29,8 milhões, o número da vergonha da escravatura no século XXI
Metade das pessoas em situação de exploração extrema vive na Índia, segundo o primeiro índice realizado a nível mundial. Na Mauritânia, milhares continuam a nascer escravosHá 30 milhões de pessoas a viver em condições de escravatura em todo o mundo. Seres humanos forçados a trabalhar por pouco ou nada, obrigados a prostituírem-se ou tratados como propriedade de alguém. Quase metade vive na Índia, onde a pobreza e o sistema de castas atiram milhões para um inferno que continua a passar despercebido. Os dados constam do Índice Global de Escravidão, o primeiro estudo a nível mundial sobre um fenómeno que "muitas pes... (etc.)

29,8 milhões, o número da vergonha da escravatura no século XXI
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-11-14 | Jornal Público
TEXTO: Metade das pessoas em situação de exploração extrema vive na Índia, segundo o primeiro índice realizado a nível mundial. Na Mauritânia, milhares continuam a nascer escravosHá 30 milhões de pessoas a viver em condições de escravatura em todo o mundo. Seres humanos forçados a trabalhar por pouco ou nada, obrigados a prostituírem-se ou tratados como propriedade de alguém. Quase metade vive na Índia, onde a pobreza e o sistema de castas atiram milhões para um inferno que continua a passar despercebido. Os dados constam do Índice Global de Escravidão, o primeiro estudo a nível mundial sobre um fenómeno que "muitas pessoas ficam surpreendidas por ainda existir", mas que "continua a ser um estigma de todos os continentes", disse à AFP Nick Grono, director-geral da Walk Free, organização criada na Austrália para denunciar a prevalência da escravatura, mais de um século depois de ter sido abolida na maior parte do mundo. "As leis já existem, mas faltam os meios, os recursos e a vontade política" para pôr fim a este flagelo, diz Grono. O índice, admite o responsável, é o resultado de um exercício difícil, quer porque se trata de "um crime escondido" - "é quase como tentar medir a violência conjugal ou o tráfico de drogas", diz -, quer porque a escravatura moderna é mais complexa do que o comércio de seres humanos durante o período colonial. Abrange situações "em que as pessoas estão reféns da violência, são obrigadas a aceitar um emprego, mas também outras situações em que são economicamente exploradas, em que não são pagas ou recebem o mínimo para sobreviver e não são livres de partir". As vítimas de tráfico humano, as mulheres forçadas a casar ou as crianças exploradas em situações de guerra entram também nesta definição. É dessa soma que a Ásia surge como o continente onde há mais pessoas escravizadas - quase dois terços dos 29, 8 milhões contabilizados a nível mundial. Só na Índia são perto de 14 milhões de pessoas, mas as estimativas apontam também para 2, 9 milhões de seres humanos escravizados na China e mais de dois milhões no Paquistão. Mais de dois terços das pessoas exploradas em todo o mundo vivem em dez países (a lista inclui ainda a Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia, República Democrática do Congo, Birmânia e Bangladesh), mas o índice é liderado por um pequeno país, que não consta sequer desta lista: na Mauritânia, quatro por cento da população vive escravizada, incluindo milhares de crianças que nasceram a ser vistas como propriedade de alguém. O segundo lugar na lista é ocupado pelo Haiti, onde milhares de crianças de aldeias pobres são enviadas para trabalhar em casas na cidade, ficando muitas vezes sujeitas a todo o tipo de abusos. Portugal ocupa, a par da Espanha, o 147. º lugar entre 162 países, calculando-se que haja entre 1300 a 1400 pessoas forçadas a trabalhar em situações de exploração. A Islândia surge como o mais bem cotado de todos os países da lista, com menos de cem pessoas em situação de escravatura, seguida da Irlanda e Reino Unido. Hillary Clinton, antiga secretária de Estado norte-americana e uma das apoiantes desta iniciativa, admite que o índice não é ainda perfeito, mas diz que o mundo deve vê-lo como "um apelo à acção e para que todos se concentrem na resposta a este crime". ÍndiaVínculos para a vidaNa Índia, nota a Walk Free, a dimensão do problema só tem equivalente no tamanho da população do país. Além de registar o maior número de pessoas em situações de exploração extrema, é também aquele onde são visíveis as muitas formas que assume a escravatura moderna, do tráfico de seres humanos à exploração sexual, dos casamentos forçados ao trabalho prestado em condições sub-humanas. O estudo refere que a imensa maioria das pessoas escravizadas na Índia - um número que admite ser muito superior ao que consta no índice - são cidadãos nacionais, ainda que milhares não possuam sequer um registo de nascimento ou qualquer identificação que lhes permita aceder a apoios estatais. Atraídos pelo crescimento económico, milhões fogem todos os anos para as cidades e muitos acabam enredados nas teias de traficantes, forçados a trabalhar em fábricas, na construção, na pesca. Cresce também o número de mulheres e crianças exploradas sexualmente, com a prostituição a sair dos ghettos urbanos e a estender-se às zonas rurais. Mas se a escravidão cresce entre os migrantes, há milhões de indianos que já nascem escravos, presos pelo sistema de castas - que, embora ilegal, continua a prender milhões de "intocáveis" à miséria -, ou forçados a trabalhar a vida inteira para pagar dívidas, muitas vezes contraídas por antepassados. No fabrico de tijolos, na construção ou nas minas, este "vínculo para a vida" arrasta famílias inteiras e rouba milhões de crianças à escola. O flagelo estende-se também ao lar, com jovens forçadas pelos pais a casar e depois escravizadas pelos maridos e as suas famílias, ou de crianças obrigadas desde muito pequenas a mendigar ou a prostituir-se. O estudo aponta ainda o número crescente de imigrantes vindos do Nepal, do Bangladesh ou do Butão sujeitos a exploração sexual, a trabalhar por quase nada ou vítimas de violência e coacção física. "A Índia é um país de grandes dimensões, o maior desafio é a enormidade do problema, tanto em número de pessoas vítimas de tráfico como o seu número crescente", admitia um relatório do Governo indiano de 2008 sobre o tráfico de seres humanos. MauritâniaNascer já escravoFoi, em 1961, um dos últimos países do mundo a proibir a escravatura, e só em 2007 foi aprovada a primeira legislação que criminaliza o tráfico ou a posse de seres humanos. Talvez por isso, a abolição da escravatura não passe, ainda hoje, de letra morta na Mauritânia. Mais de 500 anos depois de terem saído dali os primeiros escravos trazidos para Portugal, a Walk Free estima que cerca de 150 mil pessoas continuam a ser tratadas como propriedade no país. O estudo recorda, no entanto, os cálculos da organização mauritana SOS Escravatura que, ainda em 2007, apontavam para a existência de 600 mil pessoas escravizadas no país, o equivalente a um quinto da população. E se o tráfico de seres humanos ou os casamentos forçados também são comuns no país, é a escravatura nos seus moldes mais clássicos que subsiste no país. Milhares de mauritanos, na maioria árabes de pele escura, continuam a nascer já escravos - estatuto que passa há gerações de pais para filhos e que os coloca nas mãos de famílias mais abastadas que, também há séculos, recebem escravos como herança. Os seus antepassados foram capturados em guerras perdidas no tempo e, em pleno século XXI, continuam a poder ser comprados e vendidos ou dados como presente. Trabalham nas casas dos seus "senhores", pastoreiam o seu gado, mas não podem ter ou herdar bens próprios. O fenómeno, sublinha a Walk Free, prevalece tanto nas zonas rurais como nas cidades, sobrevivendo graças à pressão social e a ensinamentos religiosos usados para justificar o injustificável. "Sem acesso à educação ou meios alternativos de subsistência, muitos acreditam que é a vontade de Deus que eles sejam escravos". HaitiA culpa é do restavekNo relatório que elaborou sobre o Haiti - o país mais pobre do continente americano e um dos mais pobres do mundo -, a organização diz que são as crianças quem maior risco corre de cair nas malhas da escravatura moderna. O sismo de 2010 deixou o país em situação de emergência e canalizou os esforços das agências humanitárias para a reconstrução, privando de recursos os programas de apoios sociais. A mendicidade cresceu e há dezenas de milhares de crianças "em risco de serem vítimas de exploração sexual ou trabalho forçado", tanto no Haiti como nos países vizinhos. Mas é dentro de portas que a escravatura mais se faz sentir, diz a Walk Free, apontando o dedo ao restavek (corruptela da expressão em francês "ficar com"), um esquema antigo que leva as famílias mais pobres das aldeias a enviar os filhos para trabalharem nas casas de famílias na cidade. Nem todos os casos configuram situações de escravatura, mas o relatório calcula que esta prática é responsável por uma das estatísticas mais negras do Haiti - a que aponta para que uma em cada dez crianças haitianas seja vítima de exploração, num total que andará entre as 300 a 500 mil. Além de maus tratos físicos e emocionais, algumas famílias chegam a negar comida, água ou uma cama para dormir aos menores que vivem nas suas casas.
REFERÊNCIAS:
Étnia Árabes
Michael Ondaatje: a memória, essa paisagem inventada
Chamam-lhe um esteta. A contenção ajuda-o a fazer uma literatura onde o não dito sublinha uma comovente densidade humana. Em 2018, Michael Ondaatje, 75 anos, canadiano de muitas geografias, saiu da sua reclusão para receber o título de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês e lançar um novo romance, A Luz da Guerra. (...)

Michael Ondaatje: a memória, essa paisagem inventada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chamam-lhe um esteta. A contenção ajuda-o a fazer uma literatura onde o não dito sublinha uma comovente densidade humana. Em 2018, Michael Ondaatje, 75 anos, canadiano de muitas geografias, saiu da sua reclusão para receber o título de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês e lançar um novo romance, A Luz da Guerra.
TEXTO: Quando Alice Munro ganhou o Nobel em 2013, um jornalista canadiano escrevia um artigo em que falava dos outros nobilizáveis canadianos — Margaret Atwood e Michael Ondaatje — e dizia que um era o alfa e o outro o ómega das letras do Canadá. À imagem pública de Atwood contrapunha-se a privacidade de Ondaatje, o “guru reclusivo”. Cinco anos depois, é esse homem quem está sentado na última mesa de um restaurante de Toronto. É um lugar onde se ouve jazz, as paredes com réplicas de obras de arte, cartazes de filmes, o som de copos e talheres, um frenesim invulgar ao meio-dia num qualquer restaurante do Sul da Europa. Estamos em Toronto e ali o almoço é cedo. Esse homem toma notas num caderno. Cabeça baixa, os cabelos brancos no desalinho de sempre, e o olhar azul quando se levanta para saudar quem o tirou do seu sossego no final de um ano “agitado”. A palavra é dele. Usa-a para falar de 2018. E ri-se. O homem recatado não é anti-social. Michael Ondaatje está perto da sua casa em Toronto, num bistrô situado num dos poucos edifícios que resistiram à euforia de construção de torres de vidro e aço na zona oeste. Fala-se circunstancialmente de política, de uma fotografia em criança do primeiro-ministro do Canadá, Justine Trudeau, ao colo de Fidel Castro; contam-se as boas livrarias da cidade, fala-se da ideia de fingir a realidade que atravessa os livros deste canadiano nascido no Sri Lanka em 1943, autor de poesia, prosa, ensaio, estudioso de Leonard Cohen, curioso do jazz e de todas as artes. É este o homem saído da reclusão, agora para promover novo romance, A Luz da Guerra, mas sobretudo para receber o prémio de melhor Booker de sempre com O Paciente Inglês. Publicado em 1992, o romance que conta a história de quatro pessoas fechadas numa vila italiana na II Guerra ganhara então o prémio empatado com Sacrated Hunger, de Barry Unsworth. Anthony Minghella adaptou-o ao cinema em 1996 e ganhou nove Óscares. Parecia que o filme se sobrepusera ao livro, até que o Booker Prize celebrou 50 anos e considerou O Paciente Inglês o melhor Booker de sempre. Ondaatje está feliz. Acha que foi o livro da sua libertação, mas mais preocupado está com A Luz da Guerra, outro romance com acção no final da II Guerra. Desta vez em Londres e outra vez sem que a guerra seja o centro. É mais o abandono e a sobreposição de memórias transformadas em grande voz narrativa. Nele, Nathaniel olha para a sua infância. Em 1945, tinha 14 anos quando os pais saíram misteriosamente da sua vida e o deixaram, e à irmã, aos cuidados de um homem bizarro, o Traça, amigo de outra figura pouco ortodoxa, o Flecheiro, mulherengo, entre outras características, que um dia conhece Olive. Ela aparece de forma fugaz, mas muda a percepção do mundo dos dois irmãos. Em A Luz da Guerra há uma personagem, Olive, uma russa etnógrafa, que apresenta como alguém com muitas paisagens dentro. Isso parece válido para si. Nasceu no Sri Lanka, viveu em Londres, depois em Toronto, tornou-se canadiano e as suas origens parecem conter muitas nacionalidades: holandesa, senegalesa, tamil, diz-se até que portuguesa. Além disso, esse sentido de lugar está presente em todos os escritos. E lugares diferentes. Sim, é verdade. Os lugares são a minha âncora. De outra forma a história não acharia um caminho. Para isso, faz pesquisa, mas inclui a sua experiência pessoal. Faço pesquisa, sim. Quanto à experiência pessoal que aparece nos livros, é difícil perceber de onde vem e para onde vai. Em Running in the Family [1982], baseado na minha família no Sri Lanka, falo de tias e de tios, irmãos e irmãs; há coisas da minha vida que depois são ficcionadas. Por exemplo, o retrato da minha avó ocupa 25 páginas, mas está mais empolgante do que foi de facto, para que ficasse mais vívido e fantástico. Escrevemos um livro que queremos que as pessoas leiam e exageram-se certos aspectos. A experiência torna-se ficcional, de certo modo. Outro exemplo, em Cat’s Table [2011] conto a viagem de barco de um rapaz desde Colombo [Sri Lanka] até Londres. Fiz essa viagem e lembro-me de estar no navio, de passar por todos aqueles portos, pelo Canal do Suez, mas não me lembro de muito mais a não ser de dois amigos, mas também não me lembro muito bem deles, por isso tive de inventar as suas vidas e inventar o resto das pessoas. Está a descrever um processo de escrita. Como chegou a ele?Isso não é planeado. Falando ainda de Cat’s Table, achei que tudo iria estar centrado no narrador. Há um rapaz num barco, o que já de si é dramático; depois ele conhece duas pessoas que são os seus novos amigos e isso resulta em aventura. Um pouco como o novo romance. É um livro que parece ser sobre abandono, mas torna-se uma aventura, porque há duas crianças deixadas sozinhas pelos pais. O que pode parecer assustador é também libertador. Desde que escrevo prosa, ou seja, desde The Collected Works of Billy the Kid: Left-Handed Poems [1970] percebi o que era a invenção. Nunca tinha estado no México e tive de inventar uma paisagem, e a melhor crítica veio de um tipo no Texas que se interrogava porque é que um canadiano estava a contar a verdadeira aventura de Billy the Kid. E era tudo ficção. Vi muitos filmes em criança e isso terá tido efeito, claro. Mas tudo começa com alguma informação factual e nomes verdadeiros e depois torna-se um drama. Voltemos a Olive e às paisagens que ela traz consigo. . . Olive apareceu-me assim. Muitas vezes conhecemos uma pessoa que percebemos que traz consigo uma paisagem, mas ela representa muitas. No seu caso, que relação tem com a sua paisagem inicial, o Sri Lanka?Absolutamente essencial. E é uma influência ainda maior porque quando vivia lá ainda não era escritor. Foram os primeiros 11 anos da minha vida e estava apenas a receber tudo sem pensar. Foi como ter um passado fiel à vida sem outros vectores a interferir. Quando voltei lá, aos 30 anos, andava pelas ruas e elas estavam cheias dessas histórias. E escrever sobre um tio, numa ou noutra perspectiva, foi ouvir coisas fantásticas. Enquanto escritor é inevitável experimentar as paisagens de forma diferente?Talvez. Nunca pensei nisso, mas é verdade que por não ser escritor até aos 11 anos tudo era muito real e vivia tudo de forma muito real. A minha Londres, a Londres que depois conheci, existiu dez anos depois da que pus no último romance e tive de olhar para trás e olhar para velhos mapas, falar com pessoas que trabalhavam no rio para perceber como seriam; que canal levaria a uma certa abadia. O interesse não acabava. Descobri que no século XVIII havia mais de 200 profissões no rio. E não pensamos muito nisso; pensamos no frio, na neblina e noutras coisas, mas 200 profissões. . . Isso traz muita informação acerca do que era a cidade. Tendo essa relação com os lugares, o que faz quando chega a um sítio novo? Vai descobri-lo no seu potencial de escrita?Enquanto estou num lugar, não estou à procura de encontrar informação para um livro, a não ser que esteja a fazer qualquer coisa específica. Enquanto estava no Sri Lanka, a fazer pesquisa para Anil’s Ghost [2000] voltei a passar tempo com familiares e eles tinham cada um a sua história, piadas, fábulas. Adoro ouvir aquilo, mas dessa vez tentei não passar muito tempo com eles. Eu queria escrever sobre o Sri Lanka e não sobre histórias de família. Passei muito tempo com médicos no Norte do país, em diferentes hospitais. Estava a ver e a ouvir e ainda não tinha uma história; sabia que iria envolver médicos e queria vê-los, saber como se relacionam, como descansavam, o que ouviam na rádio, o que escutavam enquanto faziam uma cirurgia. Eu ali era apenas uma testemunha sem planear, mas sabendo que podia usar aquilo no livro. Isso dá um envolvimento, uma orla à personagem. A personagem é o modo como se comporta, o curso das suas acções, o ambiente, a que horas se levanta, se tem ou não paranóias, quais. . . Fala-se muito de um sentido de verdade nos seus livros. É conferido por esses detalhes?Não sei. Sei apenas que a paisagem é importante para eu construir um livro; não tanto por uma questão de forma, mas, por exemplo, para saber como alguém se comporta durante uma refeição. O tom da conversa, não o que dizem, mas uma irritação ou qualquer coisa assim. É por isso que faço pesquisa. Por exemplo, escolhi esta mesa por achar que seria calma e desde que estou aqui percebi que este casal ao pé de nós se está a divorciar. Devemos mudar-nos? Tudo isto me atrai. É muito agradável descobrir coisas enquanto se escreve. Como define a sua identidade? Isso é importante para si?As pessoas no Canadá preocupam-se muito com identidade [ri-se], com aquilo que representamos. Não me sinto representante de nada, talvez por ser uma grande mistura. Quando escrevi sobre o Sri Lanka em Anil’s Ghost, não quis ser um representante da situação política de lá, porque há muitos escritores que vivem lá e escrevem sobre isso. Mas sempre que se fala de si é tentador falar de um expatriado com alguma coisa a dizer sobre imigração, ou seja, a sua identidade é politizada. Como lida com isso?A vida é mais complicada, mais variada e densa do que ser-se da Nigéria ou da Holanda ou do Sri Lanka. Dito isso, queria referir uma escritora daqui, Dionne Brand [poeta canadiana, natural de Trinidad e Tobago]. Ela tem um livro novo, The Blue Clerk [2018], é um longo poema, arte poética e também uma memória que capta o que é uma imigrante das Índias Ocidentais no Canadá, a viver no Norte de Toronto. É um grande livro. Fico contente por ela ser uma representante, para mim, e através dela entendo o desejo de termos representantes, mas enquanto escritor não quero ser. Pensemos em alguém, como [Philip] Roth, que é um representante de um certo tipo de escritor judeu de Nova Iorque. É curioso referir isso, porque li um crítico a comparar o narrador do seu romance com o narrador de Nemesis, de Roth. Concorda?Sério?! Não vi isso, mas acho que Roth é mais oratório [gargalhada]. O meu é um pouco mais secreto. Cresci com a literatura americana. Acho que nunca teria escrito um romance, se não tivesse lido Faulkner. Porquê?A linguagem é determinante. Há uma abordagem jornalística, como se nada fosse difícil na sua forma de escrever. Também já o ouvi dizer que nunca teria sido escritor, se não tivesse vindo para o Canadá. Porquê?Talvez tivesse, mas seria um escritor muito diferente. Quando estudava em Inglaterra, dos 11 aos 18, o sentimento era o de que o que decidisse ser aos 18 anos era o que seria para o resto da vida. Ou se estava dentro de um sistema que levaria à escrita, ou não havia como quebrar isso. Isso para mim era um problema. Eu lia muito e quando vim para o Canadá comecei a pensar que queria escrever; e queria escrever poesia. Isso nunca me ocorreu em Inglaterra, porque os poetas estavam envoltos em mármore. Sentiu-se mais livre aqui. Muito mais livre. E a universidade em Inglaterra era muito diferente. Neruda dizia que na Europa já tudo tinha sido escrito, todas as ruas estavam nomeadas, todas as árvores tinham um nome e que na América do Sul não havia ainda nomes. Isso também é verdade para o Canadá, não havia o sentido de um mito já escrito, mapeado. O mito continua a ser escrito?Ou tem sido construído desde os anos 50. Houve bons escritores antes, mas era difícil imaginar o que era viver longe, na vastidão. Escritores como Sinclair Ross [1908-1996], por exemplo. Escreveu As For Me and My House [sobre a vida numa grande pradaria do Midwest do Canadá durante a Depressão], mas era só isso. A vida de uma família numa pequena cidade e a paisagem. Nos anos 50, que foi quando cheguei aqui, já havia Hugh MacLennan ou Leonard Cohen, que escreveu um romance sobre Montréal [The Favorite Game]. Antes, todos os livros eram sobre outros países. Margaret Atwood tem escrito sobre a identidade literária canadiana. Há uma literatura que se pode definir enquanto literatura canadiana?Não sei [risos]. Fiz uma antologia de contos canadianos, From Ink Lake, mas não consigo definir o que possa ser essa literatura. A Atwood tem um ensaio em que refere o papel da paisagem, das paisagens perigosas, mas acho que isso é sobre outro tempo. Quando fiz aquela antologia, pus, de maneira perversa, quase toda a gente que tivesse contacto com o estrangeiro, ou imigrantes. Há aqui gente de todo o lado. Mas até aos anos 50 eram quase todos romances intelectuais, uma tradição escocesa, inglesa presente em todo o lado. Lembro-me de The Woman Warrior e de China Men de Maxine Hong Kingston. Foram importantes naquele tempo; e ainda um livro de Henry Roth, Call it Sleep. Eram dos EUA, mas muito importantes aqui. Falemos de 2018, ano especial para si. Um ano agitado. A Luz da Guerra teve óptimas críticas, foi finalista do Booker, entretanto O Paciente Inglês foi considerado o melhor Booker de sempre. Fico angustiado quando sai um livro novo. Há sempre ataques. Os ingleses não gostaram muito deste. [Os ingleses] são muito territorialistas, não gostam que alguém de outro país escreva sobre um assunto inglês. Não se pode dizer que este romance tenha sido escrito por alguém que não pertence a esse território. É quase inglês. Eu sei. Quando era estudante, sentia-me um pouco, mas era estranho. Mas este ano, nas comemorações dos 50 anos do Booker, estive num evento com Ishiguro [Kazuo Ishiguro]. Um dos tópicos era os desafios do processo criativo e o papel das outras artes. A música, a pintura. . . Ishiguro queria ser músico. Escreve canções, toca guitarra. Outro dos tópicos eram as influências da infância. Ele foi para Inglaterra aos quatro anos e eu tinha 11. E crescemos com romances ingleses que hoje seriam considerados racistas. Uma das questões que levantámos foi a de como pudemos aceitar isso como boas histórias de aventuras. E ele disse que gostava de Sherlock Holmes, porque era tão educado, tão delicado. Duas pessoas, num palco, a falar de como criam e de como a Inglaterra e as artes as moldaram. Pois, falar de música ou de pintura é estimulante. Também gosto de falar sobre literatura, mas acho que talvez seja mais influenciado por outras artes do que por literatura. Não me sinto influenciado por Ishiguro ou DeLillo. Leio-os. Ishiguro disse uma coisa interessante sobre música: que o que inveja na música é a voz, porque na música a voz não é conteúdo e na literatura é. Uma canção que termina em crescendo. . . isso não pode ser feito em literatura. Partilha essa ideia?Sim, o crescendo tem de lá estar, mas de outra maneira. Imaginemos uma canção de Van Morrison ou de Frank Sinatra, é quase o som da voz que se acrescenta à emoção. As palavras têm de fazer isso de outra maneira, penso. Talvez através do tom. E na literatura como chega a essa voz? Disse uma vez que não acredita que se tenha uma voz, mas que temos muitas vozes. Sim. Isso tem que ver com aquela ideia de [John] Berger de que não há um ponto de vista, mas muitos pontos de vista num livro. Em O Paciente Inglês tenho quatro ou cinco pessoas; é uma conversa de grupo e não um monólogo. O monólogo é limitativo para mim. A razão pela qual me interessa ser influenciado por outras formas de arte é porque através delas podemos expandir a nossa. Muitas vezes, quando estou a ter dificuldade com a estrutura, vou a uma ópera. Como é que isso o ajuda?Põem-nos perante um novo tipo de regras. Podemos apenas cantar. Ou olhar para um quadro. Consigo resolver coisas a ver essas obras que não sou capaz de criar. E leio muitos livros antigos, de outras épocas, livros bem feitos. Como decide um início? Com a primeira frase?Começo e nunca sei como será a segunda página. Depende de como entro. Não tenho a certeza de onde veio a primeira frase deste livro, mas a dada altura ela ali estava. “Em 1945, os nosso pais foram-se embora e deixaram-nos ao cuidado de dois homens que podiam muito bem ser criminosos” [diz de cor]. No início tinha apenas um homem e depois veio a filha e a história começou. Para mim é sempre mais entusiasmante escrever sem saber para onde raio é que a história irá a seguir. Em A Luz da Guerra estamos em 1945, no mesmo período de O Paciente Inglês. É inevitável a comparação, porque o romance de 1992 voltou a ser lido, falado. São dois livros em períodos de guerra, mas sem que a guerra seja o tema. É mais o modo como a guerra interfere no mundo doméstico, quotidiano. Sim, também não acho que sejam dois romances de guerra. Neste [A Luz da Guerra], a guerra é mais doméstica. Em O Paciente Inglês também é no sentido em que ela se passa fora da vila onde estão as personagens. Mas acho que a guerra na minha escrita é mais forte em Anil’s Ghost [romance de 2000, centrado na guerra civil que devastou aquele país nos anos 80]. Eu estava frustrado com o que se estava a passar no Sri Lanka. Sabia o que se ia passando numa perspectiva jornalística, outra bomba a rebentar e eu sem saber o motivo ou o contexto. Quis escrever sobre como seria estar no Sri Lanka durante esse período. Mas não estava lá e isso foi um problema e acabou por ser mais um romance histórico. Consultei muitos arquivos, falei com médicos, etc. E também por ter sido uma guerra tão brutal não quis tornar o livro um acto de violência: teria sido fácil fazer ali uma pornografia da violência. Foi falar da guerra sem descrever as mortes. Em Julho, confessou que não voltara a ler O Paciente Inglês. Já releu?Tive de o reler, entretanto. Achei que devia. Como foi a experiência? Estava muito preocupado. Foi interessante. Há cinco anos tinha lido Anil’s Ghost, porque ia estar numa universidade para falar dele e era melhor lê-lo. O interessante então foi redescobrir toda a pesquisa que fiz sobre arqueologia e ciência forense, e que, entretanto, esquecera. Fiquei impressionado com o meu conhecimento sobre ossos [risos]. Com O Paciente Inglês tive de o ler, porque alguma coisa acontecera com o livro. Só me lembrava das más críticas e estava preocupado: aquilo era bom ou não? E soou-me bem. Acho que podia ter cortado algumas coisas, porque sou um escritor mais estrito agora do que era. Mas achei-o bem, e variado. Incomoda-o que seja uma obra mais conhecida pelo filme do que pelo livro?Não. O filme tem a mesma estrutura e tornou-se a versão de outra pessoa da mesma história. Acho que me lembrava mais do filme do que do livro até o reler agora. Disse que foi um livro que o libertou. Para ser escritor?Eu era professor a tempo inteiro e enquanto escrevia livro lamentava não ter mais tempo para ele. As coisas resultaram e isso deu-me liberdade para escrever a tempo inteiro. Nesse sentido, libertou-me. E tornou-o um escritor conhecido em todo o mundo. Como lida com a ambiguidade, sendo um homem recatado e ao mesmo tempo um escritor público? Estar no Canadá ajuda. Dou-lhe um exemplo, eu e a minha mulher temos uma casa de campo, junto a um rio; os vizinhos mais próximos estão a uns cem metros e de cada vez que vou nadar passo por lá e eles acenam, mais nada. Quando souberam que ganhei o Booker agora com O Paciente Inglês, acenaram com um pouco mais de entusiasmo. Não incomodam. Qual foi a génese de A Luz da Guerra?Foi o primeiro parágrafo. Eu queria escrever sobre a Inglaterra, mas não sabia que livro seria. Comecei a escrever e imediatamente tive duas crianças e os pais delas. E depois os pais vão-se embora. Eu estava na Alemanha e alguém disse que estava a ensinar cinema a jovens estudantes, de dez, 12 anos e deram-lhes uma câmara com o desafio de fazerem um filme num dia. Perguntaram qual seria a primeira regra e ele respondeu: tirem-lhes os pais. É uma sentença, dá de imediato perigo e liberdade. Mas não sabia para onde ir, mais do que em qualquer outro livro. Mesmo em O Paciente Inglês eu estava com Hana [a enfermeira], depois chega o doente, depois Caravaggio [o italo-canadiano que trabalha para os serviços secretos britânicos], e depois Kip [o indiano sikh]. Neste livro tudo foi muito mais gradual, uma descoberta muito mais gradual da história. Foi sempre uma descoberta. Começa com a voz de Nathaniel, que de imediato põe o leitor diante de uma situação de abandono e da possibilidade do mal. Eu não estava a tentar escrever sobre o mal. Estava a tentar descobrir o que estariam aquelas pessoas a fazer; como a minha intenção em O Paciente Inglês era a de tentar descobrir o que estavam a fazer as pessoas naquela vila. É uma história de envolvimento. É quase sempre assim. Se eu soubesse qual era o enredo, iria sentir-me limitado no sentido em que já não estaria curioso. O que me mantém curioso é a invenção da história. O primeiro esboço é uma espécie de reconhecimento de território e depois, quando regresso a esse esboço, reescrevo e reescrevo, deito muita coisa fora, mas não tenho um plano. Não tenho a noção do conjunto, não sei qual será a última frase. Nem sequer sei qual será a segunda. O processo é o de uma permanente curiosidade. Tem uma grande preocupação com a estrutura, como se tudo se passasse à volta desse pilar. O que faço com o primeiro esboço é tentar descobrir para onde vai a história, quantas pessoas vão entrar. É um esboço muito cru. Mas a linguagem em que será escrito está activamente ligada à estrutura. Há uma cena determinante neste livro que não sei de onde veio, mas graças a Deus que apareceu. Fá-lo acreditar que Deus existe?[risos] Parece não é? Mas resulta de muita reescrita. Escreve à mão. Sim. Faço dois ou três esboços à mão. E é verdade que os ilustra?Sim, mas é apenas para me divertir. Se encontro um poema, junto. Parece bonito. Sim, são muito bonitos. Envio-lhe um. Mas a caligrafia é muito má. Consigo perceber, mas. . . Sobre este livro o crítico do Guardian diz que é como se W. G. Sebald escrevesse um romance de Bond. [Gargalhada] Li todos os livros de Bond quando era adolescente. E os dos Sebald?Mais tarde. Acho que não cheguei a ler Austerlitz, mas li os anteriores, que adorei. São como passos de dança. Essa comparação é tão estranha, imagine uma criatura nascida de Fleming e de Sebald!Conhecemos Nathaniel com 28 anos, quando ele diz: “Tenho agora uma idade que me permite falar disso, de como crescemos protegidos pelos braços de estranhos. ” Estamos nas sombras e nas luzes que incidem na memória, de como ela se constrói e transmuta. Ele acha que já pode lidar com a sua infância. Interessa-me ter um narrador duplo num livro. Temos a história do ponto de vista do Nathaniel criança e quase em simultâneo o de 28 anos a falar da mesma coisa — uma dança em simultâneo. Não é tanto transpor níveis de memória, mas como se Nathaniel estivesse a tentar farejar o que se passa quase como um cão. Devo confiar nesta pessoa? Gosto desta pessoa? Ela deu-me um biscoito. O que significa isso? E ao mesmo tempo ele chega como um escritor capaz de interpretar aquela cena que viu antes de uma maneira inocente. E vê-a quando já perdeu inocência. Gosto dessa dupla narrativa. Como se houvesse duas pessoas, duas cabeças, a falar. Não tive essa consciência quando estava a escrever, mas é o que se passa com este livro, a dupla percepção. Jogar com a memória é algo mais ficcional. Gosto da ideia de ter a memória como voz. Dei essa voz a Nathaniel; Nathaniel tem a memória como voz e acho que aconteceu o mesmo com Hana, em O Paciente Inglês. Interessa-me enquanto forma, a forma de uma falsa memória. Na primeira parte do livro estamos na educação sentimental e estética de Nathaniel. Ouvimos falar de Mahler e de uma palavra em particular, “schwer”: “Mahler punha a palavra ‘schwer’ junto a certas passagens das suas partituras musicais. Querendo significar ‘difícil’, ‘pesado’ (. . . ). Disse que precisávamos de estar preparados para esses momentos, a fim de lidarmos com eles de forma eficaz, se de repente tivermos de apelar ao bom senso. ” Isto que parece valer para a vida também parece válido para a literatura. Sim, eu ouvia Mahler e estava curioso sobre essa frase. Para mim, a forma, o tom e o estilo estão sempre a mudar. É assim que escrevo. O que é verdade para uma sinfonia também é para um romance e para a vida?Sim. Acho que muitos romances ingleses são atonais. Eu tenho curiosidade pela variação e pelas possibilidades de exploração musicais. O sentido musical está presente, enquanto escreve. Nunca ouço música, enquanto escrevo. Tenho a certeza que influencia, como a dança ou a pintura ou qualquer obra de arte. Para mim, o que acontece em qualquer livro é sempre a descoberta de uma voz e do modo como uma voz pensa. Há, como em O Paciente Inglês, um mistério nunca resolvido. Normalmente não o quero ver resolvido. Não quero fazer sumários no fim. Odeio as obras que nos dizem: “E cinco anos depois, eles. . . ”De que modo a poesia contamina a sua prosa?Quando comecei a escrever prosa, quis escrevê-la não como poesia, porque sabia que não era, mas pela ideia de dizer menos como num poema, de ser sugestivo ou ausente ou deixar o resto com os leitores, o leitor ser o responsável pela colagem das cenas. A sugestão é importante. Enquanto escrevia este livro, fiz paragens para escrever poesia e nunca acabei o poema, mas era a necessidade de ir por uns tempos para outra forma e depois voltar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Há muitos escritores, sobretudo poetas, que acham que a poesia não é bem literatura. Acho que é, mas acho que nem sempre é boa. Faulkner era um poeta terrível. Quando escrevo prosa, preciso de mais espaço. Quando comecei Billy the Kid, estava a escrever um livro de poemas e trabalhei nisso durante um ano e meio e de repente quis parar e comecei a escrever prosa pela primeira vez. E comecei a escrever cenas. Sobre tiroteios, uma travessia do deserto e isso deu-me mais espaço e aventura. Um poema é um poema, não é uma coisa épica. E não estava apenas a escrever, mas escrevia prosa, punha uma fotografia e aquilo começou a ser uma colagem, coisa que me interessa. E uma justaposição, mas é mais do que isso, é a tentativa de captar um tom. A ideia de estruturar é muito importante para mim na prosa que escrevi mais tarde. Vamos a nomes: Hana, Caravaggio, em O Paciente Inglês, Nathaniel Traça, Agnes, de A Luz da Guerra, Anil. . . Que relação tem com as suas personagens?Adoro-as. Tenho saudades delas. O fim dos livros é duro, sobretudo do primeiro, como Billy the Kid ou Rat Jelly [1973] e depois Running the Family, sobre os meus pais. Mas em The Skin of a Lion [1987, título retirado ao épico de Gilgamesh], o primeiro romance em que inventei toda a gente, no fim desse livro senti-me muito só, porque estava a perder aquelas personagens totalmente acabadas, como Hana, Caravaggio. E é esse o tom das últimas páginas, uma despedida. Mas depois Hana e Caravaggio voltaram no seguinte [O Paciente Inglês] e eu naquela altura não esperava isso. Talvez por isso sinta uma espécie de perda. Soube-me muito bem poder continuar com eles. Sinto-me muito próximo das personagens. Sinto-me muito próximo de Buddy Bolden [o cornetista de New Orleans a quem é atribuída a invenção do jazz, protagonista de Coming through Slawghter, 1976] mais do que de qualquer outra. Vivemos com eles em casa durante três ou quatro anos. É uma relação muito íntima, envolvo-me com eles. Está a escrever agora?Não, e é muito bom. Os últimos dias ao escrever um livro são muito tensos. Fico exausto.
REFERÊNCIAS:
Nós, as elites, não percebemos nada de nada
O eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta. (...)

Nós, as elites, não percebemos nada de nada
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta.
TEXTO: Eu sei que muitos dos defensores portugueses do voto em Haddad estavam a ser bem-intencionados e sinceros. Sei que mesmo que Bolsonaro se venha a revelar um Presidente menos imprestável e fascista do que prometeu, a mera existência da sua linguagem racista, homofóbica e violenta é uma afronta à boa convivência democrática. Sei também que cada vitória de um líder autocrático no mundo representa mais um retrocesso no campo das democracias liberais. Mas também sei isto: as elites artísticas, intelectuais e jornalísticas têm de meter na cabeça de uma vez por todas que a sua influência sobre o povo, na hora do voto, é nula. Que os seus poderes de mediação e de persuasão, na era das redes, evaporaram-se de vez. Que ter escritores, comentadores, historiadores, músicos ou jornais a criar vídeos, e manifestos, e hashtags, e editoriais, e o diabo a quatro, onde do alto da sua imensa sabedoria tentam explicar ao povo brasileiro (como já haviam tentado explicar ao povo americano) em quem ele deve votar, é uma ridícula figura, por uma razão muito simples – aquele voto, o voto de dezenas de milhões de brasileiros e de norte-americanos, também é contra nós. Quando eu digo “contra nós” refiro-me a uma elite privilegiada, da qual eu próprio faço parte, e que ao longo dos séculos se convenceu de que a sua missão no mundo era desempenhar o papel social de porta-voz das minorias, dos descontentes, dos pobres, dos oprimidos, e que através desse movimento foi valorizando o seu próprio papel no mundo, assumindo-se como proprietária da boa consciência da humanidade, e acreditando que existia uma linha inquebrantável com o povo sofredor, que ela compreendia como ninguém. Só que já lá vai o tempo em que George Orwell vivia com os vagabundos para escrever Na Penúria em Paris e em Londres. A ascensão social de quem domina os lugares da fala afastou as elites intelectuais do povo, e o povo já não precisa das elites intelectuais para falar. Tem o Facebook. As pessoas gostam das canções do Chico e do Caetano, mas estão-se nas tintas em quem eles votam. As pessoas gostam do humor de Gregório Duvivier, mas são pouco sensíveis à sua pregação política. As pessoas gostam dos livros de Raduan Nassar, mas ele tem mais influência sobre as suas galinhas do que sobre o voto dos brasileiros. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E ainda bem. Nós, as elites, olhamos para americanos ou brasileiros como sendo pobres de espírito dominados por Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas a verdade é que há cada vez mais indícios do contrário: são os americanos e os brasileiros que usam Trump e Bolsonaro para chegar onde querem, seja o combate à imigração, o combate à corrupção ou a “defesa da vida”. Quando nós vemos os blocos evangélicos a votarem maciçamente nessas figuras, será pelo seu exemplo cristão? Donald Trump levou uma vida de absoluta devassidão (para utilizar linguagem bíblica), que nenhum pastor se atreveria a recomendar à mais negra das suas ovelhas. Jair Bolsonaro vai na terceira mulher, sendo que a actual já tinha uma filha de uma relação anterior (o que também não encaixa no perfil do macho latino cavernícola). Trump e Bolsonaro não são exemplos para ninguém, nem sequer para quem vota neles. Mas servem um propósito – abanar o sistema de alto a baixo. A esquerda gosta tanto de falar de empoderamento, pois aqui está ele: o eleitorado está-se a borrifar para aquilo que as elites lhe mandam fazer. Daí Trump. Daí Bolsonaro. Daí tantas lágrimas à minha volta.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave filha imigração campo mulher social racista negra
O que é isso de ser um expatriado em Portugal
Chegam em grande número, à procura do sol, da gastronomia, da hospitalidade e de uma oportunidade para recomeçar uma vida. Portugal é o melhor país da Europa, e o quinto melhor país do mundo, para receber expatriados, segundo um inquérito da InterNations, uma rede social utilizada por três milhões de utilizadores. A empresa acaba de escolher o Porto para abrir o seu centro de desenvolvimento. (...)

O que é isso de ser um expatriado em Portugal
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Chegam em grande número, à procura do sol, da gastronomia, da hospitalidade e de uma oportunidade para recomeçar uma vida. Portugal é o melhor país da Europa, e o quinto melhor país do mundo, para receber expatriados, segundo um inquérito da InterNations, uma rede social utilizada por três milhões de utilizadores. A empresa acaba de escolher o Porto para abrir o seu centro de desenvolvimento.
TEXTO: Um mês em Vila Nova de Gaia, um mês em Lisboa, um mês em Lagos. A principal decisão estava tomada: Karen Nipps iria pela primeira vez, nos seus 61 anos de vida, morar fora dos Estados Unidos da América. Recém reformada, do emprego de uma vida como bibliotecária em Boston, queria tentar começar algo novo em Portugal. “As pessoas perguntam-me, porquê? Eu respondo invariavelmente: ‘Porque não’?”, diz ao P2. Portugal, garante, foi uma escolha óbvia: “Cheguei a considerar a hipótese do México. Mas para mim, que não conduzo, ter uma boa infra-estrutura de transporte também era fundamental. Estive em Portugal, como turista, há dois anos, e adorei. Pensei que não valia a pena procurar mais”, explicou. Nipps aterrou em Portugal em Setembro decidida a mudar de vida e apostada em escolher um bom sítio para morar. Foi em Novembro de 2017 que chegou de bagagens na mão, apenas com roupa e livros como companhia. Passou um mês em cada uma das três cidades portuguesas e, apesar de ter gostado muito de todas, a escolha acabou por recair no Porto. “Tem a dimensão certa”, diz. Mora num apartamento na zona de Campanhã, a zona mais oriental e menos desenvolvida da cidade, frequenta pequenas mercearias de bairro onde ninguém fala inglês. “Eu é que vim para cá, eu é que tenho de tentar falar português com eles”, sublinha, concedendo que seria mais fácil já saber mais sobre a língua, mas outras das decisões que tomou passa por aprender a falar português. Em Fevereiro deste ano teve autorização de residência – “Não sou nenhum visto gold, não tenho essa capacidade financeira”, alerta. Esta norte-americana colocou mil euros como limite mensal de renda antes de iniciar a busca de casa. Gostou de uma casa em Campanhã, mais longe do frenesi do turismo, e ficou. “Não queria por nada viver num sítio onde só encontrasse turistas. Não sei como é que hei-de dizer isto, mas não acho bem que haja McDonald’s no centro do Porto. ”Karen não foi a primeira, nem será a última pessoa, que escolheu Portugal para passar os anos dourados da reforma. Terry e Elizabeth Hayden mudaram-se de Chicago para Portugal há sete meses. Ele, antigo corrector de bolsa, está reformado há quase vinte anos. Ela, reformou-se há menos tempo, também de um emprego no mercado de capitais. Viajaram um pouco por toda a Europa, viajaram muito por Portugal, onde vieram pela primeira vez há quatro anos. Em Setembro do ano passado instalaram-se no Porto, e com intenção de ficar uma longa temporada. Fizeram várias buscas de casa até acabarem por assinar um contrato de arrendamento num apartamento da Foz para um ano. Terry tem dupla nacionalidade — para além de norte-americano, é também irlandês, o que faz dele um cidadão europeu a quem as exigências burocráticas são bem menos difíceis. “Depende do ponto de vista, eu até as achei difíceis. Tivemos de arranjar uma certidão de casamento. Isso nos Estados Unidos já nem se usa”, comenta, sentado à mesa de uma esplanada montada num terraço colado à muralha Fernandina, em pleno coração do Porto. Terry acha toda a gente muito simpática, o clima a e a gastronomia “para lá de espectacular”, apenas se queixa do pouco civismo de alguns condutores — “acham que basta ter um carro, que estão autorizados a estacionar em qualquer sitio” — e dos donos de muitos cães – “que fazem as necessidades onde lhes apetece e ninguém se preocupa em apanhar”. Na mesma mesa está Tracy Lawlor, assistente social com residência fixa em São Diego, na Califórnia, mas que passou os últimos três meses em Portugal. Um mês em Lisboa, dois meses no Porto. Acabou de conhecer o casal Hayden. Estão a trocar impressões sobre a vida em Portugal e a experiência de viver no Porto. Tracy está quase a ver expirado o seu visto de turista, com 90 dias. “O Porto é, neste momento, a cidade que eu mais gosto em todo o mundo. Era capaz de me mudar para cá, agora!”, assegura. Não o vai fazer para já, porque ainda não está reformada. E os dez dólares à hora que lhe pagariam para ensinar inglês online também não são suficientes. Por enquanto. Mas vai pensar no assunto, assegura. Cradoc Bagshaw, fotógrafo e a mulher, Theresa, escritora, ambos reformados, também querem morar no Porto. Dizem que foi a cidade que os escolheu quando a visitaram pela primeira vez, em Maio do ano passado. “Viemos para o primeiro Festival de Fotografia do Porto e ficamos apaixonados. Com tudo”, conta Cradoc. Se em anos anteriores experimentaram cidades como Paris, em França, ou Marbella, em Espanha, onde também passaram longas temporadas, nunca tiveram vontade de ficar. “No Porto, sim. Foi automático”, admite Theresa. Os Bagshaw dizem que não viver num sítio de reformados, mas antes querem “continuar excitados com a vida”. E no Porto sentem isso. Estão em Portugal desde Setembro, tiveram uma reunião com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) em Fevereiro, já sabem que vão ter autorização de residência. Mas ela ainda não chegou à caixa do correio. Já têm um apartamento arrendado na Pasteleira, junto à Foz, num edifício dos anos 60 que os apaixonou não só pela vista que tem sobre o estuário do Douro, como pela proximidade ao que lhes importa. “Estamos a uma viagem de autocarro do centro da cidade, e a umas passadas do oceano e do rio”, diz Theresa. “O Porto é perfeito”, remata Cradoc. Sarah da Silva, 27 anos, quer muito morar no Porto, mas admite que está quase a desistir. Nasceu alemã, filha de pais açorianos, viveu um ano no Algarve, quatro anos em Londres, está há um mês no Porto, num pequeno intervalo antes de concluir o mestrado em educação ambiental e enquanto começa a procurar emprego no Porto. “Não percebo como é que os portugueses conseguem pagar estas rendas”, lamenta, queixando-se do oportunismo de alguns proprietários que cobram, por exemplo, 350 euros por um quarto, “que nem está no centro da cidade, mas no Marquês”. “Eu ainda o consigo pagar, porque tenho propinas alemãs, mas como fazem os portugueses em início de carreira?”, questiona. Resultado: “O mais provável é não conseguir ficar no Porto, apesar de gostar dessa possibilidade”, admite. Para já divide apartamento com Alessia Usai, uma italiana de 28 anos, que vivia em Malta e chegou ao Porto para usufruir “do ambiente criativo da cidade” e procurar uma ocupação na área das artes e ofícios, em que quer trabalhar. Chegou há dois meses. Está “a adorar”. Entre os que chegam para estudar, os que vêm fazer intercâmbios culturais, os que estão destacados por empresas, ou os que vêm ter com a família, procurar emprego ou aproveitar a reforma, quantos são os imigrantes que vivem em Portugal, afinal? No próximo mês de Junho, o SEF deve divulgar os números oficiais que dão conta da dimensão do universo de estrangeiros que no ano passado pediram visto para residir em Portugal. Por enquanto, há apenas dados provisórios, que apontam para um número superior a 29 mil autorizações especiais de residência concedidas em 2017 a naturais de países terceiros à União Europeia. Não sendo possível contabilizar o número de cidadãos de outros países da Europa que escolheram viver em Portugal, e que aqui chegaram trazidos por multinacionais que escolheram cidades portuguesas para abrir novas sedes, para estudar ou fazer investigação, o número de 29. 055 autorizações de residência concedido a cidadãos estrangeiros, dá uma boa noção do universo de “expatriados” que vive em Portugal. O SEF não distingue se estes imigrantes vieram para Portugal para trabalhar, para acompanhar família, para estudar, para procurar emprego, para gozar a reforma. Sabe-se, apenas, que nos últimos seis anos o serviço regularizou a entrada em Portugal de mais de 150 mil imigrantes. Uma plataforma onde é possível encontrar muita informação sobre a comunidade de expatriados em Portugal é a InterNations. A história desta empresa, fundada na Alemanha em 2007, é em tudo parecida com a do Facebook: dois amigos, ainda na Universidade, decidem criar uma rede que possa colocar pessoas com os mesmos interesses em contacto. Neste caso, o ponto de contacto principal é o facto de viverem num país diferente daquele em que nasceram, circunstância que potencia o cenário de virem a precisar de algum tipo de apoio durante a fase de integração. A InterNations tem hoje mais de três milhões de utilizadores, organizados por 390 comunidades em todo o mundo, mas é bastante mais do que uma simples rede social. É também o local onde muitos encontram informação prática para se estabeleceram numa nova cidade. Portugal tem cerca de 26 mil membros InterNations, divididos por três comunidades: Lisboa (18 mil membros), Porto (4800) e Cascais (3200 membros). A adesão à Internations pode ser feita de forma gratuita, mas é sempre alvo de uma validação da empresa. É valorizada a experiência que cada um teve em termos de experiência no estrangeiro, e os membros Albatroz (aqueles que pagam uma taxa mensal, de cerca de oito euros) são os que tem acesso a um maior numero de serviços e de fontes de informação. E de bebidas gratuitas e bilhetes de entrada nos muitos eventos que os “embaixadores” ou os “consuls” que trabalham voluntariamente para a Internations organizam com regularidade em cada comunidade. Pode ser uma visita guiada ao Terminal de Cruzeiros de Leixões um passeio fotográfico pelo Porto, ou um evento fechado num bar do centro histórico da cidade com direito a sunset e a concerto de jazz. Como aquele em que o P2 foi encontrar Elizabeth e Terry, Alessia e Sarah, Cradoc, Theresa e Jannine, entre quase uma centena de pessoas. Em Portugal são imigrantes. Para a Internations são “expatriados”, vivem longe da Pátria em que nasceram. O Índice Expat Insider 2017 analisa a experiência dos expatriados em 65 países e recai sobre tópicos essenciais, como a qualidade de vida, a facilidade de um emigrante se estabelecer, a compatibilização com a vida familiar, a organização das finanças pessoais e o custo de vida que tem em cada país. O índice é organizado através das respostas enviadas por 12. 500 participantes, a viver em 188 países ou territórios e que representam, segundo a organização, 166 nacionalidades. “Deram-nos respostas únicas sobre o que significa ser um expatriado em 2017”, sublinhou Caroline Harsch, responsável pelo departamento de comunicação e relações públicas da InterNations. E de acordo com essas respostas, e no índice global, que mede todos os indicadores, Portugal protagonizou uma ascensão meteórica de 23 lugares, face ao ano anterior. No final de 2017, Portugal era o quinto melhor país do mundo, para acolher um imigrante. A primeira posição é do Bahrain, seguindo-se a Costa Rica, o México e depois Taiwan. No top dez só entram três países europeus: para além de Portugal, em quinto, surge Malta, em sétimo, e Espanha, em décimo lugar. Os cinco últimos lugares desta tabela com 65 posições estão a Arábia Saudita, o Brasil, a Nigéria, o Kuwait e, em último lugar, a Grécia. O Index tem várias subcategorias, e é naquele que mede a Qualidade de Vida de um destino que Portugal se assume campeão, arrebatando uma liderança que, em 2016, pertencia ao território chinês de Taiwan. Para este índice, os inquiridos respondem a questões sobre opções de lazer, qualidade dos transportes e oportunidades de viagem, saúde e bem-estar, segurança e protecção, e ainda felicidade pessoal. É no índice que mede a qualidade de vida percepcionada pelos expatriados que Portugal assumiu este ano o lugar cimeiro. A popularidade de Portugal entre os expatriados está em grande parte relacionada com o seu clima temperado e com o facto de as actividades de lazer estarem amplamente disponíveis. De acordo com o inquérito, nenhum entrevistado teve algo negativo a dizer sobre o clima, que quase dois terços (65%) consideram excelente. E nove em cada entre dez expatriados perceberam isso como um benefício potencial antes de se mudar. O bom resultado de Portugal na subcategoria Saúde e Bem-Estar — nono em todo o mundo — é, em certa medida, graças aos benefícios da natureza. Embora o país tenha resultados acima da média em relação à acessibilidade e qualidade dos cuidados de saúde, a verdadeira força de Portugal parece residir na qualidade do seu ambiente. Mais de nove em dez entrevistados (94%) classificam isso positivamente (a média mundial fica nos 64%). E se Portugal não entra no top 10 da subcategoria Protecção e Segurança, ocupando a 11. ª posição entre os 65 analisados, também é evidente que este não é um factor de preocupação. Aliás, nesta categoria, a tranquilidade é o factor mais bem classificado, com um impressionante resultado de 77% dos inquiridos a considerarem Portugal um país muito pacífico — apenas a Finlândia apresenta resultados ligeiramente melhores (78%). Por fim, 94% dos expatriados em Portugal estão satisfeitos com as suas oportunidades de viagem (e em todas as conversas lá vem à baila a proximidade do aeroporto, e das ligações aéreas para vários pontos da Europa). Já os transportes e as suas infra-estruturas não são plenamente convincentes: um em cada onze (9%) classifica este factor de forma muito negativa. Cômputo geral, apenas 4% expressam qualquer insatisfação com a sua nova vida em Portugal. E isto quer dizer que, na InterNations, Portugal é mesmo um campeão de notoriedade. Dos 26 mil utilizadores que em Portugal usam a plataforma da InterNations, 73% são de facto expatriados e só 27% é que são locais, isto é, portugueses que também participam na rede e ajudam a melhorar o serviço prestado na integração de imigrantes. “Ter essa ajuda de nativos é fundamental. Porque eles conhecem bem a cidade, e são as melhores pessoas para ajudar quem acabou de chegar. Quando vim para Portugal não conhecia rigorosamente ninguém. Hoje, sinto-me praticamente adoptada por alguns amigos portugueses. Já vivi em Madrid e em Hong Kong, e nunca foi assim, em lado nenhum”, diz Natalia Martinez, uma colombiana que vive em Matosinhos há um ano e sete meses, e uma das “embaixadoras” da InterNations no Porto. Com 34 anos, Natália conheceu a InterNations em Bogotá, quando regressou a casa depois de experiências a viver em Londres, em Madrid e em Hong Kong. “Sentia necessidade de continuar a conviver com pessoas de outros países. Disponibilizei-me para lhes dar a conhecer o que podia do meu país, e a verdade é que sempre recebi muito mais do que dei em troca”, afirma. Natália veio para Portugal depois de ter respondido a um anúncio de emprego da E-Goi, uma empresa de marketing, especializada em conceber e divulgar campanhas de marketing através de automatismos via e-mail, SMS, etc. “Portugal converteu-se nos últimos anos num país de moda, está nos olhos de todo o planeta. E quando falo em planeta, sei o que digo, porque encontro viajantes de todos os pontos do globo a visitar Portugal”, afirma, convicta. Porquê? “Porque ainda é um país autêntico. ”Natalia Martinez diz que se deixou encantar pela qualidade de vida em Portugal, pela simpatia dos seus habitantes. Não tanto pelos salários, que são muito baixos. “Mas foi uma solução de compromisso que encontrei. Se quisesse ganhar dinheiro ia para Berlim, ou para Londres. Aqui não ganho tanto dinheiro, mas tenho maior qualidade de vida, não gasto tempo no caminho para o trabalho, tenho mar à porta e montanha aqui ao lado, boa gastronomia e excelente vinho. E as pessoas são muito simpáticas”, argumenta. Como “embaixadora”, Natália anda desde Novembro a “fazer as honras da casa” e a dar as boas vindas a todos os novos membros da InterNations. Envia os links com sites para procurar casa, dá informações sobre transportes, partilha a experiência que já teve com as burocracias portuguesas — por exemplo, a dificuldade que está a ter em validar a sua carta de condução. “O normal dos expatriados é chegarem aos novos países sozinhos. É muito caro para as empresas trazer as famílias. O resultado é, por exemplo, passarem domingos tristes, sentados no sofá, porque não conhecem ninguém, e os que conhecem, no emprego, tem famílias e compromissos”, recorda, dizendo que a componente social da InterNations é uma das mais relevantes desta rede. A InterNations quer, porém, crescer e expandir-se, e escolheu precisamente o Porto para abrir um novo centro de desenvolvimento, para o qual esperam recrutar meia centena de trabalhadores nos próximos três anos. O que convenceu a InterNations foi a percepção de que há no Porto um clima de aceleradores e start-ups “efervescente”, com muitos empreendedores a tentarem aqui a sua sorte, mas também grandes empreendedores internacionais a expandirem o seu negócio. “O Porto é uma booming-city. A crescente cena de start-ups e empreendedores internacionais do Porto tornam-no um local perfeito para expandir nossos negócios”, disse ao P2 Malte Zeeck, um dos co-fundadores da empresa que já tem mais de 130 funcionários. O novo centro de desenvolvimento da empresa situa-se no Parque de Ciência e Tecnologia do UPTEC da Universidade do Porto e complementa a sede em Munique, bem como os escritórios em Vilnius e Madrid. “Estamos muito focados em ligar pessoas. Queremos começar a oferecer serviços. Tratar de vistos, fazer mudanças, ajudar a procurar casa e creches, dar referencias onde se pode aprender a língua. Queremos oferecer toda a informação e ajuda que cada expatriado possa necessitar”, explica Zeeck. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Susy Vasconcelos, 35 anos, licenciada em Ciências da Computação pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, é a portuguesa responsável por esse centro de desenvolvimento. Em conjunto com Helder Fernandes, de Famalicão, contratado em Março, e com Andreas Goetz, de Roterdão, contratado em Abril, está a começar a desenvolver a plataforma tecnológica e o pacote de serviços que estarão disponíveis para venda online, seja a empresas seja a particulares. As contratações deverão disparar até ao final do ano, querem contratar até 50 pessoas nos próximos três. “É um recrutamento à escala global. Começo a achar que já é difícil contratar os perfis de marketing que procuramos aqui em Portugal. Precisamos de alguém muito sénior na área do Search Engine Optimization, por exemplo, e aqui já há muitas empresas a contratar. Estamos a ter dificuldades. Mas o recrutamento é global, podemos ir buscar alguém de qualquer país que tenha vontade de vir para o Porto”, afirma a responsável. Susy conheceu a InterNations em Berlim, quando foi para lá com marido e filha nos braços, e usou a informação disponibilizada pela rede para se estabelecer. Foi para a Alemanha trabalhar na Techstars, um acelerador de empresas, e é essa experiência com start-ups que levou a InterNations a confiar-lhe uma. O regresso ao Porto depois de experiência a viver em Madrid (Espanha), no Brasil, nos Estados Unidos, na Escócia e em Berlim (Alemanha), acabou por ser uma boa noticia. “Sei o que sente um imigrante quando chega a uma cidade desconhecida, e o tipo de pequenos grandes problemas que precisa que o ajudem a resolver. É esse produto que nós vamos montar”, diz Susy. Enquanto esse produto não existe a InterNations vai servindo para muita coisa. A Jeannine Johnson-Maia — uma norte-americana que viveu 25 anos na Bélgica, um ano em Cabo Verde e veio parar ao Porto, cidade que conhecia bem por ser a terra do ex-marido, há menos de um ano — serviu-lhe para encontrar um editor. “Uma amiga de Singapura falou-me nestes encontros, aqui comecei a conhecer muitas pessoas que conheciam outra e o networking permitiu encontrar um editor”. No próximo dia 21 de Junho vai lançar um romance histórico, Praça do Rossio, nº 59, com a chancela da Leya.
REFERÊNCIAS:
Entidades SEF
Entre o lixo e o luxo, Angola sobrevive à crise
A quebra do preço do petróleo veio levantar bandeiras vermelhas. A “petrodependência” pode ser fatal. (...)

Entre o lixo e o luxo, Angola sobrevive à crise
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A quebra do preço do petróleo veio levantar bandeiras vermelhas. A “petrodependência” pode ser fatal.
TEXTO: É o país em que quase 70% da população vive com menos de dois dólares por dia e onde a cesta básica para uma semana custa 50 dólares. É dos países que mais consomem champanhe per capita e onde o lixo amontoado nas ruas convive com carros de luxo. A quebra do preço do petróleo veio levantar bandeiras vermelhas e pôr na agenda o discurso de que a “petrodependência” pode ser fatal: é urgente diversificar a economia, avisam analistasEm meados e finais de Março, a província de Benguela, no Sul de Angola, ficou alagada. As chuvas causaram a morte de dezenas de pessoas, desalojaram famílias, destruíram campos agrícolas. O ar tropical está quente. Percorremos a estrada que vai do aeroporto da Catumbela à cidade de Benguela e vemos os destroços. Lagos a separar os musseques da estrada principal fazem com que as pessoas tenham de pôr as pernas na água para sair do bairro onde ficaram isoladas. Há poças por todos os lados. As estradas estão cheias de buracos. Nos passeios da cidade amontoam-se sacos de areia:— Foi para conter a água e proteger as lojas, explica Marco Neves, mostrando uma estrada agora seca, enquanto conduz o seu “quatro rodas”. Há 20 dias não tinha estes buracos, a cidade está de patas para o ar por causa da chuva, continua. Aos 33 anos, Marco é o sócio-gerente de uma empresa familiar de cash and carry, a Martins e Neves, e de uma cadeia de supermercados, o Ponto Alimentar. Com dupla nacionalidade, Marco Neves tem ainda um escritório da sua empresa de exportação em Portugal. — Ali estão terrenos agrícolas, aponta, mostrando o património da família. Mas a agricultura em Angola está obsoleta, critica este empresário que nos guia à economia angolana. A pressão demográfica nas cidades é tal que o terreno perdeu valor agrícola e passou a ter valor imobiliário, continua. Por isso a família está a tentar obter autorização para construir. — Os países vizinhos são mais eficientes do que Angola: a Namíbia mete batata em Angola a um preço que eu não consigo. A manutenção dos tractores é cara, eles têm acesso a créditos que nós não temos. Existem programas legislativos em Angola mas é preciso ter o padrinho certo e nós não temos. Exige um grande esforço, estes canais são difíceis, tem de se dar muita gasosa [suborno]. O avô era produtor de bananas e exportava-as. Foi o único dos quatro irmãos a ficar em Angola depois da independência em 1975. A crise financeira em Angola provocada pela quebra do preço da principal fonte de receitas do país, o petróleo, desde Junho, veio desregular as contas à empresa — à sua e a muitas, angolanas e portuguesas. A empresa tem à volta de 200 funcionários, na maioria angolanos. Dispensaram dois dos quatro funcionários portugueses porque “cada expatriado representa um custo muito elevado” — é o salário, mais o pagamento da casa, do seguro, do gerador. . . As exportações de Portugal para Angola tiveram a maior queda dos últimos cinco anos, tão grande que o valor registado em Fevereiro fez com que Angola passasse de quarto para sexto lugar dos principais clientes de Portugal. O Governo português criou inclusivamente uma linha de financiamento de 500 milhões de euros para apoiar algumas das cerca de 10 mil empresas que exportam para Angola e estão com dificuldades em receber pagamentos. — O véu é destapado quando começam a faltar divisas ao país, que duvido ser apenas resultado da queda do petróleo. Quando não há divisas para pagar aos fornecedores, temos de diminuir as importações: mas se não se compra, o país morre à fome, comenta. A empresa de Marco deixou de conseguir pagar aos fornecedores por causa da falta de divisas em Dezembro. Costumam receber oito contentores por mês; em Janeiro receberam zero, em Fevereiro idem; em Março, porém, foram quatro. — Tenho os kwanzas no banco, mas o banco não tem dólares e euros para me vender, diz. Chegamos ao Ponto Alimentar, um supermercado todo branco: chão, paredes, prateleiras. Há um talho, zona de frutas e legumes, arcas frigoríficas fechadas com os frescos lá dentro. Em obras e equipamentos, o supermercado tem um investimento de cerca de um milhão de euros, algo que em Portugal custaria uns 250 mil, diz Marco Neves. As prateleiras estão cheias de produtos portugueses: marcas de refrigerantes, sumos, óleos e azeites, cafés, leites, etc. A produção local não chega para as necessidades do país, e neste supermercado 75 a 80% dos produtos são portugueses. Mas olhamos para os preços e percebemos que são muito superiores aos que se praticam em Portugal. Por exemplo, um quilo de feijão vermelho custa cerca de 700 kwanzas (6 euros), um quilo de arroz 1, 1 euros, frango cerca de 6 euros. — Não temos indústria, importamos tudo de Portugal, explica Marco enquanto percorre os corredores do supermercado em busca dos elementos de um cabaz básico para uma semana. O fabricante produz leite, mete à venda em Portugal a 0, 60 cêntimos o litro; a pessoa que vai vender a Angola vende a 0, 70. Para chegar a Angola, tem de levar transporte e essa empresa põe mais um X em cima. O Governo tem uma pauta aduaneira e taxa o leite — já estamos em um euro. Os importadores vendem a 1, 10 e os supermercados que compram ao cash and carry vendem a 1, 20. Há outros factores, como explica Marco Neves: na Europa, um técnico de uma empresa da indústria de sumos pode apanhar um avião numa low cost e estar em Portugal rapidamente e a um preço relativamente baixo; se for a Angola, precisa de visto, passagem aérea e alojamentos caros, etc. A manutenção torna-se, assim, cara. Apesar dos custos, fazer negócio compensa?— Compensa. As vendas também são altas e a concorrência, mesmo assim, ainda é pouca. Seguimos para o cabaz. Na prateleira dos feijões, Marco escolhe o mais barato, comprado a granel em sacos de 50 quilos. Comparativamente a uma marca embalada, é mais barato porque a pauta aduaneira o favorece. — Qual é a lógica? Se importar 50 quilos, vou ter de contratar mão-de-obra local e gerar emprego para encher sacos, meter selos e pesar na balança; se importar já embalado, só vou precisar de uma pessoa que o tira da caixa. A lógica é, assim, criar emprego e começar a “produzir” alguma coisa localmente. As pessoas não deixaram de consumir. Mas houve produtos que subiram muito por causa da especulaçãoEm frente às cervejas, Marco Neves fala agora das quotas porque este foi um dos tipos de produtos que o Governo planeou restringir em termos de importação — a medida seria depois suspensa em finais de Março, não se sabe até quando. O objectivo? Estimular a produção local. A política das quotas é praticada em muitos países, inclusivamente na União Europeia, e Marco Neves concorda com elas, mas defende que deve existir preparação e um estudo das quantidades dos produtos abrangidos que o país necessita antes de as aplicar. — Se Angola consome tanto ou mais cerveja que Portugal, faz sentido a indústria instalar-se cá e criar postos de trabalho, exportar os lucros mas não as divisas todas. A cerveja mais bebida em Angola é a Cuca, mas as elites bebem as cervejas portuguesas importadas, Superbock e Sagres (que são, aliás, os produtos que Portugal mais exporta para Angola — valeram 143 milhões de euros no ano passado). Isso é sinal de status?— Também. Há aqui um efeito pavlov. Como temos esta ponte aérea com Portugal, acabamos por ficar ligados às marcas portuguesas. É marketing puro, mas é também o subconsciente a funcionar. Se vou comprar um produto, lembro-me do que bebi na minha infância. Entre Dezembro, altura em que começaram a ficar mais evidentes os sinais da crise, e finais de Março, todos os produtos aumentaram uma média de 10%, calcula Marco, enquanto vai enchendo o carrinho vermelho com o cabaz, escolhendo sempre a alternativa mais barata. — As pessoas não deixaram de consumir. Mas houve produtos que subiram muito por causa da especulação. O frango, por exemplo, foi dos produtos abrangidos pelas quotas: subiu e não voltou a descer. Os prejuízos no negócio só saberá quais são no segundo trimestre do ano, explica, calculando que estejam entre os 10 e os 15%. — A facturação baixou porque não tenho tantos produtos disponíveis, não consigo comprar como comprava. Não tenho tanto produto exposto, tenho umas prateleiras vazias, e há menos vendas. Antigamente, fazia menos contas do que hoje: havia produtos que não faziam parte da dieta, eram premium, e eu arriscava, hoje não arrisco. Por exemplo, nos leites, o mais caro, o premium, já não compro. Ainda não temos dados, calculamos que a descida das vendas tenha sido de 10 a 15%. Desconhece, porém, qual a perda que se deveu à crise e qual a perda que se deveu à chegada de concorrência no mercado. Chegados à caixa, a factura regista os 50 euros. São nove produtos: leite em pó, 22 euros (base da dieta alimentar da população porque o leite UHT é mais caro e além disso nem toda a gente tem energia em casa), frango (quase seis euros), farinha de soja (4, 6 euros), arroz (1, 1 euros), feijão (6, 2 euros), açúcar (1, 09), óleo (2, 5 euros), vinagre (0, 90) e sabão (0, 50). No mercado de rua, o preço total não varia substancialmente deste. Dados do Banco Mundial relativos a 2009, mostram que quase 70% da população angolana vivia com menos de dois dólares por dia — ou seja, uma cesta deste valor teria de dar mais ou menos para um mês (62 dólares). Na caixa está uma funcionária que ganha cerca de 500 euros mensais, um bom salário segundo ela e Marco Neves — uma cesta básica mensal levaria 40% deste ordenado. O bairro de Miramar, em Luanda, é uma zona rica onde ficam as casas de diplomatas e embaixadas. Situado num cume, tem vista ampla sobre a cidade: arranha-céus já construídos, arranha-ceús por construir, a baía ao fundo, com a marginal onde os portugueses correm ao final do dia. Daqui, Luanda mostra-se como uma cidade em mutação, o cartão postal do grande produtor de petróleo, gigante africano a liderar o grupo dos países em aceleração económica. É em Miramar que fica também uma das residências de José Eduardo dos Santos, uma moradia que dá a volta a um quarteirão. Perto, há um jardim com fontes, lagos, tudo visivelmente cuidado, mas nem na tarde de fim-de-semana se vêem muitas crianças e jovens a brincar por ali — apenas um ou dois grupos. Numas ruas à frente está um stand de automóveis com Jaguares e carros de topo de gama à venda. Tal como em algumas zonas de Luanda, o lixo e o luxo aqui convivem lado a lado. À frente deste stand há uma estrada cheia de buracos, lixo amontoado e na rua em baixo casas que podiam estar nos musseques (bairros de lata). As chuvas de Março alagaram a cidade e tornaram o cheiro do lixo mais intenso. A recolha não se tem feito porque as empresas responsáveis não recebem do Governo Provincial de Luanda por “falta de liquidez” — queixam-se ainda que o mau estado das estradas não lhes permite chegar a determinadas zonas. Andar em pleno centro de Luanda num carro normal pode, de facto, ser uma aventura — além de o tráfego ser intenso, fazendo com que uma distância de um quilómetro demore facilmente meia hora a percorrer, as estradas estão muitas vezes com buracos enormes. Entre o pára-arranca vêm os vendedores às janelas dos carros com tudo o que se possa imaginar: cajus, fruta, cartões de carregamento de telemóveis, headphones a imitar marcas conhecidas, sacos de água, até chuveiros e outros produtos improváveis como tampos de sanita. É também na rua que se consegue o melhor câmbio para o dólar — conseguimos por 140 kwanzas, quando no banco variava à volta dos 110. É uma das contradições e contrastes de uma cidade onde há casas a alugar por 25 mil dólares mensais e casas sem saneamento básico na rua em frente. Angola é o país que tem dos menores índices de desenvolvimento humano (é 149º em 187 países nos últimos dados das Nações Unidas). E ainda hoje, 13 anos depois do fim da guerra civil que durou 27 anos, continua a investir mais em segurança do que na educação e saúde — o orçamento do Ministério da Defesa é quase cinco vezes superior ao do da Saúde e Educação juntos, segundo a revista Exame Angola. Luanda, a capital, é das cidades mais caras do mundo. Uma refeição que em Portugal, num restaurante com o mesmo nível de qualidade, não custaria mais de 8 euros, em Luanda custa mais de 20. A dormida numa pensão pela qual não se pagaria mais de 15 euros em Portugal, em Luanda custa 150. 70% da população angolana vive com menos de dois dólares por dia, segundo dados de 2009 do Banco MundialPor que é que o custo de vida em Angola é tão caro explica-se com factores como o facto de o crescimento económico ter sido feito com elevados custos devido à falta de infra-estruturas, contextualiza o economista Manuel Alves da Rocha, director do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC), da Universidade Católica de Angola. “E as infra-estruturas que foram construídas têm uma qualidade que deixam a desejar. Isso tem como resultado aumentar os custos de funcionamento da economia. Depois temos um problema que não sei se terá solução em Angola, que é o do gerador e da água: funcionamos a gerador, o que eleva imenso os custos de produção, e a água fornecida a domicílios está cara porque tem de se captar de longas distâncias. Temos uma baixa de produtividade da economia, sistemas de transporte ineficientes e uma série de factores que estão relacionados com todas as dificuldades e 27 anos da guerra civil. ”Há ainda a dependência das importações, que encarece tudo — e a “petrodependência”. O petróleo representa cerca de 95% das exportações, 75% das receitas fiscais e 50% do PIB. Sendo um dos grandes produtores de petróleo do mundo, Angola investiu pouco em outras áreas, como a agricultura. Daí que a queda do preço do petróleo tenha um efeito dominó tão acentuado na economia angolana. Não é a primeira vez que isto acontece, lembram analistas. O primeiro choque resultante da variação do preço do petróleo aconteceu ainda durante a guerra civil, em 1998, lembra Manuel Alves da Rocha. O segundo choque aconteceu em 2008 e 2009, altura em que a queda do preço do petróleo foi consequência da crise internacional. Na altura, o Fundo Monetário Internacional foi chamado a intervir. Neste terceiro choque, ainda é incerto o que vai acontecer, lembra Alves da Rocha, que não acredita que a queda seja passageira. “Se nada acontecer no mercado internacional do petróleo, as coisas vão ficar complicadas para a economia angolana”, prevê, lembrando que o Governo reviu em baixa o investimento público, o segundo factor de crescimento do país, depois das exportações de petróleo. Mas “mesmo assim o orçamento ainda vai apresentar um défice significativo”. No orçamento revisto para este ano, as projecções do Governo sobre o crescimento do produto real foram reajustadas de 9, 2% para 6, 6%, lembra o economista — o primeiro orçamento para 2015 tinha-se baseado nos 80 dólares por barril, mas ajustou-se para metade, 40 dólares. Porém, as projecções mais pessimistas de algumas agências apontam para uma taxa de crescimento de 2, 5%, outras vão aos 3%. Seja como for, prevê, “a intensidade de crescimento vai diminuir”. Quanto à dívida pública, esta não constitui problema: “Há margem de progressão nesta matéria, o Estado pode continuar a criar dívida pública para financiar os investimentos públicos. ” “Enquanto o nível de dependência do petróleo for este, os problemas mantêm-se”, diz Carlos Rosado Carvalho, director do semanário económico Expansão, do grupo privado ScoreMedia. Sentado na redacção do jornal, com as capas do Expansão por trás penduradas na parede, Rosado Carvalho descreve: “O Estado em Angola tem um peso muito grande, através do investimento público e do emprego. Se tem menos rendimentos e investe menos, isso traz problemas gravíssimos do ponto de vista económico, e o principal é o problema cambial. ”Mas ressalva: “Agora o problema de Angola é um bocadinho como a febre — não é uma doença, é uma infecção e esta petrodependência é o sintoma, porque o principal problema é a falta de competitividade da economia. ”A revisão do Orçamento levou a cortes em áreas como a agricultura (de 12, 3% para 7, 9%), indústria (de 11, 2% para 6, 8%) ou construção (de 10, 5% para 6%) — dados da Exame. Isto afectou empresas portuguesas de construção — o Sindicato da Construção Civil português tem feito vários alertas sobre os atrasos de pagamento a construtoras e trabalhadores em Angola. Uma grande construtora portuguesa teve de deslocar quadros de Angola para outros países, disse-nos, sob anonimato, um funcionário dos quadros administrativos, mas a situação estava a ser desdramatizada pela empresa, que tinha sido cautelosa nos seus investimentos. Outra construtora estava sem receber do Estado há seis meses, revelou também sob anonimato um funcionário. Agora o problema de Angola é um bocadinho como a febre — não é uma doença, é uma infecção e esta petrodependência é o sintoma, porque o principal problema é a falta de competitividade da economiaO primeiro efeito da crise foi o cambial, lembra Carlos Rosado Carvalho. “Começou a haver escassez de divisas; os emigrantes que têm necessidade de fazer transferências começaram a ter problemas. ” O valor das remessas de Angola para Portugal tem vindo a cair desde Setembro. Em Janeiro, chegaram aos 15, 3 milhões de euros, menos 24, 5% face a idêntico período de 2014. Rosado Carvalho destaca que esta questão tem também afectado “os próprios angolanos, que querem viajar, têm filhos a estudar no estrangeiro ou se querem tratar”. Ou seja, a crise não está a atingir apenas as classes mais baixas. Luís Fernando, administrador executivo do grupo privado MediaNova (que tem a Exame ou o jornal O País), não tem dúvidas: “A crise não está nos jornais nem é uma conversa de economistas, está aí, é real. ” Está a afectar as classes média e alta — hoje é mais difícil ir de férias, usar cartões de crédito, fazer tratamentos de saúde no estrangeiro — “podendo, ninguém aceita fazer uma intervenção mais séria em Angola”, lembra. No dia em que conversámos, em finais de Março, Luís Fernando tinha estado a “safar uma sobrinha que está a estudar em França”: “O dinheiro da bolsa não lhe chegava por causa da crise e descobriu o tio como a última salvação, perdeu a vergonha e eu tive de me virar. Não estamos a falar de uma situação que possa esperar, estamos a falar de uma pessoa que passava fome. ”Militante do MPLA, lembra que “em boa hora aconteceu esse problema com o petróleo”, que acaba por ser uma maldição. “Angola tem os melhores pastos do mundo, vá verificar esses pastos e não há vacas a pastar. Se temos dinheiro a jorrar das plataformas de petróleo, é mais fácil comprar a carne lá fora. Este é o país que não produz rigorosamente nada, nem um pente. Não é normal que 24 milhões comam coisas vindas de fora. Não há nada na nossa produção que não dependa do estrangeiro. Se produzo frango, há algum elo na cadeia produtiva que depende do estrangeiro — quanto mais não seja o técnico. Se não tenho divisas para importar a maquinaria, vou ficar encalhado, entrar em colapso. Criámos uma cultura dos petrodólares. ” É urgente, por isso, apostar na diversificação da economia, mas isso será feito ao longo de várias gerações, lembra. Para saber exactamente que fatias da sociedade estão a ser afectadas pela crise e qual o impacto, será preciso esperar mais um pouco, dizem alguns. Há quem defenda que “o problema não está apenas no facto de o preço do petróleo baixar”, é que a estrutura de despesa do Estado é gigantesca e muito centralizada na estrutura central do Estado, aponta Belarmino Jelembi, director da organização não-governamental de desenvolvimento ADRA. A crise está a afectar algumas empresas angolanas que prestam serviços ao Estado, na área da alimentação, dos hospitais, das empresas do lixo, analisa. O impacto e a percepção da crise varia. Há mesmo quem relativize. Para portugueses como José Rodrigues, director de recursos humanos da DHL, esta crise não é tão grave como a de 2008, altura em que ficou meses sem receber o salário quando trabalhava para outra empresa. Agora houve uma quebra do volume de mercadoria transportada pela DHL, mas ele recusa ter um discurso de “profeta da desgraça”. Tirando o aumento de um ou de outro produto, não notou diferença na sua contabilidade pessoal diária — os seus gastos mensais, sem pagamento de aluguer de casa, assegurado pela empresa, continuam a ser de entre 1300 a 1500 dólares. Analisa: “Com este envolvimento, as empresas aproveitam para fazer uma limpeza, pegar nas pessoas que não são necessárias e investir um bocado nos quadros locais. ”Ter dados sobre a extensão da crise é difícil. Em Angola há um “problema de estatísticas que, ou não existem, ou são divulgadas com atraso muito grande”, comenta Rosado de Carvalho. A questão é que o país não pode continuar petrodependente, é preciso trabalhar nos “factores que minam a competitividade em Angola — as burocracias, a corrupção, a falta de qualificação da mão-de-obra. São coisas que não precisam de dinheiro: pelo contrário, as reformas estruturais geram dinheiro e poupam recursos”. A par disso e olhando para as relações “muito fortes entre Portugal e Angola”, o jornalista considera que “há uma mudança de paradigma que é o facto de Angola, independentemente da queda do petróleo, precisar de diversificar e produzir internamente produtos que importamos de outros países, nomeadamente de Portugal”. “Para um país que não tem indústria, faz sentido que alguns sectores tenham alguma protecção; o que me parece errado é o facto de esse proteccionismo não ter um prazo. Muitas coisas que compramos a Portugal podemos comprar a outros países africanos — e Angola pode funcionar como porta de entrada num mercado mais vasto. ”Actualmente, Portugal é o maior fornecedor de Angola, à frente de países como Brasil, Estados Unidos e China. Por isso acredita que ou as empresas portuguesas escolhem outro tipo de produtos para exportar, que não passem, por exemplo, por águas, ou haverá uma diminuição natural do volume de exportações. “Ainda é um pouco cedo para avaliar o impacto na comunidade portuguesa. Portugal não pode olhar para Angola como uma coisa conjuntural. Angola tem um potencial enorme, se esse potencial se materializar haverá naturalmente mais necessidade de portugueses em Angola e até de exportações para cá, mas não o mesmo tipo de produtos que se exportava até agora. Estamos a falar de um país com 24 milhões de habitantes, com um território 14, 5 vezes maior que Portugal e com um PIB que é metade do português: a economia angolana vai crescer. Agora este crescimento depende da diversificação da economia” — que “vai levar muito tempo”. Apesar da quebra, o petróleo continua a produzir riqueza. Só a sua exportação em Janeiro, a partir de dez concessões, rendeu cerca de 1, 16 mil milhões de euros. É preciso, então, sair das estradas de terra batida para ver onde está essa riqueza. Do alto de um arranha-céus, à noite, as luzes dos prédios fazem de Luanda uma cidade que se mostra cosmopolita. Na varanda do Dooh Bar, o bar da empresária Isabel dos Santos, desfilam manequins, há dourados, muitos, e um grau de sofisticação na produção da toilette que já não é frequente ver em muitos sítios de Portugal. Nas mesas espalham-se chocolates e copos com bebidas. Elas e eles vestiram-se a rigor para uma festa de Páscoa. Aqui o champanhe só se vende à garrafa: custa cerca de 250 euros. Um português gestor do negócio de uma da grandes marcas de champanhe, que preferiu ficar sob anonimato, diz que o impacto da crise só se tem notado nas noites, com uma noite forte semanal em vez de três. Temos eventos onde um grupo de pessoas pede 50 garrafas de champanhe ao mesmo tempo. Vemos que não vão beber as 50 garrafas, muito menos ao mesmo tempo, mas fazem questão que o ritual seja esseApesar disso, a facturação tem crescido nos últimos dois anos — têm aumentado a capacidade de distribuição e de logística, e chegado a outras cidades além de Luanda, que representa 90% do negócio. Na venda em supermercados, onde uma garrafa custa à volta de 80 euros, a crise não se sente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vale, por isso, “muito a pena” estar em Angola a todos os níveis, até porque “a personalidade do consumidor angolano fá-lo ter necessidade de escolher este tipo de produto, a escolha de marcas de luxo para afirmação social ainda é uma prioridade”, continua o gestor. “Não havendo possibilidade de fazer estudos de mercado por causa da falta de informação, nós no nosso dia-a-dia vamos conseguindo fazê-lo. Posso dizer que temos eventos onde um grupo de pessoas chega à festa e pede 50 garrafas de champanhe ao mesmo tempo. Vemos que não vão beber as 50 garrafas, muito menos ao mesmo tempo, mas fazem questão que o ritual seja esse. A questão de se mostrarem como pessoas com capacidade económica está muito presente — isto é notório todas as semanas e de forma recorrente. ”Não deixa de ser paradigmático que o país em que cerca de 37% da população vive abaixo do limiar da pobreza nacional com 40 euros por mês (dados de 2013, estudo do BPI) seja o mesmo que tem um dos maiores consumos de champanhe per capita: as vendas rondaram as 40 mil caixas por ano (240 mil garrafas), sobretudo em Luanda, para um público-alvo estimado de 300/400 mil pessoas. “É muito champanhe para tão pouca gente. ”
REFERÊNCIAS:
Uma cidade rendida à Frente Nacional
A França vai hoje a eleições departamentais. A Revista 2 foi conhecer a cidade onde a FN teve mais votos nas últimas municipais. (...)

Uma cidade rendida à Frente Nacional
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A França vai hoje a eleições departamentais. A Revista 2 foi conhecer a cidade onde a FN teve mais votos nas últimas municipais.
TEXTO: É uma tarde de pouco movimento na marginal que liga Fréjus a St. Raphael, em plena Côte d’Azur. Estamos ainda longe da época alta de Verão em que as esplanadas se enchem de turistas, as lojas têm filas e as praias se tornam pequenas. Apenas alguns idosos se passeiam, grupos de miúdos de skate e patins e pouco mais. Nos cafés de frente para o Mediterrâneo, os empregados vestidos a rigor parecem passar os dias em pé, a aguardar um raro cliente. Não é preciso caminhar muito tempo até se chegar ao bairro da Gabelle, onde o cenário é profundamente diferente. Das pequenas moradias familiares, com jardim à frente e garagem de lado, passamos a um conjunto de prédios bege, laranja e amarelos. Lado a lado, grupos de homens com túnicas muçulmanas seguem o chamamento do muezzin para a oração das quatro da tarde. Mas, na verdade, é uma grua que permite encontrar a futura mesquita de Fréjus. Um taipal esconde os trabalhos, mas é possível ver o edifício que está já na fase final de construção. Será necessário esperar apenas mais quatro ou cinco meses, dizem-nos, até esta cidade de 52 mil habitantes poder ter a sua mesquita, com capacidade para mais de mil fiéis. Mas até que esse dia chegue, a comunidade muçulmana local não precisa de ir muito longe para fazer as suas preces. Ali mesmo, ao lado das obras, um descampado de terra batida coberto de tapetes serve perfeitamente. Quase cem homens obedecem maquinalmente à oração feita pelo imã, levantando-se e ajoelhando-se. Perto do posto onde se situa o imã, estão betoneiras, pás e montes de pedra branca. A futura mesquita está sob fogo pela autarquia de Fréjus, a maior cidade conquistada há um ano pela Frente Nacional. O novo presidente, David Rachline, prometeu durante a campanha convocar um referendo sobre o futuro do edifício e, desde que assumiu o cargo, tem movimentado os meios legais à sua disposição para tentar suspender as obras. Foram interpostos dois pedidos para embargar a obra, um dos quais já foi rejeitado pelo tribunal. Não é de política que querem falar os habitantes da Gabelle. “Cumprimos as leis todas, vamos construir a mesquita”, ouvimos do presidente da Associação Muçulmana El Fath. E mais não diz. Está farto de jornalistas, dizem-nos, e com a mesquita cada vez mais perto de se concretizar, o silêncio torna-se de ouro. A prioridade é a construção e isso vê-se no terreno. São poucos os habitantes que passam e não param para ver como correm as obras ou para trocar algumas palavras com os pedreiros, que também ali moram. “Só a cúpula custou 120 mil euros”, diz-nos sem esconder o orgulho Elyahiaoui, um ancião da comunidade que conhece todos os cantos da Gabelle. Segundo os seus cálculos, o bairro tem 120 apartamentos de seis pessoas, dos quais “98% são muçulmanos”. A maioria dos seus 68 anos foi passada entre estes prédios, onde já viu de tudo. “A Gabelle era conhecida em toda a França! Eram os roubos, a droga, o desemprego, os homicídios…” Fala-nos dos tempos antes do processo de requalificação urbana lançado nas últimas duas décadas quando a insegurança ensombrava este e outros subúrbios de França. Quem anda hoje pelas ruas que contornam os prédios da Gabelle — que nem sequer têm graffiti nas paredes — dificilmente reconhece a descrição de Elyahiaoui. Por trás da mudança estão anos de trabalho social de integração dos jovens, no qual ele próprio participou e diz continuar em conjunto com os centros sociais. “Insistimos com os jovens, trabalhámos, trabalhámos, trabalhámos e hoje está tudo melhor. ” O imã e os líderes da comunidade não dissertam apenas sobre o Corão, ensinam aquilo que é a vida em sociedade e como devem respeitar os outros, explica-nos Elyahiaoui para voltar ao mesmo: “A mesquita seria óptima. ” A cidade sagrada de Meca fica na direcção das traseiras da mesquita e a geografia obriga-os a rezarem de costas para a sua futura casa, mas o sentimento é o de que falta pouco para deixarem aquele descampado. A alternativa, avisa Elyahiaoui, é a regressão social da Gabelle, com raiz na frustração da comunidade, sobretudo dos mais jovens. É que para além do risco sobre a mesquita, também os centros de apoio social estão na mira da autarquia. O centro Les Bosquets serve o bairro e viu os apoios da câmara no último ano serem cortados em cerca de 65%. Com menos meios, o centro teve de repensar a sua actividade e os responsáveis temem pelo futuro dos que são deixados de lado. “Tentamos concentrar-nos sobretudo nas crianças, tendo a escolaridade como base”, explica o vice-presidente do centro, Jean-Marc Tullot. Mas, para isso, “há uma categoria de jovens que são abandonados”, completa a presidente Nassima Barkallah. Sem a rede de apoio que era garantida pelo centro, é entre eles que a revolta pode surgir e que o experiente Elyahiaoui explica energicamente. “Se não tiverem trabalho… [faz o gesto de fumar] é catastrófico. Será como dantes, quando tínhamos seringas, droga, muitos jovens eram mortos… Agora começam a ficar agressivos, [dizem] ‘ninguém quer fazer nada por nós’. ”No seu gabinete com vista para a Praça Formigé, o jovem autarca de 27 anos explica-nos que os cortes estão inseridos no processo de desendividamento de Fréjus — que com 144 milhões de dívida era a quinta cidade mais endividada do país. A “recuperação financeira” foi realizada “de forma agressiva”, admite David Rachline, mas não havia outra opção. “Esta era a ambição maior para a cidade porque era necessário recuperar a sua credibilidade financeira e bancária”, mas “a partir deste ano é para reinvestir”, garante. A dívida excessiva de Fréjus foi um dos grandes motivos que levaram muitos eleitores a escolher a lista da Frente Nacional há um ano. Nas ruas, tanto eleitores à esquerda como à direita referem o endividamento que quase paralisou a cidade e é fácil adivinhar como o tema terá dominado o debate da campanha. À má gestão do anterior executivo local da UMP (centro-direita), associou-se o escândalo que envolveu o ex-presidente da câmara Elie Brun, acusado de ter recebido um suborno para a atribuição de uma praia privada. Aos eleitores apresentava-se uma escolha entre uma esquerda associada ao Presidente mais impopular da Quinta República, o socialista François Hollande, e com pouca implantação local e uma direita dividida, vista como corrupta e má gestora — a corporização perfeita do rótulo pejorativo que Marine Le Pen gosta de associar aos dois partidos dominantes, a UMP e o Partido Socialista, chamando-lhes “UMPS”. Com a promessa de mudança e de uma nova forma de governar, a Frente Nacional impôs-se sem problemas na segunda volta das municipais de Fréjus, a 30 de Março de 2014, a sua maior conquista naquelas eleições. E é esse guião que tem sido seguido por David Rachline, um apparatchik que milita desde os 15 anos na Frente Nacional, e que representa uma nova face do partido que se quer descolar do rótulo extremista. Com Marine Le Pen, o partido suavizou o discurso e tenta abandonar a caricatura com que era apresentado pelos media, sobretudo por causa da sua política anti-imigração — um partido de xenófobos, racistas e anti-semitas. Agora, a ênfase é posta em questões como o proteccionismo económico contra a mundialização capitalista, a defesa da soberania nacional face ao poder do “monstro burocrático” de Bruxelas. Este processo de dédiabolisation (desdiabolização) passa, por exemplo, por evitar a caracterização da Frente Nacional na imprensa como partido de extrema-direita. Com a vitória em 11 câmaras municipais, o partido recebeu a oportunidade de demonstrar no terreno que sabe passar do protesto à governação e Fréjus tem sido apontado como um dos melhores exemplos. Ao longo da conversa com a Revista 2, David Rachline adopta uma atitude de profissionalismo. Apresentando-se como um “gestor eficaz”, nega qualquer governação “ideológica”, servindo-se de frases como “quando se fala de uma escola não se trata de esquerda ou de direita, é apenas o que é necessário fazer”. Foi essa capacidade de bem gerir — que considera ser a grande diferença entre as câmaras nacionalistas e as do “UMPS” — que possibilitou um desendividamento de nove milhões de euros. Os centros sociais, diz, “foram apenas um elemento” abrangido pelas poupanças, que acabaram por ser empolados devido a uma “obsessão” da esquerda. “Os centros sociais são a mão financeira da esquerda e da extrema-esquerda”, critica. “É a morte anunciada dos centros sociais”, adverte Isabelle Le Buzulier, a presidente da secção local da Liga dos Direitos do Homem, durante uma conversa numa cervejaria na marginal em St. Raphael. Lá fora, a chuva é forte, mas os murros na mesa desta professora de liceu cobrem o barulho da bátega. “Ele está prestes a matar os centros sociais, ele está a cortar os subsídios sabendo muito bem que os centros sociais não vão poder continuar a viver com tão pouco dinheiro”, insiste. Ao lado de Isabelle está Alain Fortuit, que com ela fundou o Observatório para a Democracia Local para denunciar os abusos da câmara. Está mais calmo, mas o seu rosto transparece apreensão, não tanto pelo que já aconteceu mas pelo que aí vem. É certo que Rachline tem apresentado uma atitude moderada e tem insistido numa governação desinvestida de ideologia, mas há uma reacção em cadeia que estes activistas temem. “Ele prefere que as perturbações surjam nos próprios bairros por si próprias, assim que o tecido social se destrua completamente. Acaba-se com os centros sociais e, assim, com um factor de integração social, cultural, etc. que é muito importante. Sem esta solidariedade republicana, é a religião que toma o seu lugar e, então, iremos ver florir integristas no seio [da comunidade] muçulmana e mais tensões entre a comunidade de Fréjus. É isso que ele aguarda”, explica Alain. E lembra um outro dado preocupante: “O único orçamento que ele aumentou foi o da polícia municipal. ”A própria revista promocional da autarquia reflecte as prioridades de Rachline. Para além do destaque dado às políticas orçamentais, o reforço securitário também merece menção. A uma entrevista com o novo director da polícia municipal segue-se a enumeração das medidas: uma “brigada nocturna” de presença permanente; uma “brigada ambiente” diária que “assegura a limpeza dos bairros e dos mercados”; uma “brigada móvel de patrulha civil” que “apoia os diferentes postos de policiamento de bairro” diariamente, e ainda a criação de uma “brigada equestre”, que “assegura a vigilância das praias e do litoral durante o período estival”. Mas se há centros sociais em risco de fechar portas, há um caso que é diferente. O Centro Social de Villeneuve foi encerrado depois da demissão da sua directora, afastada pela Câmara Municipal. Rachline acusa o centro de se “servir do dinheiro dos contribuintes para fazer política”, algo que “não é aceitável”. “Quando se quer fazer um partido político, apresenta-se em eleições, obtém-se um financiamento público, mas não se usam os centros sociais para fazer política”, explica. No caso foi a participação do centro numa manifestação organizada pelo Fórum Republicano, que o autarca classifica como uma “organização de extrema-esquerda”. Agora, em Villeneuve, há uma nova estrutura dependente da câmara, “mas o presidente não vai todos os dias ao centro social para saber o que fazem”, acrescenta Rachline. O novo centro tem “globalmente” os mesmos serviços que o anterior, mas os seus críticos vêem apenas “um centro de lazer” que falha a missão social. Na “organização de extrema-esquerda” denunciada por David Rachline, está uma portuguesa de nascimento. Maria José Azevedo nasceu em Guimarães, mas foi para França com os pais quase de imediato e vive em Fréjus há 23 anos. O desfecho das eleições municipais deixou Marie-Jo, diminutivo que adoptou, “chocada” e decidiu agir. A ideia de criar um “comité de vigilância” começou a ganhar forma entre as duas voltas das eleições municipais, quando já se antecipava a possibilidade de Fréjus ser ganha pela Frente Nacional. Maria José, que se descreve como “profundamente humana e republicana”, juntou-se a Elsa Di Meo, a candidata socialista derrotada, para fundar o Fórum Republicano — um organismo que foi criado em oito das 11 cidades nacionalistas. Entre os activistas que hoje tentam denunciar as políticas de David Rachline, não deverá haver quem conheça o jovem presidente há mais tempo do que Marie-Jo. Foi em 1994 que esta professora primária recebeu na sua turma do 1. º ano o jovem David. “Foi uma portuguesa que o ensinou a ler”, diz-nos, sublinhando a ironia. As primeiras recordações são de “um aluno muito dono do seu nariz, auto-suficiente e que não se preocupava com os outros”. Quem hoje o conhece, diz que Rachline não deixa transparecer a verdadeira idade, seja pela atitude de grande maturidade, seja pelo aspecto físico, mas já em criança a sua antiga professora diz que ele “fazia ares de velho” e “não era muito alegre”. O trabalho do Fórum passa por um contra-ataque constante às medidas camarárias. “A primeira decisão do presidente da câmara foi retirar a bandeira da União Europeia [do edifício da câmara] e nós a 9 de Maio fizemos uma festa da Europa”, explica Maria José. Outra das acções foi a revelação da empresa que realizou a auditoria às contas municipais pedida por Rachline. A investigação do Fórum acabou por concluir que se tratou de uma sociedade formada dois dias antes das eleições por um amigo do novo autarca que não tinha qualquer experiência na área. “Quando se passa alguma coisa na cidade, fazemos logo um comunicado”, conta a luso-francesa de 45 anos. O esforço de combater a progressão da popularidade da Frente Nacional em Fréjus é uma actividade que pode, porém, tornar-se frustrante. “Os especialistas [em comportamento eleitoral que participaram em colóquios logo após as eleições] dizem que é necessário falar com as pessoas que votam na Frente Nacional, mas é muito difícil, são muito agressivos, acham que têm razão. ”Maria José vê hoje uma cidade dividida. Quando fala com a Revista 2, usa um tom de voz mais baixo quando pronuncia certos nomes e aponta-nos uma pessoa que votou na Frente Nacional e que, desde as eleições, praticamente deixou de falar com ela. Para o futuro prevê uma cidade ainda mais polarizada: “Frente Nacional e os outros. ” E teme que o partido comece a estender o seu poder às organizações que restarem. “Quando as pessoas recebem muitas [faz gesto de bofetada] deixam os seus postos, demitem-se, e eles vão pôr alguém da Frente Nacional”, conta-nos, dando o exemplo da AMSLF, um grupo desportivo local. Se há mudanças em Fréjus, estas não são sentidas de forma acentuada nas ruas da cidade costeira. Poucos ouviram falar da construção da mesquita e quase nenhuns sabem dos cortes dos subsídios dos centros sociais. Por outro lado, o desendividamento da autarquia é saudado, assim como o aumento de policiamento. Michel Lagnel está sentado a uma mesa ao fundo de uma das muitas galerias de arte da cidade. Quando se apercebe do tema das perguntas, sai de imediato para ir buscar um grande dossier onde guarda dezenas de cartas que vai escrevendo à câmara e a outras entidades sobre assuntos que o preocupam. Do novo executivo, este octogenário que vive desde 1968 em Fréjus e votou na lista da Frente Nacional, só tem coisas positivas a dizer. “Fiquei admirado com a rapidez com que me responderam quando questionei sobre um perigo na via pública”, conta, dizendo que tudo foi arranjado “três dias depois”. Quase da mesma idade, Michel tem 77 anos e passeia o cão na marginal, perto do monumento em memória dos soldados negros que lutaram pelo exército francês. Diz-se um “socialista iludido” e acredita que os seus conterrâneos “não votaram pela Frente Nacional, mas contra os outros”. Quando muito se fala no desencontro de gerações, este professor reformado vê a Frente Nacional a reunir os extremos etários: “As pessoas da minha idade votam na Frente Nacional por causa da insegurança; os mais novos porque querem algo novo. ”É perto do edifício da câmara que encontramos Bernard, que nos diz ter votado na Frente Nacional nas municipais. Este vendedor de carros admite que há uma “visão extremista” no partido, mas o estado a que tinha chegado a cidade falou mais alto: “A mudança é mais importante do que o programa. ” No entanto, Bernard, que diz ter sempre votado no PS, ainda não viu muitas mudanças, excepto a contenção orçamental e a organização de festas de Natal. Céleste apenas não votou na Frente Nacional por julgar que “às vezes têm declarações demasiado xenófobas”. Mas nem por isso se virou para os partidos tradicionais da esquerda ou da direita, preferindo abster-se. “Prometem todos, mas depois é tudo igual”, diz esta secretária de escritório. O cenário é confirmado por uma sondagem publicada na semana passada que revela que 74% dos inquiridos nas cidades governadas pela Frente Nacional estão satisfeitos com o trabalho da sua câmara, contra os 66% que o afirmam nas restantes cidades. Por outro lado, são os factores alheios ao partido que o levaram ao sucesso nas eleições de há um ano, com o balanço do último executivo, o castigo ao Presidente, François Hollande, e a situação económica da cidade como os principais factores. Em Fréjus, esta combinação permitiu uma tempestade perfeita para catapultar a Frente Nacional para o poder. Estes números aparecem numa altura em que os franceses se preparam para ir às urnas uma vez mais, agora para escolher entre 22 e 29 deste mês os conselheiros departamentais. Estes vão representar os vários cantões (equivalentes aos municípios) e terão assento nos conselhos departamentais. As sondagens a nível nacional colocam a Frente Nacional na liderança, seguida de perto pela UMP. Com apenas um conselheiro eleito, a simples eleição de outro seria já por si uma vitória, mas a própria conquista de um departamento — uma divisão territorial intermédia, com competências em diversas áreas como a saúde, a educação ou a habitação — pode tornar-se uma realidade. E Fréjus pode dar uma ajuda. O Var tem sido um departamento pródigo em boas notícias para Marine Le Pen: para além de Fréjus, há mais duas cidades com câmaras da Frente Nacional, Cogolin e Luc, e, em Setembro, Rachline tornou-se o mais novo senador da Quinta República. O partido foi também o mais votado na região nas eleições europeias de Maio, com quase 35%. Marine Le Pen sabe bem da importância deste departamento na caminhada até às presidenciais de 2017 — o objectivo último do partido. Por isso mesmo escolheu o Sul para uma série de visitas na última semana de campanha, começando pela estância balnear de Six-Fours-Les-Plages, a cem quilómetros de Fréjus. O auditório do Espaço Cultural André Malraux encheu-se para ouvir a presidente do “primeiro partido de França” zurzir contra o “UMPS” e a “casta mediática”, enquanto anunciava que “o sol brilha nas cidades da Frente Nacional”. A plateia é composta sobretudo por idosos, com excepção de uma dúzia de membros da FNJ, a organização juvenil do partido. No fim do discurso, Betty, votante nacionalista há três décadas, lamenta que muitas das pessoas que ali estão tenham vindo apenas por curiosidade. O que Betty mais deseja é que a Frente Nacional consiga vencer no Var. Em Toulon, onde vive, “há muitos imigrantes clandestinos e muito tráfico de drogas e armas” e só a “Frente Nacional pode mudar isso”. Caso governe o departamento, “a polícia será mais livre” para actuar, explica-nos a militante de 65 anos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A possibilidade de uma vitória da Frente Nacional no Var é “certa”, diz Maria José, que prevê que as divisões da direita vão beneficiar o partido nacionalista mais uma vez. “Para a Frente Nacional, é tão fácil, não têm nada que fazer, podem ficar em casa. ” Um receio partilhado pelos outros activistas que falaram à Revista 2, que dizem haver “uma passerelle [de eleitores] entre a direita tradicional e a Frente Nacional”, como descreveu Alain Fortuit, da Liga dos Direitos do Homem. Na pequena sede local do partido em Fréjus, na mesma praça onde se situa a câmara municipal, há um ambiente de quase euforia. O azul da candidatura — Esperance Bleu Marine — enche as paredes e nas mesas chapéus de papel com as cores da bandeira francesa convidam quem entra a tirar um rebuçado. Enzo — “nome italiano, vêem como aqui não somos xenófobos!” — recebe-nos com um sorriso estampado, enquanto elogia Setúbal e promete conhecer em breve Lisboa. Militante desde 1988, vai apontando para os recortes de jornais que relembram a vitória de há um ano e olha para os últimos dias. “Nas reuniões tem aparecido muita gente. Numa cidade como Fréjus, temos 300 ou 400 pessoas numa reunião e ao lado uma de outro partido tem 50… Dá para sentir o odor do que pode acontecer”, diz-nos, com um novo sorriso.
REFERÊNCIAS:
Maajid Nawaz entrou na rede jihadista. E saiu
Um jovem britânico de origem paquistanesa entrou para organizações islamistas e para a luta para erguer um Estado Islâmico. Hoje tenta desconstruir a narrativa que leva milhares de jovens a chegar à Turquia para combater em nome do califado, como explica à Revista 2. (...)

Maajid Nawaz entrou na rede jihadista. E saiu
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um jovem britânico de origem paquistanesa entrou para organizações islamistas e para a luta para erguer um Estado Islâmico. Hoje tenta desconstruir a narrativa que leva milhares de jovens a chegar à Turquia para combater em nome do califado, como explica à Revista 2.
TEXTO: Houve um momento decisivo na vida de Maajid Nawaz. Envolveu o seu irmão, Osman, um grupo de skinheads e uma mochila verde. Desta, o importante era o conteúdo, puramente imaginário, mas com um poder imenso sobre a discriminação, a intolerância, o racismo, as injustiças no mundo. Era impossível não se render ao prodígio do que viria a designar por “momento mochila verde”, e fazê-lo repetir-se ao longo da vida, sob várias formas. Maajid era um miúdo de origem paquistanesa nascido e criado em Southend, uma cidade do condado do Essex, no Reino Unido. Fazia graffiti e ouvia música hip-hop, numa altura, os anos 1980, em que o racismo era algo natural e quotidiano nas escolas britânicas. Maajid lembra-se de a funcionária da cantina o obrigar a engolir as salsichas que o pai lhe dissera para evitar, por serem feitas com carne de porco, interdita aos muçulmanos. Lembra-se de o amigo Tony, quando as primeiras notícias sobre a sida começaram a vir a público, lhe ter dito: “A sida é culpa tua. Foram pessoas como tu que causaram a doença. Vocês fazem sexo com macacos. Foi assim que a sida começou. O meu pai disse-me. ”E não poderá nunca esquecer o momento em que tentou entrar num jogo de futebol, no intervalo do almoço, e nenhuma equipa o escolheu, apesar de haver vagas. Aproximou-se do amigo Patrick, um dos capitães de equipa, para lhe perguntar o que se passava. A resposta de Patrick foi um brutal murro no estômago, em frente de todos. A seguir veio a resposta: “Este jogo não é para pakis! Não voltes a pedir para jogar!”O que Maajid recorda deste episódio não é a dor, mas o sentimento de solidão, ao ver que era o único que não podia jogar. “Foi este incidente, mais do que qualquer outra coisa, que destruiu a minha inocência da infância”, escreveria no livro O Radical, publicado em 2012 no Reino Unido e agora editado em Portugal pela Texto. “Nunca mais joguei futebol. Aqueles miúdos da escola primária não me deixavam. Quando cheguei ao liceu, senti-me envergonhado por não poder jogar, a rejeição ecoava nos meus ouvidos e nem sequer tentei entrar para as equipas. Sem a vantagem de jogar futebol, teria de me esforçar o dobro. ”O futebol era um universo de afirmação fundamental para as crianças britânicas. Maajid tinha de substituí-lo por qualquer outro instrumento de integração e pertença, e o que havia disponível na altura para um filho de imigrantes como ele era o hip-hop. Ouviu uma faixa intitulada Fuck The Police, dos Niggaz With Attitude, e depois começou a gostar dos Public Enemy, onde identificou não apenas a atitude contestatária contra a autoridade, mas também a visão política. Eles controlam a narrativa. Em todas as comunidades muçulmanas no Reino Unido e na Europa, domina a ideia de que está em curso uma guerra de civilizações, do Ocidente contra o islão. O Professor Griff, elemento dos Public Enemy, fazia samplings dos discursos de Malcolm X, veiculava uma mensagem nacionalista negra nos guetos dos Estados Unidos, mas não deixava de manifestar a sua simpatia pela Nation of Islam, o movimento religioso supremacista negro chefiado por Louis Farrakhan. Para Maajid, esta música fazia o facto de ser muçulmano parecer cool, pela primeira vez na sua vida. Antes, quando ia à mesquita, às sessões para crianças, via o imã tentar transmitir os seus ensinamentos em árabe, usando um pau para punir os meninos que não respondiam acertadamente às suas perguntas. Agora, nas vozes dos rappers americanos, e depois britânicos, o islão já não parecia uma coisa antiquada, de que só podia envergonhar-se. Foi-se envolvendo cada vez mais profundamente na cultura hip-hop, usava calças largas de bombazina, lenço amarelo, boné dos Redskins, ténis Adidas e todas as marcas rigorosamente adequadas à sua imagem de B-boy, tornou-se artista urbano, pintando tags e “bombas” pelas paredes de Southend, sob o nome de Slammer. Esta nova identidade permitia-lhe afirmar-se e juntar-se a grupos com afinidades, que garantiam alguma segurança face aos ataques racistas. Mas no início dos anos 1990 surgem e multiplicam-se nas cidades britânicas os gangs skinhead. São uma ramificação dos mods, a tribo que combatia os rockers, nos anos 60 e 70, e tornam-se progressivamente racistas e violentos. Um grupo em particular, os Combat 18, transforma-se numa organização paramilitar neonazi. Em Southend, andavam armados de facas e bastões de basebol, à caça de jovens imigrantes, para os espancar, ou matar. Maajid e os amigos hip-hop também passaram a usar facas, mas ficavam sempre a perder nas lutas com os skinheads e os C18, em particular o bando de Mickey, um dos jovens brancos nazis do bairro, cujo único entretenimento era perseguir os “pakis” como se fossem animais. Mas esta era a época em que vários acontecimentos internacionais faziam emergir nas novas gerações uma consciência de pertencer a uma comunidade muçulmana, antes de a qualquer nacionalidade. A guerra na Bósnia, segundo Maajid, foi determinante para essa viragem. As televisões mostravam todos os dias bósnios louros de olhos azuis a ser massacrados, o que mostrava que não era a raça ou a nacionalidade que fazia deles vítimas, mas o simples facto de serem muçulmanos. Entre as comunidades de imigrantes no Reino Unido, o efeito foi o exacerbar das identidades religiosas. Os jovens passaram a definir-se como muçulmanos, em detrimento das origens nacionais. E os que sentiam mais preocupações com o que se passava no mundo globalizado passaram a definir-se como politicamente muçulmanos, admitindo que havia uma condição comum e interesses comuns às populações islâmicas de todo o planeta. Esta ideia surgiu e disseminou-se com os grupos islamistas do Médio Oriente e Ásia do Sul pós-coloniais. Adoptaram uma visão política do islão, perceberam que essa abordagem seria muito mais poderosa do que o socialismo árabe e espalharam as suas ideias pela Europa, através de árabes que pediam asilo político e dos imigrantes do Sul da Ásia. Foi neste ambiente, em que o islamismo político aparecia como uma ameaça em vários cenários internacionais, que Maajid viveu o seu “momento mochila verde”. Estava em frente da sua casa, com o irmão, Osman, e outro amigo, de ascendência grega, quando se aproximou o bando de Mickey. Os nazis, que os tomavam todos por paquistaneses, incluindo o grego, devido à tez morena, mostravam as facas e batiam com os tacos de basebol nos pilares da beira da estrada. Estavam em superioridade numérica e iam massacrar os pobres imigrantes hip-hop, mas, de repente, Mickey hesitou. Avançou um pouco e pediu uma trégua, para falar. Ele, que nunca tinha dirigido a palavra a nenhum “paki”. Osman, que trazia uma grande mochila verde às costas, fez-lhe sinal para atravessar a rua e dirigiu-se a ele. Maajid ficou a observá-los durante uns dez minutos, enquanto conversavam, até apertarem as mãos e se afastarem em direcção aos respectivos grupos. “Já chega, rapazes”, disse Mickey aos amigos. “Não vamos armar mais confusão aqui. ”Maajid quis saber qual fora a táctica do irmão em relação ao nazi. “Disse-lhe que somos muçulmanos e não temos medo da morte”, respondeu Osman. “Somos como aqueles terroristas palestinianos que ele vê na televisão a fazer explodir aviões. Somos bombistas suicidas. Aprendemos a fazer bombas e eu tenho uma na minha mochila. Se tentares alguma coisa, faço-a explodir. Acredita, não me custa nada. Se tivermos de morrer para acabar convosco, é o que faremos. Se tivéssemos medo da morte, estaríamos a fugir de vocês. Porque é que estaríamos aqui parados, quando vocês são muitos mais do que nós?”A mochila de Osman estava obviamente vazia, mas o bluff resultou, porque se alimentou do próprio racismo de Mickey. A propaganda do Combat 18 retratava os muçulmanos como terroristas e assassinos. As ameaças de Osman confirmaram portanto os preconceitos do outro. “Se ele se tivesse dado ao trabalho de questionar a propaganda racista que engolira, talvez não se tivesse deixado enganar”, escreveu Maajid, que, após o incidente, decidiu assumir a sua nova identidade e tornar-se islamista. “Esta identidade tinha feito o que anos de lutas com facas não tinham conseguido. Ganhou a guerra psicológica e derrotou o nosso inimigo. Foi aquela tarde no parque e o medo que vi nos olhos de Mickey que me fizeram decidir a levar as coisas mais longe (…) Numa conversa, o islamismo fez o que o hip-hop nunca conseguira fazer. ”Este discurso era altamente apelativo para os jovens, porque lhes falava de política, de problemas concretos, dos dramas que se viam na televisão e apontava um caminho, uma solução, conta agora Maajid Nawaz à Revista 2 numa entrevista telefónica, de Londres. O hip-hop, que passou a só falar de carros, sexo e drogas, já não correspondia às expectativas dos jovens imigrantes. O islamismo fazia-os sentirem-se parte de um todo solidário, temido e respeitado pelos poderosos do mundo. “Era uma narrativa constituída por meias verdades”, diz Maajid. “Apontava situações injustas herdadas do colonialismo e situações concretas e pontuais de opressão, que são reais. Mas explicava tudo como uma guerra global que estaria em curso contra os muçulmanos, o que é um absurdo. ”A formação das ideias islamistas tem pouco que ver com o Corão, explica Maajid, mas antes com uma imitação das concepções fascistas e nazis, que surgiram na Europa. “Alguma base teórica foi repescada nos textos islâmicos, mas misturada com noções de Estado e de preocupações sociais próprias, por exemplo, do regime de Mussolini. É uma herança que tem portanto mais que ver com o colonialismo do que com os ensinamentos do profeta. ”Na altura fazia sentido para os milhares de jovens que frequentavam os cursos e reuniões do HT e organizações afins. Tratava-se porém, explica Maajid, de uma ideologia do islão político, que nada tinha de fundamentalismo religioso. Os integristas têm a sua genealogia no salafismo e na visão literalista do Corão dos sauditas e em grupos como a Irmandade Muçulmana do Egipto. A estes não interessava a política, mas apenas a pureza religiosa. E os primeiros islamistas eram bastante relapsos em relação à prática religiosa. A fusão entre estas duas correntes (integrismo e islamismo) só se dará muito mais tarde, para originar o jihadismo que existe hoje. No islão tradicional, a corrente secularista sempre foi muito forte, explica Maajid. Mas foi ficando para trás, porque era preciso apresentar aos modelos ocidentais uma alternativa que tivesse legitimidade. O salafismo e o fundamentalismo da Irmandade Muçulmana foi a fonte que encontraram. “O facto de alguns dos defensores mais sólidos deste secularismo não serem democratas, mas sim déspotas árabes não ajudou em nada”, diz Maajid. O próprio Hizb al-Tahrir fez uma viragem, por determinação do seu líder, Omar Bakri Mohamad, que se tornou um fervoroso salafista (ver entrevista na revista Pública, 18 de Abril de 2004). Ramificações deste grupo e de outros, salafistas ligados à Arábia Saudita, dariam origem à Al-Qaeda e afins. Ao serviço do HT, Maajid acabou por partir para o Paquistão, e depois para o Egipto, para conspirar no sentido de provocar golpes de Estado nesses países. O plano era tomar o poder no Paquistão, Afeganistão e Uzbequistão, após o que os taliban funcionariam como ponte para criar o primeiro Estado Islâmico moderno, beneficiando do armamento nuclear detido pelo Paquistão. Segundo Maajid, estava tudo bem encaminhado, e foram os ataques de 11 de Setembro que destruíram o sonho de um califado na Ásia Central. Constituíram um erro, que provocou a ocupação do Afeganistão pela NATO. Maajid, que se tornara um quadro importante do HT, acabou por ser preso pela polícia secreta do Egipto. Seria levado para as masmorras dos presos políticos e apenas conseguiu escapar à tortura e ter direito a um julgamento graças à intervenção das autoridades britânicas, o que o fez pensar. Cumpriu cinco anos de pena, mas a sua perspectiva começou a mudar. Regressado ao Reino Unido, reparou por exemplo que a maior manifestação contra a invasão do Iraque ocorreu, não em alguma capital do mundo muçulmano, mas em Londres. Não foi fácil afastar-se do HT. “Eles controlam a narrativa”, explica agora. “Em todas as comunidades muçulmanas no Reino Unido e na Europa, domina a ideia de que está em curso uma guerra de civilizações, do Ocidente contra o islão. E quem colocar isto em causa está a trair os seus irmãos muçulmanos, é um traidor. ”Desde que abandonou o HT, Maajid tem sido ameaçado e insultado, vítima de difamações e tentativas de agressão, mesmo por parte de antigos companheiros. Compreende que a mensagem do actual ISIS continue a ser apelativa para os jovens das comunidades imigrantes, apesar das imagens de terror divulgadas pelas televisões. “As atrocidades, as violações aos direitos humanos não afectam a simpatia que muitos sentem pelo Estado Islâmico, porque, segundo a sua narrativa, isso é apenas uma resposta às atrocidades cometidas pelo Ocidente contra os muçulmanos. E o Estado Islâmico surge como uma entidade a apoiar, porque, em todas as comunidades muçulmanas se divulgou a propaganda segundo a qual a criação de um Estado Islâmico seria a única solução para as injustiças de que os muçulmanos são vítimas. Há 20 anos que nos vendem a utopia do Estado Islâmico. É o que fazem todos esses imãs e líderes de bairro. Não há outra utopia. ”Maajid criou uma fundação, a Quilliam, para combater o extremismo e espalhar ideais alternativos entre os jovens muçulmanos, que incluam a democracia, a liberdade e a defesa dos direitos humanos. “A ideia de democracia é a base que temos de convencer as pessoas a aceitar. É preciso explicarmos a necessidade de um novo tipo de contrato social, em que as pessoas se sintam integradas nas sociedades onde vivem. A democracia é o ponto de partida. A estrutura política, de governo secular, com liberdade de expressão. Depois temos de trabalhar na criação de novas utopias, novas políticas de identidade, por parte da União Europeia. ”As atrocidades, as violações aos direitos humanos não afectam a simpatia que muitos sentem pelo Estado Islâmico, porque, segundo a sua narrativa, isso é apenas uma resposta às atrocidades cometidas pelo Ocidente contra os muçulmanos. "Maajid tem tido a colaboração de organizações políticas, de universidades, foi recebido pelo primeiro-ministro britânico e pelo Presidente americano. Está empenhado na luta contra o terrorismo e contra o extremismo, mas a sua acção incide nas estruturas de base das comunidades, onde a narrativa sobre o Estado Islâmico é construída. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Temos de intervir nas organizações aparentemente pacíficas, onde se veiculam estas ideias. Proliferam os grupos não violentos que defendem a ideia da teocracia. Eles não cometem actos terroristas, mas promovem as ideias que levam a que os jovens se entreguem ao terrorismo. Na Europa, não se organizam células, ou milícias, para ir combater ao lado do ISIS. O que se faz é doutrinar os jovens, que depois decidem largar tudo e partir para o Iraque ou a Síria. Vão até à Turquia, sozinhos, ou com alguns amigos, e dirigem-se à fronteira, onde há recrutadores à sua espera. ”A partir daí, tudo está bem organizado, no território controlado pelo Estado Islâmico, para encaminhar e atribuir funções aos jovens que chegam da Europa. Mas não antes. No Reino Unido ou em França, o trabalho é essencialmente ideológico. “É muito bem feito, muito completo. Fornecem uma ideologia, símbolos, líderes e um sonho: o califado. E as pessoas nem se apercebem de como a ideia em si é ridícula. É como dizer que a Europa deveria reconstituir o Império Romano ou o sacro império romano-germânico, só para cristãos. Também é absurdo idealizar o que foi o império otomano, como última versão do califado, quando se tratava de um império belicoso e expansionista, como foram os dos cristãos. Toda a ideia de uma guerra de civilizações dos cristãos contra os muçulmanos é hoje anacrónica e ridícula. É pois errado falar do que deve o Ocidente fazer para deter o Estado Islâmico. Não é o Ocidente, é a comunidade internacional que tem de agir. ”
REFERÊNCIAS:
Na Europa assustada e revoltada, Le Pen e Farage somam votos
Sondagens deixam já pouca margem para dúvida. Partidos xenófobos e populistas preparam-se para vencer eleições europeias no Reino Unido e em França. (...)

