A unidade de elite que matou Bin Laden
É raro ouvirmos falar deles e nunca os ouviremos gabarem-se dos seus sucessos. Eficiência e segredo são as suas máximas. Ao todo, não há mais de 2500 SEAL, as forças especiais da Marinha norte-americana que tiveram a cargo a operação que terminou com a morte de Osama bin Laden. (...)

A unidade de elite que matou Bin Laden
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.2
DATA: 2011-05-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: É raro ouvirmos falar deles e nunca os ouviremos gabarem-se dos seus sucessos. Eficiência e segredo são as suas máximas. Ao todo, não há mais de 2500 SEAL, as forças especiais da Marinha norte-americana que tiveram a cargo a operação que terminou com a morte de Osama bin Laden.
TEXTO: “Os tipos que se tornam membros dos SEAL têm uma visão especialmente apurada, inteligência acima da média, e uma constituição genética que lhes permite suportar muito fisicamente. Há tipos qualificados para entrarem mas os que sobrevivem até ao fim são os cavalos de corrida”, disse à BBC Don Shipley, da Virgínia, que foi membro dos SEAL durante 20 anos. Há um número que dá uma ideia do que Shipley quer dizer com cavalos de corrida: a média de desistências durante o treino dos SEAL está entre os 80 e os 85 por cento. A primeira semana, com treino 24 horas por dia, é conhecida como “Hell Week”. Depois do treino básico, há uns 200 candidatos de cada vez que chegam à escola. No fim do processo costumam sobreviver 30 a 35. O grupo que treina neste momento, descobriu a BBC, começou com 245 homens (não há mulheres nos SEAL) e já perdeu 190 recrutas nas primeiras três semanas. São um “grupo com muita testosterona”, descreveu ao “Washington Post” Alden Mills, que esteve nos SEAL entre 1991 e 1998. “O fracasso não é uma opção” ou “a dor é a fraqueza a deixar o corpo” são alguns dos seus slogans. Os SEAL – a sigla é composta pelas iniciais das palavras em inglês para mar e terra, pois querem-se prontos para agir em qualquer meio – surgiram durante a Segunda Guerra, quando os Estados Unidos precisaram de combatentes rápidos para invadir o Japão. Ainda não se chamavam assim, eram a Naval Combat Demolition Unit, que esteve envolvida na invasão do Norte de África em 1942. A criação dos SEAL como existem hoje foi tornada possível com um pacote de 100 milhões de dólares disponibilizado pelo Presidente John F. Kennedy para fortalecer a capacidade das forças especiais. Estiveram envolvidos no Vietname, em Granada e no Panamá. Nos últimos anos, os SEAL actuam essencialmente no Afeganistão e no Iraque, mas também têm sido chamados para missões no Iémen, na Somália ou no Paquistão, como esta a que se chamou “Geronimo”, como o guerreiro apache que liderou a resistência aos brancos e se tornou numa espécie de símbolo do “wild west”. A morte de Bin Laden foi comunicada ao Presidente Barack Obama com as palavras “Geronimo EKIA” – Enemy Killed in Action (inimigo morto em acção). A Equipa SeisNão houve exactamente um comunicado dos SEAL com pormenores da operação, mas sabe-se que a missão foi entregue à Equipa Seis (ou DEVGRU), uma unidade que trabalha tantas vezes com a CIA que é conhecido como a Guarda Pretoriana da agência. Sabe-se que a Equipa Seis, cujos membros são seleccionados a partir de todas as unidades entre os que contam com cinco anos de experiência, tem a sua base nos arredores de Virginia Beach. Sabe-se, mas não se tem a certeza. Quando o mayor de Virginia Beach soube que tinha sido uma unidade dos SEAL sedeada perto da sua cidade a matar Bin Laden quis homenageá-los, escreveu o “Washington Post”. Mas um primeiro problema colocou-se de imediato a Will Sessoms: como encontrá-los?“Esta comunidade está extremamente orgulhosa. Gostava de encontrar uma forma de a cidade festejar. Mas é um desafio”, explicou Sessoms. Se os SEAL são os melhores entre os melhores, a Equipa Seis, criada em 1980, depois da tentativa falhada de salvar os reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerão, é constituída pelos melhores de todos. Ryan Zinkie esteve cerca de uma década na equipa e contou à National Public Radio que passou parte desse tempo nos Balcãs, nos anos 1990, à procura de suspeitos criminosos de guerra. “A determinada altura a nossa missão era realmente capturar”, disse.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte homens guerra escola comunidade espécie mulheres corpo morto
Seco que nem um carapau da Nazaré
Os peixes continuam a secar ao sol, indiferentes ao debate em torno deles. São um dos maiores bilhetes-postais da Nazaré, mas as mulheres que os vendem temem que "isto esteja a acabar". Há, contudo, uma nova geração que acredita neles: Inês tem 34 anos e voltou à Nazaré para trabalhar com a mãe na secagem do peixe. O irmão, Samuel, criou uma nova embalagem para explicar aos turistas o que isto é. E o projecto Endògenos está a reinventar o carapau seco nas cozinhas. São sete da tarde e o sol começa a pôr-se sobre a praia da Nazaré. Ana Palmira continua sentada por detrás da sua banca de peixe seco. Não tem grandes... (etc.)

Seco que nem um carapau da Nazaré
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.06
DATA: 2014-05-13 | Jornal Público
TEXTO: Os peixes continuam a secar ao sol, indiferentes ao debate em torno deles. São um dos maiores bilhetes-postais da Nazaré, mas as mulheres que os vendem temem que "isto esteja a acabar". Há, contudo, uma nova geração que acredita neles: Inês tem 34 anos e voltou à Nazaré para trabalhar com a mãe na secagem do peixe. O irmão, Samuel, criou uma nova embalagem para explicar aos turistas o que isto é. E o projecto Endògenos está a reinventar o carapau seco nas cozinhas. São sete da tarde e o sol começa a pôr-se sobre a praia da Nazaré. Ana Palmira continua sentada por detrás da sua banca de peixe seco. Não tem grandes esperanças de vender alguma coisa, mas vai ficando, sempre pode ser que ainda passe alguém que queira comprar. Passa um casal de jovens. Ele faz perguntas. Ela olha com um ar desconfiado para os peixes escalados e secos. Como é que se cozinha?, pergunta ele. Parece tentado a levar. Ana Palmira ganha algum alento com a perspectiva da venda e garante que é um petisco de primeira. A rapariga abana a cabeça. Acabam por agradecer e ir embora sem levar nada. "Isto está a acabar", lamenta-se a peixeira. "Isto" é a venda de peixe seco, uma tradição antiga e um dos bilhetes-postais da Nazaré. São sete da tarde e a banca continua cheia. De nada adianta estar a pé desde as quatro da manhã e já ter corrido a Nazaré, primeiro a comprar o peixe na lota, depois a vendê-lo ainda fresco e por fim a abrir o restante, a passá-lo na salmoura e a pô-lo ao sol. "A malta nova hoje não quer nada disto. Só os mais velhos é que compram, e esses estão a desaparecer. "Ana Palmira andou toda a vida a vender peixe, conseguiu pôr os filhos a estudar, hoje todos têm cursos superiores e até mestrados, mas, afinal, contra todas as suas expectativas, isso não lhes serviu de garantia de uma vida melhor. "Estão todos desempregados. " E é isso que lhe deixa "o coração tão negro" como o lenço que tem enrolado à cabeça, e que agora desenrola para nos mostrar a cor - é preto mesmo. "Isto hoje é só entrevistas", lança-lhe outra peixeira, também junto da sua banca de peixe seco. Na praia, por trás delas, ergue-se o "estindarte" que é como aqui chamam ao estendal, os rectângulos de madeira e rede, inclinados e virados para sul, onde o peixe é colocado para secar ao sol. A tradição começou, não se sabe exactamente quando, como forma de preservar o peixe em tempos de maior dificuldade e garantir que a comida chegava para os dias em que os homens não podiam ir ao mar. Embora o carapau seja o mais emblemático, secam-se diferentes peixes, do cação à petinga e à sardinha (estes peixes mais pequenos não são escalados), passando pelo polvo. As técnicas também diferem: um carapau seco deve ficar uns dois a três dias ao sol, dependendo das condições atmosféricas e da temperatura e pode ser comido cru e desfiado ou cozido e regado com azeite, vinagre ou sumo de limão e alho picado. O carapau a que chamam "enjoado" fica apenas um dia, ou algumas horas ao sol, passa por uma salmoura menor e é geralmente grelhado. Por força do hábito, os nazarenos ganharam gosto a este peixe assim seco e deliciam-se quando o comem. Mas e os outros? Bem, os outros - os não nazarenos, entenda-se - passam, olham, fazem perguntas. E não compram. É por isso e porque dantes o "estindarte" era muito maior e a praia estava cheia de mulheres a vender, que Ana Palmira não está optimista. No entanto, esta história pode ser diferente - e muito mais feliz. Se nesse dia Ana Palmira estava mais a dar entrevistas do que a vender peixe, era porque dali a pouco ia realizar-se um jantar dedicado precisamente ao carapau seco da Nazaré. O que está a acontecer aqui é uma coincidência de interesses que pode ajudar a virar o destino à tradição do carapau seco. O jantar está marcado para a Taberna do 8 ó 80, casa aberta há dois anos na marginal, por Abel Santos, filho da Adélia, da Taberna d"Adélia, famosa na Nazaré pelo seu peixe fresco. Foi o restaurante de Abel o local escolhido pelo projecto Endògenos - uma iniciativa do empresário Nuno Nobre, que, em colaboração com o chef António Alexandre, pretende recuperar vários produtos tradicionais portugueses, das algas ao capão, passando pelo ouriço-do-mar - para este jantar em torno do carapau seco. Quem forneceu o carapau esta noite foi a Maria da Nazaré. Por isso, é tempo de conhe-cermos os irmãos Samuel e Inês Fialho, ele com 28 anos, ela com 34, netos e filhos de mulheres que dedicaram a vida ao peixe seco da Nazaré e que acreditam que esta é uma tradição com futuro. Foi essa razão que os levou a criar a marca Maria da Nazaré -uma homenagem a essa avó, chamada Maria da Nazaré, hoje com 91 anos, que é para eles um exemplo. Inês fez o curso de Educadora de Infância, viveu em Lisboa, tem um marido ligado ao cinema e, há três anos, quando ficou grávida da filha, decidiu ir viver para a Nazaré. "Pela qualidade de vida", explica. O facto é que a carreira de educadora de infância foi substituída pela venda de peixe. Encontrámo-la, bem-disposta e sorridente, pelas nove da manhã, junto à mãe, Isaura, a amanhar o peixe numa banca do mercado municipal. No café do mercado, há grande animação, com as vendedoras da praça a beber café de saco e a comer pão com manteiga. Isaura e Inês já receberam os carapaus e os batuques (têm um vendedor que compra na lota e lhes vende no mercado) e vão passar algumas horas a abrir cada peixe, a tirar-lhe a tripa, a escalá-lo à mão, fazendo correr o dedo junto à espinha, sempre debaixo de água corrente e, por fim, a passá-lo por duas ou três salmouras. Muito importante, sublinha Inês, é tirar-lhe completamente o sangue, porque é este que atrai as moscas, um dos maiores perigos para este produto. Quando já têm vários alguidares cheios de peixes abertos, põem-nos num carrinho de mão e atravessam as ruas da Nazaré, vazias àquela hora, até ao estendal. Na praia, de manhã cedo, só as gaivotas, que enchem o areal na esperança de apanhar um peixe, ou pelo menos as tripas, que algumas peixeiras têm o hábito de lhes dar. Os paneiros (as tábuas com rede) têm diferentes cores para se saber a quem pertencem. As duas desembrulham os seus paneiros, protegidos por um plástico azul, e aparecem os primeiros, verde-claro, e os restantes, vermelhos. "O vermelho foi sempre a cor da minha mãe", diz Isaura. Pega num e segura-o ao alto para mostrar o M e o N, pintados a vermelho, com os quais a Maria da Nazaré - que começou neste trabalho em 1928, tinha apenas seis anos, e continuou até aos 87 - identificava as suas tábuas. Samuel agarra no tablet para mostrar o site da marca e o filmezinho que fizeram com a avó a mostrar como se cozinha o carapau seco - na realidade, um processo muito fácil, semelhante ao do bacalhau. "O que nós sentimos foi que muitas pessoas, nomeadamente os turistas, tinham curiosidade em saber o que era o peixe seco, mas nem sempre é fácil explicar. " Sobretudo para as peixeiras na praia, que não falam outras línguas e têm apenas os gestos para se fazer entender. Por isso, numa assumida estratégia de marketing - até porque Samuel tem uma starp-up dedicada a projectos digitais, entre os quais, os recentemente lançados áudio-guias Nazaré Museum, com informação para os visitantes sobre as diferentes rotas que podem fazer na Nazaré - a "Maria da Nazaré" criou uma embalagem em triângulo e colocou lá dentro um, apenas um, carapau. Isto permite que quem não conhece prove e satisfaça a curiosidade. "Os estrangeiros não vão comprar meia dúzia ou uma dúzia de carapaus, como as mulheres vendem na praia, mas são capazes de comprar um para saber como é. " E ainda para mais porque a embalagem conta a história desta tradição, em português, inglês e francês. A Nazaré sempre se encheu de gente para o Verão. E ainda hoje se vêem as mulheres nas ruas segurando placas anunciando quartos para alugar. Mas foram as ondas gigantes surfadas por Garrett McNamara que recentemente lhe deram fama mundial. "Aparecem muitos turistas a perguntar a que horas é a onda gigante", ri Samuel. "Temos de melhorar a informação que damos porque as pessoas têm a expectativa de ver ondas grandes todos os dias, e não é assim. "O facto é que aparecem muito mais estrangeiros e, em particular, muitos japoneses e coreanos, que ficam surpreendidos a olhar para o peixe a secar. Quem não fica nada surpreendido são os africanos - que usam muito peixe seco nos seus cozinhados e chegam a vir à Nazaré de propósito para o comprar. A ideia de Samuel e Inês de vender um carapau com explicação incluída é boa, mas não será certamente suficiente para salvar o carapau seco se nada mais acontecer. É aqui que entra a tal convergência de interesses. Acontece que o Endògenos se interessou pelo carapau seco - até porque foi um produto que o chef António Alexandre já trabalhou no passado - e que a Câmara da Nazaré, dirigida por Walter Chicharro, está também muito empenhada em não deixar morrer a tradição, que considera parte fundamental da identidade nazarena. "Estas mulheres, com o seu trabalho, preservam grande parte do património da Nazaré", diz o presidente da câmara. "Por isso, queremos melhorar as condições em que trabalham. " O projecto que a autarquia está a desenvolver prevê o reaproveitamento de uma área no interior do centro cultural, que funciona no edifício da antiga lota, precisamente em frente ao estendal. Aí, as peixeiras terão um espaço para amanhar o peixe e fazer a salmoura - algo que hoje a Maria da Nazaré, ou seja, a Inês e a mãe, faz no mercado municipal e as outras fazem na praia. O objectivo é também permitir que os turistas e outros visitantes assistam ao processo. Depois da salmoura, as mulheres poderão atravessar a rua e pôr o peixe a secar nos paneiros, numa zona que hoje está muito danificada (até por causa dos recentes temporais) e que será reabilitada com um projecto do arquitecto paisagista Álvaro Manso. "Queremos tornar a secagem num museu vivo", frisa Walter Chicharro. "E isso é uma prioridade para a Nazaré. "Para já, e enquanto este projecto não se concretiza, a câmara está a planear, para o Verão, a primeira Mostra do Carapau Seco, mais uma oportunidade para mostrar o que acreditam que é o potencial gastronómico deste produto. Potencial que, para já, foi explorado por António Alexandre em colaboração com Ana Pereira, da 8 ó 80, no jantar acompanhado por vinhos da Quinta do Gradil, do Cadaval. Houve carapau - neste caso, foi o "enjoado" o único utilizado - de várias formas. Para entrada, apareceu em patê, em patanisca e em pizza. Depois, num wrap tradicional e noutro com couve, acompanhado por amendoim e mel (dois outros produtos que o Endògenos está a tentar valorizar), seguido por uma sopa de peixe com um ravioli de camarão, carapau e algas. Houve ainda um muito bem conseguido arroz malandrinho com o carapau enjoado desfeito, dando uma textura e um sabor surpreendentes; e, como prato de carne, um mais arriscado frango recheado com morcela de arroz, espinafres e carapau sobre um puré de maçã, pêra e beringela. No final, como é tradição nos jantares do Endògenos, até a sobremesa teve carapau: maçã assada com carapau, nêsperas, mel caramelizado, pêra grelhada e gelado de amendoim e mel. Samuel Fialho tem uma ideia muito clara do que gostaria que fosse o futuro do carapau seco. "Era importante que este produto começasse a ser usado nos restaurantes da Nazaré, porque as pessoas vêem-no aqui à venda e não conseguem prová-lo nos restaurantes. Era bom tê-lo pelo menos nas entradas, num patê por exemplo. " Mas há um grande obstáculo, que Samuel explica, e que Abel, o dono da Taberna do 8 ó 80, confirma: a fiscalização. Enquanto não estiverem garantidas as condições de higiene e segurança alimentar que cumpram os requisitos da lei os restaurantes da Nazaré, não vão servir o peixe seco, mesmo que muitos nazarenos o comam diariamente nas suas casas. Ninguém quer correr o risco de ter o estabelecimento fechado por causa disso. Solução? Avançar com o processo de certificação, algo em que a câmara, em colaboração com a Maria da Nazaré, quer apostar. Inês, sentada à mesa da taberna, está entusiasmada com o que provou: "Achei fabulosa a nova dimensão que o carapau seco pode ter. Há pouca malta nova a pegar nas coisas. Na minha geração, ninguém quer estragar as unhas a arranjar peixe. Mas neste momento este é o meu projecto de vida, quero levar o nome da minha avó mais longe. " Em casa, com 91 anos, Maria da Nazaré ainda insiste em fiscalizar o peixe para ver se a filha e a neta estão a fazer tudo bem. Há uma fama a respeitar, uma tradição a manter. Raul Brandão escreveu que as peixeiras da Nazaré "são a vida desta terra". No livro Os Pescadores, escrito no início da década de 1920, fala delas assim: "Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre palha o cação, o polvo, o carapau, para a seca. " Também Alves Redol descreve a "lida sem fim" destas mulheres. Hoje já são poucas. São cada vez menos. "Só com a certificação podemos crescer", diz Inês, camisola e calças pretas, botas de borracha nos pés, o cabelo claro a vir-lhe para a cara, empurrado pelo vento da praia. Diz que gostava de usar um avental típico da Nazaré e que ainda vai pensar numa forma de também não deixar que estes desapareçam quando as mulheres que começam agora a montar à nossa volta os seus estendais um dia também desaparecerem. "Mas nós sozinhos, com a Maria da Nazaré, não vamos a lado nenhum", frisa Samuel. Este tem de ser um projecto comum às mulheres que toda a vida trabalharam na secagem do peixe, as mulheres, como Ana Palmira, que hoje têm medo que "isto esteja a acabar". Inês e Samuel vêm dizer precisamente o contrário: "Isto tem futuro. "
REFERÊNCIAS:
Na Guiné-Bissau, a mutilação genital passou à clandestinidade
Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. A par da legislação, uma mudança de mentalidades, sobretudo entre a comunidade muçulmana, e a acção no terreno de várias organizações da sociedade civil têm feito descer a percentagem de raparigas com menos de 15 anos excisadas (ainda assim, eram 30%, em 2014). Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas. Mas abandonaram mesmo? Uma viagem pelas regiões Norte, Centro e Leste da Guiné para tentar perceber o que mudou. (...)

Na Guiné-Bissau, a mutilação genital passou à clandestinidade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 10 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em 2011, a Guiné-Bissau aprovou uma lei que criminaliza a mutilação genital feminina. A par da legislação, uma mudança de mentalidades, sobretudo entre a comunidade muçulmana, e a acção no terreno de várias organizações da sociedade civil têm feito descer a percentagem de raparigas com menos de 15 anos excisadas (ainda assim, eram 30%, em 2014). Até agora, mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado esta prática e fizeram-no em declarações públicas. Mas abandonaram mesmo? Uma viagem pelas regiões Norte, Centro e Leste da Guiné para tentar perceber o que mudou.
TEXTO: Quem acompanha o fenómeno da mutilação genital feminina, tem consciência da lentidão da mudança rumo à sua erradicação. Portanto, não é de estranhar que, em países onde essa mudança está em curso, surjam denúncias, aqui e ali, que apontam para a persistência desta prática. Como é o caso da Guiné-Bissau. Porém, desde que o país adoptou uma lei que proíbe a excisão das mulheres, em 2011, a prática desapareceu do espaço público. As meninas e raparigas já não são mutiladas, pelo menos à vista de toda a gente. Já em sigilo, em espaços recatados, desconfia-se de que haja quem ainda o faça. E até em bebés, para não dar tanto nas vistas. Ciente da “crescente dimensão social da excisão”, o Estado da Guiné-Bissau adoptou a Lei n. º 14/2011, que pune o crime de excisão feminina, “nas suas variadas formas”, com pena de prisão de dois a seis anos. No prefácio do Guia dos Direitos Humanos e Género dedicado à lei, assinado pelo Ministério da Justiça da Guiné-Bissau e pelas Nações Unidas, recorda-se que a lei é o culminar de um “longo” e “árduo” processo de sensibilização, ao longo de duas décadas, que “contou com a participação de vários actores”. As organizações da sociedade civil, apoiadas pela comunidade internacional, podem, justamente, reclamar vitória. O mesmo não se pode dizer dos políticos nacionais, avessos a tecerem considerações sobre um tema que lhes pode custar votos. A lei impõe a obrigatoriedade de denúncia, mas as autoridades locais policiais e judiciais temem represálias das comunidades onde vivem e trabalham. Mais de 400 comunidades anunciaram ter abandonado a prática e fizeram-no em declarações públicas, com pompa e circunstância. Mas abandonaram mesmo? Com uma abordagem de duplo olhar — mulher portuguesa e homem guineense —, percorremos as cidades e as tabancas de Norte, Centro e Leste do país, num total de 800 quilómetros, para tentarmos perceber se a lei está a ser cumprida. A viagem começa no Leste da Guiné-Bissau, zona com maior prevalência de mutilação genital feminina, dada a presença das etnias mais praticantes, como fulas, mandingas, biafadas, saracolés. Estradas mais ou menos esburacadas, a cultura milenar do arroz espraiada por vastos terrenos pantanosos e férteis, a ponte sobre o rio salgado de Geba, abutres, que ali se chamam djugudés, e esvoaçam à passagem dos carros, um cartaz onde se lê que o “fanado di mindjer” não faz parte dos cinco pilares do islão (ao contrário da circuncisão masculina). Fanado é o nome crioulo para o ritual secular que, a pretexto de iniciar as meninas na idade adulta, inclui a ablação parcial dos seus órgãos genitais. No escritório da Plan International, saúde, saneamento básico e educação, nomeadamente a escolarização das meninas, são referidas como as principais preocupações da população da região de Bafatá. Ninguém duvida do “grande impacto” da lei, mas alertam para as resistências que persistem. Um funcionário judicial que trabalha para a comunidade internacional, e que não pode ser identificado, confirma que já não se realizam rituais públicos, mas isso não quer dizer que a prática tenha desaparecido. Duvida da aplicação prática da lei e da genuinidade das muitas declarações públicas em que, com pompa e circunstância, as tabancas assumem o compromisso de abandonar a prática. Os dois casos de prática posterior à criminalização julgados em Bafatá foram acompanhados com “revolta” pela população local, deixando claras as “bolsas de resistência” que consideram a lei de 2011 uma interferência do Estado na vida privada das famílias e comunidades guineenses. Poucos dias após a publicação da lei no Boletim Oficial (equivalente ao Diário da República), quatro fanatecas (excisadoras) de Bafatá submeteram à excisão outras tantas crianças, entre os dois e os quatro anos. O crime foi denunciado e a polícia de Bafatá agiu, perante a forte pressão de activistas locais, liderada pela presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau, Fatumata Djau Baldé, já munida com a força da lei. As quatro fanatecas — duas alegadamente familiares de um respeitado chefe local — foram detidas, mas, devido à pressão de líderes religiosos, acabaram por ser libertadas dias depois. Literalmente com o Boletim Oficial na mão, que ia mostrando a quem lhe cruzasse o caminho, Fatumata Baldé mudou-se de Bissau para Bafatá “para melhor pressionar a polícia e a justiça” a aplicarem a lei. Nos primeiros momentos após a criminalização da prática, até os jornalistas tinham medo de noticiar as denúncias dos activistas. Apenas a agência Lusa acompanhou os casos de perto e no terreno. Após vários dias de reuniões intermináveis com o governo local e elementos do poder judicial, as quatro fanatecas acabaram por ser novamente detidas e julgadas pelo tribunal regional de Bafatá, naquele que foi o primeiro julgamento desta natureza na Guiné-Bissau, uma “primeira vitória contra um crime antigo”, nas palavras de Fatumata Baldé. Condenadas a três anos, com penas suspensas, as mulheres de idade avançada viram as penas revertidas em multas, que, segundo fontes judiciais, foram pagas por familiares. O mesmo não aconteceu com outro caso, em Fevereiro de 2013, quando um guineense a viver em Portugal voltou à sua aldeia natal, na região de Gabú, e mandou excisar quatro crianças da sua família. O homem foi detido pela polícia, mas apenas por algumas horas, sendo posto em liberdade por alegada ordem do governador de Gabú. Sob a pressão do Comité Contra as Práticas Nefastas, a justiça convocou o suspeito, mas este, avisado por alguém, desapareceu da Guiné-Bissau antes disso, tal como as duas fanatecas autoras materiais do crime. As suspeitas são muitas: há fanatecas ambulantes, que extravasam fronteiras, a prática é agora executada em crianças, que não podem reclamar, as meninas são introduzidas, às escondidas, no fanado dos rapazes, que continua a realizar-se. Não tem provas, nem testemunhou directamente casos, mas Adamaia Gavancho admite essas hipóteses. É activista da René-Renté, uma das organizações que integrou o Projeto Djinopi, que, durante cinco anos, combateu a mutilação genital feminina na Guiné em dois eixos: reconversão profissional das excisadoras e campanhas de sensibilização para cada público-alvo. O delegado de saúde de Bafatá também não tem dúvidas de que “continuam a fazer a prática de uma forma clandestina, escondida” e que até “simulam que a criança furou uma orelha e que chora por isso”. Julião Mandim defende que a mutilação genital “deve ser banida”, porque “tem muitas consequências no momento do parto”. Braima Embaló, sociólogo, activista e agente de ligação do Comité Contra as Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, conduz-nos a uma tabanca em chão dominado pela etnia fula. Agachada sobre um banco tradicional de madeira está Umo Baldé, mas depressa surgem cadeiras de plástico de todos os lados para sentar os convidados. Umo era a chefe das fanatecas do reino de Cossará e garante que a mutilação genital feminina já não se faz. “É como quem bebia álcool, nunca mais volta aos locais da má vida”, compara. As fanatecas são mulheres matronas, geralmente também parteiras ou curandeiras tradicionais, a quem é reconhecido um prestigiado estatuto social para executar o corte dos órgãos genitais. Agora viúva, Umo admite estar preocupada com o sustento das “muitas bocas” que tem para alimentar, no conceito africano de família alargada. Já sem arcaboiço para trabalhar no campo, vende tabaco, aos molhos. Enquanto fanateca, tinha melhor vida. Mas o Estado disse para parar e o Estado não se contesta — se é lei, é para obedecer. Vamos ouvir esta frase vezes sem conta ao longo da viagem. Braima Embaló conta 25 fanatecas que, no sector de Bafatá, estão agora a sensibilizar as comunidades para abandonarem a prática. Ainda há “resistência”, mais nas tabancas do que na cidade, garante o activista, que trabalha com 20 comunidades que garantem ser contra a prática. Mas ele sabe que esta ainda não acabou. “Fazem a bebés, no sigilo”, denuncia, recordando “a tragédia” que afectou uma menina, sujeita a um “corte demais”, numa aldeia vizinha. Além disso, relata, “as fanatecas são móveis”, circulam entre tabancas e até saem da Guiné-Bissau para os países vizinhos - Senegal e Guiné-Conacri, ambos com leis que proíbem a prática, mas igualmente listados pela comunidade internacional como países praticantes (no segundo caso, com um dos mais elevados índices de vítimas). Também saem para a Europa, incluindo Portugal, garante Braima, embora nunca tenha conseguido apanhar ninguém em flagrante. A denúncia às autoridades esbarra com a proximidade entre estas e as próprias comunidades. Também por isso — assinala o activista — os políticos não se destacam na oposição à prática, porque isso lhes pode custar votos entre as etnias islamizadas (convertidas ao islão e não muçulmanas de origem), que, no caso da Guiné-Bissau, são as únicas que praticam a excisão. O ritual do fanado, que era publicamente anunciado à comunidade, já não se faz— e isso é um princípio. A estrada de terra vermelha e vegetação verde desemboca na mais antiga aldeia mandinga, onde provavelmente terá sido construída a primeira mesquita da Guiné. O comité de Bidjine está reunido e fala a uma só voz. Chefes de tabanca e líderes religiosos, uma cúpula de homens no posto da idade, garantem que nunca mais ouviram falar de nenhum caso desde que a lei contra a mutilação foi aprovada. Não foi fácil convencerem a comunidade a abandonar uma prática que consideram “nociva e proibida”, mas levaram a sensibilização porta a porta e, a 16 de Fevereiro de 2016, fizeram uma declaração pública de erradicação da excisão feminina. Não pararam por aí. Um grupo de participação infantil, com crianças e jovens dos 10 aos 17 anos, raparigas e rapazes, continua a “vigiar as práticas nefastas”. Por exemplo, o casamento forçado ou a desigualdade do sexo feminino na escolarização. “Há mais meninas do que meninos nas escolas daqui”, dizem, orgulhosos, os líderes da comunidade. “A olho nu não se vê” a mutilação genital feminina na região de Gabú, provavelmente a mais arreigada à prática, até pela fronteira com a Guiné-Conacri, país onde, apesar de a lei o proibir, praticamente todas as mulheres são sujeitas à excisão. “Dentro do perímetro urbano, esta situação já não se verifica” e as pessoas estão demasiado “entrelaçadas” para conseguirem ocultar a prática da comunidade, garante o governador regional de Gabú, atribuindo mérito à lei, mas, sobretudo, às “tantas sensibilizações” que levaram as famílias a “compreender o risco” da excisão. “Nenhum líder religioso muçulmano pode dar justificativo a esta prática”, frisa o governador, também ele muçulmano. “Estamos mesmo na rota de uma separação de vez com este acto, que (. . . ) é deveras humilhante para quem é muçulmano”, considera Abdu Sambu. Atrás do palácio do governador, edifício colonial com varanda privilegiada sobre a cidade, Gibril Bodjam lidera o Conselho da Juventude de Gabú para debater os problemas que afectam os jovens. “Mesmo com a lei, há pessoas que estão a resistir, que estão a desafiar o Estado. Mudar a mentalidade das pessoas não é nada fácil”, reflecte, acusando a comunidade de não colaborar, com denúncias, por “medo”. À sala pequena chega, entretanto, o imame (sacerdote islâmico) de um dos bairros de Gabú, Ibrahima Baldé. Há muito tempo que não vê nem presencia a prática. “Não posso dizer que acabou”, esclarece, contando, porém, que costumava ser chamado pelos chefes de família para testemunhar o fanado e tal deixou de acontecer. Enquanto professor corânico, era comum ser informado pelas famílias sobre a ausência das meninas, quando estas eram submetidas ao fanado, e há muito que ninguém o faz. Apesar dos relatos pontuais sobre este ou aquele imame que se recusa a respeitar a lei, Ibrahima Baldé frisa que os líderes religiosos não podem ceder à pressão da comunidade e têm de cumprir o decreto. O imame deixa a sala e abre-se espaço para iniciar conversa com uma jovem mulher, membro do Conselho da Juventude de Gabú, a prova de que o tema já não é tabu. Cadidjatu Candé, de 23 anos, não se coíbe de dar o seu ponto de vista sobre o tema. Antes da lei, era muito mais difícil convencer uma mulher a falar. “Fui submetida à mutilação e sei muitíssimo bem qual é a consequência”, diz. “São vastas. Explicá-las é difícil”, refugia-se. Sobre a tradicional passagem do ritual de geração em geração, a animadora cultural garante que a sua filha de dois anos não será excisada. “A minha mãe cuida de mim, a mãe do meu marido cuida do meu marido, mas eu e o meu marido é que cuidamos da nossa filha”, distingue. “Convencer o meu marido não seria uma coisa difícil. É só mostrar qual é a consequência. Não é falar, é mostrar. Ver uma vez é melhor do que ouvir dez vezes”, acredita. Já adulta, Cadidjatu Candé apontou o dedo à mãe por a ter submetido ao ritual, mas recebeu um pedido de desculpas. “O que é feito já é feito, não pode ser retirado. Mas ela também me prometeu que sobre as minhas filhas sou eu que vou decidir e que ela vai apoiar-me. ”Os mais velhos, sobretudo homens, são os que oferecem mais resistência ao fim da excisão. “Dizem que é cultura, que não pode acabar, que uma mulher não mutilada é impura, não pode cozinhar para o marido, não pode ir à mesquita, não se pode misturar com as mulheres mutiladas. ” Mas, desde que há uma lei e que os líderes religiosos muçulmanos têm mais conhecimento sobre o que diz o livro sagrado Alcorão, a prática “está a diminuir”. Umo Embaló já foi a Meca, onde ficou a saber que muitas mulheres muçulmanas não são mutiladas. “Pedi perdão a Deus pelos pecados que cometi enquanto fanateca, agora sei que não o devia ter feito”, lamenta. “Além de Deus, acima dos homens está o Estado. Se o Estado ditar uma ordem, ninguém deve desobedecer. A partir do momento em que fomos informadas da lei, tivemos de parar, até porque vimos com os nossos olhos as consequências da prática. Faz tempo que abandonámos a prática nesta zona”, relata a ex-fanateca de Gabú. Nenegale, Otcha e Sumae são todas mulheres de idade avançada e, em comum, têm a herança das facas na linhagem familiar. Enquanto o quotidiano do bairro onde vivem acontece — as crianças brincam, os animais circulam devagar, ao calor, as mulheres estendem roupa e preparam a comida —, todas garantem ter baixado as lâminas. Perderam dinheiro, mas ganharam descanso. Não conhecem fanatecas ainda em funções, nem ouviram falar das tais excisadoras ambulantes. Tradicionalmente, o fanado é anunciado aos vizinhos, é uma prática de exposição pública na comunidade — de modo que, para elas, não faz sentido falar em clandestinidade ou encobrimento. No Hospital Regional de Gabú, o director clínico acha que “a prática está a diminuir, porque as fanatecas têm medo da lei”, mas Flávio Nhaga acha que as mulheres ainda não tomaram consciência dos problemas que a excisão traz para a saúde, até porque só contactam com as unidades de saúde quando têm um problema e não para observação regular. “Podem sangrar até morrer”, frisa, explicando que, na região, há um grave problema com fístulas — nos últimos anos operaram 46 mulheres, mas há muitas que ainda esperam essa oportunidade. Flávio Nhaga está em Gabú apenas há dois anos, mas, no posto anterior, lembra-se de suspeitar de um caso, em 2013, quando viu uma criança de quatro meses com sangramento vaginal. A criança foi trazida por uma mulher mais velha, que, quando ele a abordou, desapareceu e deixou-o com a criança nos braços. Se isso lhe voltar a acontecer, garante que fará denúncia. Na zona rural de Gã-Mamudo, a resistência está na cara enfadada do imame Lamini Turé, sentado sobre um tronco comprido de madeira, com o Alcorão entre as mãos. Faz parte do comité de homens grandis (mais velhos e experientes). “Estando de acordo ou não, o Estado é o Estado e todos estamos debaixo da lei”, limita-se a dizer, sem grande convicção. A conversa é suspensa por momentos, para deixar passar a algazarra da comitiva que segue o cancuran, figura mítica do ritual de passagem, coberta de um tecido vermelho, que vai desfiando a espada no ar. “É o fanado dos rapazes”, dizem e repetem, para garantir que percebemos. O das raparigas “ka tem mas” (já não faz mais) e nem sequer há fanatecas vivas para o fazerem, garantem, acolhendo com um esgar a ideia de que meninas e meninos se possam misturar num ritual que sempre se fez em separado. Sob o alpendre, o imame de Cutia pincela uma tábua de madeira inscrita com versículos do Alcorão. Ao seu lado, nesta zona do Centro do país, estão quatro mulheres grandis, que, quando foram submetidas ao fanado, não conheciam as consequências da prática. São agora vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, uma espécie de polícia secreta que reporta eventuais casos de mutilação, ou outras práticas nocivas, para que o processo criminal possa ser desencadeado. Binta Seidi apressa-se a mostrar o telemóvel que guarda numa bolsa salmão de trazer à cintura. Foi o comité que lhe deu o aparelho, mas já não tem saldo para cumprir a função de reportar. Contas à parte, a organização liderada por Fatumata Baldé tem uma impressionante rede de vigilantes no terreno. “O combate leva algum tempo, mas não há nada que se faça sem que a população saiba”, assevera Binta Seidi, que vai tentando enganar mulheres da comunidade com falsos incentivos ao fanado, para confirmar se o fazem às escondidas. Sem sucesso, ninguém contesta a lei. O imame Bubacar Seidi ri-se das especulações sobre meninas pequenas e excisadoras ambulantes, que considera descabidas. “O Estado disse para parar e a tabanca parou”, garante. O fanado é uma cerimónia sagrada, que implica toda a comunidade e, por isso, fazer às escondidas não faz sentido. As matronas têm de estar presentes a participar e presenciar, para “correr bem”, explica Binta Seidi. Enquanto a conversa segue, um grupo de meninas dirige-se para a escola, onde se ensinam “direitos e deveres iguais” para todas as crianças. “São quase iguais. Dantes havia separação, os rapazes iam, elas não. Mas agora vão todos. Aprendem juntos, as turmas são mistas. Há raparigas que têm melhores notas do que os rapazes. Estudam mais porque querem atingir o nível deles”, diz o director da escola básica local, Iaia Sow. Apesar de, em 23 professores, ainda só quatro serem mulheres, a associação dos alunos da escola é presidida por uma rapariga. O problema é quando as meninas vão à escola e aparecem grávidas por obra e graça de professores ou alunos, denuncia a comunidade, lamentando que o castigo recaia apenas sobre a menina, que, com a gravidez não planeada, abandonará a escola, mas nada aconteça ao pai da criança. Aua Nanqui, representante das mulheres locais, conta que, na tabanca de Mandingará, elas foram pioneiras a rejeitar o fanado, por causa das consequências no parto — e os homens acompanharam a sua decisão. “Aqui as mulheres decidiram abandonar primeiro e antes de o Estado impor”, recorda. “O mais importante para uma mulher é gerar filhos, ir ou não ir ao fanado é irrelevante, desde que consiga procriar”, valoriza. Ninguém quer ir para a prisão, por isso cumpre-se a lei. Mas já antes os agentes de saúde comunitários tinham sido convincentes sobre os riscos da prática para a saúde. Como em muitos outros locais, já se fizeram mangadel (muitos) seminários e conferências sobre mutilação genital feminina. “As coisas mudaram, a educação é diferente, os tempos são outros”, observa. Duas dezenas de mulheres - grandis, badjudas e mininas, mais velhas, jovens e crianças — suspendem o quotidiano na tabanca de Linjana para exprimirem a sua opinião sobre o combate à mutilação genital. Os panos coloridos que cobrem as cabeças e os corpos contrastam com os rostos fechados. O assunto é sério e até há pouco tempo nem falar sobre ele era possível. Agora, as antenas humanas do Comité Contra as Práticas Nefastas estão espalhadas por ali, os médicos estão mais atentos e, nas mesquitas, os imames apoiam o Estado neste combate. O fim da prática não prejudicou os casamentos — os homens de agora aceitam mulheres não excisadas. Todos garantem que nenhuma das meninas ainda bebés que andam pelos colos das mulheres ali concentradas será excisada. “É crime”, assinalam. “Temos medo da lei do Estado, a lei do Estado é perigosa”, diz Ké Messén Seidi, comité de tabanca (figura escolhida pela aldeia para a gerir). Bubacar Djaló é a autoridade máxima entre os muçulmanos da Guiné-Bissau. “Nunca o islão recomenda desafiar a autoridade”, destaca. “A autoridade estatal e a autoridade religiosa coabitam. A religião está sob a autoridade do Estado, desde que este não tome decisões contrárias à religião”, realça. Ora, o fanado remete para “os usos e costumes dos povos” e não decorre de “decretos religiosos”, está “mais ligado à cultura africana do que à cultura islâmica”, distingue. O islão não recomenda a prática e todos os sábios muçulmanos sabem disso — mas isso não impede que alguns líderes religiosos atribuam “um cunho islâmico” ao ritual, admite o presidente da União Nacional dos Imames da Guiné-Bissau. “Quem infringir a lei será castigado. Não há divergência de pontos de vista, há convergência de posições”, sublinha. Há relatos de imames que aderiram ao combate à prática, mas depois recuaram, e de outros que usam as kutba (equivalentes às homilias) para a defenderem. “O imame não pode ser factor de divisão”, recomenda. “Quem pode falar do corpo humano é um médico. Um ignorante em medicina não pode prescrever nada a um doente. Quando o assunto é algo ligado à lei, é preciso ouvir quem tem formação nessa matéria”, insiste. Um grupo de rapazes banha-se no rio Mansoa, atravessado pela ponte Amílcar Cabral, nome do líder da luta pela independência da Guiné-Bissau, assassinado em 1973. Rumo a norte, passa-se um posto de controlo com a indicação de “Gabarito”, que aqui remete para mercadorias de grande envergadura e pelo qual passam enormes camiões provenientes do Senegal, demasiado pesados para as estradas existentes. O cenário muda, agora alimentado por água e um horizonte a perder de vista, pontuado por palmeiras e pirogas de madeira. A conversa é, na essência, a mesma: a mutilação genital feminina já não se pratica. Idrissa Dafé, sobrinho do chefe da tabanca Tarero, conta que, há dois anos, uma fanateca foi apanhada em flagrante numa aldeia próxima em quilómetros, mas muito distante em acesso. A mãe queria submeter a filha ao fanado, mas o pai chamou a polícia de Ingoré. Souberam do caso através da equipa de vigilantes do Comité Contra as Práticas Nefastas, mais uma vez. Há ainda outro caso a ser analisado, no tribunal regional de Bissorá: uma avó levou as duas netas ao fanado, na tabanca de Tabato, arredores de Bigene, território guineense a escassos quilómetros do Senegal. Na tabanca Boavista, as mulheres estão todas nas bolanhas. As meninas já tomaram consciência e não aceitam a prática — e também só casam quando querem. As fanatecas já morreram e não tiveram sucessoras. Ouve-se o chamamento para a oração e com ele a garantia de que os líderes islâmicos apoiam o fim da prática, que nada tem que ver com o islão. No final da oração, o imame Mamadu Djau junta-se à conversa. É jovem e esclarecido, mas diz que não compete aos líderes islâmicos denunciarem as pessoas da comunidade. Porém, garante, fazem-no ao comité de tabanca, que, por sua vez, pode comunicar com as autoridades civis competentes. A mutilação “é um prejuízo para a saúde pública” e, por isso, o imame considera que as crianças devem ser mais bem seguidas nos hospitais. A maior prova de que “o tema deixou de ser tabu” está na abordagem que ele fez junto da própria mãe, “conservadora”, mas que “confirmou as graves consequências e até falou de casos de morte”. Em 2013, foi anunciada uma fatwa (decreto islâmico) contra a prática, mas os imames guineenses ainda têm muita falta de formação teológica, avalia o líder religioso. Recordando um episódio em que foi abordado por um rapaz que questionou o seu respeito ao islão, por se opor à prática, o imame garante que não cederá a pressões da comunidade. Um quilómetro mato adentro e desemboca-se numa clareira, com um jardim infantil por estrear, à espera de um Estado que falha muitas vezes. É ali que funciona a Rádio Balafon, que tem um programa de saúde semanal. O jornalista César Cumuca acredita nas suspeitas de que a mutilação se pratica em bebés e nas fanatecas não declaradas nos bairros e desvaloriza a autenticidade das declarações públicas de erradicação da prática. “A única forma de saber é através dos agentes de saúde, reforçando vigilância nos hospitais e referenciando crianças”, defende. O bairro de Santa Clara fica nos confins dos arrabaldes da capital guineense. “De início, a comunidade sentiu-se ofendida com o Estado, foi complicado, houve uma reacção agressiva, ofensas mesmo”, relata Adama Buaro. Líder de uma manjoandade (grupo de mulheres), ela acredita que “o Estado nunca adopta leis contra o povo”, por isso a decisão de pousar as facas foi fácil. O que a preocupa actualmente são as dificuldades para as mulheres e deixa um apelo à necessidade de melhorar as suas vidas. “Há muitas mulheres que não sabem ler nem escrever”, explica. “Se uma mulher tiver conhecimento, escola, se souber ler e escrever, vai saber gerir melhor a sua vida e da sua família”, acredita. Nas entranhas profundas de Bissau fica o bairro Plack 1, onde o imame chama para a oração. Sabado Seidi tem três filhas e nenhuma delas foi ao fanado. “A princípio, não foi fácil convencer os mais velhos. ”Sueila Biai, de 25 anos, reconhece que “há divergências entre novas e velhas”. Na Guiné, 75% da população tem menos de 25 anos e o índice de crescimento populacional é dos mais altos do mundo. À entrada do Bairro Militar, um cartaz explica, recorrendo a um imame desenhado, que o fanado não é um dos cinco pilares do islão. A activista comunitária Adama Baldé aplaude o Estado por ter adoptado uma lei. “Inicialmente houve vozes contra, acusaram-nos de injúrias, humilhações e de nos vendermos à comunidade internacional. ” Tem um discurso assertivo, de mulher capacitada, que quer “acabar com tudo o que é nefasto na cultura”. Reclama vitória para os activistas, mas promete manter a vigilância. “Estamos conscientes de que continua, não pode acabar de um dia para o outro, é um processo. ”O advogado Jorge Gomes, autor das acusações de alguns dos casos de mutilação levados a tribunal, admite que a aplicação da lei seja “para inglês ver”. Os autores dos crimes “foram apanhados em flagrante e confessaram, mas não houve punição severa”, lamenta, sublinhando que o desconhecimento não isenta de responsabilidade, para mais quando foram feitas várias campanhas de sensibilização. “Onde está o efeito dissuasor?”, questiona, atribuindo aos magistrados a principal “culpa” pela não aplicação efectiva da lei. “Dantes fazia-se de forma aberta, hoje as pessoas continuam a fazer, mas de forma oculta, nos esconderijos. Fazem em bebés, muitas vezes descobre-se nos hospitais. Mas abrandou, são situações isoladas”, refere. Porém, isso deve conduzir a uma investigação “cautelosa”. A organização não governamental alemã Target foca a sua intervenção, em exclusivo, em “descolar a prática da religião islâmica”. Neste momento, trabalha com 11 imames e, entre os mais de mil que existem, sinaliza 450 “não resistentes”. Esta intervenção — explica Fernanda Machado — surge no encalço da intervenção do projecto Djinopi, coordenado por Paula da Costa, portuguesa que há décadas combate a excisão na Guiné-Bissau. “Agora só estamos a trabalhar os resistentes”, refere, distinguindo “resistência receptiva” e “resistência activa”, que encontram mais na zona Leste, “mais radical”. A dada altura, na zona de Tantan Cossé, foram recebidos com agressividade e ameaças, mas, em geral, conseguem entrar e conversar nas tabancas. A Liga Guineense para os Direitos Humanos duvida da veracidade das declarações de abandono da prática que têm proliferado desde a adopção da lei. Assinalando que o cumprimento da lei tem enfrentado muitas dificuldades, reconhece que houve evolução. Um estudo lançado em Fevereiro revelava que a prática continua e que há descoordenação no combate — entre uma grande determinação das organizações da sociedade civil, com apoio da comunidade internacional, e uma falta de correspondência das autoridades nacionais, sejam judiciais, policiais e políticas. “Não se pode acabar com uma prática secular neste período de tempo; temos a noção de que há pessoas que estão a fazer às escondidas”, admite a presidente do Comité Contra as Práticas Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança da Guiné-Bissau. “Mas quem faz uma coisa às escondidas é porque sabe que o que faz não é correcto e um dia há-de cansar-se de se esconder e irá simplesmente abandonar a prática”, acredita Fatumata Djau Baldé, o principal rosto do combate à mutilação genital feminina na Guiné-Bissau. “O mais importante é que hoje já têm consciência e, em qualquer canto da Guiné, todo o mundo sabe que a mutilação é má e é crime. Hoje, mesmo os resistentes já aceitam abordar a questão. O tabu quebrou-se e todo o mundo fala”, descreve. A intervenção do comité já chegou a 786 comunidades (num horizonte de cinco mil), onde, após dois anos de trabalho, promotores locais ficam habilitados a reproduzir a acção, num eficiente esquema multiplicador em rede. Das 786 comunidades, mais de 400 já declararam ter abandonado a prática. Desde 2011, o comité registou dez julgamentos, cinco com sentença (dois em Bafatá, dois em Bissau e um em Gabú), num máximo de três anos de prisão. “A justiça não está a fazer o seu trabalho”, denuncia Fatumata Baldé, acrescentando uma suspeita ao rol: crianças da Guiné-Conacri residentes na Guiné-Bissau são levadas para a terra natal para serem excisadas lá e depois voltam. “A maioria dos imames está do nosso lado, mas existem alguns focos de resistência”, reconhece. Nas zonas com maior prevalência da prática, Bafatá e Gabú, os polícias locais têm medo de aplicar a lei, diz. Já o pessoal médico diz não ter recebido instruções oficiais para reportar casos. “Os médicos têm obrigação de respeitar a lei e deviam referenciar as meninas e mulheres sujeitas à mutilação”, sustenta, anunciando que o comité vai afixar um cartaz em todas as unidades de saúde sobre o dever de denúncia. Neste momento, o comité está em mais de 200 comunidades resistentes. “Cada zona tem o seu poço de resistência”, diz a dirigente do comité, parceiro da organização portuguesa P&D Factor, que coordena o único projecto de combate à mutilação genital financiado pelo Governo português na Guiné-Bissau. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo dados oficiais, 39% das crianças com menos de 15 anos tinham sido excisadas em 2010, percentagem que desceu para 30% em 2014, redução acompanhada por uma mudança de mentalidade. Por isso, Fatumata Baldé estima que a taxa desça outros 10% neste ano e, a manter-se a tendência, que a prática seja erradicada em 2030. Ainda falta uma orientação oficial dos responsáveis políticos do país e um posicionamento público comum dos imames, mas Fatumata Baldé está optimista. “Vamos conseguir lá chegar”, acredita esta mulher, que, nas acções de sensibilização, faz questão de usar imagens das marcas da mutilação no seu corpo. * Esta reportagem foi feita ao abrigo das Bolsas de Criação Jornalística, atribuídas pela Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), em parceria com o CESA, da Universidade de Lisboa, o CEIS XX, da Universidade de Coimbra e a associação Coolpolitics, e financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian
REFERÊNCIAS:
Imigração: A Alemanha não quer mais "tolerados"
O Bundestag aprovou este mês uma lei que abre novas condições de integração aos imigrantes “tolerados” no território mas que também aponta a prisão a quem chega à Alemanha vindo de outro Estado-membro ou pelo tráfico do Mediterrâneo. “Pensava que a Europa era um lugar onde estaríamos seguros". (...)

Imigração: A Alemanha não quer mais "tolerados"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 21 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Bundestag aprovou este mês uma lei que abre novas condições de integração aos imigrantes “tolerados” no território mas que também aponta a prisão a quem chega à Alemanha vindo de outro Estado-membro ou pelo tráfico do Mediterrâneo. “Pensava que a Europa era um lugar onde estaríamos seguros".
TEXTO: Stephan Blay tenta fazer-nos entrar sem que estranhemos os preparos à casa. Não costuma receber visitas. Deixou de saber confiar. Assim que ouve o trinco da porta destravar-se, volta o corpo de braços abertos e declama: “Welcome to my prison [Bem-vindos à minha prisão]. ” Entramos. O chá fica a fazer. Ao lado estão malas afogadas em fita-cola, uma torre de livros e cadernos, dossiers, meias dobradas ao jeito de avó, chinelos, mantas, um Pai Natal que abana o braço como um gato da sorte, carregadores de telemóvel, champôs, um cinzeiro, uma ventoinha, uma televisão e um saco de maçãs (Stephan só come fruta). As paredes são como um diário. A verde, desenhou os irmãos como bonecos de escola primária: corpos de palito e cabeças desproporcionais com riscos de cabelo. Junto ao interruptor, lê-se o diálogo que lhe anda a “perturbar a cabeça”:— Sabes de onde vens?— Não é da tua conta. — Quem és tu?— Eu venho de onde venho. Sou quem sou. O músico e dançarino costa-marfinense vive nos arredores de Hamburgo há um ano e a polícia faz-lhe perguntas todas as semanas, “por estar na rua, por não estar, de dia, de noite, não interessa a fazer o quê”. Pedem-lhe os documentos, vasculham-lhe o passado com frequência. Numa daquelas manhãs em que acordou sem fôlego — porque “a vida torna-se demasiado louca quando a cabeça funciona 24 horas por dia” —, Stephan pegou na bicicleta e foi para a Holanda, “que é já ali”, aponta através da janela. Não sabia como, mas queria escapar ao estado de intermitência a que, na Alemanha, chamam Duldung (ou “Aussetzung der Abschiebung”, isto é, suspensão de deportação). Trata-se de um certificado de “tolerância” atribuído pelas autoridades em resposta a um segundo pedido de protecção internacional dentro da União Europeia (UE). Pode balançar-se para o lado da deportação ou para mais uns meses em terras germânicas e resulta da inoperância do actual sistema de asilo europeu, baseado no regulamento de Dublin III. Na tentativa de melhor definir a política de asilo nacional, o parlamento federal alemão aprovou este mês a revisão da lei de residência, alargando condições para a permanência de estrangeiros que já habitam no país, por um lado, e impondo restrições à entrada de novos migrantes. “Já tentaram prender-me dez ou 20 vezes. Há uns meses, vieram buscar-me porque um vizinho se queixou de que eu fazia barulho. Eu sou músico, preciso de cantar. Para mim, música não é barulho. Expliquei-lhes. ” Stephan estudou Música na Libéria, o país onde cresceu entre os estilhaços de 11 anos de guerra civil e de onde fugiu, em 2006, com três irmãos. “No meu país, quem não obedece às regras do chefe tem de sair, senão, matam-te durante a noite”, explica. O chefe, neste caso, era o pai, a quem Stephan rejeitou seguir os passos no islão. A primeira língua de terra que conheceu na Europa foi Lampedusa, há oito anos. Naquela noite, era uma espécie de “terra prometida”, avistada a bordo de um barco como um enxame de luzes. “Só queríamos segui-las; tudo o resto deixou de existir. ” O resto era um grande bloco aquático, sem pontos cardeais nem certezas, para quem viajava no acaso. “Quando estamos no mar, não sabemos para onde vamos. Estamos simplesmente ali e há um homem que nos leva. Se o barco encontra o lugar certo, sobrevivemos, mas se falha a direcção e não há mais comida, percebemos que a vida chegou ao fim”, relata Stephan, de pernas cruzadas sobre o chão. A história é como muitas outras — só no barco em que chegou este costa-marfinense iam mais 340 migrantes —, mas sempre diferente porque, em vez de contar números, conta pessoas. Continua na vida em Harsefeld, uma pacata vila montada numa planície verde, a 25 quilómetros de Hamburgo, onde partilha o apartamento de três quartos com cinco africanos de países diferentes. “O único problema é que não nos entendemos, porque eles falam árabe e eu inglês”, observa. Quando Stephan chegou a Itália, os irmãos propuseram-lhe que seguisse viagem com eles, para os Estados Unidos. Até que se compreendesse por que recusou, a história avançou muitas páginas, para no fim se tornar simples. “Não fui capaz, não sei nadar. E a viagem no Mediterrâneo bastou-me. ” Antes do mar temperado, haviam-lhe custado a terra da Libéria, da Costa do Marfim e do Burkina Faso e as areias do Mali, da Argélia e de Marrocos. Foram seis meses de travessia. “Fizemos [Stephan e três irmãos] algumas partes a pé, outras de carro. Havia carros da AMI e pessoas que fomos encontrando pelo caminho. Paguei 300 dólares para que me levassem do Mali para a Argélia. Dali até Marrocos, caminhámos durante a noite. Foi quando um de nós morreu no deserto. Não comíamos há sete dias e não tínhamos água para beber. Ele [um dos irmãos] não aguentou. ”Stephan sobreviveu porque a cabeça fê-lo cortar o braço com uma lâmina, e então bebeu o próprio sangue. Fê-lo durante três dias. “Já não tinha outros líquidos no corpo. Não transpirava e não urinava há dias. Sabia que se bebesse podia morrer, mas, se não bebesse, morria de certeza. ” Enquanto desfia a história, vai viajando pelas marcas que tem no corpo. A do braço está lá. A do rosto foi-lhe desenhada à nascença. Perguntamos se sentiu medo nesses seis meses em que se separava de África e, porque a pergunta lhe parece europeia, ri. “Sei que toda a gente morre. Se morremos novos, é porque se calhar era a altura. Voltar para um país em guerra é que não é opção. Lá, sim, morrer é certo. ”Em Marrocos, onde passou três semanas numa cave com os irmãos, a guerra foi outra. “Todas as noites a polícia aparecia. Chegava, batia-nos e ia-se embora. ” Os dias passavam lentos, mortos, sem comida, na espera de que o vento e o mar acalmassem para que os barcos não se fizessem náufragos. No último areal africano, os marroquinos vêem nos negros sinais de perigo, bocas vindas para lhes comer a terra, mãos prontas a causar estragos. Ao fim de alguns dias, Stephan soube que “se não se apanhasse um barco, ali não haveria nada”. Assim que o mar virou prata, cada um dos irmãos (não conseguiram ir juntos na mesma embarcação) pagou 1000 dólares como ingresso e 500 para o “agente”. Quando a Europa passou a ser terra debaixo dos pés, conduziram Stephan até Bolonha, o lugar “onde as pessoas são boas mas não há emprego”, descreve. Em Itália chamavam-lhe “problema político”. Nem no mercado negro havia trabalho, e também não era isso que lhe interessava — afinal de contas, Stephan quer ser professor de dança. Um dia, olhou para o visto de residência emitido pelas autoridades italianas e partiu rumo ao Norte da Alemanha. “Sempre pensei que, estando na União Europeia, o que era válido num país fosse válido noutro. ” Mas a lei não funciona assim. Daí o traço vermelho sobre o novo documento de identificação e o baptismo de Duldung, o “tolerado”. , que oferece a possibilidade de permanecer no país por um período limitado de tempo (definido pelas autoridades, segundo cada caso) a quem ainda não tenha pedido asilo ou tenha visto o seu pedido negado. É, portanto, uma suspensão do processo de deportação, que obriga à reavaliação periódica do estatuto do estrangeiro junto dos gabinetes de imigração. Alguns acusam as autoridades italianas de lhes terem oferecido 500 euros para que abandonassem o país. Outros simplesmente alegam desconhecer o regulamento de Dublin III, que desautoriza um segundo pedido de asilo dentro da União Europeia. “O problema é que não nos vêem como seres humanos”, analisa Gafar, porta-voz do grupo e a viver na Alemanha desde 2000, altura em que “todos, sem excepção, dormiam na rua”. O activista togolês levou dez anos a legalizar-se. Ainda assim, considera-se com sorte. “Sou dos poucos que se podem dizer integrados”, reconhece. Mas se a actual legislação já estivesse em vigor quando Gafar chegou à Europa, talvez os caminhos que tomou tivessem sido menos penosos. Aprovada a 2 de Julho pelo Bundestag, a revisão da lei de residência (a Aufenthaltsgesetz) tenta resolver a ineficácia do regulamento de Dublin, cuja “ideia original era que não existissem, de todo, requerentes de asilo na Alemanha, já que eles ficariam no primeiro país da UE que os recebesse e, caso cá chegassem, seriam enviados de volta”, enquadra Maximilian Popp, editor da secção Alemanha na revista Der Spiegel, numa conversa telefónica com a Revista 2. No ano passado, recorda o jornalista, “apenas 10% das pessoas que pediram asilo foram mandadas para trás”. Primeiro, porque antes desse envio as autoridades alemãs devem comunicar com as do primeiro país receptor e aguardar uma resposta, “que muitas vezes não chega”, esclarece Maximilian. Segundo, porque, não raras vezes, os tribunais locais e regionais tomam decisões distintas quanto ao destino de cada refugiado. E, finalmente, porque “o país tem seis meses para poder ‘devolver’ o estrangeiro ao país ao qual ele pediu asilo”, período durante o qual é possível escapar às autoridades recorrendo, por exemplo, ao princípio de caridade das igrejas alemãs. Somando todas as equações, a Alemanha acabou por tornar-se o maior receptor de refugiados da União Europeia — segundo o relatório do Gabinete Europeu de Apoio ao Asilo (divulgado a 8 de Julho), em 2014, o país recebeu 202. 645 requerimentos de protecção internacional, cerca de um terço do total de pedidos dirigidos à Europa. Mas talvez a recente alteração da lei — que a torna “ambivalente”, na opinião de Maximilian Pichl, jurista da Pro Asyl — traga mudanças ao trajecto ascendente do número de refugiados no país. Sobre a parte que se refere ao direito de permanência, a legislação abre as portas aos estrangeiros que vivam em território alemão há pelo menos oito anos (seis, caso existam menores na família; ou quatro, para menores de 21 anos que tenham frequentado o sistema de ensino nacional); que pratiquem um nível básico da língua alemã; que possuam um documento de identidade (ou possam, de alguma forma, prová-la); e que sejam economicamente independentes. O Governo anunciou a legislação como um passo em frente na integração de estrangeiros no sistema nacional, mas a principal queixa entre os requerentes de asilo político assenta precisamente no facto de não conseguirem independência económica, ou seja, emprego. Apesar de estarem autorizados a integrar o mercado de trabalho três meses após entrarem no país, o tempo investido em burocracias desde que se candidatam a uma oferta é muitas vezes suficiente para que ela se perca pelo caminho. Por outro lado, “a prioridade é dada aos alemães e imigrantes económicos”, argumenta o jornalista da revista Der Spiegel, que se questiona, por isso, sobre “quantas pessoas irão realmente beneficiar da nova lei”. Um grupo que não será certamente abrangido pela actual legislação, de acordo com Maximilian Pichl, são os maiores de 17 anos (não acompanhados por adultos) sem contacto com o ensino alemão. “Eles nunca terão acesso à autorização de permanência, uma vez que ela apenas se destina aos jovens até 21 anos que tenham frequentado a escola e que vivam cá há pelo menos quatro anos”, pormenoriza. Mas este não é o capítulo mais contestado da actual legislação. A crítica tem sido particularmente dura quanto aos critérios para a emissão dos términos de residência. Na prática, “a nova regulamentação significa que qualquer refugiado pode ser preso”, resume Pichl, uma vez que permite deter e expulsar (quase de imediato) estrangeiros que tentem esconder a sua identidade, que tenham pago a contrabandistas do Mediterrâneo para chegar à UE ou que tenham “abandonado um Estado-membro antes da conclusão do processo de análise do pedido de protecção internacional desenvolvido pelas autoridades”, como sustenta o diploma. Para Pichl, esta é “uma forte regressão na política de asilo alemã”, para além de “violar o regulamento de Dublin III, segundo o qual um refugiado não pode ser preso simplesmente por estar a decorrer o seu processo de pedido de asilo”, acusa a Pro Asyl. Também Maximilian Popp, o jornalista que tem acompanhado os desenvolvimentos desde a Primavera de 2014, altura em que o projecto de lei começou a ser discutido, a mudança no sistema legislativo é “inacreditável” e só pode servir “para assustar quem planeia vir para a Alemanha”, porque, na verdade, “não há espaço suficiente nas prisões para tanta gente”. A revolta de Edriçe é maior do que a vontade de se sentar. Quando aqui chegou, rejeitou o Duldung sugerido pelas autoridades. “É contra a lei dos direitos humanos e meio caminho para nos mandarem embora”, afirma. Ao lado, sobre caixotes transformados em sofá, os colegas encorajam-no a prosseguir. “Na Itália, deram-me documentos para poder viver e trabalhar, e todos nós pensámos que esses papéis eram válidos em toda a Europa. Só quando cheguei cá é que me explicaram que apenas valiam em Itália. Por causa disso, ainda não arranjei trabalho, como do lixo, vivo na rua. ”Como se sobrevive, então, neste regime de “tolerância”? “Há pessoas que estão aqui há mais de 20 anos sem papéis. Vivem com a ajuda da Igreja e de organizações [de solidariedade social] ou entram no mercado negro. Outras não sobrevivem, morrem nas ruas, ou enlouquecem”, responde Gafar. Mas além do que indica o imigrante do Togo, está também estabelecido pelo Governo que cada requerente de asilo tem direito a uma mensalidade de cerca de 350 euros e a um local para dormir, o que provoca contestação entre alguns alemães. “As pessoas acham que não queremos trabalhar porque recebemos um subsídio, mas eu gosto e preciso de trabalhar. Quero dar o meu contributo”, sustenta Jerry, de 30 anos, natural do Burundi. O problema, segundo Gafar, é que “aqui trabalha-se para que a Europa cresça, nunca para nós mesmos”. A conversa acende os ânimos. “Nós não precisamos da Europa para nada. Só viemos para cá por causa da guerra, que é uma guerra dos ocidentais, não nossa!”, lança Edriçe, enquanto Jerry aguarda o momento para a sua deixa: “Eu vim porque pensava que a Europa era um lugar onde estaria finalmente seguro, mas o que sinto aqui é pior. ” Mesmo se o olhar devolvido para trás mostra imagens de perseguição e de guerra, são muitos os viandantes de África e do Médio Oriente que, afinal, não querem ficar por terras frias. “Se perguntarem a dez pretos se eles querem ficar na Europa, vão responder que não. Aqui não há vida nem futuro para nós. Morremos”, teme Gafar. Tem sido contra essa impotência que se batem os membros do grupo Lampedusa in Hamburg. Em 2013, os primeiros cartazes gritavam: “We didn’t survive NATO war in Libya to die in the streets of Europe [Não sobrevivemos à guerra na Líbia para morrer nas ruas da Europa]. ” Em 2015, continuam a chegar diariamente fugitivos à tenda de Gafar, à procura de soluções, de respostas. Sentam-se sobre os edredões coloridos para ouvir como é a vida na Europa, como são os dias no país que a lidera. “Assim que lhes explicamos, muitos pegam nas malas e voltam para trás”, realça o porta-voz do grupo. Jerry aproxima-se para ampliar os testemunhos. Começa por falar da casa, chega ao supermercado. Dorme no mesmo quarto com quatro pessoas, num prédio de Wolfsburg onde vivem cerca de 150 imigrantes em situações semelhantes à sua. É também no quarto que cozinha. A conversa, agora apaziguada, parece retirar-lhe a expressão que carregava no rosto. “O final de cada dia é um alívio. É sinal de que o dia passou. ” Diz que o olham de lado, sente-se discriminado “a toda a hora, no supermercado, no autocarro, no médico, na rua”, e essas são as horas que mais custam a passar. Hamburgo não tem sido notada pelos meios de comunicação como uma cidade agreste no acolhimento de estrangeiros, mas no Leste alemão, demonstrações como as do grupo PEGIDA, contra a chamada “islamização da Europa”, são frequentes. No início deste ano, as ruas de Dresden foram semanalmente invadidas por manifestantes que se opunham à entrada de migrantes no país. Mas do acontecimento levantou-se quase em instantâneo o protesto de 35 mil pessoas contra a xenofobia e a favor de uma política mais inclusiva da parte de Berlim. Gafar admite que também em Hamburgo o apoio da população segue um movimento crescente. “Esquecemos os media, porque sempre que lhes explicamos o que se passa, saem daqui e dizem outra coisa; são manipulados pelo Governo. A partir daí, passámos a contar a nossa situação às pessoas, às escolas, a organizações humanitárias. Nas manifestações, elas juntam-se a nós. É também por isso que conseguimos manter-nos aqui. ”O Café Exil é um entre muitos pontos de encontro e de esclarecimento criados por activistas que oferecem consultoria e apoio em diferentes áreas, desde a jurídica à educacional. Funciona desde 1995, como resposta a um outro episódio marcante da legislação alemã sobre o asilo político: o de 26 de Maio de 1993, quando o Parlamento aprovou por grande maioria a reformulação do artigo 16 da Lei Fundamental, restringindo o direito ao asilo. A solução, recorda a Deutsche Welle, foi marcada por intensos debates e defendida pela União Democrata Cristã (CDU), então no Governo, que via na limitação do número de refugiados vindos da guerra na Jugoslávia a garantia da estabilidade social do país. Como atesta um dos voluntários do café, “embora as pessoas se esqueçam, a imigração em massa não é uma coisa dos últimos anos”. Nenhum deles quer nomes. “Referir o Café Exil basta. Aqui estamos todos ao mesmo nível”, consideram. A partir desta sala onde o chá e o café são à discrição e os biscoitos estão sobre as mesas, são criadas pontes com advogados e tradutores especializados, ajuda-se a preencher formulários e candidaturas, “entende-se o trabalho como um apoio político num sistema de racismo institucionalizado”, acusa a organização. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Maximilian Pichl não é tão extremista quando analisa o quadro global. Apesar da crítica persistente, o jurista da Pro Asyl reconhece que, “quanto à permissão de residência, as novas regras são progressivas e um passo na direcção certa” para o sistema alemão.
REFERÊNCIAS:
Emigrante português na Bélgica despejado numa ruela deserta até morrer
António Nunes Coelho, de 49 anos, ainda esteve vivo “entre 15 minutos e uma hora” depois de ter sido despejado pelo patrão e dois colegas da obra, numa ruela deserta de Bruxelas, onde estava a trabalhar ilegalmente. Depois de ter caído de um andaime, vítima de um ataque cardíaco, em vez de ser socorrido foi transportado de camião e abandonado num local deserto. As autoridades belgas investigaram o caso e a autópsia concluiu que o português foi abandonado ainda com vida, noticiou na terça-feira o jornal belga La Dernière Heure. (...)

Emigrante português na Bélgica despejado numa ruela deserta até morrer
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 13 | Sentimento 0.0
DATA: 2012-02-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: António Nunes Coelho, de 49 anos, ainda esteve vivo “entre 15 minutos e uma hora” depois de ter sido despejado pelo patrão e dois colegas da obra, numa ruela deserta de Bruxelas, onde estava a trabalhar ilegalmente. Depois de ter caído de um andaime, vítima de um ataque cardíaco, em vez de ser socorrido foi transportado de camião e abandonado num local deserto. As autoridades belgas investigaram o caso e a autópsia concluiu que o português foi abandonado ainda com vida, noticiou na terça-feira o jornal belga La Dernière Heure.
TEXTO: O emigrante português, que vivia há 12 anos na Bélgica em situação legal, tinha sido despedido da empresa de construção belga Cassal há cerca de dois anos. Como não encontrava trabalho decidiu aceitar o que seria apenas um pequeno biscate não declarado como estucador, três dias por 500 euros. Levantou-se às cinco da manhã, entrou às 6h e, ao final da manhã, caiu de um andaime vítima de um ataque cardíaco. No estaleiro gerou-se o pânico e o responsável logo chegou para tratar do assunto, noticiou a imprensa. Só que o patrão, em vez de pedir socorro, chamou dois funcionários para ajudarem a transportar o homem para um camião. Depois de uma viagem de duas horas abandonaram o corpo numa ruela deserta de um parque de Bruxelas. De regresso ao trabalho, retomaram a obra. A imprensa noticiou o que se passou este mês, mas o corpo já foi encontrado a 12 de Novembro, por um transeunte. O facto de ser sábado, um fim-de-semana prolongado, e o cadáver estar com roupas de trabalho sujas de tinta e gesso levantou as suspeitas da polícia que, depois de dois meses de investigação, localizou o estaleiro onde tudo se passou, da empresa EG-Batineuf. Foi aberto um inquérito por falta de assistência a pessoa em perigo, ocultação da cadáver. Estão em causa várias infracções laborais, como trabalho não declarado, ausência de documentação social, condições que colocam em perigo a segurança e a saúde dos trabalhadores. Segundo o site informativo Lusófonos na Bélgica o patrão já tinha sido condenado em 2011 por empregar mão-de-obra clandestina. O patrão da obra não só abandonou o operário como, nessa mesma noite, mandou um empregado pressionar a viúva, Lurdes Nunes, para que nada revelasse, oferecendo-lhe 10 mil euros para não ir à polícia, “e mais algum de tempos a tempos”. Lurdes, que vive em Bruxelas com 700 euros por mês, recusou a proposta diz o mesmo jornal. “Nunca iria aceitar aquele dinheiro sujo. Estou muito satisfeita com o trabalho da polícia. Deixaram-no morrer e desfizeram-se dele como se fosse um cão”, afirmou ao La Dernière Heure, no início de Fevereiro. O português, natural de Ervedal (concelho alentejano de Avis) tinha pendente no Tribunal de Trabalho de Bruxelas um processo por despedimento abusivo. O irónico é que depois da sua morte se soube que a justiça lhe tinha dado razão, condenando a empresa a pagar-lhe 14 mil euros, a empresa recorreu. Segundo declarações de Rik Desmet, sindicalista da Federação Geral de construção FGTB, citado pelo site Lusófonos na Bélgica, o trabalho ilegal no país está a crescer: "Três quartos destas pessoas são originários de países lusófonos (portugueses, brasileiros, cabo-verdianos e angolanos). É muito difícil controlar este circuitos de tráfico humano, dado que eles trabalham em muitos locais diferentes. A construção é um sector onde os acidentes ocorrem com frequência. Se um trabalhador ilegal na construção tem um acidente, geralmente os chefes não sabem o que fazer temendo as multas".
REFERÊNCIAS:
A Itália ameaça fechar os seus portos a navios estrangeiros com mais migrantes
As migrações não são uma questão de emergência, mas um problema estrutural. (...)

A Itália ameaça fechar os seus portos a navios estrangeiros com mais migrantes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Refugiados Pontuação: 11 | Sentimento 0.187
DATA: 2017-07-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: As migrações não são uma questão de emergência, mas um problema estrutural.
TEXTO: A Itália ameaça encerrar os seus portos a barcos não italianos com migrantes socorridos no Mediterrâneo. É um ultimato delicado. Não é uma surpresa. A tragédia das migrações prossegue, embora mais silenciosa. Temos tido menos imagens de afogados lançados às praias. As acções de salvamento são mais eficazes. Mas a repetição produz banalização e a banalização indiferença. A Europa sabe que não se trata de uma “emergência” mas de uma avalancha humana que continuará porque as causas persistem. O que cria dilemas — morais, económicos, sociais e políticos. A Europa precisa de imigrantes e tem de honrar a sua tradição de asilo, mas não pode absorver as vítimas de todas as catástrofes do mundo. Comecemos pela notícia. Após o ano terrível de 2015, houve uma quebra no número de fugitivos à procura da Europa por terra ou a partir do Mediterrâneo Oriental. O acordo com a Turquia susteve a vaga de fugitivos sírios. Mas a rota marítima, a partir da Líbia, não se atenuou. Em 2016 houve 180 mil migrantes a chegar aos portos italianos; e pelo menos 5022 pessoas sepultadas no mar. Entre 1 de Janeiro e 31 de Maio de 2017, chegaram à Europa, via marítima, mais 71 mil migrantes, dos quais 60. 300 desembarcaram na Itália. Vêm da Nigéria, Bangladesh, Costa do Marfim, Gâmbia, Senegal. . . Alguns deles esperavam na Líbia há anos. Em fins de Junho, o fluxo aumentou. Só em três dias desembarcaram em Itália mais 11. 500 refugiados. E, no domingo e segunda-feira, foram resgatadas mais 12 mil pessoas na costa líbia. Ponto críticoRoma queixa-se da falta de solidariedade e, sobretudo, da falta de visão europeia. Declara o Presidente Sergio Matarella: “A imigração é um fenómeno duradouro que não se resolve com muros. É preciso afrontá-lo com seriedade atacando os traficantes e gerindo as chegadas. E isto só a UE, no seu complexo, o pode fazer. Alguns países ainda não o compreenderam. ” O problema não é fundamentalmente de Bruxelas, mas dos Estados e dos cidadãos europeus — a maior parte das competências no campo da imigração ou do asilo é dos países-membros e não da UE. Em 2015-16, houve na Europa mais de dois milhões de pedidos de asilo. Segundo os “regulamentos de Dublin”, a Itália e a Grécia, países da “primeira chegada”, deveriam assumir esta responsabilidade. E o acordo de 2015 para recolocar 160 mil refugiados da Grécia e Itália foi recusado por vários países. A Itália é o país mais exposto. Malta rejeita os pedidos de desembarque. A Espanha defende-se com acordos com países do Magreb e aprendeu a “blindar” as Canárias e as cidades de Ceuta e Mellila. A França aplica à letra as normas de Dublin. A Itália apela à necessidade de intervenção nos países de origem dos embarques e na repressão do tráfico, o que não é realizável por um só Estado. “Internacionalizámos as operações de salvamento mas o acolhimento continua a pertencer a um único país”, resume o primeiro-ministro Paolo Gentiloni. Para Roma, a proibição de acolhimento de navios de bandeira estrangeira é um meio de dissuasão para forçar uma acção conjunta. Na Itália, cuja população manifestou liberalidade em relação aos refugiados, a situação ameaça tornar-se insustentável. A extrema-direita apela à “revolta popular” contra “a invasão”. É um excesso retórico mas não deixa de preocupar o Governo. Daí o ultimato italiano. DilemasO leitor terá reparado que uso nomes sem critério: migrantes, imigrantes, refugiados, fugitivos. Migrante é uma designação genérica e imprecisa onde cabem imigrantes económicos que fogem às fomes e fugitivos de guerras, perseguições e tortura, à procura de um asilo. Refugiado é um termo mais preciso, com valor jurídico, pois habilita ao direito de asilo. Como distinguir todas as situações? Por onde passa o risco divisório?A partir de 2006 aumentou o número de conflitos violentos. A Síria e certas regiões de África são casos paradigmáticos. “A consequência foi o aumento dos fugitivos, dos refugiados, das destruições e tudo o resto”, dizia há tempos um responsável da Cáritas. E tão grave como as guerras é a implosão de Estados. Daí o “tsunami de deserdados”. Os fluxos migratórios da África para a Europa não são uma questão de “emergência”, são um problema estrutural potenciado pelo desespero: os fugitivos dizem-se dispostos a morrer para alcançar a Europa. Falta de visão, acusa o ministro do Interior, Marco Minniti: “[A imigração] não é uma questão de debate político quotidiano. Só pode ser afrontada com um desígnio global e uma coisa é certa: está em jogo uma parte fundamental da nossa democracia, está em jogo a Europa. Nos próximos 20 anos, a Europa joga em África o seu destino. [A África] será cada vez mais o espelho da Europa e não só da Itália. ”A Europa parte-se em termos morais e políticos. Há o dever universalista de acolher todos os refugiados, ponto de vista da Igreja Católica e da maioria das ONG, ou é mais sensato impor uma selecção dos fluxos migratórios? Onde deixam os refugiados de ser um “fardo” para ser um “investimento”? Ao abrir as portas aos refugiados em Agosto de 2015, Angela Merkel fez uma jogada política ousada a pensar no longo prazo. Mas criou a ilusão de um acolhimento universal, o que fez crescer a vaga migrante forçando-a depois a travar as expectativas. Mas não abdicou da sua política. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os que defendem o ponto de vista da selecção lembram os riscos de ruptura dos sistemas de segurança social e o efeito boomerang da xenofobia estimulado pela extrema-direita. No entanto, para seleccionar, é preciso gerir o fenómeno a partir das origens — e, neste caso, para a Itália a prioridade chama-se Líbia. Sem acção europeia conjunta, o debate será submerso pela incontrolável avalancha de refugiados, no meio de explosões xenófobas e da ilusão de aferrolhar as fronteiras, com ou sem “muros”. O encerramento apenas faz crescer a legião dos clandestinos e o poder dos traficantes. Escreveu a analista Marta Dassù, antiga secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros: “Se o fenómeno é estrutural, a pressão migratória continuará com números sem precedentes. E não creio que possa haver uma resposta puramente humanitária (uma Europa aberta, capaz de absorver crescentes fluxos, quanto mais não seja por razões políticas), nem uma resposta puramente ‘securitária’ (uma Europa fechada capaz de devolver os migrantes ao ponto de partida). ”Estas linhas foram escritas há dois anos. De lá para cá, pouco mudou.
REFERÊNCIAS:
Entidades UE
Devolvidos a Cabo Verde
Portugal deporta-os porque cometeram crimes ou por falta de documentos. Há pessoas que ficam “à deriva no aeroporto”. Como o caso do senhor expulso ainda com a pulseira de internamento em Psiquiatria no Hospital de Santa Maria. As autoridades cabo-verdianas falam em “violação dos direitos humanos”. (...)

Devolvidos a Cabo Verde
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 11 Mulheres Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2016-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Portugal deporta-os porque cometeram crimes ou por falta de documentos. Há pessoas que ficam “à deriva no aeroporto”. Como o caso do senhor expulso ainda com a pulseira de internamento em Psiquiatria no Hospital de Santa Maria. As autoridades cabo-verdianas falam em “violação dos direitos humanos”.
TEXTO: No dia apontado para sair em liberdade condicional, a 20 de Março de 2015, Isolino Tavares Rocha foi deportado para Cabo Verde. Na prisão, regras são regras, ele sabe, com tantos anos que leva atrás de grades — preso há sete, três condenações por tráfico de droga. Quando as portas da cela se fecham, às 19h00, não há nada a fazer. Não pode telefonar a ninguém, à família, à advogada, “não abrem nem para ir ao hospital”. Por isso, não protestou quando lhe disseram: “O SEF vem buscar-te às 4h30 da manhã. Tem as coisas prontas. ” “Vou para Cabo Verde? “Eles é que decidem se ficas ou vais. ”Obedeceu. Arrumou o que tinha na cela, o que as regras deixam que tenha — pouco mais do que duas calças de ganga, dois calções, um casaco e dois pares de ténis — e pôs tudo dentro de um daqueles sacos pretos de pôr o lixo. Na cela não se pode ter malas, é outra regra. Não dormiu, esteve pronto nove horas e meia. Foi no carro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que soube que ia a caminho do aeroporto. Lá, de uma cabine de moedas tentou ligar à advogada, eram seis da manhã, não atendeu. Conseguiu apanhar o primo Orlando, que chegou a tempo de o ver, mas não de lhe ir buscar a mala a casa, como lhe tinha pedido. Isolino pediu ao menos que deixassem que o primo lhe entregasse o relógio, “para saber as horas”. “A tua família depois manda-te o relógio. ” “Quando vou?” Não responderam. Daí a pouco: “Vais agora. ” Ia para a ilha de São Vicente. “Mas eu sou de Santiago”, “lá tens voo de ligação”. “Meteram-me no avião e foram-se embora. ” O passaporte cabo-verdiano, caducado na cadeia, foi entregue à tripulação. Isolino entrou sozinho no avião, sentou-se no número que dizia no bilhete. Não sabia que horas eram, mas pediu, por favor, ao senhor do lado se lhe deixava ligar do seu telemóvel. Estava nervoso mas conseguiu explicar-se: “Eu estava preso, vou para Cabo Verde, não consegui falar com família, não consegui falar com advogada. ” “Era uma pessoa simpática”, perguntou-lhe antes se o número para onde ia ligar era tarifário Moche, era, e ele deixou. A advogada atendeu, dessa vez, eram 8h30, mas ficou confusa, porque sabia que ele era de Santiago e que nesse dia havia voo directo às 20h45. Fez entrar a providência cautelar às 8h58, para tentar suspender a ida, dois minutos antes da hora de início de funcionamento dos serviços dos tribunais. O voo VR 613 partiu às 9h. O tribunal não se chegou a pronunciar. Isolino conseguiu avisar a irmã Vanilda que ia chegar a Cabo Verde quando já estava no país. Depois de todos os passageiros terem saído pela porta da frente, Isolino saiu pela traseira, saco de plástico de lixo com a roupa na mão. A irmã Vanilda estava à espera, 15 anos mais velha. Isolino saiu de Cabo Verde com 18 anos, regressava com 34. A capital, a Praia, agora estava cheia de prédios e estradas de alcatrão que ele não conhecia, o caminho que o levava à aldeia onde nasceu já não era de terra batida, demora-se 30 minutos em vez de uma hora, na aldeia agora havia luz eléctrica o dia inteiro, já não era só à noite, das 19h às sete da manhã. Algumas coisas tinham mudado, outras nem tanto. Quem visita esta parte do interior da ilha de Santiago como turista de certeza que descreveria a paisagem onde fica a aldeia de Isolino com adjectivo de brochura turística, como esplendorosa. A certa altura, na ascensão à serra, há um encontro que parece improvável entre um corvo e um macaco. A estrada, vê-se, é pouco percorrida por carros, há ervas secas a irromper do piso pouco cuidado. Ali no cimo, para quem vai, fica a Loura, uma povoação que é uma rua ao comprido onde viverão umas 250 pessoas. Numa das casas térreas, pintada de amarelo, está Isolino, um homem entroncado. Está sentado num bojudo sofá de lugar único do qual ele parece fazer parte. A Loura de onde Isolino Rocha saiu adolescente está rodeada de uma imensidão de montanhas e escarpas com misturas perfeitas de castanho e verde. Na prisão do Linhó (Sintra) ia ao ginásio todos os dias, para se manter em forma. Ali estava finalmente livre, podia ir correr. Foi o que tentou. “Só dois dias, não consegui mais. Tenho a cabeça muito cheia”, são os seus pensamentos que o imobilizam, que o prendem ao sofá no centro da sala da mãe. Dali se levanta todos os dias, a custo, para fazer o que fazia antes de ir para Portugal ser calceteiro, com o tio José — cuidar de animais. Levanta-se às 6h e regressa às 10h30, é o tempo que lhe demora a dar de comer e mudar a palha à vaca e ao vitelo que são da mãe. Estas poucas horas de trabalho são a retribuição que ele sente que tem de lhe dar, por o ter acolhido de volta, assim, sem nada, sem mesmo nada. A mãe, Teresa Tavares, ouve a conversa, está vestida de preto, não se sabe se porque está de luto por algum familiar, mas a cor condiz com a forma como fala daquele regresso “do único filho macho”. As outras quatro filhas nunca tiveram a oportunidade de sair de Cabo Verde, nem a Vanilda, que atendeu o telefone, nem a Onilda, nem a Milda, nem a Lurdes. Foi ele o único que experimentou emigrar. Soube que o filho ia chegar quando já tinha chegado. “O meu filho veio com roupa dentro de um saco de plástico. Deportado como um cão”, diz pausadamente e em tom baixo. “Ia para uma vida melhor, mas a sorte não deixou. ”Jacinta Almeida, a sua companheira portuguesa de origem cabo-verdiana, está sentada junto a ele no braço do sofá de lugar único, do lado direito, para que se perceba que são como um, “se ele cair, caímos juntos”. Emigrada em Inglaterra, onde é “auxiliar médica”, teve de ir primeiro a Portugal buscar-lhe a bagagem. Veio a Cabo Verde também para se casar com ele, “uma cerimónia simples”, o suficiente para provar oficialmente que o quer com ela e com a filha de ambos, em Inglaterra, onde não tem que contar moedas como em Portugal. 240 Número de cabo-verdianos expulsos de Portugal de 2010 a 2014, de acordo com o SEFJaciara, uma menina de cinco anos, que anda aos pulos pela aldeia-rua, entra de repente na sala onde está o sofá com Isolino e a mãe, mas continua a saltitar, alheia ao peso da conversa de adultos — “foi mandado como um animal, para não dar tempo. . . Para não podermos fazer nada. Foi aqui deixado como um saco de batatas. Não se tratam assim pessoas”, diz Jacinta. Jaciara nunca conheceu o pai em liberdade senão ali. Já lhe foi explicado que o pai, mesmo estando fora da cadeia, não pode ir com elas. Com a expulsão de Portugal, Isolino passou a fazer parte da “Lista nacional de pessoas não admissíveis”. Durante oito anos não pode voltar a Portugal. A decisão inclui “os países de Schengen”, lê-se. Mas ele não sabe o que é isso de Schengen. É a Europa? “Posso ir para Inglaterra?” “Pode perguntar à minha advogada?”A advogada Susana Alexandre não tem resposta para lhe dar. Sabe que Inglaterra não faz parte do espaço Schengen, mas não sabe se, tendo Isolino interdição no restante espaço europeu, o deixarão algum dia entrar naquele país. Jacinta tinha esperança que os 22 dias que tirou de férias chegassem para se casarem, para tratar dos documentos. Mas em Cabo Verde pedem a Isolino um “atestado de residência” e uma declaração que comprove que nunca foi casado, que têm de ir de Portugal. O tempo não vai chegar. Isolino ficará na Loura, à espera, sentado no sofá de couro, todos os dias a ir tratar da vaca e do vitelo, entre as 6h e as 10h30. O advogado José Manuel Ramos, que apresentou queixa do caso de Isolino junto do Observatório dos Direitos Humanos (uma parceria de dez associações, como o SOS Racismo e a Associação Solidariedade Imigrante), diz que uma coisa é avaliar da legitimidade do “afastamento coercivo” — e o observatório considerou-o legítimo à luz da actual lei de estrangeiros, por Isolino ter “cometido actos criminosos e se encontrar irregular” — outra coisa é a forma como se fez a expulsão. E aí este observatório conclui que “foi alvo de um tratamento que colocou em causa a sua dignidade. Foi enviado sem as condições mínimas de bem-estar, uma vez que não lhe foi possibilitado levar os pertences ou despedir-se da família ou amigos”. “Foram buscá-lo pela calada da noite. Há horários, senão isto é o faroeste”, diz José Manuel Ramos. “Os tribunais abrem às 9h” e a legislação prevê que as libertações “sejam durante a manhã”. “Por que é que não se esperou pelo voo directo para a sua ilha de origem, que era nessa noite?”, pergunta Susana Alexandre. A advogada de Isolino diz que era para não dar tempo para a providência cautelar suspender o voo. Isolino foi expulso em 2015 mas o seu processo de afastamento coercivo do território nacional tinha sido aberto ainda em 2004, altura em que o SEF o ouviu. O observatório conclui assim que saiu violado o seu “direito de defesa e de audiência”. “Há uma vida depois disso”, refere a advogada. Teve uma companheira, nasceu-lhe uma filha, ambas portuguesas. O SEF respondeu que “o cidadão não veio ao processo comunicar factos supervenientes com eventual relevância para o processo”. É provável que ao ouvir a história de Isolino Tavares Rocha, condenado por tráfico de droga, reincidente — mesmo com o relatório do Observatório dos Direitos à mistura —, poucos se compadeçam com a sua situação, que se preocupem com o que será da sua vida: Conseguirá Isolino casar-se com Jacinta? Ir viver para Inglaterra com a mulher a filha?A sua advogada já está habituada a esse encolher de ombros, chama-lhe “consciências adormecidas”. Ouve e sente o mesmo por parte da maioria dos que a rodeiam, da polícia, de advogados, de amigos, da família, de pessoas com quem fala. Isolino Tavares Rocha é um traficante de droga cabo-verdiano. Ponto final. Há ligeiras variações, mas a ideia é sempre a mesma: “‘São cabo-verdianos, vão para o vosso país fazer porcaria. ’ ‘Para criminosos, bastam os nossos. ’ ‘Fizeste a cama, tens de te deitar’”, exemplifica. “Destes ninguém quer saber, mesmo que tenham cá filhos. ” São os indefensáveis. “Não são anjos”, diz Susana Alexandre. “Eles estão na cadeia, não se enganaram no caminho para a Igreja. ” “Claro que têm o seu passado, mas têm de ver a pessoa diante deles. Para o SEF, a lei é para ser cumprida, não há equidade, não há casos concretos”, critica o advogado José Manuel Ramos. A legislação portuguesa distingue entre as expulsões administrativas, que são da competência do director do SEF, e as judiciais, decididas pelos juizes, que muitas vezes surgem como penas acessórias ao cumprimento do tempo de prisão. José Manuel Ramos diz que os juízes conhecem o percurso dos reclusos, ouvem os técnicos de reinserção social, “o SEF apenas vê números e crimes”. No caso de Isolino, o juiz de execução de penas concedeu-lhe “liberdade condicional” tendo em conta “o seu percurso prisional pautado por actividade laboral” e “sem qualquer sanção disciplinar”, concluindo: “Ainda há esperança de que possa reorganizar a sua vida de forma socialmente correcta. ”“Achava que tribunal era mais grande que SEF. Se tribunal não te condena a expulsão, é porque não és perigo para a sociedade”, critica José Constantino, condenado por tráfico de droga, expulso administrativamente para Cabo Verde em Outubro do ano passado, a mulher e os três filhos maiores avisados uma hora antes da partida. “O check in já fechou”, disseram-lhes. Não chegaram a tempo. Susana Alexandre vai riscando da sua agenda de papel a lista de 30 clientes que tem neste momento à espera de expulsão. José Constantino foi o último. A alguns consegue impedir a expulsão, a outros não. E é sempre em cima do acontecimento. “Teoricamente, têm 90 dias para impugnar a decisão de afastamento coercivo junto de tribunais administrativos, mas eles sabem lá. ” Mesmo que o fizessem, a impugnação não tem efeitos suspensivos. Por isso, chega a extremos, a providências cautelares. “Cada caso é um filme”, diz José Manuel Ramos. “Já fui buscar dois ao aeroporto”, diz a advogada. Aos que foram para Cabo Verde perde-se-lhes o rasto. Ninguém quer saber o que lhes acontece a mais de três mil quilómetros de Portugal. “Bem-vindo a casa. ” Chamavam-se assim os Gabinetes de Atendimento e Integração dos Deportados. O primeiro abriu em 2002, chegaram a ser quatro, pensados sobretudo para acolher deportados dos Estados Unidos, durante anos o principal país de deportação para Cabo Verde, Portugal surgia como o segundo. Mas, de acordo com os números da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras de Cabo Verde, de 2010 a 2014, chegaram a Cabo Verde 324 pessoas expulsas de Portugal, no mesmo período chegaram apenas 39 dos Estados Unidos. Durante este período, Portugal tornou-se assim o país que mais deporta para Cabo Verde, explica Nádia Marçal, responsável pelo dossier do “Retorno Involuntário” no Ministério das Comunidades de Cabo Verde. Desconhecem quantas são as expulsões decretadas pelos tribunais e quantas são administrativas e decididas pelo director do SEF. O que acontece é que o Governo de Cabo Verde deixou de conseguir apoiar os deportados. Os gabinetes acabaram em 2012. Por falta de meios. Não há ninguém à espera. “Talvez essa informação não tenha chegado a Portugal. A algumas pessoas foi dito que teriam um assistente social à chegada. Quando vêem que não há ninguém, ficam revoltados”, diz Nádia Marçal. Agora, o Ministério das Comunidades só intervém mesmo quando “há pessoas à deriva no aeroporto”. Como no caso “do senhor da pulseirinha”. Foi assim que ficou conhecido no ministério. Era na pulseira plastificada que trazia no pulso que vinha parte da sua história, pelo menos a parte final da sua história, a sua última morada em Portugal: “Departamento de Psiquiatra, piso 3, extensão 55173. ”O “senhor da pulseirinha” tinha sido encontrado “a vaguear nas ruas, no Estoril, a 12 de Maio de 2014. Era sem-abrigo”. 302 Número de portugueses deportados de outros países por crime ou indocumentaçãoO SEF levou-o para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde ficou internado um mês, “diagnóstico: episódio depressivo severo com sintomas psicóticos”, lê Nádia Marçal. No dia da alta, a 6 de Junho, o SEF foi buscá-lo, três dias depois, a 9 de Junho, foi enviado de avião para Cabo Verde, conta. “Foi expulso com a roupa do corpo, psicologicamente perturbado e sob efeito da medicação”, estando apenas acompanhado “de relatório clínico, guia de tratamento, três receitas digitais para aviar e uma saqueta com quatro medicamentos”. Tinha sido servente. Estava há 37 anos em Portugal, para onde tinha ido em criança. Passou a noite no aeroporto da Praia. A polícia ligou para o Ministério das Comunidades na manhã de 10 de Junho. Tinham perguntado se tinha família, dizia que tinha nascido em São Tomé e Príncipe. “Não sabia o nome de familiares, nem lugares em Cabo Verde. Estava descompensado. Levámos o senhor para o hospital. ” Passou lá um mês, mas fugiu. “Foi encontrado na rua de forma acidental um mês depois, a 6 de Julho, por uma assistente social do hospital, que o reconheceu. Estava com a mesma roupa. Nunca mais soubemos nada do senhor. ”É a ministra das Comunidades de Cabo Verde, Fernanda Fernandes, quem primeiro fala “do senhor que veio com a pulseirinha. Perturbado psiquicamente. Puseram-no no avião e enviaram-no. Estamos a lidar com pessoas e pessoas são pessoas”. O que está em causa são “situações extremamente desumanas. É enviar o problema para o outro”. Achava que tribunal era mais grande que SEF. Se tribunal não te condena a expulsão, é porque não és perigo para a sociedade“Respeitamos a soberania dos Estados, há situações de criminalidade e de irregularidade documental”, continua a ministra, mas têm-lhes chegado ao conhecimento casos de Portugal em que expulsam pessoas com nacionalidade cabo-verdiana mas que nasceram em Angola, São Tomé e Príncipe. “Nunca aqui estiveram. Como é que vai ser a sua reinserção?” “A deportação acaba por ser uma condenação para a vida. ”“O senhor da pulseirinha” não foi o único caso de uma pessoa que vivia na rua em Portugal e foi deportada para Cabo Verde, conta Nádia Marçal. Em Dezembro de 2014, chegou-lhes o caso de outro sem-abrigo, mas esse nunca tinha estado sequer em Cabo Verde. Também tinha nascido em São Tomé, de onde foi para Lisboa com os pais em criança. ”“Falámos ao telefone com a mãe do senhor, em Portugal. Estava muito aflita, porque ele não tinha qualquer contacto em Cabo Verde. Era um senhor que tinha sido preso em 1996, solto 19 anos depois, vivia na rua. Mandaram-no para cá, porque os pais eram cabo-verdianos. Era indocumentado. ”O máximo que o Ministério das Comunidades conseguiu foi pagar-lhe uma pensão três meses e alimentação durante dois. Também não souberam mais nada deste senhor. Todos os casos mencionados neste artigo foram mandados com antecedência para que o SEF se pudesse pronunciar. O director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, diz que não comenta casos particulares. Desconhece o caso do “senhor da pulseirinha”, lembra-se apenas de um caso de expulsão administrativa de um sem-abrigo, mas não tinha esses contornos. “Era uma situação humanitária, não pode estar cá sem família, sem assistência, tem de voltar para Cabo Verde. Supostamente, tinha lá família. ”Nádia Marçal diz que está em causa “uma questão humanitária” e que são situações de “violação dos direitos humanos”. Na forma como se deporta. Exemplos: muitas vezes as pessoas não vão até à ilha de destino final — “há nove ilhas habitadas, quatro aeroportos internacionais” — e é Cabo Verde quem tem, por vezes, de pagar as ligações. E é frequente não serem notificados das expulsões. “Há casos em que somos informados no próprio dia ou depois de a pessoa ter chegado, às vezes três dias depois. ”O responsável do SEF admite que “por vezes não há voos para as ilhas de destino, quando existem não são na data certa. O que pode acontecer é haver ligações internas” e que a notificação é feita com “uma antecedência razoável. Não é certamente quando a pessoa já está no avião”, embora admita que possa haver “casos pontuais em que há falhas”. 402 Estrangeiros expulsos de Portugal em 2014 por crime ou indocumentação, um número que está a descerNádia Marçal não sabe nada acerca dos percursos destas pessoas, além do que escolhem contar, mas sabe que quanto mais informação receberem de Portugal melhores hipóteses têm de se conseguir integrar na sociedade cabo-verdiana: ajuda ter referências dos familiares antes de chegarem, para os poderem localizar, saber há quanto tempo estão emigrados em Portugal, que qualificações e experiências profissionais tiveram, dar-lhes condições para trazerem certificados da escola — “algo que lhes permita ter uma vida cá”. Portugal sabe, tem essa experiência com os deportados nos Açores, nota. Quando criaram os gabinetes, foram inspirar-se na experiência do arquipélago português, que foram visitar. “O problema é partilhado mas nós não temos os mesmos meios. Cá não temos casas de acolhimento. Talvez quando estamos a lidar com os nossos a tendência é sermos mais sensíveis do que com os estrangeiros”, admite. Escreveram-se dezenas de notícias sobre os deportados portugueses nos Açores, foi feito um documentário (Deportado), uma peça de teatro (I don’t belong here). Desde 1987 que o arquipélago português recebeu 1292 deportados. Sobretudo dos Estados Unidos. Em 2014 chegaram a Portugal vindos daquele país 49 portugueses, 12 eram originários dos Açores. A maioria (28) tinha antecedentes criminais por crimes graves como "assalto, roubo, violência doméstica e sexual", quatro por tráfico, apenas 11 foram mandados embora por permanência ilegal, refere o Relatório Nacional de Segurança Interna de 2014. O director regional das Comunidades do Governo Regional dos Açores, Paulo Teve, diz que as autoridades americanas notificam que vai haver uma expulsão “pelo menos duas semanas antes”. As associações de emigrantes portugueses vão então aos centros de detenção, em território americano, fazer uma “avaliação psicossocial” antes de as pessoas virem. Aos que não têm família, o governo regional dá alojamento, comida, apoios à renda, e tenta ajudar à sua integração profissional, com o apoio de duas associações locais, cujos técnicos vão ao aeroporto quando alguém pede ajuda, explica. No caso das deportações de Portugal para Cabo Verde, o director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, explica que é a permanência irregular que justifica as expulsões administrativas, mas que “provavelmente mais de metade das situações de irregularidade serão de pessoas que cometeram crimes. No caso de Cabo Verde, sobretudo tráfico, um crime que causa alarme social”. O SEF respondeu ao PÚBLICO que não tem dados tratados sobre os perfil das pessoas expulsas de Portugal. O único estudo que aborda o perfil dos deportados de Portugal para Cabo Verde é da Organização Internacional para as Migrações e tem números de 2002 a 2012. Revela que, no caso de Portugal, no grosso das situações “desconhece-se os motivos da deportação”. Mas que a indocumentação justifica mais expulsões do que o tráfico de droga. Carlos Patrício sublinha que “o SEF tem de cumprir a lei, da forma mais humana e digna que conseguir”. Mas, “ou as pessoas se podem regularizar ou, se não podem, têm de ser afastadas. Não queremos é pessoas que fiquem num limbo, numa espécie de twilight zone. A pior coisa que pode acontecer é ficarem irregulares, sujeitos a serem vítimas de chantagens, pressões e exploração”. “Eu não sou português, não sou estrangeiro, não sou cabo-verdiano, eu não sou ninguém. ” Daniel Sousa Varela está preso há dois anos na prisão de Setúbal por furto, roubou uma carteira. Nasceu em Setúbal, em 1981. Disseram-lhe que “era o procedimento normal”, abrirem-lhe um processo de afastamento coercivo do território nacional. Significa que o podem mandar para a sua “terra”. Quantas ilhas tem Cabo Verde? “Sei lá, umas dez ou 12, acho que são mais de 12 [tem dez, nove habitadas]. De que ilha é a sua mãe? Acho que é da Praia [nome da capital de Cabo Verde, que fica na ilha de Santiago]. O que sabe de Cabo Verde? “Não sei nada, é só as conversas que ouço. Sei que lá não é fácil. As pessoas vivem mais à base da agricultura, das pescas, que são pastores. ”Eu não sou português, não sou estrangeiro, não sou cabo-verdiano, eu não sou ninguém. ”A mãe de Daniel veio de Cabo Verde para Portugal com seis anos, ainda o país africano, descoberto pelos portugueses no século XV, era colónia portuguesa. Daniel conta que Maria Rosa, que agora já é portuguesa e que o criou a ele e ao irmão sozinha, passou mal, “não lhe dávamos vida fácil, faltávamos às aulas”. Tem o nome dela em letras garrafais envolvido numa farfalhuda rosa tatuada no braço. Com 14 anos foi parar, com o irmão, a um centro educativo na Guarda, bem longe de Setúbal. “Lá amadureci. Foi bom. ” Foi lá que lhe resolveram o problema do bilhete de identidade português, era menos um problema com que a mãe tinha de se preocupar. Mas houve um dia, foi em 2008, trabalhava para a Portucel, em que Daniel perdeu a carteira com o bilhete de identidade lá dentro. Era preta, da Pull&Bear. São daquelas coisas que acontecem a toda a gente. “Nem tinha dinheiro, nem nada, só as coisas normais que uma pessoa tem dentro da carteira, cartão do utente, cartão de contribuinte. ” Deve ter ficado no café Picareta, onde ele passava todos os dias. Nunca ninguém a encontrou. Foi dar baixa na polícia. E foi pedir um novo Bilhete de Identidade (BI). Na Loja do Cidadão recolheram-lhe as impressões digitais, tirou a fotografia. Mas quando lá voltou para ir buscar o novo BI, disseram-lhe que nunca tinha sido português. “A sua nacionalidade não consta em sistema. ” Ele mostrou-lhes a fotocópia do BI português. A senhora olhou para ele e a primeira coisa que disse foi “se teve Bilhete de Identidade é porque era falso”. “Tiraram-me do sério. Expliquei-lhes que “nem tinha sido eu a tirá-lo, que tinha 14 anos, estava num centro educativo”. “A sua nacionalidade não consta em sistema. ” A vida dele mudou desde esse dia. Estava neste imbróglio quando a empresa para quem trabalhava começou a levar homens para ir trabalhar em Inglaterra. Mas para ir “só com o documento original”. Tentou noutra conservatória, talvez encontrasse alguém mais razoável, às vezes depende de quem apanhamos à frente. Ali conseguiu um papel a dizer que estava à espera do BI. Mas teve de sair do emprego por falta de documentos. Desde então não conseguiu mais do que biscates, servente de pedreiro, pintura. “Se me faltava um pacote de leite, de fraldas, dinheiro para pagar a renda, a luz. . . ”, conta Susana Santos, a companheira portuguesa de 29 anos, tinha de sair tudo do seu ordenado, os 618 euros que ganha numa fábrica que faz interiores para Land Rovers e Jaguares, e Daniel sentia-se mal, “dizia-me ‘tu é que és o homem da casa’”. É dessa altura o seu primeiro furto. Pena suspensa. Depois teve pena suspensa por tráfico de droga. “Tivemos grandes discussões, eu e a Susana. ” Voltou a roubar, uma carteira, é por isso que agora está na cadeia. “Eu não o apoio mas não o condeno, porque sei o porquê. Sem documentos não consegue trabalho. ”65% das expulsões de Portugal são processos administrativos do SEF, as restantes são decretadas por juízes“Desde que perdi a carteira, a minha vida descambou. Fiz tudo para ter os documentos. ” Mandaram-no ir à embaixada de Cabo Verde pedir o registo criminal. “Foi dado como desconhecido em Cabo Verde”, um sorriso, “então se ele nunca lá esteve”, diz Susana. Na junta de freguesia, disseram-lhe que era cidadão português e podia votar com o seu cartão de eleitor. Decidiu voltar a pedir a nacionalidade. E agora veio indeferida, “por crime de roubo”. A lei portuguesa prevê que está impedido de pedir a nacionalidade portuguesa quem tenha “prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos”. E está impedido de ter autorização de residência quem tenha cometido um crime com pena de prisão superior a um ano. “Empurraram-me para este lado da minha vida. Estou preso, não culpabilizo ninguém. Errei, estou a pagar o meu crime. Agora, em vez de tentarem ajudar-me, o mais fácil foi contactarem o SEF e instaurarem-me um processo por estar irregular. É mais fácil agarrarem num gajo e mandarem para Cabo Verde do que ajudarem-no. Não quero nada do Estado, não quero dinheiro, só quero o meu BI. ”Dizem-lhe para tratar do passaporte cabo-verdiano. “Não faço nada do que eles dizem, isso é facilitar-lhes a vida, a expulsão. ” Para o SEF, ele é “um indocumentado”. Já pensou em casar com a Susana, mas não conseguem fazer isso porque ele não tem documentos. Quando entrou na prisão, pediu para estudar, tem o 6. º ano, mas foi recusado por não ter documentos. Pediu muito para trabalhar, faz faxina. Quer muito que deixemos esta nota: “Queria agradecer à senhora directora do Estabelecimento Prisional de Setúbal por me deixar trabalhar. ”Uma das coisas que mais o irritam é que nos ofícios do tribunal é sempre Daniel Soares Varela, “titular do bilhete de identidade 14475140”, o que acusaram de ser falso. “Para o tribunal, sou português. Para ser alguém na vida, já não sou. ”A lei de estrangeiros de 2007 previa, no artigo 135, que não podiam ser expulsos de Portugal os cá nascidos, quem aqui vivesse desde antes dos dez anos e aqui residisse e quem tivesse “a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, a residir em Portugal, sobre os quais exerçam efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”. A lei mudou em 2012, por iniciativa do Governo de coligação PSD/CDS. Agora, todos estes limites à expulsão podem ser ignorados, caso esteja em causa “a segurança nacional ou a ordem pública”. A advogada Susana Alexandre chama à expressão “um enorme buraco negro. O entendimento actual do SEF é o de que qualquer pessoa que foi condenada atenta contra a ordem pública”. Esta e outras mudanças que agora fazem parte da lei de estrangeiros 29/2012, cuja polémica esteve sobretudo centrada na criação dos chamados vistos gold, foram apresentadas no Parlamento pelo então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. Ao PÚBLICO, diz agora que desconhece “que aplicação teve a lei em concreto”, relembrando que a introdução dos limites à inexpulsabilidade “decorreu de questões suscitadas pelo SEF. Algumas propostas foram aceites, outras não. ”O ex-governante nota, no entanto, que, para serem expulsos pelo SEF, “têm de estar em situação irregular”, havendo um processo administrativo que concluiu “que a pessoa não tem condições para se legalizar”. “É preciso sublinhar que não são portugueses” e que a anterior legislação já previa que perdia direito a autorização de residência quem tivesse cometido crimes. A lei foi aprovada com os votos a favor do PS e os votos contra do PCP e do Bloco de Esquerda. A presidente da Associação Luso-Cabo-Verdiana de Sintra, Rosa Moniz, que teve um gabinete de apoio a reclusos, diz que “a lei actual veio facilitar muito as expulsões”. “A fragilidade está em não terem capacidade de resposta ao SEF. Às vezes, as situações podiam reverter-se se tivessem advogado. O advogado oficioso não faz nada. ” Assim, tudo “depende da humanidade da pessoa do SEF que pega no processo”. O director nacional adjunto do SEF diz que “há sempre uma ponderação”, mas que as excepções à expulsão “permitiam situações limite insustentáveis, em que nascidos em Portugal podiam ter cometido crimes gravíssimos contra a segurança interna e não podiam ser expulsos”. No caso de expulsos com filhos portugueses, nota que “há famílias desestruturadas, situações de violência doméstica”. A unidade familiar não é um princípio absoluto, sublinha. “As ordens de expulsão falam dos seus antecedentes criminais e três linhas a dizer que não exercem o poder paternal”, conta Susana Alexandre. “Parece óbvio que não pode ser levado literalmente, eles estão na cadeia. ”“Até 2012, havia boa vontade. ” A advogada diz que “enviava para o SEF certidões de nascimento dos filhos, comprovativos de visitas aos pais todos os domingos. Cheguei a mandar poemas e desenhos do Dia do Pai, a provar ligação. Agora isso já não chega. Deixou de haver inexpulsáveis”. Como Daniel seria, ao abrigo da lei anterior. “Vai-te ajudar ser punido duas vezes? Se é para me mandarem para Cabo Verde, mais vale condenarem-me a mais dez anos de prisão. Ao menos fico ao pé da minha família. ”O recluso tem direito a duas visitas por semana. Os domingos são dias em que verdadeiramente não se pode falar de nada importante, de medos e angústias, é o dia de irem as filhas Maria, de três anos, e Bruna, de oito. É o dia de mãe e filhas se levantarem por volta das seis da manhã para conseguirem estar lá às 7h30 e apanharem uma mesa, que é sempre a do canto, para o poderem ver uma hora, a começar às 9h45. Vão comendo o bolo de iogurte fatiado feito de véspera. Há umas 40 pessoas na sala, para se ouvirem acabam por falar aos gritos. Daniel pergunta-lhes como correu a escola, que músicas é que a Maria já sabe cantar, o Patinho, todas as da Violeta, ralha à Bruna, às vezes aplica-lhe castigos, “não vês mais televisão no quarto”. “A Bruna está a passar por uma fase difícil”, explica. É o dia de pai e mãe agirem como se estivesse tudo bem. Se eu for para Cabo Verde, digam-me lá o que eu que vou fazer? Se for é para ser sem-abrigo. Para falarem de coisas sérias, é à quinta, 15h45, vai só Susana, e aí podem falar do que sentem. Ela chora, às vezes brinca, diz que vão todos para Cabo Verde, como aquelas pessoas que vão lá de férias. “É a mesma coisa que pegarem em mim e mandarem-me para França ou Inglaterra. Não é o meu país. Não tem lógica. Não é justo”, diz Susana. Daniel tinha direito a uma saída precária para ir a casa em Janeiro, não lha deram por causa do processo de afastamento coercivo, que ainda não tem decisão de ordem de expulsão. A filha mais velha pergunta muitas vezes: “Qual é o dia em que o pai vem? Mostra no calendário, mãe. ”Na cadeia, aos estrangeiros com processo de afastamento coercivo do território nacional, acontece esta coisa que parece estranha, contranatura para um recluso português — vive-se com “medo da soltura”, do fim da pena, ou do meio da pena, porque podem ter “condicional”, liberdade significa serem livres em Cabo Verde. “Muitos recorrem, muitos têm sorte de ficar cá, outros não tiveram tanta sorte. ” Faz dois terços da pena em Março, Daniel, 27 anos, pode sair em liberdade condicional. “Se eu for para Cabo Verde, digam-me lá o que eu que vou fazer? Se for é para ser sem-abrigo. Então se cá eu não consigo trabalho. Muita gente foge de lá para procurar oportunidades cá. ” A cadeia está cheia deles. Às vezes, Daniel pergunta-se porque é que há tantos cabo-verdianos presos. Quase um quinto dos reclusos nas prisões portuguesas são estrangeiros (17, 3%), a principal nacionalidade (31%) é a cabo-verdiana, quando os estrangeiros legalizados representavam em 2014 apenas cerca de 3, 9% da população residente e a comunidade cabo-verdiana (legalizada) 0, 4%. Olhando assim para os números, parece que é justificada a ideia de que a insegurança está associada à vinda de estrangeiros, a chamada “crimigração”. Jorge Malheiros, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, remete para um estudo de 2010 que conclui que, em Portugal, os estrangeiros não cometem mais crimes violentos (homicídio, roubo, ofensas à integridade física e violação) do que os portugueses em geral. No seu estudo “Os cidadãos estrangeiros nas prisões portuguesas: Sobrerrepresentação ou ilusão”, avança com algumas possíveis explicações para o facto de haver tantos estrangeiros nas prisões, nomeadamente cabo-verdianos: ausência de visto de residência, maior dificuldade em obter uma boa defesa, menor conhecimento da lei portuguesa, factores que tornam os imigrantes muito vulneráveis quando conduzidos a tribunal, potenciando, dessa forma, a detenção. É neste contexto que Jorge Malheiros se habituou a ouvir o já costumeiro argumento, “pois, mas os portugueses quando emigram são ordeiros”. É “o mito do bom emigrante português”. Que também não é verdadeiro. “Se for às prisões luxemburguesas, também há uma sobrerrepresentação de portugueses. ”“Claro que há uma componente de responsabilidade individual”, mas talvez a principal razão para haver tantos estrangeiros nas prisões radique “em situações de exclusão social”. Cabo-verdianos em Portugal, portugueses no Luxemburgo. Embora os deportados portugueses vindos dos Estados Unidos tenham recebido maior atenção mediática, graças ao caso açoriano, o maior número de deportados portugueses veio, em 2014, primeiro do Canadá (160) e de um dos principais destinos actuais da emigração portuguesa, o Reino Unido, de onde foram expulsos 72 portugueses, refere o Relatório Anual de Segurança Interna desse ano. Há 1658 portugueses presos em todo o mundo. Tal como Portugal é, ao mesmo tempo, um país de emigrantes e que acolhe imigrantes, também é um país que deporta e recebe deportados. Mas deporta mais estrangeiros do que recebe deportados portugueses: em 2014 recebeu 302 deportados de outros países e expulsou 402 estrangeiros (263 foram expulsões administrativas). Segundo os números do SEF, Portugal está, em termos gerais, a deportar cada vez menos, a par com o decréscimo do número de imigrantes a viver no país. O Brasil, a principal comunidade estrangeira a viver no país, mantém-se de longe como primeiro destino de expulsão desde há dez anos, a decrescer; Cabo Verde, o segundo. Uma coisa é castigo, outra é vingança. Joguei, perdi, tem de pagar e eu paguei caro. Não me sinto em dívida com a sociedade. Por que razão tenho de ser expulso?”Mas 2010 marca uma viragem no caso do arquipélago africano, nesse ano, o SEF passa a expulsar mais do que os tribunais. De 2010 a 2014, o SEF expulsou administrativamente 240 pessoas para o arquipélago, quando de 2005 a 2009 tinha expulsado apenas 60. Passa-se de uma média de 12 expulsões por ano para o quádruplo, 48. Apesar de serem cada vez mais, em Cabo Verde ninguém fala dos deportados de Portugal. Nem na rua, nem em jornais, nem em debates políticos. É como se fossem invisíveis. Ao contrário dos deportados vindos dos Estados Unidos. Desses não há quem não tenha ouvido falar. Mal. “Todos, farinha do mesmo saco. ” Foi das primeiras frases que Orlando Barros, deportado dos Estados Unidos, aprendeu em português, ele que continua a exprimir-se em inglês. Eles são supostamente a origem de um fenómeno de criminalidade que em Cabo Verde passou, sintomaticamente, a ser designado pela palavra inglesa “thugs”, ou, em português, “bandidos”, traduz Orlando. A culpa da violência, dos crimes, da chegada dos gangs é atribuída aos thugs e os thugs são, em teoria, os infames deportados dos Estados Unidos. “Mesmo que os deportados de Portugal cometam crimes, a culpa é sempre nossa. Nós destoamos”, diz Orlando, que nos Estados Unidos esteve preso por assaltar bancos e hoje tira parte dos seus rendimentos de um castelo insuflável azul com princesas da Disney, mandado vir dos Estados Unidos para as crianças locais, um “pula-pula”. Deve-o ao empurrão de “Donana”, o nome da fundação de inspiração católica que vai buscar o título à forma como é conhecida a sua presidente, “Dona Ana” Hopffer de Almada, professora universitária de Biologia, benemérita nas horas vagas. Na sede da fundação destaca-se um quadrinho de bordado a ponto cruz “Amar é fazer o bem!. . . Sem olhar a quem” e uma parede repleta de anjos, mais de mil, dados por uma senhora muito pia, vindos de todas as proveniências da emigração cabo-verdiana, há um anjinho em forma de estátua da liberdade, God bless America, um querubim com uma placa “Em Fátima rezei por ti”. “Donana loves her angels”, comenta Orlando, perante a galeria. Ali o termo “deportado” está proibido. “Preferimos falar de retornados. ” Até agora, a fundação só ajudou pessoas dos Estados Unidos, como Orlando. “Nunca nenhum retornado de Portugal veio ter connosco, mas são bem-vindos. Aceitamos qualquer retornado. ” Ela não conhece nenhum. Nem sabia que existiam. É quase como se os deportados de Portugal fossem uma lenda. “Eu já ouvi falar deles”, diz Orlando. Qual é a imagem dos deportados de Portugal? “Qual imagem, eles não têm imagem, eles não existem”, responde. “Toda a gente sabe quem nós somos, os de Portugal ninguém nota. Eles podem esconder-se, falam português, vestem-se como os de cá, nós não nos podemos esconder. ”“É mais fácil passar desapercebido na cidade. Na aldeia ou na vila, é pior. ” José Carvalho de Pina está hoje em negócios na aldeia da sua infância, onde guardava cabras, o Mangue. No meio do campo, abranda o carro para falar com um conhecido de criança vindo do campo, terá a sua idade. “És o filho do Toni. ” “Tens boa memória”, responde José a sorrir, agradado por ainda ser recordado. Mas o diálogo que seguia fluido empanca: “Tu estás em Cabo Verde ou estás fora?” — pergunta normal para um país que tem mais população emigrada do que a viver em Cabo Verde — “Eu estava a viajar, mas já vim há três anos. ” E José Carvalho de Pina interrompe ali a conversa e despede-se. Se ele ainda vivesse no Mangue, talvez fosse mais difícil esconder que é deportado. Ele vive na capital. Mas quem o conhece, vizinhos, família, sabe. Os comentários acerca deles, de regressos misteriosos como o dele, acontecem na sua ausência. “A família tenta esconder. A minha irmã quando me acusam defende-me. ” Os que o conhecem ouviram dizer que esteve preso, no caso dele foram muitos anos, não há como esconder e, claro, as pessoas perguntam-se: o que é que este fez?No caso de José Carvalho de Pina, é uma longa história. “Houve uma situação de envolvência com negócios de amigos. Pediram-me um favor e eu fiz”, maneira enrolada de explicar como, da primeira vez que esteve preso, tinha 21 anos, tinha terminado o liceu, vinha com ideias de ir para a faculdade, se viu envolvido num episódio de tráfico de droga em Faro em que acabou por se entregar à polícia. Apanhou seis anos e meio. “Da prisão ou sais melhor, ou sais pior. Eu não sabia nada. Aprendi tudo lá dentro. Havia lá um português de 17 anos que roubava muito, era o meu melhor amigo lá dentro, ensinou-me muito. ” Por isso, na segunda vez, foi de forma consciente e voluntária que se envolveu em tráfico, com nova prisão, fuga da cadeia com grades serradas com uma lâmina-serra como a que o pai carpinteiro usava, com direito a notícia de jornal, cinco anos fugido, apanhado em França. Prisão de novo, cinco anos, com direito a saída precária em 2010. E, dessa vez, “Eu regressei a correr à prisão, à hora exacta. ” A técnica disse-lhe “achava que não ias voltar”. Três dias depois do pontual regresso, recebeu a ordem de expulsão para Cabo Verde. “Senti-me revoltado. ” Ainda saiu em liberdade, tentou legalizar-se, mas nunca conseguiu. “Uma coisa é castigo, outra é vingança. Joguei, perdi, tem de pagar e eu paguei caro. Não me sinto em dívida com a sociedade. Por que razão tenho de ser expulso?”“Todo o ser humano é um criminoso em potência”, leu num livro da biblioteca da prisão. Decorou a frase. “Não me vejo como um criminoso, tomei uma atitude errada e paguei. A minha mãe sempre me disse: ‘Paga-se com a consciência. ’ Eu não nasci torto, eu nasci direito. ”Nos dois anos que leva de Cabo Verde, depois de 17 em Portugal, conseguiu reorganizar-se. Tem a companheira Amália, e um filho bebé que hoje está febril e que ele quer muito ter ao colo para ficar na fotografia. Faz negócios entre ilhas, trocando o que uma tem com o que a outra não tem. Leva verduras, cebolas, batatas de Santiago para o Sal, e traz de volta búzios para servir de entrada nos restaurantes da Praia. José, camisa de risquinhas impecavelmente engomada, ténis Ralph Lauren, calça de sarja, conta muitos, muitos pormenores sobre o seu negócio, demasiados, e depois se percebe que não está apenas a falar connosco. A minúcia do relato, o bebé Lucas ao colo, fazem parte de uma história que ele quer contar, à distância, à mãe que vive no Algarve e que teve dois ataques cardíacos quando ele estava atrás das grades, que vivia intranquila com as visitas do filho foragido, que faz hemodiálise dia sim, dia não. Através de nós quer dizer que ele, o filho mais novo de 11, o único “cadastrola”, agora faz tudo bem. Constança, a mãe de José, tem 86 anos. A ordem de expulsão impede-o de voltar a Portugal durante sete anos. “Faltam quatro. ”Mas essa é uma contagem interior que partilha com muito poucos. O que ele e os que vieram expulsos de Portugal querem é passar despercebidos. “Os de Portugal vêm e calam-se. É tabu. Conheço um deportado que tinha tanta vergonha que não foi ter com a mãe, andou uns dias na rua e teve de se render e teve de ir ter com a mãe”, “tenho um outro amigo que não sai de casa”. Por mais que tentem camuflar-se, muitos sabem quem eles são. Nota-se. São os que chegam de mãos a abanar. “Por que razão chega uma pessoa de um voo internacional sozinha e sem bagagem sem ser um saco de mão? Se chegas sem nada, é porque és deportado. ” José voltou com 200 euros. É verdade que há a vergonha da expulsão por terem cometido crimes, mas talvez mais pesado do que isso num país como Cabo Verde — meio milhão vive dentro, estima-se que um milhão viva fora — é a vergonha do fracasso. Eles são o sonho da emigração gorado, a viagem ao contrário, eles foram devolvidos sem nada para mostrar pela tentativa. De quem saiu e regressa espera-se que tenha presentes e coisas para dar, como quando ele era pequeno e “os tios a viver na Europa lhe traziam brinquedos. A pessoa sente-se perseguida pelo sonho do emigrante”. Quando aceita falar na escuridão do seu café na cidade da Praia, é quase como se António Lopes tivesse cometido um crime mais grave do que o tráfico de droga. Ele voltou por estar ilegal. O seu crime foi não ter conseguido. Entrou em Portugal com visto de trabalho em 2003, foi expulso a 6 de Dezembro de 2011. Nunca conseguiu ter documentos. Autorização de residência dão ao estrangeiro que dê provas de ter “meios de subsistência” — uma retribuição mínima mensal que ronda os 500 euros com descontos para a segurança social — e ele o máximo que conseguiu “foi biscates nas obras de uma, duas semanas” e a venda de sucata, fogões e frigoríficos velhos. Foi por isso que, quando numa rusga do SEF, o apanharam em Algueirão (Sintra) e o levaram para o aeroporto da Portela com voo directo para a Praia, sentiu um alívio quase inconfessável. Era um álibi. Não tinha sido ele a desistir, tinham-no obrigado. “Fui directo para a minha casa. ”Chegou a tempo de ver o pai morrer. “Se calhar, estava à espera de mim. ” E com a sua morte acabou por herdar pouco, mas o suficiente para montar o seu “café Lapa”, um espaço de paredes toscas e telhado de zinco. “Desculpe de estar tudo velho”, diz sobre o seu café novo. Disseram-me que eu nunca trabalhei em Portugal. ” Como, se ele ajudou a construir o El Corte Inglés, a Gare do Oriente, às vezes jornadas de 19 horas de trabalho“Lá já encontrei a crise. Pelo menos cá estou ao pé da família. Tenho oito filhos em Cabo Verde. Pensei que lá estava melhor. Não quero voltar. Talvez se fosse mais novo. ” Mas isso é António, 50 anos. Assomada é a segunda cidade de Santiago, da Praia demora-se a lá chegar uma hora, numa ilha que leva duas horas a percorrer de uma ponta à outra. É início da tarde de uma quinta-feira e há dezenas de jovens na rua com ar desocupado. Numa esquina há um jovem que destoa dos outros, falta-lhe um dente da frente, mas não é por isso, é pela postura, parece que está pronto a ir em direcção a algum sítio. Tem vestido uns calções pretos e brancos debruados a amarelo, ténis da Reebok. Está trajado para correr, como se estivesse junto a uma meta, pronto a partir para uma prova de atletismo que nunca mais começa. Chamam-lhe Obikwelu, é a alcunha que trouxe de Portugal e que quase apagou o seu nome de baptismo, Nelson Lopes Tavares. Obikwelu foi deportado, em 2010, mas é difícil que acreditem que não foi “por ser bandido. Eu não sou traficante, eu sempre trabalhei”. Foi para Portugal com 17 anos, viver com o tio, “trabalhava até ao sábado, ao domingo ia à missa”. O problema é que em Portugal ele nunca foi Nelson, só foi Obikwelu, que era como o chamavam, por ter a mania das corridas. Francis Obikwelu é um célebre atleta medalhado nascido na Nigéria naturalizado português. A condição imposta pela senhora amiga que aceitou levá-lo para Portugal, em nome do filho Edmilson, foi não poder levar consigo nenhum documento que pudesse contrariar a história de que ele era Edmilson. “Nem passaporte cabo-verdiano. Não levei nada. Não podia levar nada. ”Sempre que alguém saía das obras, ele ficava a substituí-la, descontou para a segurança social “de um tal João, de um tal Edmilson”, como aquele que ele era suposto ser, e trabalhou em obras em que não se importavam que ele não fosse ninguém. Arranjou trabalho no Algarve e conheceu Telma, viviam juntos há sete anos. Tudo certinho, a renda sempre em dia, recibos no nome dela. Era um Dia dos Namorados e foram passear a Faro. “Apanharam-me. Tinha de ser recambiado. ”“Disseram-me que eu nunca trabalhei em Portugal. ” Como, se ele ajudou a construir o El Corte Inglés, a Gare do Oriente, às vezes jornadas de 19 horas de trabalho. “Os patrões conheciam-me e gostavam de mim. Prenderam-me numa segunda, na sexta estava de volta a Cabo Verde. ”“Os meus pais ficaram abalados. Somos dez filhos, estão todos aqui. Fui eu o único que saí, e não consegui. Havia meses que conseguia mandar 50 a 80 euros por mês, umas migalhas, mas ajudava. ”Mas ele e a namorada portuguesa tinham um plano. Ele veio numa semana, a Telma veio na semana a seguir. Casaram-se por procuração. Estava convencido de que bastaria para ele poder regressar, afinal, ele agora era casado com uma portuguesa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Era uma questão de tempo. Obikwelu não tinha fracassado. Não era como os outros “recambiados”. Amigos, familiares, pediam-lhe o que tinha trazido, os ténis Puma, os Nike, os Reebok. “Dei ténis, dei roupa, dei tudo, eu ia voltar. ” Como é que ele podia negar? Ele ia voltar para Portugal, para a Europa, lá ia poder comprar outros Puma, outros Nike, outros Reebok, não era como eles, que iam ficar sempre em Cabo Verde. “Quando vi que não dava para voltar. . . Fiquei sem nada. ”Para continuar a correr em Cabo Verde, um amigo português com quem fala por messenger, o Tiago, mandou-lhe pelo correio os únicos ténis que tem agora, os Reebok pretos e verdes que traz calçados. Treina quatro horas por dia, já tirou passaporte cabo-verdiano no seu nome verdadeiro. Nelson Lopes Tavares está pronto para voltar.
REFERÊNCIAS:
25 anos de Simpsons: recordações da família amarela
A família com mais longevidade da televisão está connosco há 25 anos. Bush, os Ramones, guerras, Stephen Hawking, Elizabeth Taylor ou Family Guy. Todos têm um papel na nossa história com Homer, Bart, Marge, Lisa e Maggie. (...)

25 anos de Simpsons: recordações da família amarela
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2014-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: A família com mais longevidade da televisão está connosco há 25 anos. Bush, os Ramones, guerras, Stephen Hawking, Elizabeth Taylor ou Family Guy. Todos têm um papel na nossa história com Homer, Bart, Marge, Lisa e Maggie.
TEXTO: Há 25 anos, as famílias televisivas eram perfeitas. Ou, vá, perfeitas à imagem do seu tempo. Nos anos 1970, Archie Bunker era racista e misógino, mas o resto de Uma Família às Direitas punha em xeque e tornava piada a sua intolerância. Nos anos 1980, os Keaton eram os idealistas baby boomers, os sonhadores de esquerda que provavam que Quem Sai aos Seus tem espaço para um fã de Ronald Reagan no filho mais velho. Nos anos 1990, passou a haver não uma ovelha negra mas várias na família televisiva da década. Homer, Bart, Marge, Lisa, Maggie estão na TV há 25 anos. Uma tem um cabelo azul penteado como A Noiva de Frankenstein e esconde a sua inteligência para não condicionar o marido; esse é um glutão bêbado com responsabilidade e pedagogia zero; a bebé não largou a chucha e mal aprendeu a falar em 25 anos e as outras crianças ou andam de skate e lata de spray a aterrorizar Springfield ou a ser sabichonas eternamente presas nos 8 anos de idade. Começaram a aparecer, menos redondos, mais tremidos mas ainda assim muito amarelos, como um sketch no The Tracey Ullman Show em 1987 (foi transmitido em Portugal pela SIC) e passados dois anos chegavam ao horário nobre de um canal em vias de afirmação nos EUA, a Fox. Hoje são o programa de ficção que há mais tempo está no ar na história da TV norte-americana, têm 31 Emmy, um prémio Peabody e não há história do século XX ou da televisão que não coloque a criação de Matt Groening na lista dos seus melhores produtos – para a Time, foi mesmo a melhor série de televisão de sempre. Os Simpsons eram “um motim existencial sobre os terrores do lar, do trabalho e da escola”, “entretenimento para adultos que é também fixe para os miúdos”, como escreveu o USA Today em 1990, citado pelo site Vulture. Nasceram quando Roseanne apresentara já ao reino das sitcom uma família de três filhos com dificuldades financeiras e ambos os pais a trabalhar fora de casa, lembrou a Newsweek, com uma “irreverência que torna Os Simpsons uma novidade tão promissora no horário nobre”. “Definitivamente uma família para os 90s”, postulava o Seattle Times. A família Simpson, no seu emblemático amarelo (que o criador Matt Groening oscila entre explicar que foi apenas a cor que “parecia certa” quando lhe foi apresentada por um animador ou que era o tom ideal para que todos identificassem o programa ao fazer zapping), chegou ao mainstream antes da televisão-choque. Homer já estrangulava Bart meses antes de Laura Palmer ser assassinada – atenção a um spoiler com 24 anos, mas ainda assim um spoiler – por um pai possuído em Twin Peaks. E Lisa já tocava o seu saxofone no horário nobre dois anos e meio antes de Bill Clinton, ainda candidato ao primeiro mandato como Presidente dos EUA, pegar no saxofone para ganhar votos no talk show de Arsenio Hall. A família amarela era quase mais humana do que a América real. “Basicamente desenhei a minha própria família. O meu pai chama-se Homer. A minha mãe Margaret. Tenho uma irmã Lisa e outra Maggie, por isso desenhei-os a todos. Ia chamar a personagem principal Matt mas achei que não ia ser bem visto numa reunião para tentar vender os desenhos animados por isso mudei para Bart”, lembrou o autor Matt Groening sobre o primeiro esboço, feito a correr, da família para o Tracey Ullman Show, em entrevista à revista da Smithsonian Institution em 2012. Dois anos de popularidade inesperada mais tarde, a família amarela autonomiza-se e ganha o seu próprio programa – e Homer passa a ser a personagem fulcral. “Há mais consequências para o facto de ele ser um idiota”, mais histórias a contar, diz Groening. Pessoas reaisO primeiro episódio é um especial de Natal em que há problemas de dinheiro, asneiras de filhos e suas consequências – e acaba com a adopção do cão escanzelado que até hoje acompanha a família. “As pessoas sentem mesmo que os Simpson são pessoas reais, mas porque somos desenhos animados safamo-nos com muito mais. São [os Simpsons] incrivelmente políticos e não fazem prisioneiros. Isso torna-os cativantes”, disse Yeardley Smith, que faz a voz de Lisa, à revista Time em 2012. Lisa pode ser vista como uma espécie de versão cartoon do “Cabeça de Abóbora” interpretado por Rob Reiner em Uma Família às Direitas, a consciência política de Os Simpsons ao lado da mãe, o seu pilar moral. Do outro lado da barreira moral está Bart, o rebelde sem causa. As t-shirts com Bart começaram a incomodar reitores e o pai da América, Bill Cosby (agora ensombrado por acusações de abusos sexuais), cuja série homónima definira os anos 1980 com a sua alegre família negra de classe média, os Huxtable. “A televisão devia andar para a frente em relação aos Huxtable, e não para trás”, disse à Entertainment Weekly em 1990 sobre as novas séries do horário nobre. Os Simpsons “eram extremamente controversos em alguns quadrantes e durante algum tempo tiveram uma reputação de ser um bocado grosseiros. A escola da minha filha dizia que não se podia usar uma t-shirt dos Simpson. Sempre pensei que a série era muito mais rica do que isso e que tinha um centro moral”, disse ao Guardian o showrunner, argumentista e produtor Al Jean, há 25 anos com a família de Springfield. Pouco tempo depois, a Fox e a sua família disfuncional venciam a NBC e os Cosby na luta pelas audiências. Os Simpsons, cujo primeiro episódio de meia hora foi transmitido no primetime do canal americano FOX há exactamente 25 anos, nasceram para ser comparados com outros. E para simbolizar uma mudança numa década cheia de statements. Chegam no ano em que Reagan se despede e em que a selecção portuguesa de futebol vence o Mundial sub-20. Chegam um mês depois de cair o Muro de Berlim e no ano em que o Kosovo perde a sua autonomia e que começa o fim da antiga Jugoslávia. Chegaram em reacção aos anos 1980. Abrem portas poucos meses depois de Seinfeld se instalar na concorrente NBC e de lá ficar durante toda a década de 1990, a do minimalismo, da imagem anti-yuppie, de No Logo de Naomi Klein e dos violentos protestos na cimeira da Organização Mundial do Comércio em Seattle contra a globalização. A que teve a política do rock feminista do riot grrrl e que rejeitou a decadência do hair metal em prol do rock de flanela. Foi a década da primeira Guerra do Golfo, foi a primeira dama republicana Barbara Bush a dizer sobre a família amarela da classe trabalhadora: “Os Simpsons são a coisa mais estúpida que já vi”. E foi esta a resposta de Marge Simpson, a matriarca cujo nome de solteira (Bouvier) é o mesmo de Jacqueline Kennedy antes do casamento, enviada à Casa Branca em Setembro de 1990: “Tento ensinar aos meus filhos Bart, Lisa e até a pequena Maggie, a dar sempre às pessoas o benefício da dúvida e a não dizer mal delas – mesmo que sejam ricas”; “Se somos a coisa mais estúpida que alguma vez viu, Washington deve ser uma coisa bastante diferente do que me ensinam no grupo de Temas da Actualidade na igreja”. Uma nova animaçãoA mesma década que criaria um espaço confortável para Friends (NBC) e uma montra para maiores de 16 para Sexo e a Cidade (HBO) abraçou fervorosamente a família que geraria estas reacções extremadas e um novo reconhecimento da animação. Sem Simpsons não haveria Family Guy (e este ano finalmente foi para o ar o episódio que cruzou as duas famílias e os seus universos citadinos, Springfield e Quahog, num pingue pingue constante entre as duas principais acusações feitas a cada uma – que Family Guy é uma cópia de Os Simpsons e que Os Simpsons já não têm piada), nem South Park. E talvez Conan O’Brien, argumentista da série entre 1992 e 1993, tivesse seguido outro caminho, ou o realizador Brad Bird, consultor durante as primeira oito temporadas de Os Simpsons, não tivesse dirigido alguns dos maiores sucessos da Pixar. “É o que os fãs de sci-fi dizem de Star Trek: criou uma audiência para o género” da animação televisiva, diz o criador de Family Guy, Seth McFarlane, à Vanity Fair sobre o pioneirismo de Os Simpsons. “Na minha opinião, basicamente reinventaram a roda”, explica o actor e realizador que queria ser animador na Disney e que quando viu Os Simpsons percebeu que era possível juntar humor adulto e cartoons. Já Matt Stone, que com Trey Parker criou o ainda mais abrasivo South Park, admite que “Os Simpsons são a desgraça da nossa existência” porque “fizeram tantas paródias, lidaram com tantos assuntos. . . ‘Os Simpsons fizeram-no!’ é um refrão muito familiar na nossa sala de argumentistas”. Aqueles que os viram abrir caminho e ser contracultura agora saúdam-nos à medida que os vêem gravitar para o centro da cultura popular ao invés de nas suas margens (onde se mantiveram títulos como Ren & Stimpy, nascidos no Nickelodeon em 1991) – a figura de George W. Bush, por exemplo, ridicularizada em canais como a Comedy Central, não foi das mais visadas em Os Simpsons, mas Al Jean diz ao Guardian que o facto de não terem uma boa voz para imitar o segundo Presidente Bush foi parte do problema. Groening diz ter saudades do foco nos problemas financeiros d’Os Simpsons e admite o anacronismo de Marge ser dona de casa. Ensina-se Os Simpsons nas faculdades, expressões Simpson integraram os dicionários (“D’oh!”), mas os novos parecem ir ainda mais longe. Quando viu Family Guy pela primeira vez, Matt Groening teve como primeira reacção “Oh meu Deus, temos concorrência”, contou numa entrevista conjunta com MacFarlane à revista Entertainment Weekly. “E estão a flanquear-nos. Esta série é mais doida e desagradável e indecente. Nós costumávamos meter-nos em sarilhos. Nós costumávamos ser a causa do declínio dos Estados Unidos. ”A série pende assumidamente para o centro esquerda, como já disseram vários dos seus responsáveis. Desde o vegetarianismo e budismo de Lisa à aceitação (não sem resistências) da homossexualidade da irmã por Marge, passando pelos direitos dos animais, pela aparição de Julian Assange no 500. º episódio de Os Simpsons ou pelos ataques à casa-mãe Fox, detida pelo magnata conservador Rupert Murdoch, “conseguimos ir bastante longe”, diz Al Jean ao diário britânico – a Fox, que se fez muito graças à família criada por Groening, é descrita como “o maior bully do bairro” por Yeardley Smith. Ao longo de 25 anos, quase não houve alterações no elenco e a família e a cidadezinha de Springfield sobreviveram a Homer e a um filme blockbuster em 2007. Os Simpsons são também um íman cultural, uma cápsula do tempo de cultura pop. A primeira palavra de Maggie (“papá”) foi proferida por Elizabeth Taylor, Meryl Streep foi a namorada de Bart e o físico Stephen Hawking, que agora quer ser um vilão Bond, já apareceu na série várias vezes. Michael Jackson, George Harrison, Ringo Starr, Paul e Linda McCartney, a realizadora Penny Marshall, os Sonic Youth, os Ramones, os Red Hot Chilli Peppers, o astronauta Buzz Aldrin, a Mrs Robinson Anne Bancroft, Mel Brooks, as estrelas de Ficheiros Secretos David Duchovny e Gillian Anderson, as irmãs tenistas Venus e Serena Williams, os realizadores Michael Moore ou Peter Bogdanovich, o basquetebolista LeBron James, os romancistas Jonathan Franzen, Michael Chabon, Tom Wolfe, Gore Vidal e Tom Clancy, o Monty Python Eric Idle, o ilustrador e argumentista Daniel Clowes, o apresentador Jon Stewart, o chef apresentador Anthony Bourdain, o Breaking Bad Bryan Cranston – todos estiveram com Os Simpsons nestes 25 anos e contam com eles pequenos pedaços da história do último quarto de século. E também houve polémicas, claro. A forma como retrataram o Brasil ou a Austrália, o episódio escrito pelo writer de graffiti Banksy, em que os animadores são ilustrados numa linha de montagem coreana, além das tentativas de Homer para tentar afastar Bart da homossexualidade ficaram entre os mais discutidos dos 561 episódios já transmitidos. A anos-luz de Os Flinstones ou de Os Jetson, a família animada Simpson tem os seus rituais bem oleados – a frase de Bart no quadro e o amontoar da família no sofá do genérico, os piscares de olho à realpolitik (o valor na caixa do supermercado visto por Marge era o custo mensal de criar um bebé em 1989, 847 dólares). Está sempre aberta a discussão sobre a parecença do milionário sovina Mr. Burns com Rupert Murdoch, mesmo sabendo-se que, oficialmente, este foi desenhado como um arquétipo da ganância e como um misto do fundador da Fox Barry Diller e. . . um louva-deus. Tal como outro debate, sempre agitado, sobre onde é a Springfield natal d'Os Simpsons, apesar de Groening ter já deslindado o mistério dizendo que se trata da Springfield do estado de Oregon. Marge foi capa da Playboy, Bart capa da Rolling Stone (e de Nevermind dos Nirvana), um episódio já foi de Lego, a matemática e a ciência têm um papel regular na série e Homer até já foi considerado o pai ideal para 22% dos jovens britânicos. A sua festa de anos oficial fez-se em Setembro com três noites de concerto no Hollywood Bowl e com maratonas e a estreia da 26. ª temporada nos EUA. Em Portugal, a festa faz-se este mês no canal Fox com 25 Anos de Simpsons – 25 Dias de Natal e a estreia da 23. ª temporada da série. Entretanto, no Twitter, a hashtag #TheSimpsons está a servir esta quarta-feira para recordar ou homenagear a série.
REFERÊNCIAS:
A serpente no Planalto: o eterno retorno do fascismo
No maior país de língua portuguesa, deixaremos de vir para a rua denunciar este terrível acontecimento? (...)

A serpente no Planalto: o eterno retorno do fascismo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-26 | Jornal Público
SUMÁRIO: No maior país de língua portuguesa, deixaremos de vir para a rua denunciar este terrível acontecimento?
TEXTO: Em O Eterno Retorno do Fascismo, Rob Riemen enuncia algumas das teses que tantos outros intelectuais (de Manuel Castells e Slavoy Zizek a Chomsky, de Habermas a Peter Sloterdijk, de Ian Kershaw a Roger Chartier e Peter Burke) igualmente corroboram. Há dias, um manifesto internacional assinado por inúmeros pensadores, artistas, ensaístas, historiadores, professores, fez chegar (a quantos, na verdade? E sobretudo no Brasil. . . ) o repúdio por a mais que provável eleição (como Hitler, em 1933) de Bolsonaro. . . Nacionalismo, autoritarismo, homofobia, racismo, censura, belicismo, delação, manipulação dos media para efeitos de propaganda e doutrina, enfraquecimento das instituições democráticas (Tribunais, Ministério Público, Escola e Universidades), apelo ao ódio e à violência, desrespeito pela diferença, discriminação absoluta, fomento de um discurso populista e assente na demagogia; aliança com poderes obscuros ancorados no interesse da Igreja Evangélica (Edir Macedo é um dos principais apoiantes de Bolsonaro e é Macedo o dono da TV Record, canal que funcionará para o capitão como a Fox News para Trump), um exacerbado moralismo hipócrita, eis o retrato fiel de Jair Bolsonaro e dos que o acompanham. Estes sinais, que igualmente identificamos em Trump, Putin e Duderte, na nova Itália da extrema-direita; que ouvimos nas palavras e vemos nas acções de Orban e pressentimos no irracionalismo do “Brexit”, deveriam ter fortalecido a resistência das democracias. Foi a indiferença e o individualismo que nos conduziram a este precipício e, como na década de 1930, aqueles que deveriam defender as liberdades e a dignidade (palavra-chave para o ressurgimento dos regimes livres e humanistas) viraram as costas aos povos e, escudados nos seus lugares de poder e de supostos inimputáveis, julgam estar livres do que aí vem. . . Não estão. Servindo-se da Democracia e seus fracassos, Bolsonaro irá eliminar o sistema eleitoral, defenderá a existência dum partido único, destruirá direitos e garantias dos trabalhadores, e, como lembra Rob Riemen, sem uma elite intelectual e massa política impolutas, acabará por encaminhar o Brasil para um modo de vida onde só a ignorância e a superficialidade, o capitalismo mais desenfreado e a corrupção de Estado poderão imperar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pondo em primeiro lugar os interesses do empresariado (a FIESP e o agronegócio, sedentos de destruir a Amazónia para explorar as suas incalculáveis riquezas), as coordenadas por que se rege o programa do candidato do PSL são de fácil leitura para quem não tenha desprezado a História. Estamos perante a vitória de um sistema ideológico global que, desde Reagan e Thatcher, à Terceira Via de Blair, ao primado da economia e da mentalidade estatística dos governos "liberais" ou dos populismos de Esquerda, destruiu a linguagem, o pensamento e a acção política. O ódio aos intelectuais serviu, um pouco por todo o mundo, para defender o primado da opinião. Daí à simpatia que merecem frases de Trump na América profunda, às sentenças de morte e terror pronunciadas por Jair ou Maduro, Putin ou Le Pen, foi um passo. O homem comum, sem escola e ressentido, está sedento de novas formas de paternalismo que o façam sentir mais seguro. Está sedento de vingança e acabará sempre por condenar quem pensa e promove a dúvida, quem faz distinções e compreende que a Humanidade é diversidade. O seu raciocínio é este: se és elitista não és democrata e nós – porque não somos fascistas (é este o engodo) – condenamos quem problematiza, quem pergunta e quem agita os espíritos. Uma globalização pobre em referências histórico-culturais, refém dessa nova Minerva – a Tecnologia (a tese é de Habermas); uma globalização baseada num sistema educativo que no Ocidente e nos países pró-ocidentais conduziu à diversão e ao desconhecimento da Cultura, ao menoscabo da Filosofia, da Música e da Poesia, à banalização dos sentimentos, tudo reduzindo ao lucro e ao resultadismo mais nefando, esse é o real em que estamos atolados. Eis porque Nietzsche estava certo: o niilismo roubou-nos a possibilidade de nos elevarmos acima da animalidade. Bolsonaro obedece apenas a essa animalidade, a única lei que conhece é a lei dos instintos primários. É urgente que não só os intelectuais, mas toda a sociedade civil brasileira – e o mundo – actuem em conformidade com os tempos que se avizinham. Convém, para que conste, saber que Bolsonaro admira Cel Brilhante Ustra, torturador da Ditadura Militar (1964-1985) e que é ele a serpente que do Palácio do Planalto irá destilar o seu veneno. Com Trump e outros usurpadores da Democracia, o que está em causa é a dignidade humana, como bem disseram Chico Buarque e Caetano Veloso numa manifestação pró-Hadddad, a única escolha possível, um académico culto, um homem justo. Se o PT errou – e errou – não podemos esquecer um facto simples: os 87% de aprovação de Lula aquando o seu primeiro mandato; as 17 universidades que se criaram; os diversos programas de inclusão social; a profusão de escolas técnicas e um sistema de quotas para negros e índios, o acesso à educação e o histórico facto de cerca de 35 milhões de brasileiros terem sido retirados da miséria através do "bolsa-família". Se, como disse Millôr, o problema do Brasil é ter "muito passado pela frente", que lições teremos de aprender ainda para que esse passado não se faça presente? Que moral terá o mundo se a serpente chegar ao Planalto? Com que armas teremos de nos defender dos novos tiranos? E Portugal? No maior país de língua portuguesa, deixaremos de vir para a rua denunciar este terrível acontecimento?
REFERÊNCIAS:
Morreu Andy Rooney, a voz da América que encerrava o programa ‘60 Minutos’
Durante 33 anos as frases de Andy Rooney punham o ponto final no programa da CBS News ‘60 Minutos’. Rooney servia-se da agudeza de espírito e de um humor assentes num saber do dia-a-dia, de ideias bem escritas, e de uma moral refilona que podia gerar controvérsia, mas fazia com que fosse adorado pelo público norte-americano. Nesta sexta-feira a voz calou-se para sempre, Andy Rooney morreu aos 92 anos. (...)

Morreu Andy Rooney, a voz da América que encerrava o programa ‘60 Minutos’
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-11-06 | Jornal Público
SUMÁRIO: Durante 33 anos as frases de Andy Rooney punham o ponto final no programa da CBS News ‘60 Minutos’. Rooney servia-se da agudeza de espírito e de um humor assentes num saber do dia-a-dia, de ideias bem escritas, e de uma moral refilona que podia gerar controvérsia, mas fazia com que fosse adorado pelo público norte-americano. Nesta sexta-feira a voz calou-se para sempre, Andy Rooney morreu aos 92 anos.
TEXTO: “É um dia triste para os ‘60 Minutos’ e para todos aqui na CBS News”, disse Jeff Fager, o director do famoso programa de reportagens. “É difícil imaginar não ter o Andy por perto. Ele amava a sua vida e vivia-a segundo os seus princípios. Vamos sentir muita a sua falta”, disse citado pela Reuters. Desde 1978 que o norte-americano sentava-se atrás de uma secretária de madeira feita por ele – um hobby que manteve ao longo da vida –, e durante 1097 edições, no final do programa semanal do canal da televisão, debitou comentário atrás de comentário sobre tudo e nada na sua rubrica “Alguns minutos com Andy Rooney”. Dizia mal do tamanho das embalagens de cereais comparado com a quantidade de produto que vinha lá dentro, ou tinha apontamentos mais simples que sumarizavam ideias que assolam qualquer um: “Não há dúvida”, disse uma vez num dos seus comentários mais famosos. “Os cães são mais simpáticos do que as pessoas. ”Levava para o programa o que Deus lhe tinha dito à noite, refilava sobre a sua velhice, tinha comentários machistas. Criticou os Estados Unidos pela entrada na Guerra o Iraque, mas uma vez estando lá, a única opção seria vencê-la. Disse mal da CBS News, exigiu uma greve dos escritores pelos despedimentos na empresa ameaçando que se demitia. Propôs o fim do embargo contra a antiga União Soviética, com uma tirada onde envolvia a venda de cereais e que lhe valeu o terceiro dos quatro Emmys que ganhou: “Como é que eles nos vão levar a sério como inimigos se pensarem que no pequeno-almoço comemos Cap’n Crunch?”. Mas recorrentemente gerava controvérsia. Uma das polémicas levou-o a ficar afastado do programa durante um mês por declarações homofóbicas. “Em 1989 houve um certo reconhecimento do facto que muitos dos nossos males que nos matam são auto-induzidos. Demasiado álcool, demasiada comida, drogas, uniões homossexuais, cigarros. Tudo isto é conhecido por levar muitas vezes a mortes prematuras”, disse em Dezembro de 1989, num programa especial chamado “Um ano com Andy Rooney”. O comentário, associado com declarações racistas que supostamente Rooney teria dito, mas que nunca chegaram a ser comprovadas e que ele sempre desmentiu, levou a críticas severas que fez com que a CBS News o tirasse do programa durante três meses. Mas o canal, que estava habituado a ver o número de espectadores a subir ao longo de cada edição semanal dos ‘60 Minutos’ à medida que o “momento Rooney” se aproximava, sentiu a perda dos seus comentários com uma baixa de 20 pontos percentuais no visionamento do programa e recebeu centenas de pedidos por parte do público a querê-lo de volta. Por isso a ausência do jornalista acabou por ser só de um mês. Outras das polémicas foi em 1994, quando Rooney criticou Kurt Cobain pelo suicídio, alegando que só poderia falar de sofrimento quem viveu a Grande Depressão ou a Segunda Guerra Mundial. Mas sob todos os queixumes sobre a american way of life, onde incluía as suas próprias falhas, estava um homem que gostava da sua vida. Na última edição do seu programa, no passado 2 de Outubro, Rooney disse isso mesmo: “Queixei-me de muita coisa aqui, mas de tudo o que me queixei, não me posso queixar da minha vida. ”“Por baixo daquele exterior ríspido, estava um interior espinhoso… e mais profundamente, estava um homem doce e gentil, um patriota com um amor por todas as coisas Americanas, como um bourbon de qualidade e um ódio delicioso pelo preconceito e pela hipocrisia”, disse Morley Safer, em comunicado, colega no programa ‘60 Minutos’. Uma vida do século XXAndrew Aitken Rooney nasceu a 14 de Janeiro de 1919, em Albany, Nova Iorque. Foi um aluno médio que acabou por entrar para a Universidade, durante os estudos foi chamado para o serviço militar contra sua vontade, três meses antes de Pearl Harbor.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra suicídio homem cães