A geração da Net está sem rede
Os adolescentes de 12 a 15 anos têm uma experiência diferente da Internet. Estão dentro dela, todo o tempo, não distinguem o real do virtual. Que oportunidades e perigos os esperam? (...)

A geração da Net está sem rede
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os adolescentes de 12 a 15 anos têm uma experiência diferente da Internet. Estão dentro dela, todo o tempo, não distinguem o real do virtual. Que oportunidades e perigos os esperam?
TEXTO: Marta Gonzaga, 14 anos, 9. º ano, Funchal. Nem precisa de sair da cama. Basta estender um braço para enviar à melhor amiga, por Snapchat, uma imagem sua a acordar, mas só por um segundo, talvez dois, para que a amiga não se fixe nos pormenores. Pode ver um vídeo de cinco segundos de alguém conhecido a lavar os dentes, actualizar fotos de alguns desconhecidos que adicionou no Instagram, congelar num screenshot um momento banal registado do outro lado do mundo. Selfies no Instagram, acha feio. E chat no Facebook é pouco autêntico. “Já ninguém usa o Facebook. Há um ano, sim, mas agora…” A competição pelo número de “likes” é uma infantilidade do passado. Uma obsessão inútil por “ser ou não ser muito popular”. Que importância tem isso? “Tudo é falso no Facebook. Os verdadeiros amigos estão no Twitter. É um ambiente diferente. ”Tudo o que escreve no Twitter tem destinatário: os elementos da banda One Direction. Nunca responderam, mas “só de escrever as frases uma pessoa já se sente melhor”. Tal como formular desejos na Fandom da banda ou despejar milhares de caracteres de histórias inventadas com o One Direction Harry contracenando com outras celebridades, no site para jovens escritores Wattpad. As fics (fanfiction) de Marta são de leitura proibida a amigos e família, fintados com nicknames e passwords, embora já tenham ultrapassado as 27. 840 visualizações, todas de leitores desconhecidos. Cada um dos 1700 seguidores recebe uma notificação sempre que Marta “lança ao mundo” um novo capítulo, tal como ela (e outros mil milhões de seguidores) foi notificada de cada um dos 300 capítulos da série After, que a americana Anna Todd foi publicando na Biblioteca Virtual, antes de os ler na íntegra no ecrã do telemóvel. E de ter respondido com comentários, sugestões e desabafos, no Wattpad, Fandom, WhatsApp, Instagram, Snapchat ou Twitter, em forma de emojis, abreviaturas ou onomatopaicos, sobre a vida social ou íntima dos One Direction, das amigas ou de si própria. “Vou de férias mpts (meus putos)” e “Naqueles momentos em que a mãe grita contigo e tu finges que não ouves” são exemplos das frases que Marta lança no Twitter, para depois contar os retweets que provoca, as reacções do género “ahahah”, ou :) (smile), ou mesmo as reaction picture (selfies que as amigas fizeram com a cara com que reagiram ao tweet). Tudo isto sem sair da cama, no seu quarto, onde é notório que a secretária nunca é usada, enquanto André Nunes, 12 anos, 7. º ano, Parede, Cascais, faz vigílias madrugada fora com dois monitores abertos ao mesmo tempo, um com o jogo multiplayer online League of Legends, ou Minecraft, ou Watchdog, outro com o Skype dividido em cinco chamadas simultâneas onde vai comentando o jogo com os amigos, e talvez ainda um vídeo no YouTube com explicações sobre o jogo, além do Facebook, as sms do telemóvel e provavelmente a PlayStation. Por vezes fica online seis ou sete horas seguidas, com a mãe no quarto ao lado a ameaçar desligar o router e a irmã a queixar-se da sobrecarga da rede que a torna lenta quando ela quer ver um filme no Wareztuga. pt, falar com as amigas no Facebook e constituir família no jogo Sims. Mafalda Nunes, 13 anos, 8. º ano. Todas as suas conversas importantes decorrem online. Tem uma amiga com quem fala todos os dias no Facebook. Foi ela que colocou na rede social fotografias dos cadernos e dos apontamentos, quando Mafalda faltou às aulas por ter estado doente. Não há nada que não possa ser feito online, excepto ler livros, que Mafalda prefere em papel. Em tudo o resto, a Net é preferível à realidade. Nem a praia consegue competir. Não há tanta vontade de sair, ou de namorar, como, com a mesma idade, acontecia com a geração anterior. Comprar roupas de marca também já não é importante. Ter um iPhone, sim. Não é o mesmo que usar um qualquer smartphone de marca branca. Desculpa: a velocidade. Mafalda vem à porta do quarto. “Quem está a usar a Net? Está tão lenta. O pior que há é a lentidão. ” A mãe manda André para a cama. Desculpa dele: “É frustrante sair a meio de um jogo. Porque tem de se recomeçar. Nos jogos online os jogadores têm penalizações se interromperem a partida a meio. Podem ficar impedidos de jogar por uma semana. ”Sofia prefere viajar. Sofia Lucas, 12 anos, 7. º ano, Braga. O Google Earth é o seu site favorito. Foi lá que conheceu Paris, Nova Iorque, Roma, Washington, Londres, lugares que quer visitar na realidade. Também gosta de jogos, e conversa com as amigas no Facebook, onde também começou a namorar. Foi um caso que começou e acabou por via digital. O primeiro contacto aconteceu na realidade, mas aí o rapaz não se declarou. Admitiu mais tarde: “No primeiro dia em que te vi, achei que irias ser minha namorada. ” Mas guardou a conjectura para si. Só no Facebook a inclinação ganhou realidade. Foi lá que se declarou, no Dia dos Namorados, e foi por sms que pôs termo a uma relação de 111 dias e mais de 5 mil mensagens (uma média de 50 por dia). Fê-lo movido pelo pragmatismo, quando Sofia mudou de escola: “Não te vou ligar mais, arranjei outra. ”A 400 quilómetros de distância, Duarte podia ter assistido a tudo isto, se usasse as suas técnicas hackerianas preferidas de Man in the Middle. Mas ele prefere usar as suas armas para o Bem. Duarte Marques, 14 anos, 9. º ano, Carnaxide, Oeiras. Aprendeu muito cedo a usar computadores, porque o pai tinha uma empresa de informática. Começou por um Magalhães, que lhe foi atribuído na escola. Um “Gamalhães”, diz ele, com que conseguia “gamar” música, software, ou tudo o que quisesse. Agora, sente que sabe mais do que a maioria, o que é uma forma de poder e uma responsabilidade. É contra a pirataria, mas a favor da total liberdade na Web. É Anonymous. Tem a máscara de Guy Fawkes, que encomendou pela Net, em três versões — normal, dourada e prateada. Tenciona usar a Internet para mudar o mundo, que vê dominado pela corrupção, o crime e a injustiça. “O que pretendo é mudar o sistema político, do mundo em geral. ” Através de sites de hactivismo, e da rede do Anonymous, imagina-se a praticar acções de rebeldia com consequências significativas, embora planeie vir a trabalhar numa grande empresa, como consultor de segurança informática. “Leio muitos artigos sobre Internet e informática. O conhecimento é gratuito e é poder. Quanto mais conhecimento reunirmos, mais poder temos. ”Ainda não lançou nenhum grande ataque, e nunca o fará de forma gratuita. Apenas umas habilidades, para treinar. “Com o Skype, consigo desligar o router de outra pessoa”, diz Duarte. “E posso interceptar comunicações no Skype, que não são encriptadas. ” E inserir intempestivos scripts ou pop-ups quando as pessoas estão a navegar por um site qualquer. E aquelas imagens esquisitas, por exemplo um cavalo a galopar só com duas pernas, que apareceram no meio da projecção powerpoint da professora? Foi ele, confessa. “Tive pena. Por vezes as professoras querem o nosso bem, não são demoníacas. ” É alterar as notas ou as faltas, que a professora introduz no portal da escola? “Esses sistemas são muito vulneráveis. Era muito mais difícil dantes ver o caderno onde os professores registavam as notas. Os professores ainda guardam algumas notas num caderno. Essas são as mais difíceis de ver. ” Entrar no site para mudar uma nota ou uma falta é portanto fácil. Se Duarte o fez ou não, é informação secreta. Que o pode fazer, isso sim, gosta que se saiba. Um dos objectivos de todas as acções dos Anonymous “é serem levados a sério”. Não cometem “actos ilegais que não façam sentido”, mas acham importante fazer sentir o seu poder. “Anonymous é uma comunidade. Não é um grupo para onde se entre ou a que se pertença. Quem quiser ser Anonymous é. Basta ter esta atitude, de resistir contra o sistema. Estamos atentos ao que acontece. Vemos tudo. Estamos em todo o lado. Somos o teu vizinho, o teu amigo, o teu professor. ”Atirar sites abaixo pode ser um aviso, uma demonstração de poder e revolta. Quanto mais importantes e mais supostamente invulneráveis forem os sites, melhor. O do PÚBLICO, por exemplo. Duarte pode fazê-lo colapsar, se quiser. “Fácil. Basta um telemóvel e a ajuda de uns tantos amigos. Posso experimentar? Só como teste, para ver até que ponto o site é vulnerável ou não? Mas depois pode levar semanas até que se consiga trazê-lo de novo à vida. ” No dia da publicação da reportagem, hoje, domingo, 5 de Abril, o PÚBLICO sofreria um eclipse. Ficou no ar a possibilidade. Não serias capaz de o fazer, Duarte!A Internet tem mais de 20 anos, mas nos últimos cinco transformou-se qualitativamente. Não só multiplicou as possibilidades, com aplicações que permitem fazer quase tudo de forma virtual, mas também se tornou ubíqua. Até há pouco tempo, ia-se à, ou usava-se a Internet. Agora estamos na Net em permanência, através dos portáteis ou dos smartphones, por redes wifi ou 4G. Já se tinha identificado uma geração de “nativos digitais”, ou de “millennials”, mas só muito recentemente surgiram entre nós os primeiros seres totalmente conectados de nascença. Há quem lhes chame “hyperconnected” ou “cyberkids”, mas a verdade é que ainda não há nome para a nova espécie, e pouco se sabe sobre o que são ou virão a ser. Para eles, escrever à mão num papel é uma actividade arcaica apenas obrigatória pela teimosia jarreta de alguns professores ou pais. Comunicar é algo natural, que não implica deslocações nem gastos, o conhecimento está disponível em quantidades ilimitadas, a informação brota de todo o lado, sem filtros nem critérios de validação, não há distâncias nem obstáculos, o consumo de arte e cultura é fácil e gratuito para todos, e a sua produção também, o que é real e virtual confundem-se, a liberdade é uma evidência e uma vertigem, a privacidade uma noção cada vez mais longínqua. Que oportunidades e que perigos esperam os jovens que têm agora 12, 13 ou 14 anos? Serão donos de poderes nunca vistos ou estarão a posicionar-se para serem escravos? Servirá a sua fabulosa vida online apenas para os colocar à mercê de eventuais ditaduras do futuro?Muitos dos perigos da vida online têm sido estudados e objecto de campanhas de informação dirigidas aos adolescentes e aos pais, hoje conscientes dos riscos relacionados com a pedofilia e vários tipos de crimes. Cuidados como o de não colocar fotografias de menores nas redes sociais, não divulgar moradas ou números de telefone, não aceitar desconhecidos como “amigos” são já mais ou menos habituais, segundo os conselhos divulgados pela polícia nas escolas. As práticas de cyberbullying, ostracismo ou violência também têm sido alvo de alguma atenção. O mesmo com o vício e uso excessivo da Internet, e com os problemas da imagem e da reputação, sob o ponto de vista da aceitação social e da obtenção e manutenção de emprego. Mas ninguém está a informar os jovens sobre a vulnerabilidade global e irreversível que vem com a imersão no mundo digital. Todos os nossos gestos digitais deixam uma pegada e podem ser gravados, descodificados, processados. Sabe-se que empresas usam dados fornecidos por redes sociais para conhecer os padrões de consumo dos utilizadores e orientarem as suas campanhas de vendas. Sabe-se também que agências de informação de governos acedem aos nossos telefonemas, mensagens, emails, conversas no Facebook, Twitter ou Skype, além de registos de despesas com cartões de crédito, levantamentos multibanco, sinais de localização de redes móveis e de GPS, imagens de câmaras de vigilância, etc. Quanto maior for a porção da nossa vida que decorre nos dispositivos digitais, maior é a nossa exposição. Em breve não será possível dar um passo sem ser controlado por alguém. Há inegáveis vantagens nesta realidade e podemos optar por aceitá-la. Mas será possível a opção contrária? Ou estabelecer limites?Para Teresa Paula Marques, psicóloga e directora clínica da Academia de Psicologia da Criança e da Família, a concluir uma tese de doutoramento sobre Facebook, Riscos e Oportunidades, uma das noções a ter em conta é que já não há distinção entre mundo real e mundo virtual. Para os jovens, é o mesmo ter falado com um amigo pessoalmente ou através do Facebook. “São duas faces da mesma realidade. ” Por isso, é de esperar comportamentos idênticos. “Os adolescentes gostam de ser vistos por todos, admirados pelos seus pares. As meninas pela beleza, os rapazes pelas façanhas. São muito populares o desafio da canela (em que se ingere canela até ao vómito), o desafio do desmaio, as fotografias em locais arriscados. No Facebook, o efeito que temos nos outros é mensurável imediatamente pela quantidade de ‘likes’. Estes têm um grande impacto na auto-estima. Se forem poucos, a tendência será para acentuar as acções. No caso das meninas, para usar biquínis mais ousados, no dos rapazes para fazerem coisas mais perigosas. É por isso que o comportamento no Facebook tende a ser excessivo. ”Pelo mesmo motivo, são geralmente mais intensas, nas redes sociais, as manifestações tanto de afecto como de agressividade. “Há páginas de ódio e perseguição, e é difícil descobrir quem está por trás. Há casos de assédio online, são enormes os riscos de cyberbullying e de sexting, em que os namorados divulgam na Net, após terminada a relação, as fotografias íntimas que a rapariga lhe enviou. Mas por outro lado é muito fácil ‘desamigar’ alguém. Mais do que na vida real. E os estudos mostram que ser ‘desamigado’ tem um impacto negativo fortíssimo nos jovens. ”Uma das consequências inevitáveis da vida na Net é a confusão entre os níveis de privacidade e de intimidade. Entre estes e o nível do que é público, os jovens são capazes de distinguir. Mas o que é íntimo passa facilmente para a esfera do que é meramente privado, explica Teresa Marques. “As pessoas expõem facilmente a sua orientação sexual, ou outras informações íntimas, o que as torna particularmente vulneráveis. ” Fazem-no porque não têm a consciência da verdadeira dimensão das audiências que podem atingir, nem do carácter indelével das informações disponibilizadas nas redes sociais. “Tudo o que está no Facebook é eterno e pode vir a ser perigoso mais tarde. ” Quanto à noção da existência de poderes superiores, de alguma entidade que venha a pretender ter poder sobre nós e de quem nos deveríamos proteger, os jovens não a conhecem. Não identificam ninguém que devessem temer ou de quem fosse prudente esconder alguma informação íntima ou confidencial. Apenas um ser representa para eles uma autoridade simbólica, uma entidade com quem há que ter mil cuidados, a quem não se pode mostrar tudo. Não, não é a NSA, nem a Administração americana, o Estado Islâmico, as grandes empresas multinacionais ou o Clube de Bilderberg. É a avó. Por ela se pratica a autocensura e se faz uma criteriosa regulação dos botões de privacidade do Facebook. “O que não gostarias que a tua avó visse” — este parece ser o único limite à liberdade dos jovens na Internet. A avó é a última fronteira. Ana Jorge, investigadora da Universidade Nova de Lisboa, a realizar um pós-doutoramento sobre Culturas dos Media e Consumos Infanto-Juvenis, cita a investigadora americana de redes sociais Danah Boyd para explicar o conceito de “colapso dos contextos”. Os jovens “perderam a capacidade de seleccionar discursos diferentes para audiências diferentes. Não têm consciência de que o que dizem estará disponível para vários tipos de públicos”. E, se as campanhas educativas têm sido bem sucedidas no que respeita às práticas de prevenção da criminalidade através da Internet, falta toda uma educação para a cidadania no que respeita ao uso consciente da Rede. Por exemplo no que respeita à partilha de informação e ao uso de dados. “As redes sociais não são de graça. No Facebook estão a gerar valor para os anunciantes. Nós somos audiência. ” Para Ana Jorge, é arriscado falar de características próprias de gerações, porque não se pode generalizar excessivamente. Os estudos mostram que há muitas diferenças e muitos ritmos no seio de uma mesma geração, clivada por grupos sociais, culturais ou regionais. As camadas mais pobres, por exemplo, são mais vulneráveis aos riscos da Internet. Numa família onde os pais não dominam as tecnologias, é menos provável que os filhos lhes contem os problemas que encontram ou aceitem os seus conselhos. Não reconhecem autoridade a quem não domina os gadgets ou a terminologia que lhes está associada. Também as raparigas são mais vulneráveis do que os rapazes, e os jovens de alguns países mais do que os de outros. Entre os países da União Europeia, Portugal é um dos que apresentam um hiato maior entre a literacia digital de pais e filhos. Há toda uma geração iniciada nos computadores com a campanha dos Magalhães nas escolas. Foi um factor de unificação dos jovens, mas não dos pais. “Devido ao Magalhães em 2008 e ao projecto E-Escola, Portugal é um dos países europeus onde é maior o número de famílias onde são os filhos que sabem mexer nos computadores”, diz Ana Jorge. Em parte por este motivo, Portugal é também um dos países onde os jovens acedem mais à Internet sozinhos a partir do seu quarto. Os pais associam o uso dos computadores à realização dos trabalhos escolares, pelo que abdicam de vigiar as actividades dos filhos na Internet. Neste sentido, os adolescentes portugueses, em particular os provenientes de famílias com níveis educacionais mais baixos, são particularmente vulneráveis aos perigos do mundo digital. Se surgem problemas, a mãe sabe que ajudar a filha passa por dominar os mesmos meios. Uma vez, uma amiga de Sofia começou a ter um comportamento reprovável. Enviou mensagens e fez comentários sobre ela com outras amigas, mexeu nas suas coisas no cacifo da escola. Vânia pediu-lhe amizade no Facebook. Quando ela aceitou, fê-la explicar o que se passava, a responsabilizar-se e a corrigir o comportamento. “Se eu tivesse ido falar com a mãe dela, não teria resultado. O Facebook foi a solução. ”Os pais de Mafalda e André sabem da sua vida escolar através da plataforma Inovar, onde os professores registam as notas, faltas, sumários e outras observações, além das despesas do cartão de refeições. Sofia Martins, a mãe, dá grande liberdade aos filhos nos contactos com amigos nas redes sociais, porque viveram oito anos em Oleiros, uma aldeia da região de Castelo Branco, e perderam o contacto com os colegas. Agora vivem na Parede mas falam com eles todos os dias. A mudança não foi tão traumática graças à Internet. “Falo sempre com a minha melhor amiga, que será sempre a minha melhor amiga”, diz Mafalda. Sem a Net, a vida seria muito diferente. Uma vez, lembram-se de que a electricidade falhou. “Estivemos assim cinco horas, não sabíamos o que fazer”, diz André. “Foi dramático. ” Mafalda acrescenta: “Foi o fim do mundo. ”Marta mostra mensagens que trocou com o suposto primo. “Diz qualquer coisa sobre ti”, perguntou ela. A resposta: “” (gosto de pés). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O star system na Net é muito próximo da loucura. Há ídolos que nasceram no YouTube e nunca fizeram nada na vida real, os fandoms de bandas como os One Direction reúnem milhões de fãs que escrevem e lêem histórias inventadas, virtuais, sobre os rapazes da banda e se automutilam realmente quando um deles, Zayn Malik, abandona o grupo. “Eu sei que a música deles não é muito boa”, diz Marta. “Eu dantes gostava de Grunge, dos Red Hot Chilli Peppers, e não é a mesma coisa. Mas os One Direction são o meu guilty pleasure. ” Apesar de toda a sua vida online, Marta gosta de ler livros em papel. E de capa dura. Anda a ler vários clássicos. Anna Karenina, Jane Eyre, todo sublinhado. Orgulho e Preconceito em inglês. Sabe passagens de cor. Diz sem hesitar: “If your feelings are still what they were last April, please tell me so at once…”A mãe de Duarte, Ana Bastos, não lhe paga a Internet no telefone, mas ele “rouba” o sinal das redes que apanha por todo o lado. Conhecimento é poder. E a única saída para quem vai viver num mundo dominado pelo digital. “Hoje, os mais jovens são mais responsáveis”, diz ele. Porque já sentem na pele o que lhes vai acontecer. Duarte vê o futuro com preocupação. “A tecnologia muda a personalidade das pessoas. A maioria vai ser como robôs. Mas alguns vão ser mais livres. Your ignorance is their power. Wake up!” Duarte imagina no futuro uma espécie de regresso da Idade Média. “Na época feudal, o povo era escravo, mas isso soava-lhes normal. A mente deles estava fechada. Não tinham capacidade para se revoltarem. Agora parece-me que essa realidade está a voltar. Na sua maioria, as pessoas são simples. Não vão reparar que estão a ser usadas. ” Quem quiser resistir tem de fazê-lo dentro da Internet. De certa maneira, “a terceira guerra mundial já começou, é a guerra digital”. No futuro, Duarte imagina-se, se necessário, a ter duas vidas, uma normal, no emprego, seguindo as regras, outra como Anonymous. “A Internet não pode ser controlada. A Internet não é um país. ”
REFERÊNCIAS:
Edouard Louis: da bandeira arco-íris ao colete amarelo
Jovem autor de sucesso com Acabar com Eddy Bellegueule, atravessa polémicas violentas e tempestades mediáticas para defender sem descanso a causa homossexual tal como a da gente pobre esquecida. Entre livros chocantes muito pessoais, conferências em todas as partes do mundo, activismo e manifestações dos Coletes Amarelos, retrato daquele que tenta o traço de união, a convergência das lutas. (...)

Edouard Louis: da bandeira arco-íris ao colete amarelo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 14 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Jovem autor de sucesso com Acabar com Eddy Bellegueule, atravessa polémicas violentas e tempestades mediáticas para defender sem descanso a causa homossexual tal como a da gente pobre esquecida. Entre livros chocantes muito pessoais, conferências em todas as partes do mundo, activismo e manifestações dos Coletes Amarelos, retrato daquele que tenta o traço de união, a convergência das lutas.
TEXTO: Conhecemo-lo cerca de um ano antes da publicação do seu primeiro livro. Um ano antes do tumulto que passou a acompanhá-lo para onde quer que fosse, cada vez que publicasse, falasse, ou mesmo quando não dissesse nada. Era um homem muito novo, alto, esguio e louro, doce, cortês e desconhecido. De facto, começava-se a falar bastante disso, em Paris, mas em alguns círculos, mais em pequenos círculos literários e homo. A tranquilidade e a segurança educada de Edouard Louis – então com 21 anos, nascido na Picardia, uma das regiões mais pobres de França – traduziam já a força inabalável das suas convicções, certezas insolentes próprias da sua idade juvenil, considerava-se, mas que não se alterariam nem numa vírgula posteriormente, e que na nossa conversa acendiam de vez em quando uma centelha febril nos seus olhos azuis. Ele tinha, por exemplo, embirrações muito claras em relação a certos barões esquerdizantes frequentemente homo, de uma certa imprensa agressiva e avançada, que cerrava fileiras na defesa dos seus lugares, postos, visibilidade mediática; e privilégio, oh quão sagrado, de distinguir o que era bem, bom e bonito. Uma casta arrogante, é certo, bastante detestável, sem dúvida, para quem não fizesse parte do grupo. Edouard Louis não hesitava em exprimir a sua aversão a essa dúzia de personagens, que lha retribuíram bem, tanto quanto puderam, agredindo-o nos seus artigos ou nas redes sociais, antes de desaparecerem quase todos, varridos pelo passar da moda, pela lassitude do público e pelas falências dos seus meios de comunicação. E era precisa muita coragem para enfrentar, tão só e tão jovem, aquelas divindades poderosas e estabelecidas. Peixe no restaurante? Ah, não, obrigado. Havia comido que chegasse para toda a vida, porque o pai pescava disso todos os dias e tivera de o comer todos os dias. Foi preciso coragem também para se extirpar do seu meio, da sua terra da Picardia, forçar o destino, trabalhar muito para se sentar também ele nos bancos das mais exclusivas faculdades de Paris, observar, aprender, infiltrar-se naqueles salões intimidantes, naqueles círculos da juventude dourada, sobreeducada, nos edifícios imponentes, até apagar completamente a sua pronúncia da Picardia tão troçada em França, e que é imitada para parodiar os proletários, os campónios, os pedintes desdentados. Quando lhe perguntámos se ainda conseguia falar com aquela pronúncia da Picardia, foi incapaz, bloqueou, de tanto que tinha treinado com uma amiga estudante o modo de falar típico da “alta”, dos aristocratas com muitos estudos. Quando lhe fazíamos notar que se tinha saído muito bem, ele, a elevar a sua condição e a sair da lama, retorquia sem pestanejar que era precisamente por tê-lo conseguido que sabia a que ponto era impossível. Os seus cavalos de batalha, seria muita ousadia falar de obsessões, eram primeiro a chaga social que é a reprodução das elites, a endogamia, os ricos poderosos e as elites intelectuais que se multiplicam entre si, batendo com a porta às massas populares cada vez mais ignorantes e esquecidas; em seguida, a homossexualidade, que ele embandeirava em arco. Uma homossexualidade que tinham querido fazê-lo pagar, engolir, apagar a murro, à pedrada, com crachás e humilhações. Desprezava as personalidades cuja homossexualidade era conhecida de todos em Paris e que se obstinavam em escondê-la e até em mentir, fingindo-se hetero: traidores à causa. Uma homossexualidade que era impossível viver tranquilamente no meio de onde ele vinha. Edouard Louis contou a sua assustadora juventude no seu primeiro romance: Acabar com Eddy Bellegueule. Está tudo ali, desde o primeiro livro: a criança inteligente já destinada a fugir um dia desse meio proletário e pesado, pegajoso como barro; a criança homossexual a enfrentar a hostilidade e a violência em toda a parte, sobretudo na sua própria casa; a miséria que fez dos seus o que serão para sempre; a violência que assenta arraiais na ignorância e na coerção social; a revolta como o sistema que cristaliza as classes sociais e fecha as portas. Acabar com Eddy Bellegueule teve um sucesso estrondoso em França e no mundo, com vendas estratosféricas, artigos e traduções no mundo inteiro, conferências, autógrafos em dezenas de livrarias; uma mediatização do autor de causar vertigens aos escritores de sucesso mais experientes. Com tudo isto, as primeiras polémicas e uma histerização da pessoa de Edouard Louis. Tinha então 22 anos. Centenas de milhares de leitores reconhecem-se na escrita fluida e seca que ele utiliza para contar o que todos os jovens homo de província viveram mais ou menos. Os jornalistas são ditirâmbicos, mas bem depressa as primeiras salvas vêm de uma franja de críticos e de observadores autorizados, que julgam com desconfiança a chegada tonitruante deste desconhecido que não pertence a nenhuma capela respeitável da edição parisiense, ousando fazer cócegas aos prescritores de tendências, metendo-lhes debaixo do nariz uma homossexualidade que não seja nem glamour, nem brilhante, nem flamejante. Tudo se precipita, vão fazer perguntas na sua aldeia, passam a pente fino os seus diplomas, há jornais que contam escândalos que os seus próximos teriam feito, mesmo a sua mãe, que irrompeu por uma conferência adentro para vituperar o seu filho por tê-los arrastado daquela maneira pela lama. Espera-se com avidez a queda do jovem prodígio, o burn-out, a negação; nunca chegarão. O jovem Edouard Louis parece alimentar-se dessas polémicas, tira proveito de cada golpe de vento da tempestade para se firmar e se afirmar. Como se aguenta, como não cai para o lado com um esgotamento? Mistério. Talvez comparado com o que um jovem homossexual tem de passar num meio hostil, este ruído mediático não seja mais do que uma ligeira brisa?Todos esperam que Edouard Louis faça uma viragem quando publica, em 2016, a sua segunda obra, a qual trata, sempre em tom autobiográfico, de um tema altamente inflamável: Histoire de la violence [História da violência]. Numa noite de Natal, Edouard convida para sua casa um homem para fazer amor. A meio da noite, o homem tem um ataque de fúria, ameaça-o, bate-lhe, violenta-o e viola-o. Chama-se Reda, é um jovem magrebino da Argélia. Esta agressão serve de base de reflexão ao autor para tentar actualizar as fontes da violência. Fiel à sua escola de pensamento que aponta, como fermento da violência psíquica, a violência exercida pelas elites sobre as classes populares, ele prossegue juntando à sua reflexão as pragas do racismo, do colonialismo, do desenraizamento. Compreende-se nas entrelinhas que Edouard Louis encontra, pelo menos, circunstâncias atenuantes, ou mesmo desculpas, para o acto odioso de Reda. Novo cisma, nova polémica violenta, um ano depois dos atentados islamistas do Charlie Hebdo e do Bataclan, as feridas ainda estão abertas, as reacções são indignadas. Poucas pessoas estão dispostas a encontrar agora desculpas para alguém que se pareça de perto ou de longe com um árabe violento. Outros acusam com irritação Edouard Louis de reproduzir, por sua vez, o cliché detestável, banal e racista do “maricas branco parisiense” que explora sexualmente magrebinos, limitando-os a um papel de “máquina de beijar”, viril, inquietante, dominadora e sem outra função que não seja a de satisfazer as depravações burguesas. Por fim, e é aí que entra em cena a máquina judiciária, Reda reconhece-se no livro e, em Paris, amigos gays de Reda ofendem-se com o retrato feito por Edouard Louis, que é escandalosamente mentiroso. Reda apresenta queixa. Edouard Louis é defendido por Emmanuel Pierrat, um advogado célebre, abertamente homossexual, franco-maçon, coleccionador entendido de arte, defensor da imagem de numerosas figuras públicas. A panela de ferro contra a panela de barro. Incómodo. A imprensa e as redes sociais atiram-se ao folhetim judiciário, literário e, agora, people. No presente, o caso continua a correr na justiça. O advogado Emmanuel Pierrat explica-nos: “Esperamos o despacho de pronúncia do juiz de instrução. O meu cliente e eu aprovamos totalmente as alegações do Ministério Público que visam levar a julgamento Reda [pseudónimo do arguido no livro], sem aumentar este duplo drama humano: violação e roubo por um lado para Edouard Louis [tendo o cuidado de considerar a presunção de inocência], destino trágico do indiciado, pelo outro lado. Chega finalmente o último romance de Edouard Louis, Qui a tué mon père [Quem matou o meu pai], que se poderia considerar uma tentativa de síntese, uma redenção, um traço de união entre as origens familiares, a homofobia, a violência, relatadas com traços vigorosos no primeiro romance, e a expressão de um perdão, de uma reconciliação, da vontade de ser o porta-voz desse povo mudo e martirizado que, por sua vez, martiriza porque é esse o seu destino. Edouard Louis foi visto como um jovem ambicioso, vítima e carrasco de um proletariado homofóbico? É porque se enganaram, porque eis chegado o tempo da defesa desse povo e da acusação dos mecanismos, das políticas e até das figuras políticas, que ele nomeia, uma por uma, como verdadeiros responsáveis do seu atraso. “Tu pertences àquela categoria de humanos aos quais a política reserva uma morte precoce” (em Qui a tué mon père, éditions Seuil). Qui a tué mon père regressa às humilhações dolorosas, infligidas por esse pai obcecado por manter a sua atitude viril, enquanto perde o pé socialmente, em álcool, dificuldades no trabalho, diminuição física, conflitos com a mulher e os filhos, vergonha de ter de assumir um filho efeminado, grácil, muito inteligente e não suficientemente vigoroso. E, contrapondo-se a ele, o jovem Edouard, desejando a todo o custo ser “visto” pelo pai, ser amado, admirado por ele, como, por exemplo, naquele dia em que se travestiu de menina, num espectáculo que organizou de improviso e em que dançou, rodopiou, tentou em vão atrair o olhar do pai, desesperadamente e sem êxito… O livro está, no entanto, semeado de episódios felizes, momentos secretos, íntimos e alegres, risos por vezes partilhados com o pai tão distante. Edouard Louis deixa uma mensagem de amor tremendamente comovente e sensível, tal como pode sê-lo a de um filho que continua a sentir o ardor causado por não ser um rapaz como os outros, para um pai que não soube como fazer para o amar. A seguir, ele vira-se para os políticos e os seus pacotes de medidas antipobres, que fizeram curvar-se as costas do pai, que o embruteceram de fadiga e ressentimento, que o reduziram a nada. Estas passagens não brilham pelos matizes, mas o objectivo não é, claramente, a temperança em ciência económica: ser muito à esquerda ou não ser…A revolta dos Coletes Amarelos calhou na hora certa, esse “roncar” dos pobres, como começaram por qualificá-lo certos jornalistas, como se o Zé Povinho emitisse roncos à maneira dos porcos. Edouard Louis foi visto a encabeçar uma marcha em Paris de Coletes Amarelos, fotografias logo divulgadas pela imprensa. Ele publicou nas redes sociais discursos inflamados e petições. Que quer ele dizer-nos? Vejamos, Edouard Louis não é um trânsfuga de classe; e se, um dia, ele decidiu perder a pronúncia da Picardia, foi para melhor falar em nome dos seus. Sempre lhe correu nas veias a insurreição e a febre de acção de rua. E, se é um homossexual famoso, é para melhor erguer o estandarte dos pequenos sem voz. Convergência das lutas. "Os coletes amarelos falam de fome; de precariedade, de vida e de morte. Os 'políticos' e uma parte dos jornalistas respondem: “símbolos da nossa república foram destruídos. ” Mas de que fala essa gente? Como se atrevem? De onde vêm??" (Excerto de um post do Facebook de Edouard Louis, 4 de Dezembro 2018). Quando o seu rosto ainda era desconhecido, tínhamo-lo reconhecido numa cadeia de televisão de informação, na altura da batalha pelo casamento gay, diante da Assembleia Nacional, a vociferar com um pequeno grupo de activistas gays contra uma figura homofóbica caída depois no esquecimento: “Bruxa! Bruxa!”, berrava, fora de si. Talvez ele também irrite por causa disso: ele não é senão palavras, frases, livros e conferências; é também um homem jovem que desce à rua. Talvez ele irrite porque foi o primeiro a colocar sob os projectores a questão homossexual ao nível da endogamia, traço de união inesperado, ainda que o seu mentor Didier Eribon, célebre universitário, sociólogo e escritor, tivesse publicado, anos antes dele, Retour à Reims, romance autobiográfico gémeo de Acabar com Eddy Bellegueule. Também a história de um jovem homossexual da província que…Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Edouard Louis é objecto de fascínio-repulsa. Diz-se tudo e mais alguma coisa acerca dele, como, por exemplo, que exigiria não ser fotografado pela imprensa senão de um ângulo que o favorecia ou que aquela seria "a Capa", ou nada feito. Ele nega por vezes com um tweet estas afirmações, outras vezes nem isso. Mantém-se fiel, haja o que houver, às suas amizades, às suas teses originais e às embirrações. Os media que traíram as suas causas, nem lhes fala. As redes sociais lançam-se sobre o seu caso na justiça. Durante esse tempo, ele faz conferências, encontra-se com os leitores, percorre o globo conforme as traduções dos seus livros, apresenta-se nos países reaccionários e homofóbicos (a Polónia, recentemente), nos países resistentes às teses de extrema-esquerda (a Suíça há bem pouco tempo). É raríssimo aparecer na televisão, praticamente inacessível, não tem tempo, tem 26 anos, quer salvar o mundo. Tradução de Rita Veiga
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte escola humanos violência filho ataque mulher fome homem racismo social violação criança casamento homossexual gay racista vergonha homofobia coerção
Somos loucos por arroz
Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios. (...)

Somos loucos por arroz
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 9 | Sentimento -0.6
DATA: 2010-06-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um português come em média 17,5 quilos de arroz num ano, mais do dobro do que qualquer outro europeu. Somos os asiáticos da Europa, dizem. Porquê? Provavelmente porque o cozinhamos de todas as maneiras e feitios.
TEXTO: Há um pequeno atraso, é mesmo assim. A avioneta deveria ter chegado há meia hora, mas deve estar a dar conta de outro serviço nas redondezas. Laurinda e Lurdes estão de olhos postos no céu, mãos atrás das costas, ouvidos atentos. Já passa das nove da manhã e nada. Nem um motor. A não ser, claro, os dos carros que passam na estrada ali ao lado, que em poucos minutos nos põem em Benavente. Não fosse isso, e só se ouviriam pássaros. Cheira a terra húmida, cheira à chuva que vem e vai. Está tudo cinzento, céu e terra em conspiração. Os arrozais são espelhos de água do tamanho de campos de futebol, com nuvens estampadas em cima. Outros já estão com as plantas a despontar, mantos verdes onde as garças pousam e se alimentam. Ou ainda castanhos, à espera que a planta rebente. Todos parecem em suspenso, quilómetros e quilómetros sem ninguém. As aparências iludem. "Todos os dias há trabalho", dizem as duas mulheres, a perscrutar as nuvens de chumbo. "Primeiro arranjar as terras, depois mondar [arrancar as ervas daninhas], curar [tirar os bichos] e a seguir a colheita. " Parece simples, dito assim de uma assentada, mas são meses de dedicação. Dá para ver a chuva a aproximar-se com toda a definição: está a cinco metros, está a quatro, a três, dois, um, "fujam que vem aí uma barroa". Já aqui está, mas ficará por pouco tempo, deixa o cheiro a água e vai-se embora. Todos os dias há trabalho, diziam. E Lurdes explica: "Em Abril arranjam-se as lagoeiras - as terras, na nossa linguagem do campo. Até ao fim de Maio fica tudo semeado. Em Junho é a monda. A partir de Julho não é conveniente andar lá dentro para não tombar a panícula [inflorescência]. Julho e Agosto, a panícula está formada e oito dias depois é a floração. Depois é a fase láctea, o bago enche-se de líquido, líquido mesmo como leite, e começa a enrijar. Vem a fase córnea, em fins de Agosto, quando o bago está mesmo rijo. Entra na maturação em Setembro, quando está pronto a ser colhido. " A seguir elas perdem-no de vista. O grão vai ainda com casca para a fábrica. E, no Inverno, Laurinda está no laboratório, "a fazer análises de rendimento". É ela quem diz: "O arroz gosta de calor na rama e água na raiz. Este ano não está muito bom. " Água há, houve muita, o Inverno todo, o pior é o resto. Depois da chuva, ouve-se coaxar. "São os sapinhos a pedir água. Assim que sentem as costas molhadas, começam a pedir mais. " Mas não são eles o perigo dos arrozais. Há os lagostins, que "fazem buracos e furam de um canteiro para o outro e a água foge". Ouve-se a avioneta. Vem atrasada uma hora. O ciclo da vida do arroz está agora prestes a começar, nestes campos alagados. Alguém dirá "arroz não é arroz" e por isso está na altura de esclarecer: aqui, no Paul de Magos, produzem-se as variedades Ariete e Albatroz. Liderança do agulhaAtravessa-se a vala real - um caminho de água vinda do Tejo com carpas, pimpões, tainhas - que separa os canteiros. Os bandeirolas já estão a postos, walkie-talkies na mão, de bandeira branca e verde para mostrar à avioneta os limites do terreno, o ponto a partir do qual deve sobrevoar. Um, dois, três, e é agora. Cai nova chuva, desta vez de semente. "É uma barroa amarela", riem Laurinda e Lurdes. A avioneta espalha os grãos, que caem pesados na água, numa tempestade dourada. Vai e vem, dando meias voltas no céu, semeando os grãos do carolino ("é o melhor", dizem as duas). Serão 1350 quilos de sementes largadas do ar para a água (também poderia ser em terra seca, que depois é inundada). Os bandeirolas baixam os braços para um intervalo de reabastecimento. Dali a nada estarão outra vez a indicar ao piloto o local onde deve fazer a descarga, em que parte do campo - ou da "folha", como se diz aqui - os grãos ainda não caíram. As nuvens entram na competição. "A chuva está a engrossar, comprimento já ela tem", repetem as agricultoras, chapéu de palha na cabeça, galochas nos pés. Não sabemos se esta manhã alguma delas olhou para o céu para ler a meteorologia na "vaca esfolada", as nuvens avermelhadas que se juntam ao sol: "Vaca esfolada ao nascer, vai chover, vaca esfolada ao pôr, vai estar calor. "Entre uma largada e outra vinda das alturas, ficamos a saber: Lurdes "já não pode ver arroz à frente", e o que tem ao lume, à espera do meio-dia, é uma sopa-guisado com batata. Mas Laurinda come com regalo: "Adoro arroz, doce então ainda melhor. " Contribui para as estatísticas que apontam os portugueses como os maiores consumidores de arroz per capita na União Europeia: à volta de 17, 5 quilos por ano (ou seja, 175 mil toneladas), mais do dobro que os espanhóis, que vêm em segundo lugar, com sete quilos, e quatro vezes a média europeia. "Somos os asiáticos da Europa", diz Pedro Monteiro, director-geral da Associação Nacional dos Industriais de Arroz (ANIA). Não andamos a comer nem mais nem menos que antes: o consumo está estabilizado, "é um mercado maduro", liderado pelo agulha. Hoje foi uma avioneta, mas noutros casos são os tractores que semeiam os grãos. Já não é de agora, os pés das mulheres descalças a arrastarem-se pela água, como fazia a Laurinda quando era nova - agora tem 44 anos, os suficientes para filhos e netos. "Até a água cortava as pernas. E estava fria nestes dias. " Sorri outra vez. E noutros tempos também o trabalho era feito por ranchos, grupos de mulheres que plantavam o arroz (quando é plantado dá mais produção, explica), a trabalhar por ali fora, do nascer ao pôr do Sol. "A gente aqui começa cedo. Já pouca gente quer o campo. Eu já trabalhei em fábricas e antes prefiro o campo. É outra liberdade", diz. Mas não é isso que se sonha para os filhos, nem é isso que eles querem fazer. Entre os de Lurdes, 61 anos, e os de Laurinda, nenhum é agricultor, e não é só pelo trabalho que dá. "As pessoas da cidade pensam que somos estúpidos. Não queremos que os nossos filhos se sintam assim. " Estúpidos? Lurdes, sempre ao lado e sempre mais calada, desta vez tem resposta: "Eles na cidade sabem o que comem mas não sabem como é criado. " Elas poderiam explicar. São ambas de Marinhais, a poucos quilómetros deste campo de Paul de Magos, em Salvaterra de Magos, que pertence à COTArroz (Centro Operativo e Tecnológico do Arroz). Ambas têm a sua própria terra, onde cultivam batatas, cenouras, couves. . . "Saímos daqui às cinco [entram às oito da manhã] e ainda vamos para a fazenda. E depois há a lida da casa. " Não é queixume, é só para falar da vida. Agora diz a Lurdes: "Fomos criadas assim e assim nos sentimos bem. "A semente caiu na folha e daqui a oito dias começará a criar raiz. Nessa altura tira-se a água. Toda a cara morena de Laurinda sorri, boca e olhos, quando aponta em frente a lembrar como é a terra quando as nuvens não tapam o céu. "Aquela encosta, quando está sol, fica a verdejar e é linda. Para mim, é. Vale tudo para mim. " Os campos estão agora sem vivalma. Para já, o que havia a fazer foi feito. Melhorar o carolinoEntre-se numa cozinha portuguesa e o mais provável é encontrar-se no tacho arroz agulha ou carolino. Mas a história está muito longe de se resumir a isto, e se quiséssemos traçar uma árvore genealógica, a raiz teria dez mil anos e seria, pensa-se, encontrada nos Himalaias. Sabe-se que três mil anos a. C. já era cultivado na China. Agora, é o cereal mais comido no mundo inteiro, apesar de em produção estar em terceiro lugar, depois do milho e do trigo. Há dois tipos de arroz com caminhos separados, o O. sativa (asiático, mas cultivado em todo o mundo) e o O. glaberrima (africano, cultivado em pequena escala na África Ocidental). Dentro do O. sativa, há duas subespécies: o japonica e o indica. E tudo o que se dirá daqui para a frente só se refere a estas duas. A começar por isto: o famoso agulha, que começou a monopolizar os pratos portugueses, tem sangue híbrido de japonica com indica, que é cultivado em zonas mais quentes, diz a investigadora Margarida Oliveira, do Instituto de Biologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa. Por isso, em Portugal cultiva-se pouco. Cresce mais na zona do Sado. "É mais comprido, mas não absorve tanto o sabor dos alimentos como o carolino, que tem mais goma", como bom japonica que é, continua. Também é mais produtivo: 10 toneladas por ano por hectare, contra 6/7 do carolino. Mas, diz quem sabe, o que os verdadeiros apreciadores gostam mesmo é do carolino da variedade Allorio, vencedor de provas cegas. Como não é muito produtivo, os agricultores semeiam sobretudo para consumo próprio, diz a bióloga. Nos supermercados, e entre os carolinos, talvez seja mais fácil encontrar o Ariete. Quanto ao agulha, a esmagadora maioria importado, a variedade Thaibonnet é a mais usada pelos agricultores e, por ser mais barato, a que mais provavelmente virá a acompanhar o seu bife nos restaurantes (as hipóteses são muitas: o grande banco mundial de arroz, nas Filipinas, armazena cerca de 200 mil variedades). Seja como for, quase sempre as sementes usadas pelos agricultores portugueses são estrangeiras: vêm de Itália, o principal produtor da União Europeia, responsável por metade do arroz ali cultivado, com um milhão e seiscentas mil toneladas por ano, predominantemente japonica (a China é o número um mundial, com 182 milhões de toneladas). Portugal é o campeão do consumo europeu, já se sabe, mas não dá resposta às suas necessidades. Os arrozais - concentrados nos vales do Sado, Mondego, Tejo e Sorraia - ocupam mais de 26. 800 hectares (apesar de a UE só autorizar 24. 667). São produzidas 165 mil toneladas com casca, resultando em 100 mil em película, aquele que será consumido. É o terceiro produtor da UE, mas não chega senão para 60 por cento do que é preciso para satisfazer as exigências dos portugueses. Os outros 40 por cento têm de ser importados. Suriname, Tailândia, Itália. . . Já houve tempos em que a produção interna chegava e bastava. Em 1937, a colheita ultrapassou o consumo, e a criação da Estação Agronómica Nacional, em 1941, viria a trazer ainda melhores resultados, depois do melhoramento de algumas variedades. Portugal pôde até exportar algum do seu arroz. A tradição servia o carolino à mesa. Mas o arroz agulha impôs-se sobretudo pelo impacto de uma campanha publicitária, há cerca de 15, 20 anos, continua Margarida Oliveira. Agora, há que defender as variedades portuguesas de carolino, cujo consumo é o único que está a decrescer. É essa a sua "missão": melhorar o arroz, "com ferramentas comummente aceites", para não espantar os agricultores com inovações da engenharia genética. E por melhorar quer dizer-se torná-lo mais produtivo e resistente a doenças. É que tanto o Allorio como o Strella - na base das investigações da sua equipa - são plantas demasiado altas (logo, mais facilmente danificadas), com pouca produtividade e sensíveis a doenças, sobretudo ao fungo periculária. O que se pretende é que aquelas variedades ganhem o tipo de características pretendido, sem perder as outras que as tornam singulares. Cozer, insuflar, moerIntrometemo-nos na estreita cozinha de Fausto Airoldi no Spot São Luiz, em Lisboa. Antes de mais, veste a jaleca preta, que ali não se entra de qualquer maneira. Azeite no fundo de uma frigideira e alho picado. O chefe abriu o seu Risottoria del Mundo, no Funchal, onde só serve arroz, e está em posição de explicar: "É um meio para trabalhar muito bom. Dá para insuflar, moer, tudo e mais alguma coisa. "Meia dúzia de cogumelos laminados grosseiramente atirados para o azeite quente, seguidos de vinho branco e pimenta preta. Há alguma coisa que não combine com o arroz? "Que eu saiba não. " A ideia do seu restaurante na Madeira é "pegar nos arrozes do mundo com sabores do mundo". E o mundo está mesmo ao lado de papas de sarrabulho com arroz (triturado), em vez de farinha de milho. Devemos olhar para ele "como olhamos para as massas, que ligam bem com tudo. Mas cada tipo de arroz tem as suas características e nesse aspecto é mais rico". Dirá alguém que "arroz não é arroz", repetimos, e por isso na ementa pode ler-se "Arroz Vialone" por baixo de "Risotto de azeitonas com bacalhau meia cura confitado, molho de foie gras". Ou "Arroz carolino" depois de "Maçã assada recheada com espuma de arroz". Agora estamos em Lisboa, e o "ouro branco" vem mesmo já preparado do frigorífico, numa caixa de plástico. "Para um arroz mais solto, uso basmati, se for molhado malandrinho, uso carolino. O carolino como tem um grão pequeno e gomoso absorve muito bem os líquidos. Vai ficar mais saboroso. " Airoldi (mãe portuguesa, pai italiano) solta o arroz com as mãos - basmati, "cozido com alho, louro e água, sem gordura" - e pica uma mão cheia de manjericão, que junta aos cogumelos depois de duas colheres de caldo de legumes. "O arroz é como os azeites. Temos de escolher o que vai bem com as coisas, o arroz para a sua função. Temos de respeitar as suas utilizações. "O carolino já não é o que mais se consome em Portugal, mas é "um arroz muito nosso. E o que está esquecido não é o tipo de arroz, é a cozinha portuguesa". Nem todos os arrozes são iguais, até porque há aqueles "que dão mais luta, como os glutinosos. Têm de se testar bem, por causa da goma. Ficam mais empapados, têm de ser [usados] para arrozes mais moles". E é só este o mistério: "Conhecer bem o arroz e saber de quanta água precisa. O segredo está no caldo, porque o arroz agarra esse sabor todo. " Há outros factores a ter em conta, como qualquer um saberá se já tiver tentado: "O ponto de cozedura. Um risotto passado de mais é papa. "Explicações para a dianteira nas estatísticas do consumo, ele não tem - e, de resto, serão muito difíceis de encontrar. Mas o chefe avança que "temos muito receituário. Somos os únicos no mundo que comem arroz com batata frita!"Mistura-se o arroz na frigideira, lume bem alto. E poucos minutos (dois, três?) passaram desde que tudo começou nesta cozinha, sem pressas mas depressa. Excepto a viagem da frigideira ao prato, serena. "Al-roz", "orz", "orysa"Foram os mouros que trouxeram o arroz para a Península Ibérica, nos séculos VII e VIII - e isso poderia até ajudar a explicar a criação do hábito, não fossem alguns obstáculos, como o facto de a expansão da cultura só se dar no início do século XX. Mas se não dá uma pista para o vício, pelo menos aponta para a origem do nome. Arroz vem do árabe al roz, que por sua vez virá do persa orz. No Almanaque do Arroz 2010, brasileiro, podemos ler que gregos e romanos chamavam-no orysa - daí a palavra orizicultura, que hoje usamos. E que orysa tanto poderia vir do tamil (Sri Lanka) arisi, como de Orissa, a cidade indiana onde o arroz se cultivava em grandes quantidades (já o termo "carolino" virá do facto de se tratar de uma variedade semelhante à cultivada nas regiões da Carolina, nos Estados Unidos). No mesmo almanaque ficamos a saber que "houve um tempo em que partiam caravanas levando sacos de arroz ao longo das planícies centrais indianas, dos planaltos afegãos e persas até à Mesopotâmia e, de lá, até o Mediterrâneo oriental". Foi preciso esperar pelo reinado de D. Dinis (1279-1325) para que aparecessem as primeiras referências escritas à orizicultura. E, nessa altura, o arroz só era servido à mesa dos ricos. O cultivo foi incentivado no século XVIII, em terrenos pantanosos, mas à volta das suas "águas paradas" multiplicavam-se os insectos e as queixas das populações. "Em meados do século XVIII, houve um decreto-lei a proibir o cultivo do arroz por causa dos mosquitos", que causariam malária, diz a bióloga Sónia Negrão, da equipa de Margarida Oliveira. "Mas o cultivo nunca parou e com mão-de-obra escrava continuou a produzir-se, à revelia da lei. . . A produção aumentou muito a seguir à I Guerra, com a introdução de maquinaria. "A criação de regras para a preparação de terrenos destinados à orizicultura, em 1909, terá sido o tiro de partida. E é a partir daqui também que o arroz ganha um papel particularmente importante nos hábitos alimentares dos portugueses, sobretudo no Norte do país. "Como os portugueses têm uma gastronomia muito variada, aprenderam a comer arroz com tudo, como prato principal e como acompanhamento", avança Pedro Monteiro. "Fazem de mil e uma maneiras, como o bacalhau. . . Foi tão bem trabalhado que ficámos fãs do arroz. "É como o vinhoCampos de um lado, campos do outro, no meio estradas, às vezes canais que levam as águas do rio ou das barragens para as folhas. São traçados geométricos de cores alternadas. Mais verdes, mais castanhos, mais da cor do céu, é assim a lezíria ribatejana. O carro avança, arrozais a perder de vista. Mais uma vez não há trabalhadores, há garças, elegantes e brancas, há gaivotas, apesar de o mar estar longe daqui. A água chega das barragens de Montargil e Maranhão para regar a maior mancha de cultivo de arroz do país, diz António Madaleno. "São 12. 500 hectares. " Agricultor de camisa aos quadrados, sim, mas óculos escuros YSL e um Audi nas mãos. A estrada divide arrozais e leva-nos à fábrica da Orivárzea, perto de Salvaterra de Magos. António Madaleno, o seu presidente, também é empresário e explica por que deve ser mesmo assim: "Os agricultores portugueses ainda não perceberam que não basta mandar a semente à terra. Tem de haver dinâmica em termos comerciais. " A Orivárzea juntou 41 produtores, e dos seus 4500 hectares saem anualmente 30 mil toneladas: 80 por cento carolino, "porque somos teimosos", e o resto agulha. Batas, toucas, que o processo não se quer contaminado. Um enorme monte de arroz ainda com casca está encostado a uma parede, quase como uma instalação. A luz entra pelo tecto da fábrica e o arroz parece transformado em ouro. Mas o que está ali é precisamente aquele que não serve. Tiraram-se as impurezas, fez-se a calibração (o arroz é separado em função das suas dimensões) e este não passou na triagem. Ao lado, tratam-se toneladas de grão. Retira-se uma vez a casca, retira-se duas e três. O grão que entrou castanho sai agora branco transparente - o engessado, branco branco, pertence a outras qualidades, como o Arborio para o risotto, e desse não se faz aqui. Numa hora, são cinco toneladas de arroz que por aqui passam, cumprindo todo o seu percurso: chegaram dos campos e vão para as embalagens, que depois estarão à venda nos supermercados. "Vamos da semente à prateleira", exclama, juntando ao orgulho o facto de a empresa ser a única no país a fazê-lo. "Arroz não é arroz. " É António Madaleno quem o afirma. E com isto quer dizer que o arroz não é todo igual e é preciso aprender a distingui-lo. "É um produto com características próprias. Não fazemos misturas de variedades. O arroz é como o vinho, uma casta do Alentejo não é igual à do Douro. "Precisamente porque há distinções a fazer, a Orivárzea procura vários nichos: produz a semente do Ariete, em vez de a mandar vir de Itália. "É a que melhor se adapta ao clima e que se adequa à nossa gastronomia", justifica. Esta dá, assim, o arroz carolino de Indicação Geográfica Protegida, o equivalente à região demarcada dos vinhos - um campo onde não entra outro grão que não uma variedade muito específica, e portuguesa. "Estas sementes não vêm de Itália", como a maioria das que se semeiam em Portugal. E o arroz é vendido em saquinhos de meio quilo e encaminhado para mercearias chiques. Outra "jóia" da marca Bom Sucesso é o arroz perfumado - "somos os únicos a produzir arroz perfumado em Portugal" - da variedade Giano. Neste "caminho da diferenciação" como lhe chama Madaleno, também se produz arroz integral carolino, e um arroz especial para bebés, sem químicos e à venda nas farmácias numa embalagem que mais parece a de um xarope. "É este o caminho para salvar a agricultura portuguesa: grupos de agricultores para maximizar a economia, reduzir os custos, concentrar as vendas. " De resto, o arroz também já foi mais valorizado, queixa-se. "Um quilo de arroz custa o mesmo que um café. É degradante. "De olhos na panelaNão sabemos quanto João McDonald estaria disposto a pagar pelo seu vício. Mas sabemos que é mesmo uma coisa de que não abre mão. Nem o apelido (herdado de ascendentes escoceses) o empurra para os hambúrgueres com batata frita, é o próprio que graceja. Arroz é que é, e com tudo. Seria difícil saber quantos quilos este técnico de electrónica já comeu em 62 anos de vida e quantos já cozinhou. Mas será certamente um dos que engrossam largamente as estatísticas. "Sempre gostei muito. Tinha de fazer parte do dia-a-dia. Se pudesse ser às duas refeições, tanto melhor. " Pequeno-almoço é que não. Azeite no tacho e duas cebolas pequenas para um estrugido, que no Porto, onde vive, não se diz refogado. Não precisa de alho. Aprendeu tudo com a mãe. "Antigamente era muito lavado, passado por coador para tirar o pó. " Agora já não é preciso, mas nada de pressas. "O meu arroz tem de ser acompanhado, visualmente falando. "Não se medem os grãos com chávena, antes de os deitar no tacho com a cebola frita. Vai a olho, mas por agora é só um bocadinho. Já em miúdo era ele quem fazia para os amigos quando iam acampar, ou para os irmãos mais novos. A mulher queixa-se, "outra vez arroz!", mas a vida é mesmo assim. O bocadinho que pôs no tacho está a fritar e é agora novamente regado com azeite, tudo a mexer "para evitar que isto queime muito". O branco já foi translúcido, passou a branco outra vez e está agora acastanhado, "visualmente falando", lá está. "Deita-se o resto do arroz cá para dentro. " Mexe-se. Não procura receitas, é tudo uma questão de inventar, com poucos limites, a não ser um: incluir arroz. "A minha mulher diz que quando venho para a cozinha deixo tudo de pantanas. " Deita a água, mexe novamente. "Tenho de estar constantemente a observar se há água ou não, e enquanto não estiver cozido não se pára de deitar. Abafo um bocadinho [coloca a tampa] e conforme a água vai baixando ao nível do arroz vou juntando mais. " A água está a sumir-se do tacho para o bago - "agora poderia juntar bacon" - e está na hora de pôr o sal. Mexer. Abafar. A partir daqui pouco se toca no tacho. "Quando quero um arroz bem feito, tem de ser assim. " Estamos a falar com um especialista. Porque o come todos os dias, sabe bem o que diz. Nunca viveu na China, ri, mas isto vem de família. Na casa de tios e primos, como na dele, nunca faltava. A água vai-se sumindo novamente. Junta-se mais, quase com carícias da colher de pau. "Já está com um aspecto mais grosso. Tenho de provar para ver se não está cru. . . Já não sabe mal. "Só agora vai baixar o lume, para esperar que esteja no ponto. E quando esse momento chegar, acaba-se com o fogo e pega-se num jornal para embrulhar o tacho, depois num pano da cozinha para aconchegar, e será uma "sesta" de 20 minutos. Já lá vão uns bons 40, é fazer as contas. "Quantas vezes já aumentou ele de tamanho? Rende muito. " Não gosta de arroz agulha, gosta é de carolino. Aqui não tem os números do seu lado. Em Portugal, come-se mais agulha (48 por cento contra 41 do carolino), e está a aumentar o consumo de vaporizado (7 por cento) e basmati (dois por cento). João McDonald gosta de o cozinhar em parceria, ou a acompanhar quase qualquer coisa. "Arroz com bacalhau cozido é uma maravilha. Tudo regado com azeite. . . Massa não liga nada, já experimentei. Mas sou capaz de comer pizza com arroz, com peixe cozido, sardinhas assadas - vamos nisso, não há problema nenhum!"
REFERÊNCIAS:
Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005. (...)

Na vanguarda da democracia está o riso do cartoon
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.3
DATA: 2015-10-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, documentário de Stéphanie Valloato, faz mais do que o retrato de doze artistas espalhados pelo mundo. Problematiza, a partir de diferentes contextos políticos e históricos, o protagonismo inédito que o desenho humorístico tem vindo a ganhar desde 2005.
TEXTO: O título não deixa grandes dúvidas. Os Cartoonistas – Soldados de Infantaria da Democracia, que estreia nas salas, é um documentário que faz a defesa do desenho humorístico como uma expressão da liberdade de opinião e, por consequência, da democracia. As suas personagens sãs os cartoonistas, doze ao todo, e vêm dos EUA, França, Tunísia, Costa do Marfim, Argélia, Israel, Palestina, Rússia ou China. Um retrato global desenhado a partir de diferentes geografias, contextos culturais e históricos e que Plantu (Jean Plantureux), cartoonista do Le Monde inaugura com uma sucessão de frases: “Uma escuridão instala-se sobre o mundo e o desenho é uma boa forma de lhe escapar. A democracia é uma luta que se trava todos os dias. Nunca está ganha”. Ao telefone, de Paris, a realizadora Stéphanie Valloatto anui com um entusiasmo urgente, antes de revelar a génese do documentário. “Começou com a sugestão de um amigo, o Radu Mihaileanu. Falou-me da criação do Cartooning for Peace [associação internacional criada em 2006 por Plantu] e desafiou-me e pensar num documentário sobre o trabalho dos desenhadores humorísticos. Achei uma ideia muito bonita e avançámos”. A escolha dos autores e as filmagens não se realizariam sem obstáculos e dúvidas, apesar da ajuda preciosa da associação e de Plantu. “Demorámos a chegar aos artistas africanos, mas conseguirmos”, conta a realizadora. “Muito mais complicado foi encontrar um artista asiático. O primeiro cartoonista chinês em que pensámos não quis falar. Temia ser preso. Tivemos a sorte de encontrar o Pi San”. É por intermédio de Pi San, conhecido pelos seus desenhos animados controversos, que o artista plástico Ai Weiwei faz uma curta e inesperada aparição. Weiwei não é cartoonista, mas a repressão de que foi alvo (está proibido pelas autoridades de sair da China) não é estranha à venezuelana Rayma Suprani, ao russo Mikhail Zlatkovsky ou ao argelino Slim (Menouar Merabtene). Há nos gestos destes a apreensão das pessoas acossadas, uma resignação dolorosa, embora não deixam de falar, de mostrar os seus desenhos, de fitar a câmara. “Achei importante mostrar os seus rostos, as suas casas, os ateliês onde trabalham, a sua intimidade. Quis tirá-los das sombras, onde costumam ficar, mas eles também quiseram sair. Iluminei-os um pouco e curiosamente disseram-me que agora, sob a luz, se sentem mais protegidos”. Escrevia-se que os cartoonistas são as personagens do documentário. Acrescente-se outra. Invisível, “abstracta”, a democracia moderna vive nos desejos e na angústia dos retratados. “Sim, concordo. Quis mostrar o grau da democracia no mundo a partir dos cartoonistas, quis mostrar as dificuldades que eles enfrentam nas suas actividades. Por serem mulheres, como a Rayna ou Nadia [Khiari, criadora do gato irónico, Willis from Tunis], por causa da ascensão do fundamentalismo religioso ou da pressão dos políticos que o Plantu descreve. Creio que a actividade dos cartoonistas pode servir como barómetro da democracia, eles antecipam ameaças, assinalam sintomas”. Canários numa mina de carvãoPara Stéphanie Valloat, a metáfora bélica do título de documentário assenta bem aos cartoonistas. Estão na frente, antes dos jornalistas e outros formadores de opinião. São os primeiros a sofrer ataques e retaliações, como testemunham Slim e Baha Boukhari. O primeiro na Argélia, o segundo na Palestina, satirizaram, respectivamente o governo argelino pós-independência, e o líder do Hamas, Ismaïl Haniyeh. O desfecho? A economia dos seus desenhos foi inversamente proporcional à violência da reação do poder político: foram ameaçados e censurados. Porquê? O que torna os cartoonistas tão expostos à violência?“Nas sociedades modernas, eles acabaram por se transformar em expoentes das fronteiras da liberdade de expressão”, diz o historiador de arte dinamarquês Matthias Wivel. “São mais visíveis do que qualquer outro grupo, em parte porque a sua arte cristaliza, com uma eficácia invulgar, as questões associadas a esse tema. São como canários numa mina de carvão”. Especialista em arte do Renascimento, banda desenhada e desenho humorístico, Wivel faz no entanto uma ressalva importante. “Não acho que o cartoon seja uma arte da democracia moderna. É uma forma de sintetizar a escrita e o desenho, de tipificar a realidade. Pode ser usado com vários propósitos, inclusive anti-democráticos. Um dos exemplos mais infames desse uso esteve, por exemplo, nos cartoons anti-semitas do Der Stürmer [semanário oficial do regime nazi] ”. Mas não pode a vitalidade do cartoon andar a compasso do vigor da democracia? “Sim, admito que sim. A qualidade de uma democracia pode ser medida pela capacidade que tem em acomodar diferentes pontos de vista, incluindo os anti-democráticos”. No documentário, há um ponto de vista e pertence à sociedade dessa democracia. É ela que olha para aos cartoonistas, sem juízos prévios ou analogias forçadas. Pelas palavras e memórias dos intervenientes, o espectador sabe que se confronta com contextos e histórias distintas. “A democracia tem graus diferentes na China, na Venezuela e no Burkina-Faso. Quando falamos de democracia na da Rússia, não estamos a falar da democracia nos Estados Unidos ou em França. Cada cartoonista fala da sua sociedade, da sua cultura”, sublinha a realizadora. Essa consciência manifesta-se nas desilusões expressas por Nadia Khiria, que, depois da Revolução de Jasmim, na Tunísia, nunca imaginou usar tanto o vermelho nos seus desenhos ou na prudência corajosa de Pi Sang, que reconhece a existências de linhas que não devem ser ultrapassadas. Satirizar Vladimir Putin é, na Rússia, uma dessas linhas, como é na Venezuela caricaturar Nicolás Maduro. Quando ultrapassadas, as consequências são descritas no documentário: perseguição, proibição de desenhar, despedimentos sumários. Insultos e ameaças. A repressão é tão forte que as canetas e os lápis se tapam, nem que seja temporariamente, como conta Slim traumatizado com a violência da Guerra Civil da Argélia (1992-2002). Nas democracias ocidentais também existem limites, mas tendem a ser definidas pelas regras do próprio sistema democrático. “Nas leis que proíbem que se ridicularize o chefe de estado ou que proíbem a blasfémia, por exemplo, na Inglaterra, em relação à região anglicana, encontramos linhas vermelhas”, exemplifica João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política da Universidade do Minho. Já nos Estados Unidos, legislação semelhante dá lugar a pressões de caracter social, das comunidades, das associações”. “Os jornais americanos não publicaram as caricaturas de Maomé”, lembra. “E não o fizeram por causa da pressão social, porque existe um cuidado especial quando se trata de religiões. Não é propriamente uma linha vermelha legal, mas social e política. E isso existe em qualquer democracia. A democracia é feita de instuitições e de comunidades. Resta ao cartoonista adaptar-se aos contextos, caso contrário, corre o risco de não ser compreendido, de não encontrar o seu púbico. Não há liberdade absoluta, mesmo nas democracias”. Uma arte num mundo globalizadoNuma das cenas do documentário, o cartoonista americano Jeff Danziger revê um dos seus mais polémicos desenhos (Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA, é um dos visados) e deixa escapar que não o assinou. Medo de represálias, pressões? “Ele de facto sentiu-me incomodado com esse desenho [risos]”, revela Stéphanie Valloato. “Os Estados Unidos não são uma ditadura, mas também aí existem linhas vermelhas. Evita-se escrever sobre sexo, sobre os pobres e os ricos, sobre as minorias, sobre o poder financeiro”. Por vezes, a autocensura é um dos meios que os cartoonistas encontram de fazer à frente às pressões, de sobreviver. Retraem-se conscientes de que o estão a fazer. Ora, para Michel Kichka, cartoonista belga-israelita, descendente de sobreviventes do Holocausto, quem receia magoar os outros com o seu desenho deve procurar outra profissão. A sátira magoa e não é compatível com o politicamente correcto. “Essa é uma tendência que vai dominando na Europa e nos EUA”, acrescenta a realizadora. “A dada altura não podemos falar, não podemos ter uma opinião. Temos todos que pensar com a mesma cabeça. De tanto se defender a diferença, ataca-se a diferença de opinião. Simplesmente, não podemos dizer aquilo que pensamos. ”A outra ameaça que no filme paira sobre muitos dos cartoonistas é a do fundamentalismo religioso islâmico. Em segundo ou em primeiro plano, dito ou não dito, faz sentir a sua presença nos depoimentos dos entrevistados ou em imagens de arquivo. “É por causa das caricaturas de Maomé publicadas em 2005 num jornal dinamarquês que andamos a falar tanto de cartoonistas. Tudo começou aí”, afirma João Cardoso Rosas. “Há um contexto específico muito importante, que é o regresso da questão religiosa à Europa e a oposição entre a liberdade de expressão e uma ortodoxia religiosa. E os cartoonistas, com a sátira e a blasfémia estão no centro dessa oposição. Através do seu trabalho entram em conflito com uma sensibilidade religiosa que é a dos muçulmanos”. Stéphanie Valloato estava ciente da tensão criada por tal oposição, mas não anteviu a tragédia do dia 7 de Janeiro. “No que respeito ao massacre do Charlie Hebdo, há claramente um antes e depois. Sabíamos que os cartoonistas eram perseguidos e assassinados noutros países, mas não imaginámos que isso pudesse acontecer em Paris, no século XXI. Isso não imaginávamos, confesso” Para Matthias Wivel acresce outro factor que vem ampliar a ressonância desse conflito. É, aliás, o mesmo que permitiu o nascimento do documentário. “Vivemos num mundo globalizado em que a informação e a desinformação são transmitidas instantaneamente pelo mundo inteiro para serem interpretadas em contextos muito diversos. Isto criou uma nova situação para os cartoons satíricos que historicamente sempre foram muito dependentes de contextos locais. Veja o Charlie-Hebdo ou Jylands-Posten [o jornal dinamarquês que publicou as caricaturas de Maomé]. Não pensaram, creio eu, que os seus desenhos viessem a provocar este impacto. Os cartoonistas tornaram-se símbolos de algo que não previram e que está relacionado com a circulação rápida e livre da informação”. Sem menosprezar os efeitos da globalização, vale a pena constatar a adaptação do desenho, satírico enquanto arte e técnica, ao mundo criado pelas tecnologias de informação. A actividade de Nadia Khiaria é nesse aspecto exemplar. Foi nas redes socias que esta artista criou e divulgou Willis From Tunis, série de cartoons que acompanharam, na forma de comentários irónicos, os avanços e recuos da Revolução de Jasmin. “O desenho humorístico é muito claro, tem pouco texto. Adapta-se a todos suportes, sejam digitais ou analógicos”, diz Wivel. “Parafraseando Art Spiegelman [o autor de Maus] por vezes é mais difícil não conseguir ler um cartoon, do que lê-lo”. E ler um cartoon pode ter um efeito terapêutico, como lembram (quase) todos os retratados. Rir pode ser, no filme, um antídoto contra o absurdo, a violência, a guerra, a estupidez. Protege-nos do poder e da vaidade. É na sua expressão que os cartoons prosperam. O que poderiam fazer diante do muro da Cisjordânia, da prepotência de Putin ou de Maduro, da ambição de Zarkozy, do fanatismo religioso, senão fazer rir? “Sem o humor, o mundo tornar-se-ia insuportável. Um sítio inabitável”, conclui Stéphanie Valloato.
REFERÊNCIAS:
Violentos, os neandertais? Não mais do que nós
Para verificar se a imagem de humanos violentos que se lhes colou à pele correspondia à realidade, os neandertais foram submetidos a uma análise aos crânios. Passaram no teste da comparação com a nossa espécie naqueles tempos paleolíticos. (...)

Violentos, os neandertais? Não mais do que nós
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.52
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Para verificar se a imagem de humanos violentos que se lhes colou à pele correspondia à realidade, os neandertais foram submetidos a uma análise aos crânios. Passaram no teste da comparação com a nossa espécie naqueles tempos paleolíticos.
TEXTO: É mais uma machadada (salvo seja) num estereótipo que dura há mais de 160 anos, desde que os primeiros ossos de um neandertal foram descobertos no vale (Tal, em alemão) de Neander, perto de Düsseldorf, Alemanha. Depois de terem sido apresentados tantas vezes como criaturas rudes, os neandertais têm vindo aos poucos a ter o seu retrato traçado mais ao encontro de como terá sido na realidade este grupo de humanos. E é neste sentido que surge uma análise de comparação de lesões no crânio em neandertais e humanos modernos (a nossa espécie) seus contemporâneos. Afinal, tanto eles e como nós tínhamos nessa altura, entre há 80 mil e 20 mil anos, o período dos fósseis analisados, níveis semelhantes de ferimentos. O que contradiz a hipótese de que os neandertais tinham um estilo de vida mais violento do que os humanos modernos, uma ideia que seria evidenciada por taxas elevadas de traumatismos ósseos. Os neandertais surgiram como um grupo de humanos há cerca de 400 mil anos na Europa e sempre viveram no continente euroasiático. Há cerca de 28 mil anos desapareceram para sempre como grupo humano, não sem antes – sabe-se agora graças ao avanço das técnicas de sequenciação genética, depois de um intenso debate científico centenário – se terem cruzado reprodutivamente com a nossa própria espécie, deixando-nos um bocadinho do seu ADN como herança genética. À Europa, a nossa espécie, saída de África, chegou há cerca de 45 mil anos. Um dos últimos locais onde os neandertais viveram foi na Península Ibérica. O seu desaparecimento continua a ser um mistério. “Viveu em grutas, cobria o corpo com peles, tinha verdadeiras estratégias de caça, inclusivamente de animais de grande porte, alimentando-se quase exclusivamente de carne, aceitava indivíduos menos capazes fisicamente no seio dos seus grupos, trabalhava a pedra de um modo eficiente e pensava na morte”, escreveu sobre o Homem de Neandertal Eugénia Cunha, antropóloga forense e especialista em evolução humana da Universidade de Coimbra, no livro de divulgação científica Como nos Tornámos Humanos, de 2010. A extinção destes seres “inegavelmente inteligentes”, estará relacionada com a nossa chegada ao Próximo Oriente e à Europa, nota Eugénia Cunha, mas o que aconteceu ao certo não está esclarecido. Para lá deste debate sobre as razões da sua extinção, a forma como os neandertais foram tantas vezes retratados nem sempre lhes foi muito lisonjeira. Eram vistos como rudes e violentos. Mas, entretanto, também já foram representados no extremo oposto – dizendo-se que, se usassem um fato, uma gravata e um chapéu, passariam despercebidos no metro de Nova Iorque. Muitas das investigações que têm surgido indicam que eram humanos sofisticados e parecidos connosco em muitos aspectos. Ninguém nega, no entanto, que há diferenças anatómicas entre os neandertais e a nossa espécie – eles com uma estatura mais atarracada e robusta, adaptada ao frio daqueles tempos, e nós mais esguios. Os neandertais, por exemplo, não tinham queixo, a testa era baixa e o seu cérebro mais volumoso do que o nosso. A ideia da sua rudeza e violência não surgiu do nada: baseou-se numa taxa invulgarmente elevada de ferimentos traumáticos descritos em fósseis de neandertais, explica um comunicado da Universidade de Tübingen (Alemanha), que conduziu agora o novo estudo, publicado esta quinta-feira na revista Nature. E a zona da cabeça e do pescoço, pensava-se, seria particularmente atingida. Por diversas razões: os neandertais teriam um comportamento social violento, os acidentes seriam comuns, uma vez que eram caçadores-recolectores em condições ambientais duras (a Europa estava então sob um manto de neve e gelo), seriam atacados por animais carnívoros como o urso-das-cavernas e, para caçarem, tinham de se aproximar muito das presas para as apunhalar e atirar lanças. “Desta forma, as taxas elevadas de ferimentos nos neandertais têm sido usadas para inferir não só que tinham estilos de vida perigosos como um comportamento violento e técnicas de caça inferiores”, refere o comunicado. “Estas interpretações têm implicações importantes para a reconstituição da paleobiologia e comportamento dos neandertais e moldaram a percepção prevalecente sobre a espécie. No entanto, baseiam-se largamente em provas empíricas, uma vez que os traumatismos entre os humanos do Paleolítico são frequentemente relatados em descrições caso a caso”, acrescentam os cientistas no artigo científico. A equipa de Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, foi então verificar se o estilo de vida e os comportamentos dos neandertais seriam realmente tão violentos como os descreviam. Em vez de se limitarem a analisar os traumatismos em esqueletos a nível individual, os cientistas avançaram para uma análise quantitativa a nível populacional, comparando os traumatismos cranianos entre neandertais e humanos modernos do Paleolítico Superior. Para tal, utilizaram informações sobre centenas de ossos dos dois tipos de humanos, com e sem marcas de ferimentos, publicadas na maior base de dados disponível sobre fósseis. As informações sobre 836 ossos, datados com 80 mil a 20 mil anos, são relativas a crânios de 114 neandertais e de 90 humanos modernos descobertos pela Eurásia – desde Gibraltar até ao Quirguistão, passando por Israel, Itália, França ou Espanha. De Portugal está lá informação relativa a um fragmento de um humano moderno encontrado na Gruta do Caldeirão, na zona de Tomar. Usando vários modelos estatísticos, a equipa teve em conta o sexo, a idade desse indivíduo na altura da morte, a localização geográfica onde o osso foi encontrado e o estado de conservação. “Tanto quanto é do nosso conhecimento, esta é a maior investigação a nível populacional dos traumatismos cranianos nos neandertais até agora e que usa uma amostra de comparação de humanos modernos do Paleolítico Superior como contextualização”, frisa a equipa no artigo científico. “Os nossos resultados refutam a hipótese de que os Neandertais tinham mais tendência para ferimentos na cabeça do que os humanos modernos, contrariando a percepção comum. Acreditamos por isso que os comportamentos comummente mencionados dos neandertais como estando na origem de níveis elevados de ferimentos, como comportamentos violentos e capacidades inferiores de caça, têm de ser reconsiderados”, sublinha por sua vez no comunicado Katerina Harvati. Além de níveis de ferimentos semelhantes, os cientistas constataram que os esqueletos atribuídos ao sexo masculino apresentavam mais ferimentos do que os do sexo feminino tanto entre neandertais como entre humanos modernos, um padrão observado igualmente em grupos humanos mais recentes. Como hipótese para esta constatação, a equipa aponta a divisão do trabalho entre homens e mulheres, bem como outros comportamentos e actividades relacionados com o sexo dos indivíduos. Mas, numa análise mais fina, também se encontraram diferenças. “Enquanto os neandertais e os humanos modernos do Paleolítico Superior exibiam uma prevalência global de traumatismos, descobrimos que existia uma diferença relacionada com a idade em cada uma das espécies”, explica por sua vez Judith Beier, igualmente da Universidade de Tübingen e a primeira autora do artigo científico na Nature. Também como hipótese para estas observações, a equipa adianta que os neandertais poderiam ter mais probabilidade de se ferirem quando eram novos ou de morrer depois de um ferimento do que os humanos modernos. “Este padrão relacionado com a idade é um novo resultado. Globalmente, no entanto, os nossos resultados sugerem que os estilos de vida dos neandertais não eram mais perigosos do que os dos nossos antepassados, os primeiros humanos modernos europeus”, assinala Katerina Harvati. Num comentário na revista Nature que acompanha o trabalho, Marta Mirazón Lahr considera que “o poder” desta análise reside precisamente na forma como o estudo foi concebido. “Em vez de se compararem dados de neandertais com dados mais recentes ou de populações humanas actuais, como fizeram estudos anteriores, os autores basearam as suas comparações em humanos que não só partilharam o seu ambiente com os neandertais como havia semelhanças no nível de preservação dos fósseis”, assinala aquela paleoantropóloga da Universidade de Cambridge, Reino Unido. “O estudo de Beier e dos colegas não invalida as estimativas anteriores de traumatismos entre os neandertais. Em vez disso, fornece um novo enquadramento para interpretar esses dados mostrando que o nível de traumatismos nos neandertais não era excepcionalmente elevado em relação aos primeiros humanos modernos na Eurásia”, acrescenta ainda Marta Mirazón Lahr, que dá ainda destaque às diferenças entre estes dois grupos humanos. “A descoberta de que os neandertais podem ter sofrido mais traumatismos quando eram novos do que os humanos [modernos], ou que tinham um risco maior de morte depois de um ferimento, é fascinante e pode ser uma revelação-chave sobre a razão por que é que a nossa espécie teve uma vantagem demográfica sobre os neandertais. ”Mas se este trabalho vem refutar a má fama dos neandertais, Marta Mirazón Lahr considera que ainda não é a palavra final quanto aos seus traumatismos, uma vez que só foram analisadas as lesões no crânio. “E se os neandertais acumulavam mais ferimentos no corpo do que os humanos [modernos]? Há dados que sugerem que pode ter sido esse o caso. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Independentemente do que futuros estudos venham a concluir sobre as perguntas ainda em aberto, é longo o caminho que os neandertais já fizeram até aqui para que mudássemos a percepção sobre eles. Terminamos com alguns exemplos. Se os imaginamos de cabelo e pele escuros, desenganemo-nos. Também os havia ruivos e de pele clara, como muita gente da nossa espécie oriunda do Norte da Europa, segundo revelou uma investigação, em fósseis de neandertais, de um gene responsável pela variação da cor da pele e do cabelo nos humanos (o gene MC1R, envolvido na produção de melanina). Num outro gene relacionado com a linguagem, o FOXP2, apresentavam já uma mutação, idêntica à dos humanos modernos, que lhes conferia a possibilidade de falarem. E há indícios de que enterravam os seus mortos, tal como nós, uma manifestação de pensamento simbólico. Nos últimos tempos, têm-se acumulado provas de que os neandertais manifestavam um pensamento abstracto e simbólico idêntico ao da humanidade actual – por exemplo, usavam objectos de adorno pessoal, que não tinham função prática mas sim simbólica. E, segundo uma investigação recente de pinturas rupestres em grutas espanholas, terão sido os primeiros a pintar grutas há 65 mil anos, quando a nossa espécie ainda não tinha chegado à Europa. De brutamontes a artistas, e não mais violentos do que nós nesses tempos, assim se traça um retrato mais realista dos neandertais.
REFERÊNCIAS:
Atrás dos burros selvagens da China
Partiram de Portugal para viajar quase cinco mil quilómetros, pelo coração da lendária Rota da Seda, em versão genética. Tinham em mira burros, marmotas e aves. Primeira de duas partes de uma expedição científica. (...)

Atrás dos burros selvagens da China
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento -0.15
DATA: 2010-06-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Partiram de Portugal para viajar quase cinco mil quilómetros, pelo coração da lendária Rota da Seda, em versão genética. Tinham em mira burros, marmotas e aves. Primeira de duas partes de uma expedição científica.
TEXTO: Pela mira telescópica, seis burros, alinhados lado a lado, cabeças levantadas, orelhas espetadas, olham na direcção de quem os olha ao longe. “Eia, que espectáculo! Todos a olhar para cá”, diz Albano Beja Pereira. “Oh, sim”, concorda Chen Shanyuan, quando chega a sua vez de espreitar pela mira, em cima de um tripé assente na areia. “Posso ver?”, atira Nuno Monteiro. Surgem umas orelhas com pontas pretas, crinas negras, cabeças e dorsos cremes, patas e ventres de um branco sujo, entre uma paisagem dominada pela areia pintalgada por vegetação rasteira, verde-escura. O burro selvagem da Mongólia, o Equus hemionus hemionus, esquivo à presença humana, tem o estatuto de espécie ameaçada. Parente afastado dos burros domésticos, encontra-se em bolsas fragmentadas no Irão, Índia, Turquemenistão, Mongólia e Norte de Xinjiang, a região mais a ocidente da China. E depois de Beja Pereira, Chen Shanyuan e Nuno Monteiro, também Ablimit Abdukadir se baixa para os contemplar pelo pequeno monóculo no tripé. Continuam todos virados para cá, mas os quatro cientistas que os espiam conseguem manter-se incógnitos, a um quilómetro de distância, quais David Attenborough em plena expedição atrás dos burros selvagens da Ásia. “Temos o vento contra nós, estamos na melhor situação possível”, diz Beja Pereira, 37 anos, zootécnico do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto, enquanto deixa para trás, junto aos dois jipes por que se reparte a expedição, os outros cientistas e toma a dianteira para se ir aproximando dos burros. Vai a pé, meio agachado, com a mochila às costas. Avança pelas franjas do deserto de Gurbantünggüt, no Norte de Xinjiang. É uma planura arenosa, mil metros acima do nível do mar, coberta aqui e ali por uma crosta de sal que estala mal se pisa. Nem um arbusto alto que faça de esconderijo e dê alguma sombra. Nem uma pinga de água, que ficou esquecida no jipe, para acalmar os efeitos dos 35 graus pelas três da tarde. Nem a sensação de isolamento associada ao deserto. Avista-se uma estrada alcatroada, a mesma utilizada minutos antes pelos jipes da equipa, que continua a ser cruzada por um constante ir e vir de camiões (tem restaurantes na berma, num deles haveria mais tarde de se pedir uma sopa de cogumelos e tofu, mais a mosca que vinha a boiar). E há um cercado, com um portão fechado a cadeado, que um guia local abre para a equipa. Os burros não correm em total liberdade pela planície do Gurbantünggüt, o segundo maior deserto da China, a seguir ao Taklamakan, no Sul de Xinjiang. O cercado, na Reserva Natural de Ungulados Selvagens de Karamaile, com 158 mil hectares, impede-os de ir para a estrada. No seu encalço, logo depois de Beja Pereira, segue Nuno Monteiro, 36 anos, biólogo do Cibio e docente de Parasitologia na Universidade O investigador Beja Pereira recolhe excrementos para análise do ADN Fernando Pessoa, no Porto. E o chinês Chen Shanyuan (ou Jay, a alcunha inglesa que adoptou para os ocidentais), de 30 anos, a viver em Portugal há algum tempo como estudante de pós-graduação de Beja Pereira. Ainda na dianteira, olhos postos no chão, o zootécnico cedo se depara com um objecto, o primeiro de todos, muito desejado pela expedição. “Tens aí luvas?”, pergunta-lhe, cá de trás, Nuno Monteiro. “Tenho”, diz Beja Pereira. O que eles viajaram até este momento chegar. Para sul, 1500 quilómetros Chegaram dez dias antes, a Ürümqi (lê-se algo como “Urumquexi”), a capital de Xinjiang, região onde a etnia uigur (muçulmana, de origem turca e minoritária na China) vive há mais de quatro mil anos e ainda é dominante entre os 20 milhões de habitantes. Esperava-os Ablimit Abdukadir, investigador do Instituto de Ecologia e Geografia de Xinjiang, membro do grupo de especialistas em felinos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). É este uigur, 56 anos, que é o anfitrião de Beja Pereira, Nuno Monteiro e Chen Shanyuan – este da etnia han, que forma 91 por cento da população da China. Rota da Seda 2010 é o nome da expedição. A capital fica apenas 400 quilómetros a sul da reserva natural de Karamaile. Mas, agora, os seus três milhões de pessoas, estradas largas, filas e mais filas de carros, arranha-céus no centro, triciclos, bicicletas, motorizadas eléctricas, bancas de fruta, de vegetais ou de comida na rua, lojas com cartazes gigantes em mandarim e uigur, um bazar internacional, mulheres com lenços na cabeça, enfim, a azáfama de uma qualquer grande cidade, a que não falta um restaurante da Kentucky Fried Chicken, parecem um mundo distante. É que, até ao encontro com os burros selvagens da Mongólia, muitos foram os quilómetros de estrada, muitas as montanhas atravessadas, as horas no deserto, as sestas a que foi impossível resistir em longas rectas, as paragens em casas de banho improvisadas, muitos os solavancos. Mais distantes ainda parecem os acontecimentos violentos que rebentaram a 5 de Julho do ano passado: durante alguns dias, as ruas de Ürümqi foram palco de confrontos entre uigures e chineses han, que resultaram oficialmente em 197 mortos e mais de mil feridos, no envio de milhares de soldados para manter a ordem e no corte dos telefones, Internet e e-mail, só há pouco tempo restabelecidos (em 1949, Xinjiang passou a ser controlada pela recém-proclamada República Popular da China, mas mantiveram-se os movimentos independentistas e de resistência uigur). Logo à chegada, a expedição começou por arrancar em sentido oposto, para o Sul, portanto, rumo à Reserva Natural das Montanhas Arjin, a 1500 quilómetros de Ürümqi. Objectivo: ver outro burro selvagem da Ásia, o do Tibete, ou Equus kiang. Se o virmos nas fotografias, o burro selvagem do Tibete tem a cabeça e o dorso mais castanhos e peludos do que o burro da Mongólia. É o maior dos burros selvagens da Ásia, e há um mistério em relação a ele. Existem três subespécies, uma delas nas Montanhas Arjin? Ou há apenas uma espécie, com variações ecológicas? “Ninguém sabe, é um quebra-cabeças”, diz Beja Pereira. O facto de a Reserva Natural das Montanhas Arjin ser bastante fechada, em particular à entrada de estrangeiros, tem perpetuado este mistério. É para lá que a equipa se dirige primeiro. Ürümqi-Korla, primeiro dia de viagem, com a passagem por um parque de geradores eólicos, quase sem fim, ainda às portas da capital e pela imensa cordilheira Tianshan, despida de árvores, em tons de castanho, creme e amarelo. Parece talhada à faca. Eis que, no meio de nada, ao fim de 550 quilómetros, surgem os arranha-céus de Korla, uma das cidades da célebre Rota da Seda, que durante séculos ligou a Ásia ao Mediterrâneo. Korla-Qarqan, segundo dia, mais de 700 quilómetros, com travessia pela orla leste do deserto do Taklamakan em plena tempestade de areia. A realidade pelo vidro do jipe apresenta-se esbranquiçada e limitada a poucos metros, como se um nevoeiro se tivesse abatido na auto-estrada, e os grãos finíssimos entranham-se pelo nariz. Durante séculos, a Rota da Seda contornava o Taklamakan, a norte e a sul, convergindo na cidade-oásis de Kashgar. Então o deserto engolia quem se atrevesse a desafiá-lo, agora as suas reservas importantes de petróleo originaram a construção de auto-estradas que o cruzam sem temor. Nem um vislumbre dos camelos selvagens de duas bossas, cada vez mais raros, criticamente ameaçados, que ainda vivem no Taklamakan, antepassados dos camelos domésticos com o mesmo número de bossas, e que a Sociedade Zoológica de Londres inclui entre os dez mamíferos mais raros do planeta (existirão menos de mil na China e na Mongólia). E o terceiro dia, passado em Qarqan, cidade plana, 800 metros acima do nível do mar, outra importante passagem ao longo da Rota da Seda, foi para tratar da logística para a subida a quase quatro mil metros de altitude. Compraram-se agasalhos numa loja de material militar: casacos compridos verdes, gorros, luvas. Entre brincadeiras, Beja Pereira e Nuno Monteiro improvisaram poses militares, esticando os ombros e pescoços com ar imponente, que um capacete na loja atulhada ajudou a compor. Arranjam-se sacos de oxigénio, caso alguém se sinta mal nas alturas das Montanhas Arjin. Há passeios pelo bazar, com as suas bancas de vegetais, sacos de arroz, carne pendurada ao ar livre, restos de uma vaca no chão, pães nan tendidos com a forma de pizzas e colados nas paredes do forno que os coze ali mesmo, ou roupas, tudo a três passos de uma das poucas mesquitas que se encontraram pelo caminho. Sorriem-nos, querem saber de onde vêm os estranhos. As mulheres, pintadas, de saltos altos, exibem os seus lenços garridos, a maior parte mantendo a cara destapada. Os homens optam quase sempre por cobrir a cabeça, ou com bonés ou chapéus de feltro ou os tradicionais chapéus muçulmanos bordados. Há tempo para provar kebabs (espetadas de borrego) e o pollo (prato de arroz com pedaços de cenoura e um naco de borrego em cima), acompanhados pelo chá omnipresente a cada refeição. O guardião da reservaQarqan-Montanhas Arjin, quarto dia de viagem, com um novo guia nesta etapa da expedição, o uigur Tursunjan Yakub, guarda-florestal do Departamento de Florestas de Qarqan. Sem se dar por isso, a altitude vai aumentando – até que a planície de areia e pedras, cortada por uma estrada em tal estado que tudo tremelica, começa a ceder lugar à montanha. Um rio teima em ser presença constante, atravessado vezes sem conta nas curvas e contracurvas montanha acima; a três mil metros é altura de uma paragem. De um lado, tem-se a visão panorâmica das encostas Arjin acabadas de subir, rocha e terra apenas, feridas pela erosão, e do pastor com quem nos cruzámos e que aí vem, montado no seu burro doméstico, um ponto minúsculo visto daqui. Olhando para o caminho a seguir, erguem-se ao fundo os picos com neve da Montanha de Kunlun, parte do sistema montanhoso dos Himalaias, na fronteira entre Xinjiang e o Tibete. Segue-se um planalto. Casas de pastores, rebanhos de ovelhas, cavalos e camelos domésticos dispersam-se aqui e ali. Por fim, a chegada a uma estação de gestão da vida selvagem. Passaram seis horas desde a partida de Qarqan, viajaram-se apenas uns 200 quilómetros. A estação fica num terreiro ventoso e frio, a cerca de 3600 metros de altitude. Há casas de tijolo, há um entreposto comercial, há gente ora sentada à porta, ora de um lado para o outro, ora a carregar mercadorias. “Nesta montanha, e à volta, vivem 500 pastores. São nómadas”, explica Ablimit Abdukadir. “Se precisam de sal, cigarros, combustíveis, fazem as compras aqui. ” No entreposto, há uma sala com dois telefones fixos muito requisitados, sofás velhos, caixas de soro injectável, que dá para uma sala de estar, cheia de gente a entrar e sair, com tapetes nas paredes, um televisor e um reconfortante fogão a carvão. O casal uigur que gere o entreposto recebe os visitantes com pães nan e chá, e logo a expedição volta à estrada, com a intenção de acampar mais acima. É apenas preciso transpor uma cancela, uns metros à frente, que aguarda quem quer entrar na reserva natural. Numa tenda ao lado, um jovem chinês han, o guardião da reserva, quer ver, na autorização escrita dos trabalhos científicos da equipa para a região de Xinjiang, a referência específica às Montanhas Arjin. Como se as Arjin não fossem em Xinjiang. Ou, então, os estrangeiros teriam de pagar quatro mil euros. Não consta tal referência na autorização, e nem Ablimit Abdukadir nem Chen Shanyuan conseguem demover o guardião da reserva. Numa última tentativa, de volta ao entreposto, um telefonema para um dos responsáveis da área protegida também não surte efeito. O mistério dos burros selvagens nas Arjin, onde os cientistas estrangeiros não entram desde os anos 80, até porque a espécie está associada ao vizinho Tibete, uma zona politicamente conturbada, vai portanto manter-se para já. Foram 1500 quilómetros desde Ürümqi, iria iniciar-se o caminho de volta, ao cair da tarde. O saco-cama, que preenche um quarto da mala de viagem, afinal não serviu para nada. Era melhor nem pensar nos abanões no jipe até Qarqan, onde se chegaria à uma da manhã. Nem nos quilómetros até à capital (com um desvio de uns dias para procurar uma certa marmota e a ave que com ela partilha a toca, no planalto de pradarias de Bayanbulak, que ficam para a segunda parte do relato desta expedição). Atravessa-se de novo o Taklamakan, mas pelo centro, e a cordilheira Tianshan. De Ürümqi, a viagem continua para o Norte – em busca dos burros da Mongólia, e a visão, à segunda saída da capital, é a de uma sucessão de centrais térmicas e de refinarias de petróleo e gás natural, recursos em que Xinjiang é rica. “Estou desiludido”, deixa escapar Ablimit Abdukadir. “Em ciência há sempre um risco”, responde-lhe Beja Pereira. ADN a quanto obrigas Voltemos então ao momento em que Beja Pereira e os companheiros andam atrás dos burros da Mongólia – os primeiros que finalmente vêem – e estão prestes a obter o que tanto ambicionam. Excrementos. Caminhando pelo deserto, os animais juntam-se, começam a afastar-se e desaparecem. “Não dá para nos aproximarmos com tanta gente. ” Pelo terreno, Beja Pereira esborracha este e aquele dejecto com o pé, avaliando a sua frescura: “O que é que mais estraga o ADN? Os ultravioletas”, explica. “Nuno, aqui está fresco”, avisa. Através do ADN nos excrementos, Beja Pereira quer inferir o tamanho efectivo das populações de burros selvagens asiáticos – ou seja, o número de genomas únicos que se transmitem à descendência. Dois burros gémeos, por exemplo, contam como um só. Sem ter de os contar, e por meio de um método não invasivo, quer avaliar a consanguinidade dos animais e ver se todos têm igual oportunidade de se reproduzir. Quanto mais elevada for a consanguinidade, menor é a taxa de fertilidade e a viabilidade de uma população e, no final, da própria espécie. Uma auto-estrada que fragmente uma manada, deixando poucos machos de um dos lados, por exemplo, aumenta a endogamia: “Do ponto de vista do ADN, conseguimos ver se há um grupo à parte. ” Beja Pereira, que é membro do grupo de especialistas em equídeos da IUCN, tem estado a fazer este tipo de estudos para os burros selvagens africanos, criticamente ameaçados, mas faltava-lhe um termo de comparação com espécies próximas. Aliás, os burros selvagens de África (Equus africanus) valeram-lhe uma descoberta, com direito a um artigo na revista Science em 2004: anunciou que foram estes burros, e não as espécies asiáticas, a ser domesticados, há cinco ou seis mil anos. Foi o que revelaram as análises de ADN de burros selvagens africanos e de burros domésticos de 52 países, da Europa, África e Ásia. Os antepassados de todos os burros domésticos são assim os burros selvagens de África, mais concretamente duas subespécies (o burro da Núbia, região no vale do Nilo, partilhada entre o Egipto e o Sudão, e o burro da Somália). De fora da domesticação ficaram os burros selvagens da Ásia, de que a espécie da Mongólia e a do Tibete são exemplos. Nuno Monteiro quer saber quais são os parasitas e as bactérias presentes em espécies de zonas remotas como Xinjiang. “Apesar de ter havido uma ‘febre’ de explorar nichos novos, à procura de resistências a antibióticos e a antiparasitários em zonas mais remotas, ainda não se sabe muito sobre espécies emblemáticas como os burros e camelos”, explica Nuno Monteiro. “Era aqui que eles estavam”, aponta Beja Pereira para o terreno espezinhado. “Este é mesmo, mesmo fresco. ” Como bolinhos, os cientistas embrulham as amostras em papel de alumínio ou guardam-nas em tubinhos, que transportam nos bolsos e mãos enquanto cirandam por ali. Mas eles querem mais excrementos e no dia seguinte, o 11. º da expedição, vão procurar outros burros, mais a norte na Karamaile. Seguindo as indicações de outro responsável da reserva, deixam a concorrida estrada alcatrão e metem-se por caminhos de terra. Com tantos furos de petróleo pela planície e minas de carvão mineral a céu aberto, andarão os burros por aqui? Perde-se a vista neste mar de verde rasteiro e castanho, aos tombos nos jipes. Olha-se, pára-se, Beja Pereira esquadrinha a paisagem com os binóculos. Nada, apenas os vestígios que deixaram, pegadas e cocós, em redor de um charco. O silêncio é absoluto, entrecortado por uma ave distante e um telemóvel que toca. “Oláaa. Ah pois éee, hoje é o Dia da Criança”, ouve-se Beja Pereira. Quatro horas atrás dos burros, a tarde toda, mas nem vê-los. Para a manhã seguinte fica a derradeira tentativa, mais perto do local onde se viram os primeiros burros. Os contactos locais de Ablimit Abdukadir dizem que andava por ali uma manada. Será que é desta? Pelo fresco da manhã, ainda da estrada de alcatrão, vislumbra-se um burro solitário, um macho, ao fim de mais de 4500 quilómetros por Xinjiang (região que representa um sexto do território da China) e de tantas massas chinesas picantes às refeições, pequeno-almoço incluído. Um prenúncio de sucesso? “Pode estar doente, ser velho ou recém-chegado à manada”, explica Beja Pereira. Menos de meia hora de balanços pelo terreno irregular e os jipes param perto de um montículo de terra, de onde a paisagem repetitiva é perscrutada. Beja Pereira monta o tripé com a mira telescópica, Nuno Monteiro saca dos binóculos. “Estou vendo!”, diz Beja Pereira. “Um, dois, três, quatro. . . vejo cinco. ” Põe-se a caminho, em passo apressado. Os pés enfiam-se na terra. Os outros ficam no monte para lhe irem apontando a direcção dos burros, a dois quilómetros de distância, que se confundem com o terreno. “É realmente fresco”, diz dos excrementos que encontra, enquanto calça as luvas. Os burros, e afinal são muitos mais, entram por fim no campo de visão. “Estão a comer. ” Curvado, vai até outro montículo com arbustos, uns metros à frente, de onde observa e filma. “São 37. ” O resto da equipa aproxima-se a pé. “Shhhh. ” Agachados à vez, vão atrás de Beja Pereira, de monte em monte de terra. “Não nos podemos mexer agora, estão todos a olhar para cá. ” É realmente um bom dia, resume Chen Shanyuan. “Quantos machos adultos há?”, sussurra Beja Pereira para Ablimit Abdukadir. “Talvez oito. ” Quando os burros se apercebem, a cerca de 200 metros, afastam-se e mantêm sempre uma distância de segurança. Agora que foram vistos, os cientistas saem de trás dos montes de terra. Já podem vasculhar o chão à vontade. “Onde virem moscas. . . ” Segunda parte da expedição: uma história de amizade entre uma marmota e a ave que partilha com ela a toca, a 8 de JulhoO P2 viajou a convite do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do PortoNo Ano Internacional da Biodiversidade, vamos publicar quinzenalmente, e até Novembro, reportagens sobre os trabalhos que investigadores portugueses desenvolvem em Portugal e no estrangeiro na conservação da Natureza. Os conteúdos são da inteira responsabilidade do P2. A série Biodiversidade é patrocinada pelo BES.
REFERÊNCIAS:
Onde vamos em 2019? O novo ano tem o mundo à espera
É um ano de efemérides e muita história – alguma recuperada, outra recordada. Vamos à boleia dela aqui ao lado e ao outro lado do globo, a cidades medievais e futuristas, ao campo e à praia. Pela estrada fora, não importa que estradas sejam. (...)

Onde vamos em 2019? O novo ano tem o mundo à espera
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.136
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: É um ano de efemérides e muita história – alguma recuperada, outra recordada. Vamos à boleia dela aqui ao lado e ao outro lado do globo, a cidades medievais e futuristas, ao campo e à praia. Pela estrada fora, não importa que estradas sejam.
TEXTO: Há muitos países nos Estados Unidos da América e muitas mais razões para os visitar: Norte, Sul, Este, Oeste e todos os meios pelo meio. E em 2019 os EUA vão ficar ainda mais próximos de Portugal, cortesia das novas rotas da TAP. A Nova Iorque (Newark), Boston e Miami vão juntar-se três novos destinos – Washington, Chicago e São Francisco, a capital do país, a maior cidade do grande “centro” e a emblemática cidade da liberdade (e tolerância) social. Costa leste, midwest e costa oeste vão ficar à distância de um voo e, com isso, os EUA vão “encolhendo” para os viajantes portugueses, que terão mais oportunidades para explorar as diversas facetas do país. De Chicago, por exemplo, para além da vibração local e da arquitectura cada vez mais arrojada, pode partir-se na mítica rota 66, a “estrada-mãe” de Steinbeck, pelos meandros da “small town America” até ao sol californiano, às portas de Los Angeles. E se é de “estrada fora” que falamos, desde São Francisco, onde as casas vitorianas estão empoleiradas em ruas impossivelmente inclinadas olhando a famosa baía, é o Big Sur que se abre com as suas deambulações pela costa californiana. Para novamente terminar em Los Angeles, onde em 2019 abrirá “o” grande museu do cinema. De volta à costa leste, Washington D. C. , o coração político da nação, vem juntar-se aos três destinos anteriores da TAP e no ano em que o país reflecte sobre a sua fundação é a ponte perfeita para descobrir a história dos EUA. E a sua “pré-história” enquanto nação, com o primeiro passo dado no vizinho estado da Virgínia, onde em 1607 se fundou a primeira colónia inglesa. E, onde, em 1619, se desenrolaram eventos fulcrais para o que haveria de ser os EUA: a primeira assembleia legislativa no território das colónias, a chegada dos primeiros escravos africanos e do primeiro grande contingente de mulheres, a celebração do primeiro dia de Acção de Graças. 1619 é considerado um ano fulcral para o país e os seus 400 anos vão ser assinalados durante todo o ano na Virgínia, a “mãe de presidentes” (oito oriundos do estado, mais do que qualquer outro), que se estende desde a baía de Chesapeake até às Montanhas dos Apalaches – e quantos mundos cabem aqui?Em Dezembro de 2019 terão passado 20 anos desde o “regresso” de Macau à nação-mãe chinesa e o que terá mudado no território que durante quase 500 anos ficou sob administração portuguesa?Cada vez mais se afasta da matriz identitária portuguesa, vai ganhando terra ao mar, faz parte de recordes (a maior ponte marítima do mundo, que liga a região autónoma a Hong Kong) e cada vez mais se afasta do epíteto de “Las Vegas do Oriente” – não, o jogo não acabou, pelo contrário, já ultrapassou a cidade norte-americana em número de casinos e em receita, é um destino de jogo sem rival. Tudo para conferir sem perder oportunidade de assistir in loco ao despertar da China. Aqui mesmo, do lado do continente, na província de Cantão, desenvolve-se a agora chamada Greater Bay Area, no Delta do Rio das Pérolas (Macau e Hong Kong são duas das 11 cidades) a resposta chinesa a São Francisco e a Tóquio, que tem na capital homónima, Cantão, um dos principais atractivos (e uma paragem obrigatória para quem aprecia a gastronomia chinesa). E para responder a Silicon Valley, a China apresenta, também nesta zona do país, Shenzen, um pólo de vanguarda tecnológica e de design. É a capital criativa do país e apresenta-se acompanhada de uma cada vez mais vibrante vida artística reflectida nas inúmeras galerias (que vêm fazer companhia aos museus que têm aberto nos últimos anos, como a Sociedade do Design, em colaboração com o londrino Victoria & Albert Museum, ou o Museu de Arte Contemporânea), que estão a dar vida a antigos bairros industriais, juntamente com salas de concertos, cafés e restaurantes, assumindo-se como referencial de vivência cosmopolita na nova China. A primeira vista de Matera, sobretudo se for nocturna, pode ser hipnotizante: uma ravina onde se abrem “grutas” resulta quase como uma colmeia. Humana. Ou um jogo de Tetris, com as cavernas e as suas entradas indisciplinadas, a esconder casas, igrejas, até mosteiros. São as chamadas sassi (literalmente: pedras), escavadas em calcário, algumas projectando-se fora da parede rochosa, o que faz com que os telhados sejam também ruas em alguns casos. Na década de 1950, as sassi, que chegaram a ser mil e a albergar 15 mil pessoas, foram interditas, por falta de segurança e condições de vida – por esses dias, a reputação de Matera entre os italianos andava pelas ruas da amargura, sobrando histórias de coabitação entre humanos, galinhas, porcos em espaços sem água canalizada e ventilação. Recentemente, regressou-se a elas – em estilo: casas privadas, ateliers de artistas, hotéis, restaurantes que mantiveram as características originais com o conforto (e segurança) modernos. Os labirintos e becos antes imundos tornaram-se o orgulho da cidade do Sudeste de Itália, onde a ocupação humana se conta em milénios, sete, e onde o passado (os sassi, “pedras”, o conjunto do género mais extenso da Europa) exibido na garganta (Gravina) convive com a cidade mais moderna que se estende no planalto (Murgia, também nome de parque natural próximo) – Património da Humanidade e, em 2019, Capital Europeia da Cultura (CEC). Os temas que a CEC vai aprofundar, como “comunidades e disrupções”, “futuro antigo”, “reflexões e conexões”, vão traduzir-se numa série de eventos culturais e artísticos que incluem museus pop-up, instalações, concertos (nomeadamente pela vienense Vegetable Orchestra, que reúne as duas formas de expressão artística favoritas em Matera, a música e a comida – também haverá workshops, jantares temáticos e pequenos concertos com os participantes das oficinas) e espectáculos multidisciplinares com parceiros tão inesperados quanto o CERN – Quantum Danza incluirá dança, teatro e música electrónica inspirados pela física quântica. Um bom pretexto para descobrir os segredos subterrâneos da região de Basilicata (aeroporto mais perto: Bari). E não só: a catedral, por exemplo, do século XIII, é um repositório artístico de vários estilos, desde pinturas bizantinas até aos frescos do século XVII. Aldeias, vilas e cidades pitorescas, paisagem delicada debruada de castelos românticos, um litoral que parece intocado ou tocado apenas na maneira exacta para compor postais. A Normandia é uma das regiões mais cénicas de França. Vêmo-lo nas pequenas cidades portuárias, como Honfleur, casas esguias coloridas, como narcisos no Sena a fazer-se estuário, ou Cherbourg, com ou sem guarda-chuva sempre romântica; e nas grandes, como Le Havre, que depois da devastação da II Guerra Mundial se reconstruiu em ousadia de concreto. Desfrutamos dela tanto na capital, Rouen, cidade à escala humana e charme iniludível, como nas pequenas aldeias, como Giverny, musa mais constante de Claude Monet, que aqui viveu durante décadas e imortalizou em centenas de obras (a casa, o jardim e o lago, ainda com nenúfares, estão abertos). Vivêmo-la junto ao mar em elegância na famosa (e sempre cinematográfica) Deauville e em discrição natural em Etretat. Percorremo-la no passado, no medieval Monte de Saint Michel, finalmente “devolvido” à água (e à irreprimível aura de mistério). Há, contudo, história mais recente a repousar na Normandia e história que mudou o curso da história mundial recente. O Dia D, o dia do desembarque da Normandia, e a Batalha da Normandia, que se seguiu, foram o volte-face final da II Guerra Mundial: em 2019 celebra-se o 75. º aniversário desse momento em que os aliados “ganharam” a guerra e todo o mundo vai convergir para as praias da Normandia onde o desembarque decorreu (e que são candidatas a Património Mundial da UNESCO) e que passaram a representar os ideais de paz, liberdade e, sobretudo, de reconciliação. É nesse espírito que se assinalará o dia 6 de Junho, a data exacta do desembarque, e todo o Verão se viverá sob esses auspícios na Normandia, uma espécie de museu a céu aberto da II Guerra Mundial. É a segunda maior cidade da Sérvia, mas Novi Sad permanece praticamente escondida, na sombra de Belgrado, como um segredo bem guardado. Parece, contudo, estar a chegar o tempo de mudança e é Novi Sad quem o reclama: em 2019 será a Capital Europeia da Juventude, uma espécie de preparação para 2021, quando será Capital Europeia da Cultura. Uma e outra combinam bem com a imagem de Novi Sad como “casa” de um dos principais festivais de música da Europa, o Exit, que em 2017 atraiu 200 mil visitantes durante os seus quatro dias de duração, passados entre o rock mais ou menos alternativo, a electrónica, o metal e punk e a “música do mundo”. Quatro estilos, quatro palcos espalhados pela cidade, o principal na fortaleza Petrovaradin, que é o cartão-de-visita da cidade – tem a alcunha de “a Gibraltar do Danúbio”, estando altaneira sobre o grande rio que aqui em Novi Sad se faz bailarino, desenhando um “s”. E também se faz porto de lazer para os cruzeiros que atravessam a Europa (e a sua história) embalada pelas águas do rio que raramente é azul. É na órbita da fortaleza, que também se situa o bairro histórico de Stari Grad (“cidade velha”), com concentração de museus, monumentos, cafés, restaurantes e lojas num perímetro desenhado por igrejas (e uma sinagoga) – é aqui que melhor flui a continuidade histórica desta cidade também conhecida como a “Atenas sérvia”. Na “cidade velha” houve o primeiro assentamento de eslavos, Baksa (século XIII), que passou para o domínio húngaro, depois otomano, depois austríaco até à sua incorporação no recém-criado Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos, em 1918 (depois Jugoslávia): ao longo de todos estes séculos, a população eslava foi sempre a maioria, mas várias nacionalidades definiram a cidade, ou não estivesse Novi Sad numa encruzilhada com a Hungria, Croácia e Roménia. A atravessar uma onda de revitalização com a renovação de várias fachadas e edifícios históricos (quase todos do século XIX em ponte com a arquitectura realista soviética do século XX, sobretudo residencial), é uma antiga zona industrial que concentra a nova onda de energia criativa. É conhecido por “bairro chinês” mas não se espere a típica chinatown: as antigas fábricas estão a ser tomadas por teatros, galerias de arte, salas de concertos e clubes e a afirmar-se como um destino “alternativo”. A capital do Panamá, a Cidade do Panamá, está de parabéns em 2019 e a promessa de festa é irrecusável. São 500 anos que se celebram na cidade que até é mais conhecida pelos arranha-céus e pelas compras que proporciona (é conhecido na vizinhança pelos preços baixos) do que pela sua vetustez. E isto no país cujo nome é mais associado à monumental obra de engenharia moderna que é o canal homónimo (recentemente renovado), ou até ao chapéu que lhe roubou o nome (embora seja de origem equatoriana), do que propriamente pela sua história e personalidade. E o Panamá, verdadeira encruzilhada do continente americano, ponte entre o Atlântico e o Pacífico, onde a América Central dá lugar à América do Sul, é muito mais do que um istmo e canal – não deve muito ao tamanho, mas compensa a escassez territorial com uma impressionante variedade natural e cultural. Do mar das Caraíbas ao oceano Pacífico, as praias de areia branca proporcionam snorkeling entre corais ou ondas dignas de surfar, avistamento de baleias e natação sincronizada – com tartarugas; as florestas tropicais são ponto de encontro com povos indígenas, palco de desportos de aventura com mais ou menos adrenalina e santuários de biodiversidade, os seus cumes de brumas intensas oferecem paisagens de mundos perdidos – diríamos que é mais ou menos a Costa Rica, sem a projecção internacional. E, depois, a capital aniversariante, hesitante entre uma espécie de Dubai, ou Miami, como tantos sublinham, e o tal passado que foi recentemente recuperado. Agora, o casco viejo apresenta-se de cara lavada (e colorida), o mar ficou mais próximo com a Cinta Costera e o Mercado de Mariscos continua uma tentação. Enhorabuena!, Panamá!Há cidades que parecem poder arrumar-se perfeitamente na categoria de capital cultural e Plovdiv é uma delas. A segunda maior cidade da Bulgária é um daqueles locais de “reunião” de várias civilizações e se é pouco conhecida pode ser que o ano como Capital Europeia da Cultura ajude a mudar o cenário. É uma das mais antigas urbes europeias continuamente habitadas – e, coincidência, estende-se por sete colinas: por lá passaram romanos, bizantinos, otomanos. A pegada destes impérios está bem impressa na sua arquitectura, com vestígios romanos a espreitar por toda a cidade e a imporem-se no coliseu, um dos maiores encontrados (apenas em 1972) e aonde voltaram os espectáculos; as casas, ou melhor, mansões, que pintam a cidade velha de vários tons até podem ser do século XIX e do período chamado de “revivalismo nacional”, mas mantêm, por exemplo, as características varandas otomanas. Aliás, caminhar pelas ruas empedradas da cidade velha é baloiçar entre o Oriente e o Ocidente, o que até é apropriado para uma cidade que se situa bem no centro da Bulgária. E longe das multidões da capital Sofia e do litoral, a cidade que em 1999 recebeu o Mês da Cultura vai agora ser anfitriã de 12 meses de eventos culturais (mais de 500), alguns idealizados de raiz, outros, já habituais, a ganharem nova dimensão. Há vários pretextos para viajar até à Polónia em 2019. Efemérides, como os 80 anos da invasão alemã e do início da II Guerra Mundial e eventos, como Capital Europeia da Gastronomia, em Cracóvia, à cabeça, embora tanto a história como a gastronomia sejam sempre prato do dia em qualquer visita à Polónia. O século XX deixou marcas intensas no país e podemos dizer que a invasão nazi é o grande ponto de charneira, não só para o que se passou durante a II Guerra Mundial (os campos de extermínio construídos em território polaco, a Insurreição e a consequente destruição de Varsóvia, os milhões de mortos polacos), como para as décadas posteriores, na órbita da URSS – o Turismo da Polónia está apostado em atrair os amantes da história e o próximo ano é um pretexto incontornável. Talvez a gastronomia não seja o motivo mais evidente de orgulho entre os polacos (muitos surpreendidos com a distinção de Cracóvia) mas talvez isso mude. Afinal, o renascimento de um certo sentido de identidade nacional também tem passado pela recuperação de pratos tradicionais – não é o caso dos pieroggi ou da sopa zurek (dentro do pão ou em prato): serão os mais destacados representantes destes, indispensáveis em qualquer restaurante. O que se pode esperar, pela nossa experiência em Cracóvia, é, então, a tradição polaca com roupagens modernas ou revisitada em fusões mais ou menos surpreendentes, que dão novas imagens aos pratos “da avó”. Tudo isto na “cidade eterna” polaca – pelo número de igrejas (e clero abundante) e pela resistência aos contratempos da história: a cidade velha de Cracóvia é uma máquina do tempo. Da Idade Média até hoje, continua a ser o verdadeiro centro da cidade, a “baixa” com várias “baixas” dentro – os habitantes vivem-na quotidianamente e os turistas fazem como eles. O seu nome apenas já evoca o exotismo das aventuras longínquas do tempo em que as viagens eram o caminho. Samarcanda é paragem mítica da igualmente mítica Rota da Seda, mais do que um percurso comercial, um mapa de encontros de povos e culturas. E se entre a Europa e a Ásia vários trajectos se desenharam, uma coisa foi certa: Samarcanda sempre foi uma encruzilhada entre os continentes e disso a cidade uzbeque tem testemunhos que sobejam. É preciso, porém, não desanimar perante a vista da cidade mais moderna (assinatura da Rússia czarista e da URSS) e persistir até chegar, descascar as camadas. A arquitectura medieval do centro histórico até pode parecer humilde, mas na Praça Registan explodem os azulejos esmaltados (em majólica) adornados de dourados e caligrafia nos edifícios religiosos, sobretudo nas três madrassas imponentes dos séculos XIV e XVI, e de repente o tempo volta para trás e esperamos ver novamente as caravanas carregados de maravilhas dignas da caverna de Ali Babá atravessando altas montanhas e desertos áridos. À falta de tesouros dourados, as lojas de artesanato começam a enxamear a segunda cidade do Uzbequistão, outrora capital de um império vasto, que se estendia por grande parte da Ásia e que faz de Samarcanda, a par com Bucara, dois importantes centros da cultura tajique-persa (Bucara recebe, aliás, anualmente, o Festival de Seda e Especiarias). O antigo oásis continua a ter artesãos da cerâmica, tapeçaria, bordados, cunhagens – mas agora não chegamos de camelo ou a cavalo. E Samarcanda pode já não ser a encruzilhada de culturas de outros tempos, mas continua a ser um belo sonho de viajante. A República de Singapura pode ter pouco mais de meio século, mas em 2019 a cidade-estado vai celebrar o seu bicentenário. Foi em 1819 que Sir Stamford Raffles estabeleceu na ilha (que havia sido saqueada por portugueses uns séculos antes) um entreposto comercial do império britânico e este é o momento que Singapura reconhece como o nascimento da cidade moderna que só se tornaria independente em 1965. No próximo ano, a cidade futurística vai, então, celebrar e reflectir sobre o seu passado – em grande estilo: por exemplo, a história andará pelas ruas em grandes projecções-instalações multimédia para proporcionar experiências imersivas. Não passará incólume o aniversário redondo, pois se algo 2018 nos mostrou sobre Singapura é que, quando quer, festeja como ninguém (veja-se o filme Crazy Rich Asians, que até já tem direito a roteiro na cidade). Algo que já tem andado na mira de viajantes, que começam a deixar de ver a cidade como uma boa plataforma-giratória para viagens pela Ásia – e até começam a ver para além dos arranha-céus extravagantes que oferecem mil e um prazeres (não só compras, mas piscinas infinitas penduradas entre vegetação, por exemplo). É que além do brilho emanado pelo aço e vidro, Singapura retém um certo charme colonial britânico, o bairro chinês é uma vertigem, as compras são uma fé (das marcas mais exclusivas às locais) e o verde imiscui-se por todo o lado – a luxuriante vegetação até está a ganhar terreno, em jardins e parques que vão do futurista Gardens by the Bay ao histórico Parque de Fort Canning, sem esquecer o ícone que são os Jardins Botânicos. À mesa, Singapura é um caleidoscópio de sabores – e preços: os restaurantes estrelas Michelin e centenas de bancas competem entre si (há uma banca em Chinatown que tem estrela – dizem que é a refeição “estrelada” mais barata do mundo) e a noite espraia-se dos bares de cocktails mais elegantes até aos clubes de mais puro rock (com tudo o que é dançável pelo meio). Não é o acontecimento do século, mas quase: acontece, no máximo, cinco vezes em cada cem anos, a Fête des Vignerons. E 2019 é uma dessas cinco vezes, a primeira do terceiro milénio (a última festa aconteceu em 1999). É em Vevey que os suíços celebram a vitivinicultura, as suas tradições e, claro, o vinho da região mais representativa num país que não é especialmente conhecido por ele, Lavaux, famosa pelos vinhos brancos secos produzidos a partir da casta Chasselas. O que começou em 1797 como uma simples festa das vindimas cresceu e é agora uma celebração que dura três semanas (no próximo ano, de 20 de Julho a 11 de Agosto) e já mereceu o reconhecimento da UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade. O tiro de partida em 2019 vai ser dado numa cerimónia extravagante, ao estilo da abertura dos Jogos Olímpicos (o coreógrafo dos últimos jogos de Inverno, em Sochi, já foi recrutado). Depois, os espectáculos e apresentações vínicas prosseguirão na praça do mercado nas margens do lago Léman e no centro da cidade – sem esquecer as visitas aos vinhedos, afinal o motivo de tudo: um comboio sai todas as horas para percorrer as vinhas, dispostas em socalcos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. É o clássico dos clássicos das viagens, mas o turismo tem andado de costas voltadas para o Egipto, consequência da situação política instável. Nos anos mais recentes, os viajantes têm regressado e em 2019 espera-se que venham em força. O engodo é quase irrecusável: no início do ano vai abrir o gigantesco (quase 500 mil metros quadrados) Grande Museu Egípcio, com vista privilegiada para as pirâmides (e esfinge) de Gizé. Vai ser o maior museu do mundo dedicado a uma única civilização, que é também uma das que mais alimenta a imaginação mundial. E, no novo museu, serão 50 mil os artefactos em exposição, incluindo o tesouro de Tutankhamon, o rei-menino cujo túmulo foi descoberto intacto no Vale dos Reis: será a primeira vez que as cinco mil peças serão mostradas juntas, compondo a visão de “coisas maravilhosas” que Howard Carter anunciou em 1922. E porquê ficar pelo museu, quando o mais impressionante do Antigo Egipto está à distância de um cruzeiro pelo vale do Nilo? Há-os para várias bolsas e, entre Luxor e Assuão (ou vice-versa), pode entrar no verdadeiro túmulo de Tutankhamon e de outros faraós, conhecer templos impressionantes, desfrutar de pores do sol inigualáveis e da hospitalidade e alegria do país. Mas o Egipto não é apenas faraónico: a capital, o Cairo, é um grande bazar da história – há de tudo, para todos, numa mistura alucinante.
REFERÊNCIAS:
Dança contemporânea, amor e rock and roll
Longe vão os tempos em que Wim Vandekeybus tinha uma aura de radicalidade: Speak Low if You Speak Love tem tudo para agradar a um público generalizado. (...)

Dança contemporânea, amor e rock and roll
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.333
DATA: 2017-02-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Longe vão os tempos em que Wim Vandekeybus tinha uma aura de radicalidade: Speak Low if You Speak Love tem tudo para agradar a um público generalizado.
TEXTO: Não é uma ópera ou um musical, nem um concerto rock ou uma peça de dança-teatro. Speak Low if You Speak Love é um pouco de tudo isso, e aí reside a sua força mas também parte da sua vulnerabilidade, apesar da conhecida vocação do coreógrafo Wim Vandekeybus (Bélgica, 1963) para a transdisciplinaridade. Em cena, interagem um grupo rock (bateria, guitarras eléctricas e órgão) dirigido ao vivo por Mauro Pawlowsky (da banda dEUS), cúmplice artístico do coreógrafo, a cantora de jazz sul-africana Tutu Puoane e oito virtuosíssimos jovens bailarinos: exímios na técnica clássica e contemporânea, saltam como molas, rodopiam como piões e voam no ar em barrel jumps, com o mesmo à vontade com que dominam o sapateado, disparam um arco, lançam cordas ou canas de pesca, e executam acrobáticas contorções de malabaristas circenses. Ingredientes suficientes para manter olhos e ouvidos atentos durante os 105 minutos da peça, envolta num imponente aparato cénico: sofisticados efeitos de luz, recaindo sobre sedosos véus translúcidos que circundam o palco, jogam com a visibilidade da banda musical; em contraponto, uma luxuriante selva de bambus, um simulacro de natureza. Coreografia: Wim VandekeybusQue tema servem estes epopeicos dispositivos? O amor, seus labirintos, pulsões, ardis e desenganos. Wandekeybus foi buscar o título da obra a um standard jazz, Speak low, eternizado pela inigualável Billie Holiday, depois de Kurt Weil o ter composto para o musical da Broadway One Touch of Venus (1943), inspirado numa discreta fala de uma peça de Shakespeare. Sob um contínuo som cavo, um sussurro indecifrável. Um homem de face coberta por uma malha fina arremessa um laço sobre o público; um casal de escasso figurino negro e rosto igualmente oculto, a lembrar pinturas de Magritte, entrega-se a um dueto de intensos embates. Imagens de fuga e predação, das teias da líbido, da proverbial cegueira amorosa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O mistério inicial deriva, porém, numa sucessão de quadros onde personagens vão reaparecendo, num registo mais travesso e humorístico: as suas relações são insaciáveis e pueris, obsessivas e caprichosas, sedutoras e dissimuladas, volúveis e gananciosas, e raramente harmónicas. Nesta amálgama entrevêem-se figuras da mitologia clássica (Orfeu e Eurídice, Romeu e Julieta, a silhueta de Cupido) ou viking que coexistem com namoricos em desfiles de majoretes ou entre eufóricos bombos em festa popular. São mil e uma pistas, algumas acertam no alvo e muitas ficam pela superfície, sem encontrar nexos que as justifiquem ou tornem legíveis. Wandekeybus parece ter explorado mais os arquétipos (ou lugares-comuns?) da vertigem passional do que a pesquisa introspectiva com os intérpretes; o que falta à espessura dramática foi transferido para o impacto visual e sonoro e para a destreza dos corpos. A certa altura um homem tenta repetidamente vestir os calções a uma mulher, divertida citação da dramática cena do abraço inconclusivo de Café Müller (Pina Bausch, 1978), e ocorre-nos o quanto depende da profundidade dos matizes emocionais a demonstração de que comédia e tragédia são irmãs. Longe vão os tempos em que a linguagem de Wandekeybus, ícone da “vaga flamenga” da nova dança belga dos anos 80 (com Jan Fabre, Anne Teresa de Keersmaeker ou Alain Platel), se revestia da aura da radicalidade. Speak Low If You Speak Love tem tudo para agradar a um público alargado.
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Palavras-chave mulher negro homem cantora
A terra de Vazante não é para velhos
Daniela Thomas traz a Berlim uma tragédia em câmara-lenta dos tempos da escravatura do Brasil, inspirada por histórias da sua família. (...)

A terra de Vazante não é para velhos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170215070109/http://publico.pt/1761688
SUMÁRIO: Daniela Thomas traz a Berlim uma tragédia em câmara-lenta dos tempos da escravatura do Brasil, inspirada por histórias da sua família.
TEXTO: No princípio era uma imagem – ou antes, imagens soltas, que Daniela Thomas criou na sua mente a partir das histórias que o pai contava de um antepassado que nunca usava sapatos, e que casara aos 45 anos com uma menina de 12 a quem trazia bonecas das suas viagens. Mas eram também as imagens das gravuras de época, do princípio do século XIX, e foi para dar vida a essas imagens que Thomas, parceira regular de Walter Salles (com quem co-dirigiu Terra Estrangeira, 96, e Linha de Passe, 08), foi buscar o grande director de fotografia peruano Inti Briones, e foi rodar a preto e branco, em exteriores de Minas Gerais, uma história dos tempos da escravatura, uma espécie de amour fou enlouquecido pelo isolamento da selva e pela desgraça. Não sabíamos muito bem o que esperar de Vazante (Panorama), primeira longa “a solo” de Thomas, co-produzida com Portugal através da Ukbar Filmes de Pandora da Cunha Telles e com o português Adriano Carvalho no principal papel masculino – o de António, um “tropeiro” que a morte da mulher ao dar à luz um bebé que também não sobrevive, em 1821 (último ano do Brasil enquanto colónia portuguesa) lança para o desespero. Não sabíamos muito bem o que esperar, mas não esperávamos isto: uma tragédia em câmara lenta, infiltrada pela letargia tropical da selva, um filme que ultrapassa as suas limitações através do transe quase opiáceo em que coloca o espectador. As tais imagens que inspiraram Daniela Thomas, disse a realizadora na conferência de imprensa de Berlim, estão todas no filme – a boneca embrulhada em serapilheira, os pés descalços que não gostam de usar sapatos, o casamento entre um homem feito que a desgraça deixou viúvo e uma menina que ainda nem menstruou, sobrinha mais nova da esposa defunta. E as gravuras também: os escravos africanos cuja língua ninguém consegue compreender e cujo chefe – o griot maliano Toumani Kouyaté – se recusa a quebrar perante o “senhor”, a cozinheira e governanta negra que domina a casa senhorial com mão de ferro, a escrava que serve de amante do patrão e que lhe dá bastardos. São todas recriadas com mestria pela câmara de Inti Briones, capaz de lhes dar ao mesmo tempo um recorte rochoso, telúrico, esmagador e uma tonalidade humana, digna, nobre. O verismo de Vazante, no entanto, não vem só daí; vem também do que Daniela Thomas definiu, na conferência de imprensa, como um “laboratório da vida”. A realizadora, que se formou em História, trabalhou com uma historiadora especializada no período em que tudo se passa, e rodou em locais onde existiram realmente fazendas, recorrendo aos descendentes dos escravos fugitivos como consultores e artesãos responsáveis pela recriação dos cenários e guarda-roupa, como figurantes, como secundários. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Isso ajuda em grande parte a perceber a sensação de hipnose que Vazante cria – de não estarmos apenas a assistir a uma ficção histórica, mas de a estarmos a viver, tal é o sortilégio criado pelo ritmo inflexível da montagem, pela força das imagens, pelo trabalho de som do português Vasco Pimentel. Não há música ao longo das duas horas de Vazante, apenas um constante marulhar de pássaros, galhos, ribeiros, animais, pessoas, vento, chuva, tempo que está sempre presente e se torna opressivo, quase ensurdecedor – e, de repente, percebemos que a loucura está sempre a um passo de vir ao de cima neste ermo perdido nos confins do Brasil, longe de tudo, ao sabor dos elementos e dos instintos e dos desejos. Acima de tudo, há duas coisas em que Daniela Thomas aposta, que criam o contraste onde tudo se joga: os rostos e as paisagens. Os rostos de gente que sobrevive como pode numa terra que não foi feita para eles; as paisagens cuja beleza esconde também um desafio à sua capacidade de sobrevivência, uma terra que, literalmente, não é para quem quer, mas para quem resiste. Essa noção muito precisa do que Daniela Thomas quer fazer e a teimosia com que o leva a cabo, contra tudo e contra todos, é o que ganha Vazante e compensa as suas relativas fraquezas – como um argumento talvez demasiado frágil para sustentar a aposta formal, como personagens cujo mistério parece por vezes ser uma solução para compensar a sua dimensão arquetípica. Não é forçosamente um problema – as tragédias baseiam-se nos arquétipos – mas sente-se que Thomas não teve mão por inteiro para compensar um ou outro convencionalismo de narrativa, ou o escorregão pontual num certo lirismo Malickiano. Chega, e sobra, para abrir com força uma forte presença brasileira em Berlim que vai ter um outro filme de época, Joaquim, a encerrar a competição oficial.
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Palavras-chave morte mulher ajuda homem espécie casamento negra escravatura
O devir-negro do mundo
O cientista político Achille Mbembe propõe reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade. (...)

O devir-negro do mundo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.141
DATA: 2015-04-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: O cientista político Achille Mbembe propõe reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade.
TEXTO: É sobretudo na edição de ensaios que a Antígona tem vindo a mostrar uma atenção profunda e exigente às transformações que certas forças vão impondo ao mundo. A cada ameaça ou tendência nefasta, parece responder com um livro: “Aqui está. Podem ler. ” Crítica da Razão Negra, de Achille Mbembe, é uma obra que exemplifica muito bem esse “cuidado” pedagógico, não paternalista, desta editora refractária. As crianças, as mulheres e os homens que desaparecem no Mediterrâneo, o recrudescimento do racismo na Europa e nos EUA, a mercantilização da vida que a marcha do capitalismo vai instalando são “realidades” que abrem, continuamente, as suas páginas. Como o autor sublinha, Crítica da Razão Negra não é uma história das ideias, nem um exercício de sociologia histórica. Consiste, antes, numa “sequência” de ensaios curtos que vão construindo uma crítica política da raça, do racismo e do colonialismo. Formado em História e Ciência Política, Mbembe problematiza o pensamento de vários autores europeus para lembrar a indiferença geral do Iluminismo ao tráfico atlântico de escravos ou a dos governos e intelectuais europeus à violência do potentado colonial. A sua denúncia, embora subtil e elegante, nunca deixa de ser assertiva. A colonização e o euro-centrismo são objectos de uma crítica histórica contundente, e sempre actualizada, tal como o próprio conceito de raça, numa passagem notável: “A força da raça deriva precisamente do facto de, na consciência racista, a aparência ser a verdadeira realidade das coisas. Por outras palavras, a aparência não é contrário da ‘realidade’. ”Para a fabricação deste conceito e para o seu aviltamento, argumenta Achille Mbembe, a Europa mobilizou duas noções de “África” e “Negro” que coisificaram homens e comunidades, colocando o Negro numa zona de indiferenciação entre homem e animal. É nessa herança terrível que o autor implica o leitor, trazendo-o para o centro de um debate com várias teorizações da emancipação negra e da crítica da raça. No capítulo final, e contra o presente, Mbembe percorre os contributos de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Frantz Fanon e Nelson Mandela. O do autor de Os Condenados da Terra surge como o mais delicado e glosado. Não será despropositado dizer que a posição de Achile Mbembe sobre o uso da violência na teoria de Fanon surge ambígua. Sem a subscrever de modo absoluto, Mbembe afirma que no mundo actual, com os seus muros, enclaves e fronteiras, “o grande apelo de Fanon para o declosão do mundo não pode deixar de ter eco”. Eis uma intuição que apetece contrariar com uma frase de Hannah Arendt (também ela citada ao longo do livro): “A prática da violência, como toda a acção, transforma o mundo, mas a transformação que mais provavelmente obterá terá por resultado um mundo mais violento. ”Felizmente, em Crítica de Razão Negra não faltam outros caminhos. Logo a seguir, no texto sobre Mandela, Mbembe evoca as coisas fundamentais que aquele encontrou na prisão, “aquilo que jaz no silêncio e nos pormenores”: “Tudo lhe falará de novo: a formiga que corre não se sabe para onde, a semente escondida que morre, depois ergue-se, criando a ilusão de um jardim no meio do betão, do cinzento dos miradouros e das pesadas portas metálicas que se fecham com grande estrondo na sua prisão. ” Mas “como passar do estatuto do ‘sem parte’ ao de ter ‘direitos’? Como participar na estrutura deste mundo e na sua divisão por todos”? A estas perguntas, feitas pelo autor, o ensinamento de Mandela — estar preso, sem ser escravo de ninguém — oferece uma resposta que pode “reconciliar os múltiplos rostos da Humanidade”, em solidariedade com a própria Humanidade. A reconciliação não será fácil. Na introdução, escrita em 2013, Mbembe lembra que a violência do capitalismo — de que o tráfico atlântico de escravo e a colonização dos séculos XIX e XX foram momentos históricos — está afligir a própria Europa, estendendo os seus processos de abstracção e classificação a outros homens. Assim, a palavra “negro” deixará de significar apenas o homem de tez escura, mas todos os outros. Toda a Humanidade subalterna correrá o risco de se tornar negra. A este processo, Mmebme chama um devir-negro do mundo. E a sua ameaça é tanto mais aterradora quanto outras desigualdades vão sendo engendradas.
REFERÊNCIAS: