemo-nos nos azulejos de encomenda com representações ligadas à igreja (cruz, cálice e coroa de espinhos) e na antiga Quinta de S. Tomé, agora a Conservatória do Registo Predial, vemos as únicas telhas (calões) decoradas. No Chafariz Neptuno, vista para o Tribunal de Ovar, obra modernista de Januário Godinho: na galeria externa seis enormes painéis de azulejos de Jorge Barradas parecem tapeçarias com temas ligados ao mar, apropriados para uma cidade tão ligada à pesca. Ficou de fora deste itinerário, “apenas um dos vários percursos da “Rua do Azulejo”, como sublinham as duas guias, Jacinta Cunha e Tânia Guimarães, mas será o verdadeiro ex-líbris da azulejaria em Ovar, a Igreja de Válega, a pouco mais de seis quilómetros da cidade. Barroca de origem, o seu revestimento azulejar, interior e exterior, é da segunda metade do século XX: basta a fachada, com as suas pinturas intensamente coloridas, para deslumbrar — com o sol, refulge, ouro sobre arco-íris. São cerca de 800 as fachadas azulejadas identificadas em Ovar, 65% das quais no centro da cidade. É uma cidade-tapeçaria, uma espécie de cenário. O grupo da Universidade Sénior de Vila das Aves talvez volte para reclamar o seu quinhão: os azulejos pintados irão ao forno e ficarão à espera de ser levantados.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Europeus, americanos e brasileiros num mundo de azeites
Críticos e chefs de mercados considerados prioritários para o azeite alentejano vieram conhecer a região e perceber o que diferencia os azeites que aqui se fazem e como se harmonizam à mesa. (...)

Europeus, americanos e brasileiros num mundo de azeites
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Críticos e chefs de mercados considerados prioritários para o azeite alentejano vieram conhecer a região e perceber o que diferencia os azeites que aqui se fazem e como se harmonizam à mesa.
TEXTO: Em cima de uma mesa de apoio alinham-se sete garrafas de azeite. À nossa frente sucedem-se os pratos criados pelo chef Pedro Mendes na cozinha da alentejana Quinta do Quetzal, cada um pensado para um azeite com determinadas características. Para os ovos recheados usámos o Courela do Zambujeiro, o carpaccio de bacalhau com poejos e alho harmonizou com o Monte de Portugal, na salada de tomates e cebolas o pão alentejano foi embebido em azeite Saloio. Já os sabores totalmente distintos da salada de cuscuz marroquino com frutos secos beneficiaram de um Monte das Louzeiras. Pratos de sabores mais intensos pediram azeites à altura, foi o caso do polvo com creme de pimento, coentros e azeite, onde foi usado o Herdade do Esporão Biológico, e a deliciosa açorda de bacalhau levou um Relíquia da Vidigueira. Um dos pratos mais interessantes, pelo desafio que representava, foi o toucinho de porco alentejano e legumes da horta, uma sábia combinação da gordura animal com a frescura dos vegetais, para o qual Pedro Mendes escolheu um Moura DOP. O almoço fez parte de uma visita organizada pelo Centro de Estudos e Promoção do Azeite do Alentejo (CEPAAL) para dar a conhecer os azeites alentejanos a um grupo de chefs e críticos gastronómicos de diferentes países: o chef dinamarquês Allan Poulsen, a crítica alemã Dorit Schmitt, o chef americano (de origem portuguesa) David Santos, o chef brasileiro Óscar Bosch, o crítico gastronómico também do Brasil Josimar Melo e a crítica nórdica Anna Berghe. Ainda do Brasil vieram o “azeitólogo” Marcelo Scofano, da escola de gastronomia Estilo Gourmet, acompanhado por Mário Leta, o fundador da cadeia de supermercados Zona Sul, do Rio de Janeiro. “Estamos a desenvolver uma série de iniciativas para seis mercados que foram identificados como prioritários pelos produtores para a promoção do azeite: Alemanha, Dinamarca e Suécia, Brasil, Estados Unidos e Canadá”, explica Henrique Palma Herculano, director técnico do CEPAAL. São, obviamente, mercados com características diferentes. “Os países nórdicos são os que têm menos sensibilidade para o tema porque o azeite nunca fez parte das dietas deles. A Alemanha é um mercado que está muito desperto para os alimentos saudáveis e para a cozinha mundial em geral, os EUA são um país produtor e que, com as comunidades grega e italiana, conhece o azeite há muito tempo”, enumera o responsável do CEPAAL. No Canadá há uma comunidade imigrante forte e poder de compra. Quanto ao Brasil, é o “mercado de exportação por excelência” para o azeite português – 70% do azeite consumido no Brasil é de Portugal (e 76% da produção de azeite nacional é do Alentejo). O objectivo neste momento, continua Henrique Palma Herculano, “é promover um azeite diferenciado e há nichos de consumidores no Brasil que estão dispostos a pagar por um azeite de qualidade”. Como é que isso se faz? “Protegendo as variedades nacionais. Não estou a dizer que se plantem só variedades nacionais, mas que se mantenham as que existem. Imagine que eu sou um produtor privado, posso instalar uma boa parte do meu olival com a variedade arbequina [não autóctone] mas talvez um terço da área com variedades tradicionais. O simples blend de variedades já é um bom elemento de diferenciação”, explica Henrique, sublinhando o paralelo com o que acontece no mundo dos vinhos com as castas de uva. Nestas tours gastronómicas, o CEPAAL leva os convidados estrangeiros a conhecer diferentes tipos de produtores do Alentejo e a provar azeite para explicar essas diferenças. Depois de uma noite no Évora Olive Hotel, um hotel inspirado precisamente no universo dos olivais e do azeite, seguimos para o Monte das Louzeiras, perto de Vale de Vargo, onde somos recebidos pelo arquitecto e designer suíço Mark Kunz, que conta como há 15 anos se apaixonou pelo Alentejo ao ponto de se instalar aqui, recuperando um lugar abandonado, com um olival e, mais recentemente, dedicando-se a fazer também o tradicional vinho da talha. Para além do azeite (com as marcas GOTA e ML), aqui faz-se mel, um piripíri com sementes de mostarda, e vários produtos de cosmética natural à base de azeite e sal. “Viajo muito pelo mundo, como a melhor comida, mas apresentam-me sempre péssimo azeite”, lamenta Mark Kunz. “Se estão a cozinhar com os melhores produtos, porque não usam um bom azeite? As pessoas confiam nas marcas, mas não conhecem verdadeiramente. É preciso mostrar-lhes a diferença. ”Na Quinta das Louzeiras manteve algumas das oliveiras mais antigas, que não são tão produtivas mas ajudam à tal estratégia de diferenciação do azeite — o DOP Serpa, por exemplo, tem que ser feito com a galega, a cordovil de Serpa e a verdeal. António, o responsável pelo olival, explica como é mais difícil trabalhar as oliveiras antigas. “É complicado encontrar pessoas que saibam fazer o varejamento, não se pode bater nos ramos, porque partem, é preciso vibrar a árvore, mas não se pode usar o vibrador como nas árvores mais jovens. ”Seguimos viagem para conhecer uma realidade muito diferente, a da Cooperativa Agrícola de Moura e Barrancos, fundada em 1954, e que recebe azeitona de 1200 olivicultores, tendo um lagar com capacidade para 230 toneladas de azeitona por dia. São, por campanha, sete milhões de quilos de azeites virgem vindos de mais de 20 mil hectares de olival. Mas a quantidade não impede a cooperativa de apostar também em nichos: um deles é o Azeite Virgem Extra Premium CAMB e outro o Azeite de Moura DOP Virgem Extra Bio. O azeite biológico é uma área em que “houve uma desaceleração da motivação porque os apoios estão parados, não há mais área disponível para apoiar”, diz Henrique Palma Herculano. “E o mercado ainda não consegue remunerar a diferença de produtividade. ”Quanto ao panorama geral, o que se passa hoje no Alentejo é que “o aumento da área de olival muito produtivo [intensivo ou superintensivo] levou a que a produção do azeite tenha batido o recorde dos últimos 50 anos, e a tendência será para aumentar porque os olivais instalados nos últimos anos começam agora a entrar em produção plena”. Daí o reforço da aposta na exportação. Ao nosso lado no almoço na Quinta do Quetzal ficam Marcelo Scofano, o especialista brasileiro em azeite, e Mário Leta, o dono dos supermercados Zona Sul. Ambos confirmam que existe no Brasil um nicho de mercado (sobretudo precisamente na zona sul do Rio de Janeiro) interessado em qualidade. GalegaÉ a mais difundida em Portugal (cerca de 80% da superfície de olival). Colhida em verde, tem um frutado de maçã verde, com amargo e picante ligeiros; colhida em maduro, tem um frutado de amêndoa e frutos secos, com sensações de doce e ausência de amargo e picante. CobrançosaOriginária de Trás-os-Montes, é também produzida no Alentejo e tem toques de amargo e picante, notas de erva verde e notas doces. Cordovil de SerpaAmargo e picante, sensações intensas de verde folha. São frutos de grande dimensão e tem um elevado teor de ácido oleico. VerdealSensações de verde, amargo e picante. Mantém-se verde até ao final da campanha. Fonte: CEPAALPor isso, para os supermercados Zona Sul, Mário Leta contratou uma equipa de consultores especializados em diferentes áreas, dos vinhos aos queijos e, no caso dos azeites, Marcelo. Estes profissionais dão apoio nas lojas, formam pessoas para que elas possam ajudar os clientes a escolher e fazem ainda pequenos vídeos (o Toque do Expert, no You Tube) em que explicam as características dos produtos e a melhor forma de os utilizar. Marcelo é um apaixonado por azeite. Enquanto os pratos de Pedro Mendes vão chegando à mesa, ele vai explicando: “A forma de falar de azeite é quase poética, ele pode ser verde ou maduro com toques herbáceos, com untuosidades amendoadas ou herbáceas, notas ligeiramente picantes ou amargas. O importante é que harmonize sempre com o alimento, por semelhança, raramente por contraste. Um carpaccio de bacalhau como o que comemos aqui não pode ser com um azeite muito intenso, mas se for um bacalhau grelhado, já aguenta um mais intenso. ”São indicações como estas que ele tenta passar para os clientes do Zona Sul. E, embora os azeites que mais se vendem no Brasil sejam sempre os de grande escala — com as marcas Gallo e Andorinha a dominar totalmente o mercado — começa a surgir espaço para outros, como os da Herdade do Esporão, Cartuxa ou EA. “Eu explico que um azeite pode ser maduro ou verde, que nos verdes pode ser de folhas e ervas ou de frutas verdes e entre os maduros pode ser de frutas maduras ou com notas herbáceas. Quase todos têm um retrogosto de frutos secos, amêndoa, nozes”, continua Marcelo, entusiasmado, enquanto elogia os pratos de Pedro Mendes. E, no panorama geral, como descreve os azeites do Alentejo? “Para mim tornou-se a região doce, com toques maduros e herbáceos muito suaves, delicados e harmoniosos, com um retrogosto amendoado muito marcante. São azeites com uma versatilidade muito interessante”. Depois é só, como fez o chef, perceber que azeite pede uma salada de cuscuz e qual o que tem intensidade para enfrentar um polvo com creme de pimento. 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REFERÊNCIAS:
No tempo em que os militares faziam a reforma agrária
Nas primeiras horas de uma manhã do Verão Quente de 1975, um grupo de homens acantonou-se numa herdade no Alentejo e envolveu-se numa troca de tiros com trabalhadores que se preparavam para a ocupar. Horas mais tarde, o exército tornava claro que a resistência à reforma agrária era fútil e perigosa. (...)

No tempo em que os militares faziam a reforma agrária
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento -0.1
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nas primeiras horas de uma manhã do Verão Quente de 1975, um grupo de homens acantonou-se numa herdade no Alentejo e envolveu-se numa troca de tiros com trabalhadores que se preparavam para a ocupar. Horas mais tarde, o exército tornava claro que a resistência à reforma agrária era fútil e perigosa.
TEXTO: Estava escrito nas estrelas que aquela manhã de 15 Julho de 1975 não estava para conservar a rotina da Herdade Sousa da Sé. No dia anterior, José Andrade recebera um telefonema da mãe avisando-o que o pai ouvira falar na ocupação da enorme propriedade da família por parte dos sindicatos agrícolas mobilizados pelo PCP. Depois do aviso, lá para o final da tarde, José Andrade sai de Almeirim no seu Triumph Spitfire descapotável acompanhado por um amigo e desloca-se para a herdade a escassos quilómetros do centro de Évora. Como o fogo num rastilho, a notícia da ocupação espalha-se pelo Ribatejo, de onde os Andrade são originários, e pela noite chegam mais quatro amigos e o irmão de José. O grupo de jovens estava disposto a resistir à ocupação, mas não fazia sequer ideia do custo e da futilidade dessa resistência. “Foi um gesto inconsciente. Estava convencido de que eles nos viam lá e se iam embora”, recorda José Andrade. Não foram, e houve insultos, gritos, raiva, pavor e tiros que fizeram da escaramuça da Sousa da Sé o símbolo da força da reforma agrária e a prova da hegemonia do PCP no Alentejo nesse Verão Quente de há 40 anos. Aconteceu o que só podia acontecer. Por volta das sete da manhã do dia 15, as informações da mãe de José Andrade provaram ser correctas quando uma fila de camiões e tractores carregados de trabalhadores passaram pelo portão e dirigiram-se à casa da herdade. A ocupação de uma pequena parte da Sousa da Sé tinha começado em Março e o Sindicato Agrícola de Évora, a Liga dos Pequenos e Médios Proprietários e o Centro Regional da Reforma Agrária do distrito tinham concluído que chegara a hora de a expurgar dos latifundiários e de consumar a promessa da terra a quem a trabalha. À frente dos ocupantes seguia o faniqueiro (trabalhador contratado) Grancho, que o pai de José costumava recrutar para serviços sazonais. Atrás, uma legião de operários agrícolas com as suas alfaias. “Aconselhei-o a ir-se embora”, recorda José. O aviso incendeia a raiva, a raiva promove o insulto e o insulto estimula o ódio e a altercação. Entre os gritos, ouve-se um tiro que atinge um primo do pai de José, Guilherme Gonçalves, 45 anos, e o fere com gravidade. “Depois gera-se o caos. Disparam-se tiros dos dois lados e os ocupantes começam a fugir”, recorda José Andrade, que no final dos anos de 1990 chegou a presidir à Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP). Para lá de Gonçalves, ficou igualmente ferido o trabalhador rural José Augusto Prova, de 43 anos. Depois do incidente, a paz regressara à herdade. Mas todos sabiam que era uma paz falsa. Dos nove ocupantes da casa, seis ficaram com José e os outros foram levar Guilherme ao hospital. Por volta da uma da tarde, começam-se a avistar ao longe os primeiros movimentos de uma coluna militar que ensaiava o cerco da herdade. “Podíamos ver os soldados a rastejar, aproximando-se de nós”, conta José. Estava tudo acabado. A herdade de 900 hectares, adquirida em 1968 com dinheiro de toda a família para que o pai de José, um veterinário, pudesse cumprir o seu sonho de fazer uma grande ganadaria, esvanecera-se no furor imparável da reforma agrária protegida pela força dos militares de Abril. “Pusemos uma T-shirt branca espetada num pau e rendemo-nos”, conta José. Os ocupantes da casa foram então levados para o Quartel-General em Évora, interrogados até às nove da noite e daí seguiram para Caxias, onde ficaram presos até Setembro. O pai de José, que quisera saber o que se passara junto dos militares, teve o mesmo destino. Do outro lado da barricada, António Gervásio, um militante histórico do PCP, com 22 anos de clandestinidade e cinco anos e meio de cativeiro, preocupava-se por essa altura em acelerar o ritmo de um sonho que alimentara durante décadas a acção da resistência e o ânimo dos líderes das lutas camponesas do Alentejo. Com 88 anos de idade e uma impressionante frescura física, Gervásio recorda-se do episódio de Sousa da Sé como uma simples vírgula no brilhante texto da reforma agrária, “a mais bela conquista da revolução de Abril”, no dizer de Álvaro Cunhal. “Houve por lá uns tiros, mas era para nos intimidar. Alguns proprietários levantaram cabelo, mas os militares de Abril vieram pôr ordem nisso”, recorda Gervásio. Mais do que pôr ordem nos agrários, os militares provaram na Sousa da Sé que qualquer acto de resistência dos donos das terras à ocupação era inútil e perigoso. Um comunicado emitido no dia seguinte pelo comando da Região Militar do Sul rapidamente transformado em manchete nos jornais de Évora e Beja controlados pelo PCP tirava as poucas dúvidas que pudessem subsistir: na herdade de Sousa da Sé ocorrera “um acto extremo da entidade patronal, que não hesitou em recorrer ao concurso de elementos vindos de outras regiões com o intuito de entravar a justa luta dos trabalhadores e as decisões emanadas dos órgãos governamentais encarregados da execução da reforma agrária”, explicava. Actos desses, continuava o comunicado, atentavam contra os “legítimos interesses da classe trabalhadora”. Para que a ousadia não se repetisse, o comando militar do Sul avisava: “[O comando militar] estará atento a todas as manobras do mesmo tipo e declara-se disposto a contra elas actuar com toda a firmeza. ”A posição do Exército em favor das ocupações de terras lideradas pelo PCP teve um duplo efeito: serviu para legitimar a ocupação das herdades desde Janeiro de 1975 e criou uma atmosfera propícia ao avanço de novas ocupações. Sousa da Sé era uma lição para os agrários que os defensores da destruição do latifúndio se apressaram a divulgar e capitalizar. O Centro Regional da Reforma Agrária de Évora condenou o “grupo de fascistas e latifundiários” que “atingiram gravemente a tiro um trabalhador agrícola” e lamentou que “a reaccionários da pior espécie seja permitido campo de manobra suficiente para se organizarem contra as medidas decretadas pelo Governo”. O sindicato de Évora alertou para o “grupo de reaccionários” que, “tapado por lacaios, agride e fere camaradas trabalhadores da Liga dos Pequenos e Médios Agricultores” — o ferimento de Gonçalo Gonçalves fora causado “pelo mau funcionamento da arma com que actuava, pois a arma deve ter-se encravado”, na versão do sindicato. O PCP levantou o dedo contra os “facínoras” e o Sindicato dos Profissionais do Comércio e Serviços do Distrito de Évora sentenciou: “Ou nós matamos os fascistas, ou eles matam-nos a nós. ” Como corolário lógico desta movimentação, o ministro da Agricultura, Fernando Oliveira Baptista, visitou Sousa da Sé no dia seguinte ao incidente para avisar que qualquer resistência armada às ocupações levaria à expropriação total e sem indemnização dos bens dos agrários. Perante este colete-de-forças que combinava a política com a coacção das armas, os agrários sofreram uma imponente derrota nesse mês de Julho de 1975. A lei que enquadraria a reforma agrária seria aprovada duas semanas depois de Sousa da Sé e limitava-se por essa altura a ratificar a realidade imposta no terreno pela dinâmica revolucionária. Havia seis meses que, um pouco por todo o Alentejo, as ocupações decorriam sem constrangimentos de maior. O PCP liderava a reforma agrária no terreno, os partidos da extrema-esquerda, com destaque para a UDP, preenchiam pequenos espaços vazios pela apertada organização comunista no Couço ou em manchas de Setúbal, o PS esteve ao lado do processo pelo menos até Novembro de 1975 e, como garantia suprema da revolução nos campos, os militares da Escola de Artilharia de Vendas Novas estavam prontos para dissuadir os mais recalcitrantes. “De manhã, formava-se um pequeno destacamento com jipes que deixava cedo o quartel e ia correr às herdades. Eram verdadeiros revolucionários: levavam boinas à Che Guevara e cartucheiras à volta do corpo. Pegavam nuns trabalhadores, dirigiam-se para uma herdade, deixavam-nos lá e declaravam a herdade ocupada. Num só dia chegaram a ocupar 12 herdades desta maneira”, de acordo com o depoimento de J. Dórdio, citado por António Barreto no seminal Anatomia de Uma Revolução — A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976. Se bem que, no final de 1974, fosse já possível prever que as ocupações iriam acontecer mais tarde ou mais cedo, é a 22 de Janeiro de 1975 que o Governo manda intervencionar pela primeira vez uma propriedade agrícola, a Herdade do Monte do Outeiro. Nesse mês, já o sindicato de Beja se dizia pronto a “começar imediatamente a reforma agrária por sua própria iniciativa”, uma forma de superar a “esclerose” e as hesitações do aparelho de Estado. A 9 de Fevereiro o PCP assume definitivamente um plano de acção, organizando com os sindicatos sob a sua influência a 1ª Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, que reúne mais de quatro mil delegados e 30 mil rurais em Évora. No dia seguinte, “realizaram-se plenários para se escolherem as herdades a ocupar e os colectivos para os dirigir”, recorda António Gervásio. “Para nós, era tudo novo”, afirma o histórico do PCP, embora a formação desses colectivos obedecesse a uma prescrição testada noutras latitudes — eram formados por “membros do partido, trabalhadores e sindicatos”. Faltava no entanto um argumento capaz de sustentar a pressa do PCP e da legião de trabalhadores sem terra que a cada dia que passava engrossavam as fileiras do partido — no Alentejo, o PCP fica atrás do PS nas eleições para a Constituinte, mas, no ano seguinte, é já o partido hegemónico nos círculos da região. É então que se descobre o motivo para justificar a pressa e acelerar as ocupações: a sabotagem. “Alguns latifundiários deixavam morrer o gado. Outros levavam daqui as máquinas. Eram actos de sabotagem que indignavam as pessoas. E então começou-se a discutir: o que vamos fazer?”, recorda António Gervásio. A pergunta é retórica; as ocupações estavam previamente aprovadas. Uma propriedade de 2049 hectares da família Sousa Lara segue este destino por ter sido “sujeita a uma acção de descapitalização significativa e injustificada, traduzida na venda de todo o efectivo pecuário”; a herdade da Diabrória, em Brissos, com 730 hectares, é ocupada de noite por centena e meia de homens, alguns armados, porque a sua administração tinha decidido vender “um núcleo seleccionado de vacas da raça Devon, único no país”. Para não perder o passo e deixar a reforma agrária nos braços do PCP, o Estado arma-se com instituições apropriadas para acompanhar o ritmo. Com a chegada de Vasco Gonçalves ao Governo, em Março de 1975, começa a nascer uma rede de organismos pensados para suportar no terreno as ocupações e a dinâmica revolucionária. Fernando Oliveira Baptista, o ministro da Agricultura, manda criar o Instituto da Reforma Agrária, os centros regionais de reforma agrária, entidades inspiradas no modelo chileno de reforma agrária, onde o Estado se sentava ao lado dos sindicatos e das forças armadas, e o Serviço de Apoio e Desenvolvimento Agrário. Em Abril, um projecto de decreto-lei aponta para a expropriação de todas as propriedades com mais de 500 hectares de sequeiro ou 50 de regadio. O ministro tinha em mente “um verdadeiro novo ministério, maduro para a revolução” e num curto espaço de tempo consegue-o. Com o patrocínio do Estado, os centros regionais da reforma agrária juntam-se aos sindicatos para a ocupação, entre Janeiro e Julho, de 256 herdades, correspondentes a 156 mil hectares, onde foram constituídas 25 unidades colectivas de produção (UCP). Como cerca de metade desta área foi ocupada em Julho, os proprietários perceberam nesses dias turbulentos que o que estava em curso era bem mais do que um devaneio. Nesse mês decidem passar à acção, mesmo sabendo que nem o clima político nem a correlação de forças no terreno estavam do seu lado. A 9 Julho, um grupo de agrários de Odemira liderados pela família Passanha expulsa trabalhadores das suas terras e trava-se de razões com os delegados dos sindicatos; a 14 Julho, 200 agrários tentam invadir o Centro Regional da Reforma Agrária de Elvas; no dia 16, registam-se escaramuças em Reguengos após azedas trocas de insultos entre proprietários e trabalhadores, ou, na terminologia da época, entre latifundiários e operários agrícolas. Depois da intervenção do exército na herdade Sousa da Sé, os proprietários tiveram de esperar pelo 25 de Novembro para poderem, ao menos, protestar publicamente contra as ocupações. No ambiente do Verão Quente, era difícil questionar as invasões das propriedades, quanto mais travar a luta dos operários agrícolas. Aos olhos do país, o que se passava nos campos do Sul era apenas um ajuste de contas do Alentejo com a sua história. “Para percebermos o que se passou, temos de perceber as situações históricas. Se não, as coisas não encaixam umas nas outras”, adverte António Gervásio. “No Ribatejo, houve mais resistência às ocupações. Havia mais proximidade afectiva entre o patrão e o trabalhador. No Alentejo, a ocupação fazia-se com facilidade. Tem a ver com o modelo fundiário e de exploração. No Alentejo, a mensagem da reforma agrária passou muito facilmente, até porque havia alguma razão de ser nessa mensagem”, nota José Andrade. O que estava em causa era uma espécie de epílogo das lutas dos assalariados contra as más condições de vida no Alentejo, lutas que alimentaram uma permanente rede clandestina do PCP e deram origem a uma brigada de heróis onde se destacam os nomes de Catarina Eufémia, Alfredo Lima e José Adelino dos Santos, mortos pela GNR em protestos a favor de melhores salários. A conjugação dos resultados dessas lutas com a carência de mão-de-obra provocada pela forte emigração dos anos de 1960 melhoraram as condições de vida dos assalariados agrícolas, mas apenas relativamente. O horário laboral de oito horas conquistou-se em 1962 e o salário diário subiu de 28, 79 escudos em 1965 para 70, 13 escudos em 1972, de acordo com António Barreto no livro citado. Mas essas melhorias partiram de uma base muito precária. “Eu era operário agrícola, trabalhava onde havia trabalho. Podiam ser dois meses numa herdade ou um fim-de-semana aqui, outro ali. Na entrada da Primavera e antes das sementeiras, entre Agosto e Setembro, era difícil arranjar trabalho. Depois, os trabalhadores agrícolas não tinham direitos nenhuns. Só tinham direito a trabalhar quando houvesse trabalho. Era uma escravatura”, recorda António Gervásio. A promessa de dar “a terra a quem a trabalha” tornou-se facilmente num poderoso factor de mobilização que a máquina bem oleada do PCP soube aproveitar. Com a lei da reforma agrária publicada em Agosto de 1975, o ritmo das ocupações acentuou-se no segundo governo de Vasco Gonçalves e ainda mais na vigência do VI Governo Provisório, com Pinheiro de Azevedo como primeiro-ministro e o socialista Lopes Cardoso como ministro da Agricultura. Entre Agosto e Dezembro, 3331 herdades, que ocupavam mais de um milhão de hectares, são ocupadas no Alentejo e no Ribatejo. A reforma agrária parecia um processo imparável e o Governo de Pinheiro de Azevedo deu-lhe lastro, ao conceder crédito público para investimento e para o pagamento de salários nas UCP existentes. Nos dois meses do seu mandato, foram ocupados 680 mil hectares de terrenos agrícolas, alargando a mancha da reforma agrária para os aluviões do Sorraia e do Tejo, onde uma classe de agricultores mais profissionais e mais ligados à terra prometiam resistir. Em Setembro de 1975, José Andrade, o seu irmão, o pai e os amigos são libertados por um mandato assinado por Otelo Saraiva de Carvalho, que considerava ter ficado provado que os detidos não faziam parte de nenhuma “organização de malfeitores”, a designação que legitimava as prisões políticas do novo regime. Andrade e os seus pares nunca foram julgados e a sua libertação coincide com um aumento da agitação dos médios proprietários ribatejanos perante o alastramento das manchas de ocupações para as margens do Tejo. Em Julho, em Rio Maior, um assalto à sede do PCP e o assalto e destruição dos carros que traziam os jornais de Lisboa servira de aviso sobre os limites territoriais da reforma agrária. Nos meses terminais do Verão Quente, essa cidade voltaria a ser a capital da resistência contra as ocupações de terras. O Tejo era a fronteira definitiva da ambição colectivista. No dia 6 de Novembro, umas centenas de proprietários de Santarém são já capazes de organizar uma manifestação, de desfilar pelas ruas da cidade e de disputar numa batalha de rua o protagonismo aos sindicatos do PCP. O repórter Carlos Soares, do jornal A Luta, esteve lá e contou o que viu. “Nas ruas do centro assistiu-se a um combate corpo a corpo, as montras estilhaçadas, os homens ensanguentados, os carros danificados, os berros, os gritos. Rebenta uma bomba de fabrico caseiro. Disparam-se tiros. De ambos os lados os homens caem feridos. É a lei da selva, a raiva, o descontrolo total. ” No final do confronto, que causou dois mortos e 19 feridos, os agricultores ocupam uma rádio local e forçam a leitura de um comunicado dizendo que “o povo não está com o MFA”. A mudança definitiva do vento da reforma agrária (como do ardor revolucionário) aconteceria na noite de 24 para 25 de Novembro de 1975, quando os agricultores mobilizados pela novel Confederação dos Agricultores de Portugal, dirigida por um jovem técnico agrário ambicioso e destemido, José Manuel Casqueiro, se articulam com o coronel Jaime Neves e bloqueiam as estradas e as linhas ferroviárias para evitar qualquer avanço de tropas para a capital — o maior receio eram os pára-quedistas de Tancos. “Naquela noite havia um claro ambiente de resistência. A maioria silenciosa era uma realidade. As pessoas que chegavam às barricadas, por muito que os bloqueios alterassem as suas vidas, encorajavam-nos na nossa luta. Ficavam felizes por nos ver ali a bloquear a estrada. Foi estranho, mas reconfortante. Foi um momento especialmente crítico, que alterou de forma fundamental a dinâmica revolucionária”, recorda José Andrade, que participou no bloqueio. Com a eleição do primeiro Governo Constitucional, em Abril de 1976, a reforma agrária entra em recuo também na política. Em Abril, José Andrade estava na Assembleia da República, depois de ter sido eleito nas listas do PSD, e participa já na decisão de impor por lei o perímetro máximo das ocupações, com a criação da Zona de Intervenção da Reforma Agrária. E em Outubro António Barreto substitui Lopes Cardoso no cargo de ministro da Agricultura com a promessa de que o Alentejo não será a Sibéria. A sua famosa lei de bases da Reforma Agrária, de Agosto de 1977, consolida a inversão da tendência, acabando na prática com a possibilidade de novas ocupações e instituindo indemnizações e a devolução aos proprietários das propriedades ocupadas que não cumprissem as condições da lei. O nome do ministro, completado com um catálogo infindável de acusações e de insultos, tingiu as paredes do país, mas Barreto ainda hoje manifesta o seu “orgulho” pela legislação que ficou para a posteridade associada ao seu nome. E é assim que, lenta, mas irreversivelmente, as herdades começaram a ser devolvidas aos seus proprietários. Entre 1977 e 1983, porém, a resistência dos ocupantes e a força do PCP ainda eram suficientemente temíveis para congelar a vontade política expressa na lei. Pouco se avançou na devolução de propriedades. Num dos muitos episódios de resistência desse tempo, a GNR abateu a tiro António Manuel Casquinha, de 17 anos, e José Geraldo “Caravela”, quando lutavam contra a desocupação da UCP Bento Gonçalves, em Setembro de 1979. Mas depois de Cavaco Silva chegar ao poder e de as exigências da integração europeia excluírem a possibilidade da colectivização, as entregas das herdades aos seus donos acelerou de forma irreversível. A família Andrade recebe de volta a Sousa da Sé em 1985. Mas já não era a herdade que conheceram. “As canalizações de água não existiam, as cercas estavam partidas, a casa era um bar, o gado estava todo misturado e havia muito menos cabeças, as máquinas estavam avariadas. Era uma degradação total”, diz José Andrade. “O meu pai recebeu a herdade com desgosto. Andei a pé com ele a arrebanhar o gado. Foi cansativo e triste. Fizemos um enorme esforço de reinvestimento”, acrescenta José Andrade. Depois da morte do pai, o irmão, que a recebeu como herança, vendeu-a ao filho do empresário Sousa Cintra. Anos mais tarde mudou de mãos novamente para se transformar numa unidade turística. Hoje, o seu ar sugere abandono, com o portão encerrado, o amarelo da paisagem natural a impor-se e a deixar a nu o esboço de uma estrada que, como tantas obras paradas no Alentejo, nos transporta para o tempo das empreitadas que a crise de 2011 suspendeu por tempo indeterminado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. António Gervásio olha agora para o passado e reconhece que a luta da sua vida ficou incompleta. Nem todas as terras foram ainda devolvidas aos donos — na Herdade dos Machados ainda há lotes nas mãos de rendeiros e na Herdade do Pinheiro o litígio sobre a devolução chegou ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que em 2013 condenou o Estado a pagar uma indemnização de 1, 5 milhões de euros aos proprietários; aqui e ali subsistem vestígios desse tempo em que a promessa da terra a quem a trabalha se vivia no quotidiano dos campos ou nas ondas da rádio através de um programa com esse nome que a Emissora Nacional emitia todos os dias às sete da manhã; em Montemor-o-Novo há ainda uma loja de venda de produtos agrícolas e pecuários chamada “Caminhos do Futuro”. Vestígios desses são apenas reminiscências diluídas na memória de um tempo agressivo e turbulento, mas, apesar de tudo, pouco sangrento — a ocupação de quase 1, 2 milhões de terras fez-se de forma razoavelmente pacífica, apesar do incidente de Sousa da Sé, da manifestação de Santarém ou do confronto com a GNR em Setembro de 1979 do qual resultaram dois mortos. Gervásio, o velho militante do PCP que nos seus tempos de clandestinidade chegava a fazer dois mil quilómetros de bicicleta por mês a espalhar notícias da luta e a organizar acções de resistência, o operário agrícola que aprendeu a ler na cadeia, que sofreu a tortura da PIDE e fez parte do grupo que fugiu de Caxias numa ousada aventura que envolveu um carro blindado que Hitler tinha dado a Salazar, revê a história e considera que estamos apenas perante um parêntesis. “A terra não é de ninguém; é de todos. Com a reforma agrária, o Alentejo seria mais florescente e mais bonito. O que temos agora? Vinho e oliveiras dos espanhóis e o Alentejo despovoado. Portugal democrático precisa de uma nova reforma agrária. No dia em que Portugal construir um Portugal democrático, isso é posto a andar. A reforma agrária é uma exigência inadiável. Vai haver tarde ou cedo uma nova reforma agrária. A História não pára. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos PS PSD PCP UDP
Resposta a Henrique Raposo: “Não somos egoístas, somos responsáveis”
Esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito. (...)

Resposta a Henrique Raposo: “Não somos egoístas, somos responsáveis”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.225
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito.
TEXTO: Nos últimos dias tem sido partilhado e glorificado nas redes sociais um texto de Henrique Raposo, publicado pela Renascença, que define “uma sociedade composta por casais que começam a ter filhos aos 40” como “uma sociedade em autodestruição”. O texto prossegue culpando a geração Y que, segundo o autor, se caracteriza pelo egocentrismo e individualismo extremos, uma geração de filhos únicos mimados e egoístas que preferem a companhia dos animais à das pessoas e que se focam na carreira em vez de constituir família. O autor reconhece que não é fácil enfrentar a parentalidade nos dias de hoje, mas encara como obrigação da geração presente não só ter filhos e tê-los mais cedo, como ainda tê-los em maior quantidade. Gostaria de lembrar ao autor dessa crónica, e àqueles que a aplaudiram, o mundo em que vive a minha geração. Esta é a geração que foi convidada pelo seu próprio Governo a emigrar. Ou já se esqueceram? É a geração “mais bem preparada de sempre” porque precisa de fazer face à competitividade no mercado de trabalho, que nunca foi tão grande. Fomos lançados para o mercado de trabalho num país em crise, arruinado por políticas da geração anterior. Tivemos de nos sujeitar a estágios não remunerados e só agora começamos a conseguir empregos. Sobrevivemos balançando empreendedorismo e precariedade. Esta é a geração que ainda não saiu da casa dos pais porque não consegue. Muitos jovens adultos continuam a partilhar casa como nos tempos de estudante, simplesmente porque não conseguem arrendar de outro modo. Cerca de 65% dos jovens recorre ao arrendamento e apenas 19, 5% consegue pagar mais do que 600 euros de renda. Consideremos que há jovens que não ganham mais do que o salário mínimo. . . E que este continua a não garantir um escape à pobreza. Pedir um empréstimo ao banco para comprar casa é coisa do passado, pois os nossos trabalhos precários não oferecem garantias. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se a minha geração não quer casar é porque somos os filhos dos divórcios das vossas gerações. Na verdade, apesar de os portugueses casarem cada vez mais tarde, também se divorciam menos. Não temos medo do compromisso, mas somos menos impulsivos. A ideia que não queremos ter filhos também é errada. “Contrariando alguma ideia feita sobre o suposto egoísmo dos millennials, traduzido na eventual rejeição a ter filhos, as respostas registam uma vontade de paternidade/maternidade sempre acima dos 85% e são bastante homogéneas. ” A maioria quer mais do que um filho e, em Portugal, a média é de dois filhos. Em resumo, esta geração ainda luta por ter um emprego estável e um ordenado digno. Queremos ter filhos, mas também queremos que sejam crianças desejadas, trazidas ao mundo de propósito. Queremos ter condições mínimas para eles. Fomos educados no planeamento familiar e ainda bem. Não somos egoístas, somos responsáveis.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filho medo pobreza
O Alentejo no coração, uma aldeia ao fundo e o coelho fetichista
Farpões, Baldios, de Marta Mateus está na Quinzena dos Realizadores, bem como a animaçãoÁgua Mole, de Laura Gonçalves e Xá. Carlos Conceição regressa à Semana da Crítica de Cannes com Coelho Mau. (...)

O Alentejo no coração, uma aldeia ao fundo e o coelho fetichista
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Farpões, Baldios, de Marta Mateus está na Quinzena dos Realizadores, bem como a animaçãoÁgua Mole, de Laura Gonçalves e Xá. Carlos Conceição regressa à Semana da Crítica de Cannes com Coelho Mau.
TEXTO: Talvez este filme, Farpões, Baldios (Quinzena dos Realizadores), tenha começado numa casa sem luz e sem água — a “casa de conto” onde Marta Mateus nasceu, perto de Estremoz. Viveu ali até aos 10 anos. “Não conseguiam pôr-me na escola. Eu queria estar com as pessoas no campo. Contavam-me as suas histórias, como elas eram quando crianças — como era partilhar uma sardinha por dez pessoas” (como era bater às portas para pedir azeite já usado para barrar no pão). “Essa foi a realidade de mais de metade do país. Muitas dessas pessoas eram analfabetas. Mas sabiam contar histórias”. E elas foram os primeiros “filmes” que Marta viu: visões de searas a arder no Alentejo, de luta pela sobrevivência, máquinas, gado, operários, patrões. “Fui ao cinema mais tarde, só tivemos electricidade e televisão mais tarde. Os meus filmes foram essas imagens que aquelas pessoas contavam, naquela paisagem. Era a história deles, e era a minha. ”Era necessário, diz, começar com eles no cinema, começar com uma “noção de comunidade”. Era necessário fazê-los passar outra vez pela dor ao reviver as histórias. Já não são só deles. Também são dela. E o filme vinca que são nossas. “Quando a memória é partilhada ganha outra vida, num outro tempo, passando a ser, para quem a escuta, um passado que também nos pertence. A memória é também feita de imagens e cria outras imagens, mesmo quando recuperada no lugar onde se constituiu. Foram essas memórias que eu quis recuperar, as suas imagens, acompanhadas pela expressão das suas rugas queimadas pelo sol, pela voz que nos conta uma dor, pelos gestos de uma mão cansada, mas viva e pronta, onde se podem ler os vestígios. Por isso é necessário o regresso àquela paisagem, por lá estar guardada em cada canto a história daquelas pessoas, a nossa história”. No final deste fresco (impossível) sobre o Alentejo e sobre Portugal a que ficamos agarrados depois do visionamento, continuando a ser consumidos pelas invocações e pelo exorcismo, todos são reunidos num plano: os mais velhos da infância de Marta e os mais novos que chegaram para conquistar a paisagem (muito bonita a forma como reivindicam sem negociar). A cada um é dada a voz para se nomear no genérico final. Mas até lá eles são rugas, tempo, ditados, aforismos, memória. “Esses ditados, muito abertos, despertam a consciência e o coração. É uma forma de quebrar a barreira entre a ideologia e o coração”. Laura Gonçalves e Xá trabalharam juntas na arte final de filmes de animação de vários cineastas. Isso ajudou a cimentar uma relação afectiva e a vontade de explorar os seus afectos: a animação e a ilustração — Laura concluiu o curso de Arte e Multimédia Animação, na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, Xá é licenciada em Pintura pela mesma faculdade. Viajaram pelo interior. “Eu sou de Belmonte”, começa Laura, “tinha estado em contacto com a emigração e a desertificação. Fomos encontrando pessoas, que apenas por falta de oportunidade não saíam dali. E foram elas os pilares da construção do filme, o lado documental. Depois construímos uma ficção”, com caretos e tudo, em que a memória é uma ilha rodeada de esquecimento: é a história dos últimos habitantes de uma aldeia que não se deixam submergir. Água Mole, curta seleccionada para a Quinzena dos Realizadores, é uma delicada associação entre animação (na imagem) e documentário (no som, com as vozes das pessoas que Laura e Xá conheceram, síntese das quatro aldeias que visitaram). Essa associação faz do real uma experiência sensorial, íntima. “A animação tem poder ilimitado. Enquanto as outras expressões são mais concretas, com a expressividade das formas da animação podem-se explicar sensações”. Completa Xá: “O lado ficcional permite que mostremos o que sentimos. ” São as sensações de Laura e Xá perante as pessoas e as suas memórias. Assim Água Mole é, simultaneamente, um documento sobre histórias a desaparecerem (trata-se do resgate de uma aldeia global, a nossa memória) e a impressão das emoções das realizadoras — feita com a técnica de ponta seca, agulha a desenhar sobre acetato (assim foi realizado 40 por cento do filme, explica Xá; o restante, foi através da recriação, em digital, dessa técnica de gravura. Três anos depois de Boa Noite Cinderela, que juntava Marx à Gata Borralheira— e ironia ao romantismo, com o guarda-roupa e os movimentos de câmara a servirem de memória a uma produção que só podia ser austera —, Carlos Conceição volta a tirar da cartola, na Semana da Crítica, um conto de fadas: Coelho Mau. Irmão e irmã fechados no amor de um pelo outro, ela com doença grave, ele a acudir. Em fundo, como um rumor, uma mãe só interessada no seu gigolo. O irmão vai colocar e tirar máscaras, mestre de um role playing que se vai fetichizando. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Três anos depois da sua anterior participação na Semana da Crítica, continuamos a perguntar a Carlos se ele se posiciona a contra-ciclo em relação à contemporaneidade que os festivais declaram: documentário, ficção do real. . . “Não penso nisso. Vou atrás dos meus gostos. É verdade que não tenho interesse pelo lado didáctico e realista dos filmes. Embora reconheça a utilidade de muitos desse género. O que me interessa é a honestidade em relação aos impulsos originais. ”Havia uma “ideia concreta” antes do bestiário e dos jogos eróticos: “A forma como usamos os outros, a animalidade nas relações. Se há fetichismo, é esse”. Essa ideia foi-se “travestindo”. A palavra é dele: Coelho Mau vai-se mascarando, as transformações transportando o romantismo para a sátira — ou o romantismo é já sátira?“Tenho tendência a ver o que me rodeia com ironia. Como se tudo não passasse de mascarada. A nossa posição no mundo está condicionada pela performance. ” Mas revela: é um filme investido com medos pessoais. “O terror de perder uma pessoa sem a qual não conseguimos conceber o mundo. Eu não tenho medo de morrer, eu tenho medo que a minha mãe morra. ”
REFERÊNCIAS:
Um Natal no Texas
O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. (...)

Um Natal no Texas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade.
TEXTO: 1. Numa mesa cheia de britânicos, outros europeus, alguns americanos e brasileiros, há palavras que não podem ficar de fora nem no Natal, tal como as rabanadas ou o christmas pudding. O que vai acontecer ao "Brexit"? Ninguém sabe nem ninguém se atreve a apostar. O mais recente disparate de Trump? É irresistível, por mais dramático que seja. Também não. O que vai acontecer ao Brasil de Bolsonaro? Há várias hipóteses sobre a mesa. Mesmo assim, nada consegue alterar o ambiente festivo de um subúrbio de Houston onde as crises ficam à porta e se fazem concursos para ver qual é o jardim com a iluminação natalícia mais arrojada, O prémio foi naturalmente para uma casa americana que os europeus são bastante mais sóbrios. 2. No vidro de trás do carro da minha filha ainda se pode ler “Beto for Senate”. Daqui a algum tempo, porventura na minha próxima visita, talvez já se possa ler “Beto for President”. O ideal, discute-se apaixonadamente, seria ter Michelle Obama como vice. Um “dream ticket” que provavelmente nunca acontecerá, embora a anterior primeira-dama seja hoje a mulher mais admirada da América. A mesma América que elegeu Trump há dois anos. Mas é Natal e sonhar é permitido. Ou seja, nem tudo está perdido neste grande país que alguns ainda acreditam que pode e deve voltar a ser “uma força para o bem no mundo”. Uma nação particular, que não nasceu de uma tribo ou de um território, mas de um conjunto de ideais, o primeiro dos quais a liberdade de cada um prosseguir a sua vida em busca da felicidade. Entretanto, o Governo está parcialmente paralisado porque Trump fez birra por causa do muro que quer construir na fronteira com o México, exigindo cinco mil milhões de dólares que o Congresso não está disposto a dar-lhe. Agora ameaça encerrar totalmente a fronteira com o México. O Presidente americano não tem limites, o que é um sério problema, e parece revelar alguma dificuldade em perceber a realidade. Nos jornais, ensinam-se métodos para que os funcionários públicos que estão sem receber salário consigam superar as dificuldades inerentes. Mas isso não impede que centenas de milhares de famílias paguem por uma guerra que não é a deles e vivam o Natal com a ansiedade de quem não sabe o que acontecerá ao seu salário no dia de amanhã. 3. Mas Washington fica longe. As minhas netas deliciam-se com a visita a um rancho gigantesco transformado em museu onde se pode acompanhar a vida dos primeiros colonos que chegaram à região na segunda década do século XIX e que foram progredindo numa típica história de sucesso e de oportunidade americana. A primeira, muito pobre, habitação. A segunda, já com o conforto e a amplitude próprios da época. O negócio foi o gado. A terceira, luxuosa, com a banca a somar-se à prosperidade da família. A quarta, finalmente, uma mansão digna de quem acabou por descobrir petróleo no próprio terreno. Tudo é mantido fielmente igual ao que era. Apenas os cowboys, os cavalos e os touros são actuais, para gáudio dos visitantes. As crianças aprendem História ao vivo. As guias mostram os dois lados da realidade: o que foi bom e o que foi mau ou injusto. Mas não, felizmente, em versão politicamente correcta. Descubro que as minhas netas mais velhas já têm um conhecimento muito razoável da História americana. É assim também que se constrói esta grande democracia às voltas com o seu destino mas capaz de resistir a um momento particularmente mau da sua História. 4. As atenções já estão viradas para 2020, enquanto Trump tenta disfarçar as suas dificuldades internas – que são bastantes – com o cumprimento de promessas eleitorais cujo efeito é muito mais negativo lá fora do que cá dentro. Retirada unilateral da Síria e, para breve, do Afeganistão, o que já levou à demissão do chefe do Pentágono, o general James Mattis, no qual os aliados confiavam para manter alguma racionalidade na política de segurança e defesa dos EUA e garantir a preservação da NATO. Mais um calafrio e mais uma preocupação para a Europa. A França tem tropas no terreno. O Reino Unido também. As forças anti-Assad que os EUA incentivaram, a começar pelos curdos, ficam indefesas. Erdogan rejubila. A mensagem para os aliados da América no mundo inteiro é: não confiem em nós. Mattis estava pelos cabelos, já se sabia. Passou o tempo a tentar tranquilizar os aliados sobre as decisões intempestivas do Presidente, para quem a palavra “aliado” não deve sequer existir no seu dicionário mental. “America First” é mais “America Only”. Mattis desistiu. Trump, em vez de agradecer-lhe os serviços prestados, tentou humilhá-lo publicamente, antecipando em dois meses a data anunciada para a sua saída. Como escrevia o Wall Street Jounal, foi demasiado longe, até para os americanos que se mantêm fieis às ideias mais extravagantes e perigosas da sua campanha. O exército é uma instituição respeitada nos EUA. Nem a visita surpresa que resolveu fazer a uma base secreta das tropas especiais americanas no Iraque ajudou a desviar as atenções. Como sempre acontece com este Presidente, a visita teve um ligeiro percalço: as fotografias que Trump divulgou podem revelar a localização da base. Decididamente, Trump não nasceu para ser Presidente do país mais poderoso do mundo. A história das suas divergências com o secretario da Defesa fala por si. Quando Trump mandou tropas para a fronteira com o México para impedir a entrada de imigrantes, depois de tentar demovê-lo, Mattis foi arrastando os pés até à última ordem do Presidente e ao aviso de que as tropas se defenderiam das pedras com balas. Inquirido pelos jornalistas, Mattis não poderia ter sido mais directo: “Por amor de Deus, eles nem sequer estão armados”. Apenas um exemplo entre muitos. Resta saber quem se segue no Pentágono. Haverá sempre alguém, mesmo que a tarefa de encontrar quem queira trabalhar com Trump se esteja a revelar cada vez mais difícil. 5. Já não falta tudo para 2020, a próxima oportunidade para corrigir este caminho perigoso. A responsabilidade está nas mãos dos Democratas e há tantas cartas em cima da mesa que ainda é muito difícil saber se vão conseguir escolher o ás de trunfo. Joe Biden é o mais popular, de longe. Mas os seus 76 anos, somados a uma carreira política de quase 50 e a um coração demasiado perto da boca (são famosas as suas gafes) desaconselham a sua candidatura, numa altura em que os eleitores anseiam por coisas novas, mesmo que lhes possa sair Trump na rifa. Bernie Sanders, que ia destronando Hillary nas primárias de 2016, padece do mesmo peso dos anos e representa a ala mais à esquerda dos Democratas – dificilmente seria um candidato vitorioso, mesmo que o partido se tenha chegado bastante à esquerda com a eleição de Trump e os movimentos populares de rejeição que alimentou. É o segundo mais popular mas a grande distância de Biden. Diz a imprensa americana que o seu objectivo actual é minar qualquer hipótese de uma candidatura do fenómeno texano Beto O’Rourke. Serão da sua iniciativa as recentes notícias vindas a lume sobre um registo de votos no Congresso que mostra Beto a votar algumas vezes aos lado dos republicanos. Um “defeito” que facilmente se poderia transformar numa virtude, porque as presidenciais não prescindem do eleitorado do centro, que não se revê totalmente num partido ou no outro. Beto é jovem, tem carisma, ganhou dimensão nacional quando desafiou Ted Cruz, o hiper-conservador senador do Texas, nas eleições de meio mandato de Novembro passado e quase ia ganhando, num estado onde eleger um democrata é uma raridade. Beto já mostrou que não tem medo nem das palavras nem das ideias, sejam elas mais ao centro ou mais à esquerda. O seu ar vagamente kennediano (é de origem irlandesa), a sua juventude e o seu carisma nato são trunfos poderosos a seu favor numa América que ainda não desistiu totalmente de ser uma cidade no alto da colina, iluminando o mundo. Como escreve Jake Sullivan no Carnegie Endowment, não nos esqueçamos que, ao longo da sua História, cada grande mudança não ocorreu em tempos de desorientação mas do que veio a seguir. “O New Deal seguiu-se à Grande Depressão, como o Plano Marshall se seguiu à Segunda Guerra”. “Quando Trump sair da Casa Branca, os EUA terão, mais uma vez, a oportunidade para seguir um novo caminho. ” Até lá, “os nossos parceiros não vão desistir de nós”. É Natal. Há que ter esperança.
REFERÊNCIAS:
Entidades EUA NATO
Que a voz não te esmoreça, Éme
No novo Domingo à Tarde, o músico da Cafetra agarra na música popular portuguesa e concretiza-se como escritor de canções, coadjuvado por uma banda em pico de forma. Não queremos sair deste disco. O concerto de apresentação é esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa. (...)

Que a voz não te esmoreça, Éme
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: No novo Domingo à Tarde, o músico da Cafetra agarra na música popular portuguesa e concretiza-se como escritor de canções, coadjuvado por uma banda em pico de forma. Não queremos sair deste disco. O concerto de apresentação é esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa.
TEXTO: Em 2016 morreu David Bowie, morreu Prince, morreu Leonard Cohen. Mas a João Marcelo, músico lisboeta de 25 anos conhecido por Éme, o que “bateu mais” foi o adeus de Adélia Garcia, a cantadeira octogenária da aldeia de Caçarelhos, Trás-os-Montes, no dia 31 de Dezembro de 2016, sem o chinfrim das redes sociais. “Sei que são coisas diferentes, mas por que é que morrer a Adélia não devia bater?”, pensa Éme em voz alta. Descobriu-a através do documentário B Fachada: Tradição Oral Contemporânea (2008), de Tiago Pereira, que a filmou vezes sem conta para esse seu valioso arquivo em constante evolução chamado A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, depois de o etnomusicólogo Michel Giacometti ter chegado lá primeiro nos anos 60. “A forma como ela cantava aquelas músicas era muito única e ela não era nenhuma velhinha burrinha que não sabia que era única”, atira o músico. Pouco depois do adeus, Éme fez com Moxila uma versão para guitarra acústica e cavaquinho de Muito chorei eu no domingo à tarde, um dos cantares de Adélia, para A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria (porque isto anda tudo ligado). É essa versão – agora em coro, agora em grande na sua simplicidade e sinceridade – que fecha o novo e terceiro álbum de Éme, Domingo à Tarde, editado pela família Cafetra e apresentado esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa. É o final e a síntese de um disco que tem um tempo e um lugar: domingo à tarde numa pastelaria (a da capa do disco é o Centro Ideal da Graça), essas coordenadas que fazem parte do ADN e do viver português, na cidade ou na aldeia (“Um brinde à manada/ Com bica na esplanada/ Tuga não tem nada/ Mas há tanto mar", ouve-se em Roma-Sé). “É uma cena muito tuga. Mesmo no Cinema Novo tinhas todas aquelas pastelarias, como a Vá-Vá”, diz Éme. “E não é algo romantizado porque é muito presente. Parece que consegues ter propriedade sobre isto. ”Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Algumas canções – urgentes, necessárias, certeiras, como Puxa a patinha, Buraquinho, Roma-Sé ou Zequinha – colocam Éme directamente numa timeline de escritores de canções portugueses que vai de José Afonso a B Fachada. Sem negar a folk anglo-saxónica dos registos anteriores, aqui é a música popular portuguesa que se eleva. É com ela que Éme canta Portugal no seu encanto e no seu desencanto, na pele de um jovem adulto que lida com as dores de crescimento numa Lisboa varrida pela gentrificação, por rendas proibitivas em casas que tantas vezes mal se seguram de pé (Zequinha: “De volta a Lisboa/ Uma casa bonita/ Até era na boa/ Se eu fosse turista”). A precariedade está lá ao acordar e ao deitar, ao lado dele e de muitos outros. Mas pelo menos há o amor – o arranque do disco, Sem roupa, é balada segura à voz e à guitarra, Éme transparente, canção dulcífica, tiro e queda. Mas pelo menos há os amigos – sem eles, banda em pico de forma, Domingo à Tarde não seria a mesma coisa: sem Mariana Pita (Moxila), nova e feliz contratação, no cavaquinho, nas flautas e no clarinete; sem Júlia Reis (Pega Monstro) na bateria e nas percussões; sem Lourenço Crespo (a solo, Iguanas) nos teclados; sem Miguel Abras (Putas Bêbadas) no baixo. E sem B Fachada, o toque de Midas na produção, enobrecida pela gravação de Eduardo Vinhas nos estúdios Golden Pony. “Tem bué vida este disco, por isso é muito importante para mim”, conta Éme. Passaram dois anos e meio desde o álbum anterior, Último Siso, lançado em 2014. Muita coisa aconteceu. Éme cresceu. Saiu da casa dos pais, passou seis meses no Porto, começou uma vida a dois, deu concertos pelo interior do país, com pouco dinheiro no bolso e em sítios que “nem sabia que existiam” (Comboio, fulgurante, faz o resumo). “Andei por aí fora sozinho, a fazer o meu trabalho por tuta e meia. Numa pessoa com 20 e poucos anos isso muda muita coisa. ”Inevitavelmente, a política entrou-lhe pela porta adentro. “Estou numa fase em que as questões políticas têm uma influência mais directa em mim”, confessa Éme. “Claro que tenho uma rede de apoio se algo correr muito mal, mas antes não pagava impostos, não pagava uma renda, não sentia que estava numa cidade que me diz que se calhar não sou daqui porque não tenho dinheiro para estar aqui por minha conta. Antes sabia quais eram as minhas ideias políticas, mas não tinha de lidar com a estrutura, não percebia tão bem o que se passa à minha volta. ”Entretanto, a dieta musical de Éme mudou também, o que se reflecte no novo disco. Muita música popular portuguesa, de José Afonso a José Almada (que B Fachada sampla e cita na canção Camuflado, do seu último registo homónimo), passando pela tradição oral do interior do país documentada n’A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Sem esquecer uma aproximação à música popular brasileira, de Caetano Veloso a Noel Rosa. “Eu não venho de uma casa onde se ouvissem cenas do Zeca ou do José Mário Branco. Sempre ouvi música de vários sítios, mas mais americana do que outra coisa qualquer”, refere Éme. A esta viragem de direcção não é alheio o reencontro de uma jovem geração de músicos com a língua e a música portuguesas. Muitos foram influenciados, directa ou indirectamente, pela FlorCaveira e por B Fachada. Mas fora desse circuito há outros casos, como a editora Príncipe Discos, onde se reinventa a lusofonia com música electrónica, músicas dos PALOP e música portuguesa – quem já viu um set de Nídia Minaj lembrar-se-á com certeza da chapada na cara que é ouvir a sua remistura de Pimba pimba, de Emanuel. O que muitos tentam fazer – e Éme consegue-o neste disco – é “pegar no património” para começar a construir algo seu. “Muitas vezes espezinhamos coisas da música tuga, ou achamos bimbo olhar para trás, mas também achamos bimbo olhar muito para a frente, ter confiança”, afirma Éme. Dizíamos que Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Sim, mas sem medo de olhar para a frente, de frente, e sem turismo pelo passado. Com respeito, mas sem vacas sagradas (“E eu já sei que não sou bom como outros foram/ Mas não quero saber se os mortos me adoram”, já cantava ele no primeiro álbum a solo, Gancia, quando ainda lhe faltavam “força, jeito e procura”). “O que os outros fizeram é para todos, não é só para eles”, observa Éme. “Por exemplo, o Zeca ser o inigualável, o génio… Para quem vem a seguir dá medo do futuro. Tu podes ir buscar uma cena antiga e meter na tua canção, à tua maneira. Os músicos são gente, não é preciso ter medo. ”Outra peça central para Éme, que caracteriza muito o cosmos Cafetra e vizinhança (Maternidade, Xita Records, Spring Toast), é “admirar os colegas”. “A minha forma de aprender é trabalhar com quem está perto”, sublinha o músico, referindo em particular a influência de Lourenço Crespo (que, além de Moxila, faz o aquecimento do concerto na ZDB). “O disco do Lourenço [Nove Canções, de 2016] abriu-me muitos horizontes na forma como eu podia cantar e escrever letras. Uma pessoa percebe que se calhar não precisa de dar o tom auto-condescendente e que pode mesmo pensar em dar o máximo. ”Autoria:ÉmeApresentação de "Domingo à tarde". Galeria Zé dos Bois - Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto Lisboa, Sexta, 19 de Maio de 2017 às 22hEm Domingo à Tarde, Éme dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Nas melodias, nas letras, concretiza-se e dá o salto. É lindo ver Buraquinho a acontecer: entrada em crescendo de guitarra brumosa, coros e flauta a juntarem-se num travelling (e nesta altura já estamos a pensar em José Mário Branco, tudo certo no sítio certo, com aquela tensão que faz estremecer), refrão monumental com a bateria a servir de maestro – isto é uma orquestra e quem diz o contrário é tolo. Tanto Buraquinho como Puxa a patinha são actualizações de duas músicas integradas numa edição conjunta da Cafetra de 2015, Ou Sim ou Sopas, que ganham aqui mais camadas e ainda mais ressonâncias da música popular portuguesa dos anos 70. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Em Puxa a patinha, sobre a saída do país do irmão de Éme e a emigração jovem (“Tenho bandeira/ Pronta para hastear/ Bagaço bem servido/ Para não mais lembrar/ O irmãozinho, o meu amor/ Vão embora e não vão voltar”), sente-se a influência da música brasileira na flauta de Moxila, que forma uma frente de ataque com o teclado de Lourenço Crespo. Parece que foram feitos um para o outro: ouçamos Roma-Sé, canção-orvalho a roçar a perfeição, a amizade para neutralizar a ansiedade. Antes, torcemos o nariz em Uma Voz/ Chá com mel, canção viscosa e ligeiramente alucinada em que Éme se estreia nos teclados e ensaia um momento de fuga no disco. Podia não estar aqui, mas vá, não ofende – depois até nos faz entrar de novo no disco com atenção redobrada. E assim seguimos de encontro a Zequinha, outra delícia, jubilante, que traz à memória Cantigas do Maio e Com as minhas tamanquinhas, de José Afonso, com algumas verdades sobre a subserviência no trabalho e essa coisa eterna do comer e calar. A liberdade palpita forte neste disco, e em Joana, aurífera, comunal, é selada com o verso, que tem tanto de excessivo como de vital, “Eu e tu/ Para quê esperar a aprovação?/ Lei é do cu/ E liberdade é do coração”. Em Domingo à Tarde, repetimos, ele dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Que a voz não te esmoreça, Éme.
REFERÊNCIAS:
Só 38% dos médicos formados no Algarve ficaram na região
Começou por ser polémico, mas hoje é considerado pela Ordem “um curso igual aos outros”. Em dez anos, a Universidade do Algarve formou 200 médicos . Estas são algumas das suas histórias. (...)

Só 38% dos médicos formados no Algarve ficaram na região
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Começou por ser polémico, mas hoje é considerado pela Ordem “um curso igual aos outros”. Em dez anos, a Universidade do Algarve formou 200 médicos . Estas são algumas das suas histórias.
TEXTO: Já há 200 diplomados pela Universidade do Algarve (Ualg) com o Mestrado Integrado de Medicina. Mas apenas 38% ficaram na região a fazer a especialidade. “Sempre me fez confusão como é que o Algarve não consegue atrair médicos”, afirmou o primeiro-ministro, António Costa, há ano e meio, quando foi criado o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Para o concurso de 71 vagas, aberto em Março e Junho, o CHUA apenas conseguiu atrair 25 candidatos. Os primeiros especialistas, oriundos do Mestrado Integrado de Medicina da Ualg, saem a meio do próximo ano, quando se celebram os dez anos desde a sua abertura. O curso tem condições especiais de acesso. Só os candidatos detentores de uma habilitação mínima — o grau de licenciatura numa área das ciências da saúde, ciências exactas ou ciências da natureza —, podem concorrer. O mestrado tem quatro anos (seguem-se o ano comum e uma especialidade de quatro a seis anos de formação). Alexandre Teixeira, doutorado em biologia molecular pela Universidade de Oxford (Inglaterra, ) é dos novos estudantes do Algarve vindos do estrangeiro. “Só conhecia o Algarve de passar férias, mas vim para ficar. ” Tem 46 anos e frequenta o 3. º ano do mestrado. “Aqui sou aluno”, sublinha, para que não haja confusão de papéis. Mas noutras circunstâncias já podia ser professor. Quem já passou para o outro lado da bancada foi Nuno Mourão, 35 anos, médico nos Cuidados Intensivos do Hospital de Faro, a fazer o 4. º ano de especialidade em Medicina Interna — Cuidados Intensivos. “Agora, sou regente da cadeira de ciências básicas e clínicas”, adianta. De início, a Ordem dos Médicos (OM) e outros sectores da saúde colocaram algumas reservas ao modelo de ensino deste mestrado, baseado em casos clínicos (Problem Based Learning). Teoria e experiência deram as mãos e o resultado foi positivo. O médico, nascido no Alto Douro, afirma: “Somos uma nova geração de médicos, que quer ajudar a mudar as coisas”, no sentido de dotar a região dos recursos humanos de que precisa na área da saúde. O responsável distrital pela Ordem dos Médicos (OM), Ulisses de Brito, pneumologista no Hospital de Faro, acha que as dúvidas levantadas pela OM sobre a qualidade da formação — mais prática do que teórica — estão ultrapassadas. “É um curso igual aos outros. ”Sandra Silva pertence à primeira leva dos 12 clínicos que vão terminar a especialidade em Medicina Geral e Familiar (MGF), em 2019. Para quem vinha de uma formação clássica — já possuía uma licenciatura em ciências farmacêuticas, e dois anos de experiência profissional —, sentiu-se atraída “pelo aspecto prático do curso”. Ao fim da segunda semana de aulas, os alunos começam logo a rodar pelos centros de saúde, e depois fazem estágios, orientados por um tutor, no conjunto diverso das várias especialidades, explica. “Se puder, vou continuar no Algarve”, diz a jovem médica, de Lamego, que trabalha actualmente no Centro de Saúde de Olhão. Tânia Gago, 36 anos, faz parte da primeira turma do Mestrado Integrado de Medicina da Universidade do Algarve (Ualg), formada por 32 alunos, escolhidos entre 600 candidatos. Para trás deixou cinco anos de trabalho como enfermeira (quatro no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e um no Hospital de Faro). Fez os quatro anos de mestrado. Fez o chamado ano-comum (internato geral, igual para todas as escolas). E ainda o temido exame de seriação Harrison — há décadas que é a nota que obtêm nesta prova, muito baseada na capacidade de memorização, que permite aos recém-licenciados em Medicina de todo o país escolher a especialidade a seguir. O controverso exame será substituído em 2019 por uma nova prova nacional de acesso à formação especializada. A especialidade de gastrenterologia, que dura cinco anos, tem sido realizada por Tânia no Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). O director do serviço no centro hospitalar, Horácio Guerreiro, comenta a prestação da antiga enfermeira, que também possui um mestrado em ciências da educação: “Muito empenhada, e boa médica. ”Mas nem sempre os alunos da Ualg tiveram a boa receptividade por parte dos colegas. Nos primeiros anos, recorda, “sentia-se algumas reservas”. Isabel Palmeirim, directora do curso, diz que o modelo de ensino baseado em “problemas” clínicos (Problem Based Learning) é uma tendência a nível mundial e que já está a ser adoptado pela formação clássica. E assegura que “o estigma da desconfiança está ultrapassado”. Lembra, de resto, que a situação foi semelhante ao que se passara antes em Braga, com a criação da Escola de Medicina da Universidade do Minho, a cuja criação também esteve ligada. “Estas escolas vieram revolucionar um pouco o ensino da medicina. ”Tânia Gago, actualmente a estagiar no Instituto Português de Oncologia (IPO), não tem dúvidas quanto à escolha do local onde pretende fazer carreira como médica: “Se for possível, gostaria de ficar em Faro. ”Nuno Mourão não pensava sair do Porto, onde se licenciou em cardio-pneumologia. “É curioso, vim para cá estudar a partir de uma notícia que li no PÚBLICO sobre este método de ensino, baseado mais no raciocínio clínico do que na memorização. ” Na altura, fazia investigação e trabalhava como técnico de diagnóstico e terapêutica. “A urgência é a minha paixão”, enfatiza. A adrenalina “sem stress” corre-lhe nas veias quando está de serviço no INEM, prossegue. As coisas acontecem de forma inesperada — de um momento para o outro, salta para o helicóptero, ou arranca “a abrir” na viatura do 112. Não teve dificuldades em encontrar vaga no Hospital de Faro, porque a unidade possui idoneidade formativa nesta especialidade. O colega Alberto Correia, interno de neuro-radiologia no Hospital Santa Maria, não teve a mesma sorte. “Vim para Lisboa, porque não há esta especialidade no Algarve”, conta. Natural de Póvoa de Varzim, manifesta-se disposto a regressar a Faro, quando abrir vaga. “Fiquei com uma forte ligação sentimental à região, e sinto o dever de dar algo em troca do que recebi. ”A presidente do conselho de administração do CHUA, Ana Paula Gonçalves, responde: “Estamos a trabalhar para fixar médicos, nesta e noutras especialidades. ” A ortopedia, por exemplo, é uma das áreas onde a OM retirou capacidade formativa ao Hospital de Faro, por falta de recursos humanos. Já a neurocirurgia, adquiriu essa competência. E a cirurgia recuperou — tinha deixado de poder formar médicos nessa especialidade havia cerca de três anos. A directora do mestrado, Isabel Palmeirim, afirma: “Muitos médicos [formados na Ualg] não teriam saído se o CHUA tivesse capacidade formativa em todas as especialidades. ”Apesar do bom clima da região, os grandes centros urbanos fora do Algarve continuam a reunir as preferências dos profissionais da medicina. Das duas centenas de clínicos já formados na Ualg, ficaram na região apenas 76 (38%) a fazer a especialidade. A região de Lisboa e Vale do Tejo colocou 70 (35%) e os restantes deslocaram-se para outros pontos do país. Seis emigraram. “É necessário alargar as competências formativas no CHUA, e criar perspectivas de carreiras ligadas às ciências biomédicas e medicina”, diz Isabel Palmeirim. A construção do novo Hospital Central, que já teve direito ao lançamento simbólico de uma “primeira pedra” no Governo de José Sócrates, desapareceu da lista das prioridades de construção de novas unidades de saúde para 2019. A direcção do PS-Algarve, entretanto, renovou a promessa de que vai haver obra na próxima legislatura. A criação do CHUA em Julho de 2017 — integrando os hospitais de Faro, do Barlavento (Portimão) e Lagos, mais o Centro de Medicina e Reabilitação Física do Sul — foi justificada pela necessidade de promover a articulação entre a comunidade científica e o corpo clínico. Isabel Palmeirim realça a “boa colaboração” que se estabeleceu entre as instituições para valorizar um curso, que chegou a ser visto, de forma crítica, como uma forma de promover a ascensão de enfermeiros a médicos. Dos reconhecimentos conquistados no estrangeiro, destaca a vitória da equipa de cinco alunos, coordenada pela docente Alexandra Binnie, que venceu a maior competição europeia entre estudantes de medicina numa simulação médica de urgência, organizada pela Society in Europe for Simulation Applied to Medicine, em Bilbau. Alexandre Teixeira é um caso típico dos bolseiros precários, trabalhou como investigador durante 15 anos. Após o doutoramento em Londres, co-assinou um artigo publicado na prestigiada revista Nature, trabalhou e deu aulas no Instituto de Medicina Molecular e no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, em Lisboa. De repente, aos 43 anos, viu-se desempregado, casado e com filhos. Decidiu concorrer ao curso de medicina, em Faro. “Informei-me e achei que poderia ser interessante. ” Tentou a sorte e foi seleccionado. De entre as 12 entrevistas destinadas a determinar o perfil do candidato, destaca uma cena onde entrava um gato. De forma inesperada, foi colocado perante a seguinte situação: saiu de casa para a entrevista do emprego que iria mudar a sua vida. Teve um azar — atropelou um gato. O animal, por acaso, pertencia à sua vizinha. A representar o papel da vizinha, conta, encontrou uma actriz. “Não foi fácil explicar o sucedido, com a mulher a chorar compulsivamente”, recorda. Manter a calma foi a chave do êxito no teste. Na vida real, explica Isabel Palmeirim, os médicos são submetidos a muitas situações de stress. E têm de estar preparados para saber comunicar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na aula da quinta-feira passada, a médica Alexandra Binnie colocou os alunos à prova. Sobre a maca encontrava-se uma mulher (um manequim), de 71 anos, a queixar-se com dores no abdómen. O equipamento médico permite ver a frequência cardíaca, respiratória, o ritmo cardíaco, e avaliar outros sinais biológicos. Mas não diz tudo. Para tornar a situação mais complicada, a professora fez ela própria de doente. Às dores abdominais, chamava “facadas na barriga”, e quanto interpelada sobre o que teria acontecido para ir parar às urgências, respondia: “Não sei, não lembro. . . ”Os alunos, perplexos, trocavam opiniões entre eles e, mentalmente, faziam a revisão da matéria dada. Seguia-se o internamento e exames complementares. Se fosse a sério, no Hospital de Faro haveria um problema adicional para resolver — falta de camas para o internamento. Esta unidade, inaugurada há 40 anos, foi projectada para uma capacidade de 350 camas. Com os enxertos arquitectónicos que tem sofrido, fez esticar o espaço para chegar às 500. A sobreocupação obrigou a colocar seis em lugares onde deveriam estar quatro. O coordenador do Centro de Referência do Cancro do Reto (Gastrenterologia), Paulo Caldeira, é um dos médicos da equipa sénior que defendem a necessidade da construção de um novo hospital central, lembrando que o Algarve é a “região do país com menor número de camas por habitante”. Tomando como referência uma população de 442. 000 habitantes e uma média de camas hospitalares de 330 por 100. 000, deveria ter no mínimo 1350 camas, explica. Ora, o CHUA tem cerca de 950. “Essa é uma velha luta, sem resposta por parte dos poderes públicos”, sublinha o representante da Ordem dos Médicos. A transferência de conhecimento produzido na Ualg, observa Ulisses de Brito, “torna ainda mais urgente a necessidade de construir um novo hospital”.
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