Na Europa assustada e revoltada, Le Pen e Farage somam votos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.5
DATA: 2014-05-19 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20140519170208/http://www.publico.pt/1636484
SUMÁRIO: Sondagens deixam já pouca margem para dúvida. Partidos xenófobos e populistas preparam-se para vencer eleições europeias no Reino Unido e em França.
TEXTO: Ambos rejeitam a etiqueta do racismo, mas de um e outro lado do Canal da Mancha, Marine Le Pen e Nigel Farage exploram sem grande vergonha a inquietação que a imigração gera na Europa em crise. A uma semana das europeias, as sondagens mostram que a estratégia – por muito polémica ou criticada que seja – está a render frutos e tanto a Frente Nacional (FN) como os eurocépticos do UKIP deverão sair vencedores das eleições em França e no Reino Unido. As sondagens em França não se alteraram muito desde o início da campanha e, como escreveu na semana passada o jornal Le Point, “a questão já não é saber se a FN vai ganhar, mas que vantagem terá para o partido que ficar em segundo lugar”. Os últimos estudos atribuem ao partido de Le Pen entre 24 a 25% dos votos, mostrando a União para o Movimento Popular (UMP, direita) de Jean-François Copé em ligeiro recuo, para os 21%. Penalizado pela impopularidade do Presidente François Hollande e pelos fracassos do seu Governo, os socialistas franceses não deverão conseguir mais do que 17 a 18% dos votos. Mas se os números não espantam face ao que tem sido o registo recente do partido de extrema-direita (a FN conquistou 12 municípios nas eleições de Março) tornam-se mais difíceis de explicar quando confrontados com outros indicadores. Uma sondagem divulgada na semana passada pelo jornal Le Parisien indica que 79% dos franceses se opõem à saída do euro, o cavalo de batalha de Le Pen desde 2012, e 81% dizem mesmo que se trata de uma proposta sem credibilidade. O mesmo estudo indicava que, apesar do sucesso do seu partido, dois em cada três franceses continua a ter uma opinião negativa de Marine Le Pen e três em cada quatro não confiariam nela para governar o país. 77% classificam as suas posições políticas como sendo de extrema-direita e 60% vêem-na como racista – dois rótulos que sempre negou. Uma possível explicação para este paradoxo poderá estar numa outra sondagem, divulgada no domingo, pelo Journal du Dimanche, segundo a qual metade (49%) dos franceses estão descontentes com a União Europeia – um veredicto que é ouro sobre azul para Le Pen, que desde o início da campanha, tem multiplicado frases como “a Europa é um comboio prestes a explodir” ou “a Europa económica é um absurdo que não funciona”. Do mesmo lado da barricada – mas não lado a lado, como mostra uma recente troca de acusações – está Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) que, tudo indica, poderá ter no dia 25 um resultado histórico. Uma sondagem do instituto ComRes para o jornal Independent on Sunday atribuiu ao partido antieuropeu 35% das intenções de voto nas europeias, com 11 pontos de vantagem face aos trabalhistas. Os conservadores do primeiro-ministro David Cameron somam 20% das intenções de voto, e os liberais-democratas, seus parceiros na coligação, são remetidos para o quinto lugar (6%), atrás dos Verdes. Uma nova subida nas intenções de voto totalmente imune às últimas declarações de Farage que, numa entrevista de rádio, reafirmou que ficaria preocupado se uma família romena se mudasse para a casa ao lado da sua. Disse também que se sentia “desconfortável” com a quantidade de línguas estrangeiras que se ouvem nos transportes públicos britânicos e insistiu que muitos dos imigrantes que chegam ao país fogem “de uma vida de crime e miséria”. Os comentários foram repudiados por Cameron e pelo líder dos trabalhistas, Ed Miliband, mas tanto um como o outro recusaram-se a apelidar Farage de racista – uma denúncia que, sabem, poderá fazer ricochete.
REFERÊNCIAS:
Já sabe em quem vai votar?
A campanha para as eleições europeias termina esta sexta-feira. Sábado é dia de reflexão. Reflictamos então. (...)

Já sabe em quem vai votar?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-05-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: A campanha para as eleições europeias termina esta sexta-feira. Sábado é dia de reflexão. Reflictamos então.
TEXTO: São 16 listas que vão a votos para eleger os 21 eurodeputados que vão representar Portugal no Parlamento Europeu. De uma coisa os portugueses não se podem queixar; há propostas para todos os gostos. Até para quem não gosta da Europa. Se é contra a União Europeia e é a favor da velhinha CEE, pode votar no PND. Se quiser um referendo ao euro, pode escolher o MAS. O Partido Operário é para aqueles que querem “rejeitar todas as instituições da União Europeia”. O PNR simplesmente quer sair da União Europeia, tal como o PCTP/MRPP, que quer o regresso ao escudo. E até sugere uma taxa de câmbio: 1 escudo = 1 euro. Se quiser ficar no euro, mas está preocupado com a dívida, pode votar no Bloco, que defende a “reestruturação da dívida” e, como brinde, ainda terá direito ao surf nos currículos escolares. A CDU também é a favor do “reconhecimento da insustentabilidade da dívida” e o Partido Monárquico defende a sua mutualização. O Livre é para aqueles que querem revogar o Tratado Orçamental e, como bónus, ainda terão o prazer de levar a troika a tribunal. Depois há um grupo de partidos mais heterogéneo que defende um pouco de tudo. Marinho e Pinto, do MPT, quer ser eurodeputado para “combater os tachos”. O Partido pelos Animais quer a Europa a reconhecer as “gerações futuras de humanos e não humanos”, e ainda para os mais infelizes propõe-se substituir o PIB pelo FIB (Felicidade Interna Bruta). O Portugal Pro Vida sai, naturalmente, em defesa da natalidade. O PTP de José Manuel Coelho quer os madeirenses no Parlamento Europeu “a torcerem pela Madeira e Porto Santo”. E também há o PDA, cuja primeira prioridade são os pescadores dos Açores e a segunda…os agricultores dos Açores. Depois há ainda o PS e a Aliança Portugal (PSD-CDS) que surgem em primeiro nas sondagens. Como não têm muita coisa sobre a Europa por onde divergir vão-se entretendo com quezílias internas. Manuel Alegre achou que quezílias era muito aborrecido e partiu para o insulto. Quando a Aliança Portugal falou em “vírus socialista”, Alegre lembrou-se de comparar o discurso de Rangel ao discurso nazi. Uma comparação gratuita, despropositada e desproporcionada. E é neste clima de amizade e de cordialidade que José Sócrates fará hoje a sua aparição na campanha. Portas pede que os eleitores se indignem contra a "glorificaçãoo de José Sócrates". Os socráticos ofendidos saíram logo em defesa do ex-primeiro-ministro. Silva Pereira, claro está, veio dizer que quando “um socialista é atacado é todo o PS que é atacado”. Mas o PS é um partido ou é a NATO? A frase de Silva Pereira faz lembrar o artigo 5 da NATO; se um membro é atacado, será considerado um ataque contra todos. Então, se criticar Manuel Alegre pelo disparate que disse, estou a atacar todos os socialistas? É uma visão demasiado sectária daquilo que deve ser um partido. Depois admirem-se que a abstenção suba. Aliás, o desinteresse das pessoas nesta campanha tem sido tal que é quase confrangedor ver os cabeças de lista calcorrear as ruas e quase a pedinchar que os transeuntes aceitem um aperto de mão, um pin, um folheto, uma caneta. As televisões até têm sido bastante simpáticas ao mostrar os candidatos de perto; se abrirem mais o foco da câmara, só se vê o vazio, para lá dos acólitos partidários que são sempre arregimentados para estes desfiles e arruadas. Ainda há dias, numa arruada em Coimbra, completamente às moscas, Nuno Melo e Paulo Rangel diziam que a coligação "não tem medo do povo" – mas o povo parece ter medo da coligação. Se por cá são os vírus e as bactérias a tomar conta da campanha, por essa Europa fora a coisa é bastante pior. Ainda esta semana Jean-Marie Le Pen, o fundador da Frente Nacional e candidato a eurodeputado, veio dizer que o vírus ébola pode resolver o problema de imigração da Europa. Nós até já estamos habituados às declarações racistas, anti-semitas e de incitamento ao ódio do pai e da filha Le Pen. O que não estamos habituados é ver sondagens em que a Frente Nacional lidera as intenções de voto em França e, muito provavelmente, irá eleger os mesmos 21 eurodeputados que Portugal inteiro irá eleger.
REFERÊNCIAS:
Ser americano devia ser um privilégio e não um direito
Deus abençoe a América. Assim reza um patriota americano, tantas vezes quanto as que forem necessárias, embora talvez devesse dizer "Deus continue a abençoar a América", porque acredita que não há país como o seu. (...)

Ser americano devia ser um privilégio e não um direito
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.07
DATA: 2010-08-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Deus abençoe a América. Assim reza um patriota americano, tantas vezes quanto as que forem necessárias, embora talvez devesse dizer "Deus continue a abençoar a América", porque acredita que não há país como o seu.
TEXTO: Sexta-feira à noite, frente ao Senado do Arizona, em Phoenix, não faltaram sinais do fervor patriótico, na primeira demonstração de apoio à lei anti-imigração ilegal desde que na quarta-feira uma juíza federal reduziu substancialmente a legislação que iria entrar em vigor. Empunhando bandeiras americanas e t-shirts "Proud to be an American", as pessoas que acorreram à vigília promovida pelo senador republicano Russell Pearce são como que um lugar na primeira fila para a América do populismo e do ressentimento (não há outra maneira de dizê-lo). Não é uma amostra muito lata, porque a participação ficou aquém das expectativas; estavam cerca de 60 pessoas, menos de um terço das cadeiras de plástico que improvisavam um auditório frente ao Senado, no lado oposto ao relvado onde famílias mexicanas levaram a cabo uma vigília de mais de 100 dias contra a lei do Arizona. À medida que iam chegando, os participantes cumprimentavam-se uns aos outros. Classe baixa e média, muitos reformados, e pelo menos duas armas à cintura. A confirmação dos piores preconceitos sobre uma América provinciana e paranóica, a transpirar no calor quase subtropical do Arizona. A vigília pretendia homenagear os agentes que morreram lutando contra a imigração ilegal ou que foram mortos por imigrantes ilegais, embora nenhum dos oradores tenha mencionado quais ou quantos. A cerimónia teve os contornos de um serviço religioso: citações bíblicas, procissão de velas e sermões de reconciliação (o reverendo afro-americano Wayne Perryman, de Seattle, que recentemente veio em defesa do Tea Party, dizendo que este movimento não era racista, e que o verdadeiro racismo está no Partido Democrata, falou de "construir uma sociedade pacífica para todos"). Três adjuntos do xerife abriram a vigília marchando com a bandeira americana até ao palco, com a assistência de pé. Sharon Smith, mão direita sobre o peito, juntou-se ao coro que prestou o juramento da bandeira. Sharon, t-shirt dos Tea Party Patriots, veio de Scottsdale, uma cidade a 20 minutos de Phoenix onde vive o Arizona próspero, classe média-alta. Maquilhada, rabo de cavalo, óculos, mala Louis Vuitton, Sharon Smith parece uma versão um pouco mais sofisticada de Sarah Palin. Contra ObamaDurante a vigília, nenhum dos oradores mencionou a lei SB 1070 ou a decisão da juíza, apesar de ser o assunto central nas conversas. Uma mulher obesa trazia uma t-shirt laranja que dizia "Viva los 1070". Sharon, assertiva, apresenta-se como "uma grande apoiante da lei 1070". "Acredito que se quer vir para este país, tem de o fazer da maneira correcta. As coisas nunca teriam chegado a este ponto se tivéssemos procurado proteger as nossas fronteiras e não fôssemos tão permissivos em matéria de imigração. Temos deixado andar. Mas agora que o nosso país está em perigo - estamos em queda enquanto país e enquanto país livre -, as pessoas estão a aperceber-se de que a imigração é um grande problema. " No ano passado, alega Sharon, os imigrantes ilegais custaram aos contribuintes 2, 7 mil milhões de dólares em assistência médica e educação, serviços que receberam gratuitamente porque não têm de pagar impostos. E isso só no Arizona. "Na Califórnia foram dez mil milhões, para que saiba. " (O PÚBLICO entrevistou um casal mexicano que entrou ilegalmente nos EUA e que paga as contribuições para a segurança social, embora não tenha direito a assistência médica. ) "As leis de imigração noutros países são muito mais restritivas do que aqui. Devíamos ter sido restritivos desde o começo. "
REFERÊNCIAS: