O “homem sem qualidades” que conduziu o mundo até ao fim da Guerra Fria sem disparar um tiro
Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Morreu aos 94 anos. (...)

O “homem sem qualidades” que conduziu o mundo até ao fim da Guerra Fria sem disparar um tiro
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Morreu aos 94 anos.
TEXTO: George H. W. Bush presidiu aos destinos da América durante quatro anos que mudaram o mundo para além de todas as previsões. Coube-lhe criar as condições que permitiram o fim da Guerra Fria e o impensável desaparecimento da União Soviética. Sem ter de disparar um tiro. Era um moderado, privilegiava a “diplomacia pessoal”, não acreditava em ideologias e defendia a necessidade de ouvir os outros. Anunciou uma “nova ordem mundial” na qual as leis internacionais eram para cumprir. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”. Os americanos agradeceram-lhe mas recusaram-lhe o segundo mandato. Morreu na sexta-feira aos 94 anos. Subsistiu sempre uma espécie de mistério na carreira política do 41. º Presidente dos Estados Unidos da América. Como foi possível que o homem que levou a bom porto, pacificamente, o fim do comunismo, da Guerra Fria e a implosão do império soviético em apenas um mandato, falhasse a eleição do segundo? Hoje, à luz das memórias e dos ensaios que já foram escritos sobre esses quatro anos verdadeiramente prodigiosos (1989-1993), em que muita coisa poderia ter corrido mal, o mistério encontra várias explicações. Algumas delas são as características pessoais (mais do que políticas) de um homem mediano que passou quase toda a vida activa vendo-se a si próprio como um servidor público, pragmático mais por ausência de ideologia do que por escolha política, instintivamente moderado, capaz de ouvir os outros mesmo que fossem adversários ou inimigos, rodeado de um escol de conselheiros de primeira água. Não tinha carisma, era mau orador, não parecia capaz de um assomo de paixão. Foram, porventura, estas características pessoais que lhe permitiram ser “vice”, durante oito anos, de um dos Presidentes mais ideológicos, carismáticos e desafiadores da história recente da América. Enfrentou Ronald Reagan nas primárias republicanas de 1981, criticando a sua receita económica (chamou-lhe “economia vodu”), a sua visão radical do mundo, a sua maneira de desafiar os inimigos. Serviu-o zelosamente nos seus dois mandatos. Era esse o seu dever de lealdade, facilitado pelo seu desprezo pelas ideologias, a que uma vez chamou de “vision thing” (essa coisa da visão) e porque Reagan acabou por perceber depressa a sua utilidade. Reagan levou a cabo uma revolução conservadora, em parceria com a sua “amiga” Margaret Thatcher, que mudou radicalmente a economia americana e europeia. Foi o chamado crescimento pela via da oferta (a que hoje chamamos de neoliberalismo), facilitando a vida dos detentores do capital e das empresas com uma baixa drástica dos impostos e a destruição da regulação dos mercados, ao mesmo tempo que tentava reduzir os benefícios sociais, argumentando que cada um tinha a obrigação de fazer pela vida. Bush não pensava nada disto. Olhava horrorizado para o aumento exponencial do défice público que, aliás, herdaria com consequências políticas pesadas. Reagan não se importava. Era, porventura, o homem mais bem preparado da equipa presidencial em matéria de política externa. Conheceu, nas suas funções de “vice”, a maioria dos líderes mundiais, a começar por Mikhail Gorbatchov, desenvolvendo com ele uma relação de confiança mútua que se revelou crucial para o seu primeiro e único mandato. Ele próprio relata com humor as circunstâncias dessa relação, no livro de memórias que escreveu com Brent Scowcroft, o seu conselheiro nacional de segurança. Entre 1982 e 1985, teve de ir a Moscovo três vezes para representar Reagan em três funerais de três secretários-gerais do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que haviam de marcar a história mundial: Leonid Brejnev (Novembro de 1982), Yuri Andropov (Fevereiro de 1984), Konstantin Chernenko (Março de 1985). No último, Gorbatchov já tinha sido escolhido para liderar o PCUS. Diz Bush na nota que enviou a Reagan depois do encontro: “ Gorbatchov, mais do que qualquer dos seus antecessores, fará o necessário para orientar a União Soviética para o modo de consumo ocidental. (…) Tem um sorriso desarmante, um olhar caloroso. ”Encontrou-o depois muitas vezes, quando Reagan o desafiou para negociarem a redução do armamento nuclear estratégico. Já era um amigo que tratava pelo próprio nome quando chegou à Casa Branca para presidir aos destinos da América. Com uma convicção profunda, talvez a única que tinha: o que é mais importante na política externa é a “diplomacia pessoal”, à qual acrescentava a capacidade de “ouvir os outros”. Talvez tenham sido estes dois condimentos que permitiram a este “guerreiro” da Guerra Fria gerir a inesperada revolução que Gorbatchov desencadeou na União Soviética e que abalou o mundo até aos alicerces, abrindo as portas a uma nova era. Ninguém admitia nessa altura – é bom recordar – que o comunismo e a União Soviética pudessem ser derrotados por dentro, sem causar um conflito de dimensões épicas. Não era isso que a História ensinava. Bush não agiu sozinho. O mérito tem de ser distribuído por Helmut Kohl e pelo próprio Gorbatchov, cuja coragem foi a chave dos extraordinários acontecimentos vividos entre 1989 e 1991. O chanceler alemão foi determinante na unificação da Alemanha, o maior problema que se colocava ao mundo livre quando o Muro caiu. Mas Kohl nunca teria conseguido responder à velocidade dos acontecimentos, se Bush não estivesse ao seu lado para tranquilizar Moscovo, mas também Paris e Londres. Foi o primeiro a apoiar os planos de Kohl para a unificação, e Kohl ficou-lhe grato para sempre. A máxima na Casa Branca era “seguir Kohl, apoiá-lo e não fazer declarações que possam envenenar a situação”, escreve Scowcroft. Quando o Muro de Berlim caiu, havia em Washington pontos de vista diferentes sobre a questão alemã. Na Casa Branca, predominava a ideia de que a unificação era imprescindível para pôr fim à Guerra Fria, mesmo que levasse algum tempo. O Departamento de Estado tinha uma posição mais prudente, que levava em conta as preocupações de Paris e Londres. As duas potências europeias temiam o ressurgimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Conta Bush que, num encontro com Margaret, como ele dizia, ela tinha subitamente retirado da sua eterna mala de mão um mapa com as fronteiras da Alemanha em 1937. Era difícil prever o futuro. Mas o fim da ordem de Ialta não dispensava a liderança americana. Foi esse o papel que Bush soube desempenhar com bastante mestria: garantir a segurança dos aliados europeus e, ao mesmo tempo, fazer as coisas de tal forma que ajudassem o líder soviético a enfrentar internamente a velha guarda do Partido Comunista e os militares. A sua moderação foi criticada por muitos, que preferiam o estilo de Reagan em Berlim: “Senhor Gorbatchov deite este muro abaixo”. Era exactamente o que Gorbatchov tencionava fazer. Quando Bush chegou ao poder, em Janeiro de 1989, o fim do domínio soviético sobre a Europa Central e de Leste já estava em marcha. O espírito do Presidente era ainda o de alguém que participara directamente na Guerra Fria nos mais diversos postos. Nixon nomeou-o embaixador na ONU; Ford enviou-o para Pequim e nomeou-o, mais tarde, director da CIA. Como nota Stephen Knott, do Miller Center, Bush ganhou as eleições de 1988 ainda com a fórmula status quo plus. Não teve de esperar muito para ver os polacos, checoslovacos, húngaros, romenos e alemães de Leste encherem as praças de Varsóvia, Praga, Budapeste, Bucareste e Berlim a reivindicar liberdade. A explicação estava na nova “doutrina Sinatra” do líder soviético: cada um é livre de seguir o seu caminho sem medo de ver os tanques russos entrarem pela porta dentro. Bush chegou a duvidar, no que não foi excepção. Temia um banho de sangue a qualquer altura, a que dificilmente os EUA conseguiriam responder. Tinha gravadas na mente as vezes em que Moscovo esmagou as revoltas contra os seus lacaios europeus. Na Alemanha, em 1953, na Hungria, em 1956, na Checoslováquia, em 1968 e na Polónia, em 1981. Não acreditava em milagres. Mas conhecia Gorbatchov e confiava nele. Em casa, democratas e republicanos criticavam-no porque não anunciava ao mundo com a devida fanfarra a vitória da liberdade sobre o totalitarismo, da América sobre a URSS, a libertação dos países de Leste. Não era bem assim. Em 1990, visitou Lech Walesa em Gdansk, nos estaleiros navais onde tudo começou. Era preciso perceber as circunstâncias. Diz o próprio Bush sobre essas críticas: “Os democratas queriam que eu fosse a Berlim e dançasse em frente ao Muro – puro disparate”. E não havia apenas a libertação da Europa de Leste. Bem mais perigosa parecia ser a vontade de independência que alastrava em quase todas as repúblicas soviéticas que foram integradas pela Rússia depois das duas guerras. Visitou Kiev, advertindo os líderes independentistas para os riscos do “nacionalismo suicidário”. Os críticos qualificaram o seu discurso de “Chicken Kiev”, qualquer coisa como “galinha à moda de Kiev”, acusando-o de falta de coragem política. “O único caminho para a independência dos Bálticos era o consentimento do Kremlin”, escreve Scowcroft sobre as decisões cruciais que Bush teve de tomar. “A nossa tarefa era levar Gorbatchov até aí. ” Nas suas memórias, Bush faz uma pergunta com sentido: “Se Moscovo resolvesse esmagar as independências, como é que nós responderíamos?”As tropas das quatro potências vencedoras da II Guerra ainda estavam presentes em Berlim. A fórmula negocial encontrada para a reunificação foi a de “dois mais quatro” – as duas Alemanhas e as quatro potências ocupantes. Começaram em Fevereiro de 1990 e ficaram concluídas em Setembro desse mesmo ano. Entre uma data e outra, Bush percebeu que a unificação era inadiável. Kohl tinha-lhe explicado porquê: milhares de alemães de Leste iam diariamente para a RFA e os que ficavam, se alguém os tentasse travar, podiam facilmente recorrer à violência. O ponto mais difícil foi, naturalmente, a permanência da Alemanha unificada na NATO. Nesse capítulo, Bush foi intransigente. Temia que Kohl se deixasse tentar pela neutralidade, se fosse essa a condição para reunir de novo os alemães. Gorbatchov defendia também a velha ideia da neutralidade. Mais uma vez, o impossível aconteceu. Conta Scowcroft que, quando finalmente Gorbatchov aceitou a permanência da Alemanha na NATO, viu dois dos seus conselheiros militares discordarem dele em voz alta e à frente da delegação americana. “Eu não podia acreditar no que estava a ver, quanto mais pensar o que havia de fazer. ”Nas suas reflexões, Bush escreve que o pior que poderia acontecer era “humilhar” ou “enfraquecer” o líder soviético, que iniciara um jogo de altíssimo risco do qual tudo afinal dependia. Devia também ouvir François Mitterrand e Margaret Thatcher. O Presidente francês queria garantias de que a Alemanha permaneceria na NATO, mas também na Comunidade Europeia. Mitterrand e Thatcher queriam ter a certeza de que os EUA continuavam na Europa, para afastar todos os seus receios sobre o renascimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Tinha outro problema, que ele próprio reconhece: um défice federal de tal modo gigantesco que afectava seriamente a sua capacidade de apoio financeiro às forças democráticas dos países que se iam libertando, justamente quando mais precisavam dela. A superpotência era vencedora mas estava sem dinheiro. Kohl encarregar-se-ia dessa parte, gastando triliões de marcos para ajudar Gorbatchov, incluindo na retirada das forças militares que estavam na Alemanha de Leste (380 mil homens) e em outros países do Pacto de Varsóvia, que teriam de regressar à base sem convulsões. Em dois anos, o mundo mudou. Podia ter sido de um maneira trágica. A qualquer momento, um acontecimento banal poderia ter deitado tudo a perder. Os EUA foram fundamentais para que isso não acontecesse. No dia 19 Agosto de 1991, alguns saudosistas do passado e unidades de elite do KGB sequestraram Gorbatchov, de férias na Crimeia, e tentaram um derradeiro golpe em Mosco. Durante três dias, os líderes ocidentais viveram de respiração suspensa. Era um golpe contra a História e, portanto, fracassou. No dia 25 de Dezembro de 1991, Bush viu a bandeira da URSS ser hasteada pela última vez no Kremlin. Estava com a família em Camp David para celebrar o Natal. Gorbatchov preparava-se para anunciar, nessa noite, o fim oficial da URSS. A última pessoa a quem telefonou, duas horas antes, foi a George Bush. “George, querido amigo, é bom ouvir a tua voz. ” “Aprecio o facto de me teres telefonado”, retorquiu o Presidente americano. Gorbatchov: “Queria reafirmar directamente que valorizo grandemente o que nós conseguimos fazer juntos, primeiro como vice-presidente e, depois, como Presidente dos EUA. ” Bush: “Escrevi-te hoje uma carta onde expresso a convicção de que aquilo que fizemos juntos vai ficar na História e será devidamente apreciado. ”George Bush sempre teve uma visão realista da política externa americana, mesmo antes da sua “hora decisiva”. Nunca deu demasiada importância à defesa dos direitos humanos, seguindo esta escola de pensamento, cujo maior cultor foi Henry Kissinger. Teve como principal conselheiro um dos alunos dilectos do mestre, Brent Scowcroft. Talvez isso explique um dos episódios mais lamentáveis que marcaram a sua gestão do fim da Guerra Fria. A 4 de Junho de 1989, o governo de Pequim esmagou pela força militar os manifestantes que tinham ocupado a Praça Tiananmen para exigirem mais liberdade, provocando um banho de sangue intolerável. A maior preocupação de Bush foi manter um bom relacionamento com Pequim. Conhecia bem Deng Xiaoping, o líder chinês que anunciou, em 1979, que era “glorioso enriquecer”. As sanções que decidiu aplicar à China não estavam à altura da tragédia. Quem era este homem prudente e sem rasgo, que desapareceu ontem aos 94 anos. Que acontecimentos marcaram a sua personalidade?George Herbert Walker Bush nasceu a 12 de Junho de 1924, no Massachusetts, numa família rica da Costa Leste. O seu pai, Prescott Bush, tinha um banco de investimento e era senador. A mãe vinha das velhas famílias tradicionais. Bush fazia parte de uma elite cujo destino era fácil. Os melhores colégios, a Ivy League (Yale), uma educação de responsabilidade e de humildade em relação aos outros, que a mãe lhe transmitira desde criança. Era o segundo de seis irmãos e também o mais prometedor. Aluno mediano, mas com alguma actividade nos selectos clubes de discussão que se organizavam em Yale ou em Harvard. Cumpridor do que se esperava dele, houve um momento que lhe ficou, porventura, para a vida. Tinha 17 anos quando a aviação japonesa destruiu a esquadra americana do Pacífico, estacionada em Pearl Harbour. No dia em que completou 18 anos, alistou-se na Marinha, da qual foi o mais jovem piloto de combate. Formou-se na Phillips Academy, em 1943. No ano seguinte, o seu esquadrão foi integrado no porta-aviões San Jacinto. Foi promovido a tenente em Agosto de 1944, quando o navio de guerra iniciou as operações contra as bases japonesas no Pacífico. Numa das muitas missões, o seu avião foi atingido por artilharia antiaérea antes de atingir o alvo, o motor incendiou, ele cumpriu a missão antes de se ejectar do aparelho. Os outros dois membros da tripulação desapareceram. Ele teve sorte. Foi recolhido por um submarino americano. Pertencia à última geração dos que combateram na II Guerra. Nunca conseguiu compreender como foi possível que um obscuro governador do Arkansas, que tinha “fugido” à tropa durante a Guerra do Vietname, o tivesse vencido em 1992. Depois de Yale, rumou ao Texas para fazer fortuna com o petróleo. Mudou para lá com a família em 1948. Aos 40 anos, tornou-se milionário. Tentou o Senado em 1964 e perdeu. Escreveu a um amigo: “Quando a palavra moderação passa a ter uma conotação negativa, temos alguma introspecção a fazer. ”Em 1966 é finalmente eleito para a Câmara dos Representantes, cumprindo dois mandatos (1967-71). Votou a favor do Civil Rights Act de 1968 (Lyndon Johnson), sabendo que os seus eleitores do Texas não eram propriamente entusiastas. Casou-se com a sua companheira de sempre, Barbara Pierce, em 1945. Tiveram seis filhos. Criaram uma dinastia. Foi um dos dois únicos presidentes americanos que viu um filho entrar na Casa Branca. Viveu até ao fim da vida nos arredores de Houston. Apesar do orgulho próprio de um pai, discordou profundamente de muitas das decisões de George W. , incluindo a segunda guerra do Golfo para derrubar Saddam. Deu vários sinais de desagrado, mas deixou para os antigos membros da sua administração a missão de “desancar” o “wilsonismo com botas” (a doutrina, sem botas, de Woodrow Wilson depois da Grande Guerra, assente numa visão idealista de autodeterminação e de cooperação entre os povos), defendido pelos principais conselheiros do filho. Na biografia de Jon Meacham, Destiny and Power (2015), acusou Dick Cheney, que foi seu secretário da Defesa, de ser “outra pessoa”, arrogante e radical, mas reservou a pior parte para Donald Rumsfeld, o chefe do Pentágono do filho. “Nunca fomos próximos. Serviu mal o Presidente. ”Não resistiu a deixar correr a ideia de que votaria em Hillary Clinton e nunca em Donald Trump. Percebe-se. Quando, em 1988, o seu director de campanha, Lee Atwater, andava à procura de nomes para o cargo de vice-presidente, apresentou-lhe o de um rico empresário da construção de Nova Iorque, que dera alguns sinais de disponibilidade. Chamava-se Donald Trump. Bush, que registou o episódio no seu eterno bloco de notas (às vezes era um gravador), classificou a sugestão de disparate. Nunca se interessou particularmente por grandes discussões ideológicas. Alguns dos que conviveram com ele dizem que não era “uma pessoa profunda” em matéria de ideias. Por vezes surgiam dúvidas sobre o que realmente pensava. Quando, em 1988, um míssil de cruzeiro disparado do USS Vincennes atingiu acidentalmente um avião civil iraniano, matando 290 passageiros, reagiu de forma, no mínimo, muito estranha: “Nunca pedirei desculpa em nome dos Estados Unidos da América. Nunca. Não quero saber quais são os factos. ” Quando se estreou, em Janeiro de 1989, ainda tinha a noção de que os EUA podiam agir livremente na América Latina, o seu “quintal”. O Panamá de Noriega tinha-se transformado num narco-Estado, com o ditador a comandar o tráfico de droga para o mercado americano. Noriega perdeu as eleições mas não aceitou os resultados. Bush enviou dois mil marines para resolver o problema. É aqui que entrar o homem que, provavelmente, marcou todas e cada uma das decisões de George Bush perante os gigantescos desafios internacionais que teve de enfrentar. Já o referimos. Chama-se Brent Scowcroft. Já sabemos que foi discípulo de Henry Kissinger, expoente máximo da realpolitik. Mas “realista” não queria dizer “fraco” – uma imagem que sempre ficou colada ao Presidente. A sua posição sobre o segundo grande momento do mandato de Bush foi decisiva. No primeiro dia de Agosto de 1990, Saddam Hussein resolveu invadir o Koweit. Terá cometido o erro de pensar que o mundo bipolar ainda não tinha acabado. A primeira reacção de Bush, que chegou a transmitir aos jornalistas, foi que não considerava o recurso à força. Colin Powell, então o chefe das Forças Armadas, também não era um entusiasta. “Ainda se se tratasse da Arábia Saudita…”. Scowcroft pensava o contrário. Olhava para Bagdad como a primeira tentativa de pôr em causa a nova ordem que os EUA anunciavam ao mundo. Também ele estava preocupado com a Arábia Saudita, mas tirava a conclusão contrária. “Esta agressão pura e dura não podia ser permitida como parte desta nova ordem. ” Seria um perigoso precedente. Thatcher, que tinha uma boa relação com Bush desde Reagan, disse-lhe: “Don’t go all wobbly on us, George” (qualquer coisa como: “Não te ponhas agora com hesitações, George!”). O Presidente acabou por aceitar a visão do seu principal conselheiro. Quis que a sua decisão seguisse as vias normais do sistema multilateral, centrado nas Nações Unidas, libertas do colete-de-forças do mundo bipolar. James Baker contactou, um a um, todos os países que tinham assento no Conselho de Segurança, os permanentes e os outros. Bush fez tudo para sossegar Moscovo, que apenas queria uma negociação diplomática. Conseguiu reunir à sua volta uma coligação de 32 países, entre os quais os aliados europeus e muitos Estados árabes. Convenceu Israel a ficar de fora da guerra, condição necessária para manter a coligação. Seguiu a “doutrina Powell”: se é para intervir, então é com a máxima força. Os EUA iniciaram em Setembro o transporte de uma força militar verdadeiramente avassaladora para a região: cerca de 400 mil homens, aos quais se juntaram mais 100 mil dos países da coligação. O Conselho de Segurança adoptou uma resolução que dava a Bagdad uma data limite para retirar do Koweit: 15 de Janeiro. A partir daí, haveria luz verde para utilizar “todos os meios necessários”. No dia 16, Bush anunciou o início da guerra. Os primeiros bombardeamentos a alvos militares iraquianos começaram nessa mesma noite. Foi uma guerra rápida, que nem chegou a durar três meses. Cumprindo o que prometera, Bush recusou-se a avançar sobre Bagdad para derrubar o regime. A operação era para libertar o Koweit e mostrar ao mundo que as leis internacionais tinham de ser respeitadas. Foi bastante criticado nos EUA. O seu filho viria a “corrigir” a sua decisão da pior forma. Quando os primeiros soldados regressaram a casa, foram recebidos em Washington por uma imensa multidão. Ao contrário do Vietname, que dividira profundamente a sociedade americana, a guerra do Golfo era a guerra justa, que todos podiam aplaudir. Tinha quebrado o complexo da derrota de Saigão. A popularidade de Bush atingia valores inacreditáveis de 80 por cento. Nunca elaborou uma nova doutrina para uma nova ordem internacional, porque o seu cérebro fora formatado pela Guerra Fria e era-lhe difícil pensar noutros moldes. Deixou a desintegração violenta da Jugoslávia para os europeus. Mas quando os “senhores da guerra” tomaram conta da Somália, deixando milhões de pessoas literalmente a morrer de fome, enviou uma força militar cujo objectivo era apenas humanitário. Marines com sacos de arroz às costas. Num país a ferro e fogo. A operação acabou mal, quando 18 soldados americanos foram capturados no centro de Mogadishu, amarrados e arrastados pelas ruas da cidade para o mundo ver. Uma imagem insuportável aos olhos dos americanos. A primeira coisa que Bill Clinton fez foi retirar a missão. No seu discurso inaugural, em Janeiro de 1989, falou das “pragas dos sem-abrigo, do crime e das drogas”. Defendeu o voluntariado e o envolvimento das comunidades, que seriam, lembra Stephen Knott, “os mil pontos de luz das organizações comunitárias espalhadas, como estrelas, por toda a nação fazendo o bem”. Prometeu controlar o défice. Foi por causa dele que defendeu uma “agenda limitada”. Do seu mandato ficaram duas leis importantes que também ajudam a explicar o antagonismo do seu próprio partido. “Americans with disabilities Act”, 1990, garantindo mais apoio e mais direitos. Os Republicanos acusaram-no de aumentar as despesas sociais do Estado em vez de diminui-las. Ele respondeu que, se as pessoas com deficiência pudessem trabalhar, isso compensaria largamente o dinheiro gasto. A outra foi o “Clean Air Act”, também de 1990, para reduzir a poluição urbana, as chuvas ácidas e eliminar as emissões de químicos tóxicos pelas empresas. Voltamos ao princípio. Bush convenceu-se que ninguém o poderia derrotar nas eleições de Novembro de 1992 para o segundo mandato. Ganhou as primárias a um rival da direita mais conservadora, Pat Buchanan, que deu voz às críticas da ala radical dos Republicanos, acusando-o de ser demasiado condescendente com os apoios sociais, ao mesmo tempo que aumentava os impostos aos ricos. “Read my lips: no new taxes”, dissera o Presidente na campanha para as eleições de 1988. A dimensão do défice e a negociação com os Democratas (maioritários) para aprovar o Orçamento obrigaram-no a quebrar a promessa. A campanha foi um fracasso total. Não conseguiu encontrar uma mensagem que se tornasse dominante. Bush manteve-se distante. Merecia ganhar e, portanto, ganharia. Ross Perot, um milionário populista (mais moderado que Trump, mas na mesma linha), resolveu candidatar-se, desistiu e voltou a regressar, minando a base eleitoral republicana. As qualidades de Clinton fizeram o resto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Era um comunicador nato, que chegava a toda a gente com a maior das naturalidades. Mas, mais do que tudo isso, percebeu qual devia ser a mensagem com uma frase que ainda hoje é citada: “It’s the economy, stupid!”. Era mesmo. Depois da vitória na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, os americanos olhavam agora para si próprios, queixando-se de uma prolongada recessão que fazia aumentar o desemprego e baixar os salários reais. Clinton ofereceu-lhes a mensagem que ia ao encontro das suas aspirações. Era da geração dos baby boomers, que tinham contestado a guerra do Vietname e olhavam para o mundo de forma mais optimista. Bush não tinha um particular interesse pela política interna e a política externa, naquilo que lhe dizia respeito, estava resolvida. Não gostava de visões e de estratégias. Precisava delas para oferecer aos americanos aquilo que esperavam, depois do anúncio da Paz Americana. Perdeu. Saiu amargurado da Casa Branca, atribuindo a sua derrota aos media, que só queriam falar de Clinton. Em 2015, regressou à ribalta, merecendo o reconhecimento tardio daquilo que conseguiu fazer. Obama agraciou-o com a medalha presidencial da Liberdade, que ainda ninguém lhe tinha atribuído. O anterior Presidente apreciava a moderação com que geriu o fim da Guerra Fria, a sua capacidade para estender a mão aos outros, a sua ideia de que as alianças e o multilateralismo eram úteis ao poder americano. Obama foi um idealista realista. Faltou a Bush uma dose, mesmo que pequena, de idealismo. Mesmo assim fica na História. “Foi uma ponte entre uma das maiores linhas de fractura da História”, resume David Rothkopf, na Foreign Policy.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
A restituição
Os pedidos de restituição de obras de arte sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável. (...)

A restituição
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-03-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Os pedidos de restituição de obras de arte sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável.
TEXTO: Em Portugal, o debate sobre um museu das descobertas continua com os historiadores e jornalistas nacionalistas recorrendo a uma argumentação incipiente. Mas os portugueses, como todos os europeus, irão ser confrontados com um problema global e complexo para o qual ainda só existem metodologias em estádio experimental e cujas consequências são impossíveis de prever à escala global. Trata-se da restituição das obras de arte e de culto, de arquivos, de colecções de botânica e de zoologia que durante o período colonial foram sendo trazidas para a Europa, pelas potências colonizadoras. O processo não é novo, estas reclamações têm já uma história, mas adensou-se nas últimas décadas, nomeadamente a partir da convenção da UNESCO de 1970 que obriga à restituição dos objectos que foram trazidos ilegalmente das ex-colónias. Um dos primeiros exemplos foi a devolução pela Itália à Etiópia, em 2005, do Obelisco de Axoum que tinha sido levado por Mussolini em 1937. Vendo o início concreto deste problema, em 2002, os museus de Berlim e 18 dos museus da Europa e dos Estados Unidos assinaram a “Declaration on the Importance and Value of Universal Museums”, que afirmava os seus direitos de propriedade. Em 2010, no Cairo, realizou-se uma outra reunião em que compareceram países do sul da Europa, da América Latina, da Ásia e de África em que se colocava a questão da restituição e da própria convenção da UNESCO que permitia uma leitura de efeitos não retroactivos a 1970. No último ano, quer do lado das ex-colónias, quer do lado de alguns governos europeus, os sinais são claros: os pedidos de restituição sucedem-se e este ano a questão ganhou uma aceleração considerável. Em França, Macron reconhece o uso de tortura pelas tropas francesas na Guerra da Argélia no âmbito do caso Audin, permitindo a abertura dos arquivos, e aborda com frontalidade a questão da restituição de obras de arte aos países de origem, nomeadamente a devolução de três estátuas trazidas de Daomé em 1892 e que são reclamadas pelas autoridades do Benim que estimam existirem entre 4500 e 6000 obras suas em França. Na Alemanha, o padrão de Diogo Cão que assinala a passagem do navegador pela costa da actual Namíbia, e por esta reclamado, está a ser objecto de uma discussão; na Holanda, as reuniões com parceiros indonésios chegam a conclusões interessantes. Trata-se de indícios de uma Europa a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado a olhar para os fantasmas dos seus objectos museológicos. São sinais de uma Europa que, ao rever as suas narrativas nacionais, equaciona outro futuro, no qual considera que estarão implicados o lado das histórias e das memórias dos ex-colonizados. Da parte destes últimos, a reclamação pela restituição de obras começou há várias décadas. É uma demanda imparável no que diz respeito ao património cultural e humano destes países e que se encontra na Europa e nos Estados Unidos em museus, arquivos e universidades. Trata-se de um problema legal, cultural e político. Estão em causa obras que foram trazidas de forma ilegal ou com recurso à violência (as mais difíceis de identificar e localizar) e obras que – a maioria delas pertencentes aos museus de etnologia, de ciência, de antropologia e a coleccionadores de arte – são consideradas pelos seus ex-proprietários como de importância simbólica, identitária e cultural inalienáveis. A este património deve acrescentar-se os crânios e os esqueletos de pessoas que, por razões diversas, estão sem sepultura sendo parte de acervos científicos, o que inclui os restos mortais, como os de Saartjie Baartman, devolvidos pelo Museu do Homem de Paris à África do Sul e que constitui uma das primeiras iniciativas diplomáticas de Nelson Mandela em Paris. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No que diz respeito ao processo de restituição desenham-se três posições: uma negacionista, escudada na legislação e no direito de muitos países sobre os bens do Estado que são inalienáveis; outra protagonizada pelas autoridades que reclamam a propriedade das obras apontando a falta de equipamentos onde este património possa ser acolhido; finalmente, a posição mais pragmática e resultante de negociações produtivas e que provém do governo holandês e dos responsáveis dos seus museus: listadas e identificadas as obras trazidas da Indonésia, o governo acedeu a restituir a) objectos trazidos indevidamente, b) objectos de importância cultural simbólica. A lista holandesa identificava 15. 000 objectos, dos quais a Indonésia requereu 10%. A oposição a este processo de restituição vem maioritariamente de grupos nacionalistas, que fantasiam ver as salas dos museus europeus vazias, exercício este que seria proveitoso para avaliarem o luto que foi ver clãs, nações, comunidades religiosas despojadas dos seus bens durante séculos. A este processo deve ainda acrescentar-se outro dilema que é o de saber a quem pertencerão os documentos originais dos arquivos que começam a ser digitalizados. A quem caberá ficar com o original, quem ficará com a cópia?A questão da restituição das obras é indissociável de outra questão mais vasta e já sinalizada que é a questão da reparação muitas das vezes associada à ideia de uma compensação monetária aos Estados colonizados. A resposta de muitos opositores à reparação é que esta tem sido feita através da ajuda ao desenvolvimento, facto que levou à autocrítica do Banco Mundial. Neste momento, Angela Merkel, que assumiu que a Alemanha praticou um genocídio na Namíbia nos anos de 1904 e 1905 contra os Herero e os Nama, confronta-se com um debate aguerrido sobre o rumo a dar ao Palácio de Berlim, que nasceu como projecto para albergar os artefactos coloniais e que agora se confronta com a ausência de um programa não assente apenas em narrativas de contornos etnográficos nem de “artefactos do mundo”. Em França, na Bélgica, Holanda, Alemanha, no Vaticano, o debate instalou-se. É neste clima político e cultural complexo que se vai inaugurar em Dezembro, e depois de vários anos de discussão e de trabalhos de renovação, o African Museum em Tervuren, o antigo Royal Museum of Central Africa, um projecto de Leopoldo II que contém a maior colecção de artefactos da África Central. A mudança de nome reflecte um programa museológico, cultural e político de mudança, de identidade e de missão. O espírito do tempo obriga-o a que deixe de ser um museu de etnografia, onde a narrativa era a de expor a produção dos subalternos e, ao fazê-lo, questiona a própria disciplina. O desafio é que passe a ser tanto um museu que conta a sua história de museu colonial europeu, como um museu que recolhe a produção da diáspora belga, que contextualiza os objectos a partir dos contributos teóricos e práticos do pós-colonialismo, que recolhe as expressões artísticas dos africanos do continente e de africanos europeus e que, em última defesa, se assume como um instrumento de educação e de conhecimento crítico. O que acontecer a este museu e a forma como se posicionar no contexto da museografia europeia, como instrumento de políticas culturais, como lugar de luto mas também de futuro, poderá vir a determiná-lo como paradigma de organização dos acervos nos museus europeus e, como aos africanos, indonésios, chineses, etc. e, por reflexo, aos americanos dependentes da circulação internacional das obras e dos curadores. Para já promoveu o debate sobre os conteúdos dos programas escolares, e noutros planos impõe decididamente o desenvolvimento da História Global nas universidades, responsabiliza a UNESCO e a OUA e contribui para a assunção plena dos patrimónios dos povos e das nações anteriormente colonizadas.
REFERÊNCIAS:
Vistos Gold: Transparência Internacional denuncia riscos de corrupção e segurança
Organizações não governamentais de combate à corrupção apelam à intervenção de Bruxelas, através da abertura de procedimentos de infracção ou aplicação de sanções aos países que não escrutinem devidamente estes programas. (...)

Vistos Gold: Transparência Internacional denuncia riscos de corrupção e segurança
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Organizações não governamentais de combate à corrupção apelam à intervenção de Bruxelas, através da abertura de procedimentos de infracção ou aplicação de sanções aos países que não escrutinem devidamente estes programas.
TEXTO: Os riscos de corrupção e de segurança, tanto ao nível nacional como para a União Europeia, causados pelos actuais esquemas de residência ou cidadania em troca de investimento não justificam a manutenção de nenhum dos actuais programas de vistos gold existentes em 15 dos 28 Estados membros. “Estes esquemas deviam simplesmente ser banidos. A União Europeia não devia autorizar a venda de passaportes”, defendeu a eurodeputada socialista, Ana Gomes, na apresentação de um relatório sobre “O mundo pantanoso dos vistos gold” promovido pela Transparência Internacional e a Global Witness, esta quarta-feira em Bruxelas. De acordo com os dados apurados por aquelas organizações não governamentais de combate à corrupção, Portugal está no “top 5” dos países que obtém mais receitas e concede mais autorizações de residência ao abrigo do esquema. Desde 2012, o programa de Autorização de Residência para a Actividade de Investimento (ARI) terá canalizado para o país mais de quatro mil milhões de euros de investimento — cerca de 670 milhões de euros anuais —, sem qualquer verificação ou investigação das autoridades nacionais à proveniência ou origem desses fundos ou à legitimidade da riqueza dos candidatos, critica o relatório. A maior parte do dinheiro foi investida na aquisição de bens imóveis (3, 6 mil milhões de euros), com uma parcela mais modesta de 370 mil euros proveniente da transferência de capital. Essa discrepância leva Ana Gomes a constatar que, apesar de criados para aumentar a receita e promover o investimento privado, “não é verdade que estes programas tragam prosperidade, a não ser à indústria que foi montada em torno da promoção dos vistos gold”. O efeito do programa em Portugal, lamentou, foi a “distorção do mercado imobiliário” e o afastamento das populações residentes nos centros das maiores cidades. No mesmo período de seis anos, cerca de 17 mil pessoas terão beneficiado desta facilidade para obter um visto de residência, seja directamente na qualidade de investidor (6498 indivíduos, segundo os números do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), seja indirectamente pela via da reunificação familiar — um procedimento que levanta dúvidas a estes activistas, que apontam para a possibilidade de haver inúmeros “cavalos de tróia” entre os potenciais investidores estrangeiros que submetem pedidos. Apesar de o Governo português não publicitar o número de candidaturas nem fornecer a identidade dos requerentes, sabe-se que é da China que chegam mais pedidos (3936), seguido do Brasil (581). Sabe-se também que entre os beneficiários de vistos gold portugueses estão cidadãos chineses procurados pelas autoridades; indivíduos de nacionalidade brasileira envolvidos na mega-investigação de corrupção Lava-Jato ou ainda angolanos ligados à exploração de recursos naturais. Noutros países, caso da Hungria ou Chipre, foram concedidos vistos gold a nacionais da Rússia que levaram a cabo operações ilícitas de espionagem, oligarcas ucranianos com bens congelados ou ainda familiares de Bashar al-Assad e membros do seu regime debaixo de sanções internacionais à Síria. Simultaneamente, há países, como por exemplo Malta, cujos programas de vistos gold são geridos por entidades privadas que também representam (e cobram comissão) aos “clientes” do esquema, o que segundo a Transparência Internacional configura uma situação clara de conflito de interesses. Segundo o relatório divulgado, a sociedade Henley & Partners, concessionária do programa até Junho de 2017, obteve mais de 19 milhões de euros de lucros, enquanto a nova responsável pela administração dos vistos gold, a Identity Malta, já recebeu mais de 23 milhões de euros. Sobre as duas empresas recaem ainda suspeitas de participação em operações internacionais de lavagem de dinheiro. “Os problemas não são apenas nacionais, são europeus”, insistiram os oradores da conferência, notando que quem compra um passaporte no Chipre ou obtém residência em Portugal está ao mesmo tempo a assegurar a livre circulação noutros 27 Estados membros da União Europeia. Por isso, o acesso de indivíduos com perfil de alto risco ou a movimentação de fundos de origem criminosa devem ser considerados problemáticos pelos países que não dispõem deste tipo de programas. “É a segurança de toda a UE que está a ser comprometida, e por causa disso consideramos que Bruxelas não só tem competências para intervir, como tem a responsabilidade de o fazer”, afirmou a directora europeia da Global Witness, Rachel Owens, notando que poderiam ser abertos procedimentos de infracção ou aplicadas sanções aos Estados membros que desrespeitem o princípio de cooperação sincera. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “Este é um esquema imoral, ao abrigo do qual os Estados membros que não permitem a entrada de migrantes pobres aceitam a importação do crime organizado e da lavagem de dinheiro”, denunciou Ana Gomes, lamentando que as capitais assistam impassíveis à perversão do sistema de Schengen. Mas a eurodeputada também apontou outras questões sensíveis, relacionadas por exemplo com a concorrência desleal (uma “corrida para o fundo” entre os países que promovem esquemas de vistos gold) ou com a salvaguarda da integridade dos processos democráticos, que na sua opinião tornam estes programas insustentáveis. O eurodeputado húngaro da bancada dos Verdes, Benedek Jávor, também não encontra nenhum argumento a favor da manutenção destes programas, nomeadamente do valor do investimento canalizado para território europeu. “Defender estes programas porque eles representam um negócio de 25 mil milhões de euros é um disparate. As drogas são um negócio muito superior e ninguém vem dizer que não se deve agir para combater os traficantes. Não há razão nenhuma para um Estado membro colaborar com indivíduos corruptos”, sustentou. Como Ana Gomes, e os representantes da Transparência Internacional e Global Witness, também Jávor insistiu que a realidade demonstrou que estes programas constituem uma ameaça, não só em termos de corrupção e outras actividades criminosas, como até se tornaram um “risco directo à segurança nacional”, com impacto geopolítico global.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Perguntas e respostas II: o que é preciso saber sobre a bactéria E. coli
Segunda série de perguntas e respostas. Ver a primeira série aqui. (...)

Perguntas e respostas II: o que é preciso saber sobre a bactéria E. coli
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2011-06-04 | Jornal Público
SUMÁRIO: Segunda série de perguntas e respostas. Ver a primeira série aqui.
TEXTO: O que se sabe actualmente sobre a bactéria responsável pelo surto?Nos últimos dias, os genes da estirpe da bactéria Escherichia coli responsável pela doença foram descodificados por cientistas alemães e chineses. Os primeiros resultados mostram que a bactéria é inédita e resultou do cruzamento de duas estirpes de E. coli já conhecidas. Não se trata, portanto, de uma mutação espontânea numa estirpe, como se chegou a pensar, mas de uma troca de genes entre duas estirpes afastadas. Uma das estirpes “progenitoras” é a E. coli enterohemorrágica (EHEC) O104:H4 de que já se fala há uns dias. Mas 93 por cento do genoma deste novo híbrido é idêntico ao de uma outra categoria de E. coli, dita entero-agregante (EAEC). Esta segunda “progenitora” já fora detectada na República Centro-Africana e é conhecida por provocar diarreias graves. Ao contrário das EHEC, que infectam animais e humanos, as EAEC só foram detectadas em pessoas. Segundo um especialista citado pela revista New Scientist, as EAEC são mais resistentes do que as outras E. coli, o que poderá explicar a virulência do novo microrganismo. Para que serve conhecer o genoma da bactéria?Primeiro, para desenvolver um teste que permita identificar rapidamente os casos de doença, o que já está em curso. Mais geralmente, para estudar em pormenor a virulência da bactéria — e, eventualmente, descobrir os seus pontos fracos e conseguir prevenir ou tratar a infecção. Já se conhece o “culpado” pelo surto actual?Não. Sabe-se que a infecção surgiu na Alemanha, uma vez que nos 13 países onde já se registaram casos todos os doentes tinham estado na Alemanha nas semanas anteriores. Mas o alimento em causa ainda não foi identificado e há quem diga que talvez nunca o venha a ser. Os especialistas ainda consideram como fonte mais provável do surto os pepinos, tomates e alfaces — legumes cujo consumo crus as autoridades sanitárias alemãs têm desaconselhado naquele país. Quais são as potenciais fontes alternativas de infecção que estão a ser consideradas?As frutas e legumes em geral — e a sua eventual contaminação no campo, pelas águas de rega, esgotos, durante o transporte, o condicionamento, a preparação. Outros alimentos também estão sob suspeita, como a carne e o leite. E segundo o El Mundo, na Alemanha e em Espanha aponta-se o dedo, sem dar pormenores, à água engarrafada. Por que é que os pepinos espanhóis foram ilibados?Os pepinos espanhóis não continham a estirpe de E. coli em causa. Mesmo assim, continham bactérias E. coli, um mau sinal em termos de higiene alimentar seja qual for a estirpe presente, patogénica ou não, uma vez que indicia uma contaminação do alimento com fezes animais ou humanas. Isto poderá, aliás, obrigar a rever as normas de higiene da agricultura biológica, onde o estrume dos animais é utilizado como fertilizante. A bactéria pode ser transmitida entre pessoas?Pode. A incubação da doença demora vários dias. Por isso, uma pessoa pode ter sido infectada, mas não apresentar ainda sintomas graves e não suspeitar que está doente. E se ela preparar alimentos e não tiver o cuidado de lavar muito bem as mãos antes de os manusear, a bactéria pode infectar outras pessoas. Há quem receie que a particular virulência desta estirpe torne mais fácil a transmissão da doença entre pessoas em contacto chegado, mas, por enquanto, não há indícios de que isso esteja a acontecer. A infecção ameaça tornar-se global?Não parece provável. Por um lado, o surto continua circunscrito à região onde surgiu. Por outro, mesmo que a bactéria seja transmissível em certas condições, trata-se de uma intoxicação alimentar e não de uma doença infecciosa como a gripe, por exemplo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos campo carne consumo doença alimentos
Silêncio de Maputo sobre rapto de português gera mal-estar em Lisboa
Marcelo Rebelo de Sousa fez nova diligência sobre o português desaparecido há meses em Moçambique, desta vez por escrito. Para incredulidade de muitos, nem isso fez mudar a atitude das autoridades (...)

Silêncio de Maputo sobre rapto de português gera mal-estar em Lisboa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-02-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Marcelo Rebelo de Sousa fez nova diligência sobre o português desaparecido há meses em Moçambique, desta vez por escrito. Para incredulidade de muitos, nem isso fez mudar a atitude das autoridades
TEXTO: Há meses que Portugal se desdobra em pedidos de informação a Maputo sobre o português raptado em Moçambique no Verão passado, mas a única resposta que obteve até agora foi o silêncio. Perante o prolongado e insólito mutismo das autoridades moçambicanas, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa enviou há duas semanas uma carta ao seu homólogo, o Presidente Filipe Nyusi, para pressionar Maputo e, mais uma vez, pedir informação sobre o desaparecido, um empresário agrícola que há anos trabalha na Beira, no centro do país. Para espanto de diplomatas e políticos que acompanham o processo, o Presidente Nyusi ainda não respondeu à carta do chefe de Estado português - mais de duas semanas depois de esta ter sido enviada. Por desejo da família do empresário desaparecido, o caso tem sido gerido em segredo e com enorme discrição. Mas passados sete meses sem informação, sem respostas, sem sinais de que há uma investigação em curso e sem, sequer, uma resposta de cortesia diplomática às missivas de Lisboa, do lado português houve uma clara evolução: o que começou por ser um desconforto e uma desilusão, deu lugar à incredulidade e ao mal-estar. As démarches portuguesas têm sido feitas ao mais alto nível: gabinete do primeiro-ministro, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Procuradoria-Geral da República e Palácio de Belém fizeram contactos formais e informais, diligências por escrito e por telefone, directas e indirectas. O resultado tem sido apenas um: "Nada de nada", resume uma fonte que conhece bem o processo. O primeiro-ministro António Costa já falou algumas vezes com o seu homólogo Agostinho do Rosário sobre o caso e, no fim do ano passado, ofereceu mesmo a disponibilidade de a Polícia Judiciária portuguesa cooperar com a moçambicana na investigação do misterioso desaparecimento. Mas também essa proposta caiu no vazio. "Não há uma explicação. Não há um sinal de vida. Não há um corpo. Não há abertura para investigar. . . ”, lamenta outra fonte que acompanha o caso há meses. “São não-respostas que respondem a muita coisa. ”Este silêncio não só é invulgar nas relações entre países amigos, como é visto com particular estranheza por Moçambique ter sido o país onde Marcelo Rebelo de Sousa fez a sua primeira visita de Estado, logo em Maio, dois meses depois de tomar posse. Além disso, Filipe Nyusi foi um dos poucos chefes de Estado que Marcelo quis convidar para as cerimónias da sua investidura. Ainda todos se lembram das fotografias desse dia na varanda do Palácio de Belém: o rei de Espanha, o antigo Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso e ao centro, a rir para Marcelo, o Presidente Nyusi. A relação de Marcelo com Moçambique é especial mesmo a nível privado. "Foi o melhor lugar da vida política” do seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, Governador de Moçambique durante o Estado Novo, escreveu o Presidente num livro que publicou há uns anos. Contactada na sexta-feira de manhã e, de novo, no sábado, a embaixadora de Moçambique em Portugal não respondeu ao pedido do PÚBLICO para comentar a questão. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, fez uma breve declaração ao PÚBLICO: “H�� casos em que as famílias preferem que as diligências oficiais sejam feitas de forma discreta e não pública. Este é um desses casos e eu, obviamente, respeitarei essa vontade. Por isso não tenho mais nada a dizer. "Dentro e fora do ministério, no entanto, adensam-se as especulações sobre a razão do silêncio moçambicano. Um dos cenários considerados mais plausíveis é Maputo querer proteger alguém do topo da sua própria hierarquia, na polícia ou no próprio Executivo. “Em Moçambique, não há decisões tomadas a nível intermédio”, diz um profundo conhecedor da realidade do país. “É tudo ao nível superior. ”O rapto do empresário português, no fim de Julho de 2016, está envolto em características invulgares e não segue o padrão clássico: houve um primeiro contacto dos raptores mas nunca houve um pedido de resgate (regra geral, isso acontece nas primeiras 48h, no máximo 72h, após o desaparecimento da vítima) e não ocorreu em Maputo, mas na Gorongoza, onde a Renamo tem as suas bases. Há anos que há raptos em Moçambique e há anos que são conhecidas as ligações directas entre as redes de raptores e a Polícia Nacional moçambicana. Entre 2001 e 2013, houve mais de 60 raptos no país, mas foi a partir de 2011 que o problema se intensificou. Só no fim de 2013, houve 30 raptos em seis semanas. Nessa altura, um tribunal de Maputo condenou três polícias a 16 anos de prisão por envolvimento em raptos e, pouco depois, mais dois polícias foram detidos por suspeita do mesmo crime. "Há polícias em tribunal por envolvimento nos raptos, mas é sempre a arraia-miúda”, nota um empresário português. “Há casos em que as pessoas são raptadas pela polícia e libertadas pela polícia e em que se percebe claramente que é tudo a mesma gente. ”Dívida tóxicaDepois do escândalo da dívida tóxica, Moçambique está a fazer um enorme esforço diplomático para tentar recuperar a confiança da comunidade internacional e normalizar o relacionamento com os parceiros estrangeiros. Mas até Março nada deverá mudar de forma decisiva. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A ocultação de um buraco financeiro de 2, 2 mil milhões de dólares deixou os países doadores de boca aberta - mesmo os mais habituados aos padrões de corrupção africanos -, e levou o Fundo Monetário Internacional (FMI) a suspender o pagamento de uma tranche de 300 milhões de dólares. Maputo escondeu do FMI um complexo negócio que envolve um banco suíço e outro russo, que terão emprestado 2, 2 mil milhões para projectos de pesca de atum que era afinal foram usados na compra de material militar e a troco de garantias consideradas suspeitas. Além disso, grande parte do empréstimo terá simplesmente desaparecido. A Suécia está a financiar uma auditoria internacional ao negócio, entre à consultora britânica Kroll. Depois de um pedido de prolongamento do prazo, o relatório final deve ser entregue no fim de Março. Quem está a pensar investir em Moçambique - como é o caso da Exxon - está à espera desta avaliação.
REFERÊNCIAS:
Entidades FMI
Jean-Marie Le Pen quer o seu blogue de volta
Agrava-se a guerra entre pai e filha na extrema-direita francesa provocada por comentários anti-semitas do fundador da Frente Nacional. (...)

Jean-Marie Le Pen quer o seu blogue de volta
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20150501223750/http://www.publico.pt/1639541
SUMÁRIO: Agrava-se a guerra entre pai e filha na extrema-direita francesa provocada por comentários anti-semitas do fundador da Frente Nacional.
TEXTO: Jean-Marie Le Pen vai escrever esta quinta-feira uma carta aberta à sua filha, Marine, para pedir o “restabelecimento da situação anterior”, ou seja, o regresso do seu blogue vídeo ao site da Frente Nacional (FN). “Será uma proposta de paz”, disse o presidente de honra do partido de extrema-direita francês ao Le Monde. Na terça-feira a direcção da FN anunciou que o blogue vídeo semanal de Jean-Marie Le Pen deixaria de ser publicado no site do partido. Foi neste espaço que o fundador da FN declarou, a propósito da recusa do cantor Patrick Bruel (judeu) em actuar em cidades dirigidas pela FN, bem como a propósito de outras críticas de várias personalidades: “Da próxima vez fazemos uma fornada. ” Uma tirada anti-semita que foi qualificada pela sua filha, e actual presidente da FN, como uma “falha política”. Na carta que vai escrever à filha, Jean-Marie Le Pen diz que se vai “queixar da injustiça” de que se considera vítima e “da qual as pessoas da FN se tornaram cúmplices”. O castigo a que foi sujeito pelos seus pares é, segundo explicou ao Le Monde, “ilegítimo”. “O facto de criticar um judeu ou de lhe dar uma resposta não é ser anti-semita. Eles são cidadãos como os outros. Quando eles nos agridem, respondemos sem complexos. ”“Há um grupo de pessoas sempre à caça da mínima falha no nosso partido. São os cães de caça do anti-semitismo”, diz Jean-Marie citando organizações como o SOS racismo. “Na FN temos medo de ser acusados do crime absoluto do anti-semitismo”, explicou para justificar a reacção da sua filha e do companheiro desta, Louis Aliot. “Mas eu reajo com o meu temperamento. ”A forma como Marine Le Pen responder à carta do pai vai, segundo ele, determinar a “sua aptidão para governar”. E o fundador da FN vai avisando que não desiste de lutar para ser cabeça de lista da FN nas regionais de 2015 e que dará orientações de voto para o comité central do partido por ocasião do congresso da FN marcado para Novembro.
REFERÊNCIAS:
Étnia Judeu
Os visitantes procuram a Lisboa "centro do mundo", a polémica é questão lateral
A Cidade Global - Lisboa no Renascimento inaugurou sexta-feira, enquanto continuava o debate em volta da datação de dois dos quadros nela expostos. Na tarde de Sábado, os visitantes procuravam uma cidade que não conheciam. A polémica fica "para os historiadores e especialista de arte". (...)

Os visitantes procuram a Lisboa "centro do mundo", a polémica é questão lateral
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.1
DATA: 2017-03-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Cidade Global - Lisboa no Renascimento inaugurou sexta-feira, enquanto continuava o debate em volta da datação de dois dos quadros nela expostos. Na tarde de Sábado, os visitantes procuravam uma cidade que não conheciam. A polémica fica "para os historiadores e especialista de arte".
TEXTO: Os olhos da mãe estão concentrados na metade inferior do quadro, na Praça do Rossio renascentista, com o monumental Hospital de Todos os Santos em destaque, cortejo fúnebre a atravessar a praça e um condenado a sofrer as sevícias da justiça. Procura pontos de contacto com aquela mesmo praça cinco séculos depois, na Lisboa de 2017. A seu lado, o filho criança tem outras preocupações. Quer saber quantas nuvens preenchem o céu azul pintado naquele Vista da Praça do Rossio de autor desconhecido. Apostamos que nada lhe diz a polémica que tem rodeado A Cidade Global – Lisboa no Renascimento, a exposição inaugurada esta sexta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga MNAA, em Lisboa, e que estará patente até 9 de Abril. A polémica prende-se com a a autenticidade de duas obras, Rua Nova dos Mercadores e Chafariz D’El Rey, cuja datação vem sendo alvo de debate entre historiadores, conservadores de arte e investigadores (no caso da segunda, a discussão é longa de duas décadas). Honório Gomes, 63 anos, está precisamente a comentar o cenário que se nos apresenta em Chafariz D’El Rey, com as gentes diversas retratadas e os edifícios nele desenhados. “Naturalmente” consciente da polémica, não tem posição sobre a discussão. "Deixo-a para os historiadores e especialistas de arte”. Interessa-lhe aqui descobrir a “cidade global” que a exposição tem para revelar, um conceito que, comenta, está aberto a discussão, principalmente se o virmos à luz da leitura que dele fazia “o antigo regime, com a ideia do luso-tropicalismo”. Entre os visitantes abordados pelo PÚBLICO, a polémica era uma questão lateral. António Dias, 55 anos, entrou no MNAA após sugestão da esposa, que o pôs a par do caso no caminho para o museu. Lisboeta e filho de lisboetas – “o que não é assim tão comum em pessoas da minha geração”, comenta –, quis vir descobrir esta “cidade diferente que era o centro do mundo” – “um pouco como sucede agora, por causa do turismo, em que Lisboa não sendo o centro do mundo, também acolhe gente de todas as proveniências”. Divertido, comenta o realismo das gravuras representando animais exóticos que vira numa das salas. “Muito fidedignos e com o mesmo realismo das que", na mesma sala, "representam unicórnios”. Ao início da tarde de sábado, o intenso debate a correr na imprensa não tem repercussão nas salas do MNAA. Os visitantes, com tempo e espaço para a lenta deambulação, demoram-se junto aos quadros, olham o rosto beatífico do santo cujo tronco sofre as flechas disparadas com besta e arco, no Martírio de São Sebastião de Gregório Lopes, vêem sentados nos bancos o vídeo que contextualiza a exposição, surpreendem-se com a autoria d’Auto das Regateiras – “olha o [António Ribeiro] Chiado!” –, comentam os olhos rasgados da Virgem com Menino criada na China ou as dimensões do rinoceronte que Muzufar, sultão de Guzarate, ofertou a D. Manuel I, esse que os lisboetas de quinhentos viam banhar-se no Tejo e que Albrecth Dürer imortalizou em tela. Ana Maria e Francisco Marques Fernando, 66 e 73 anos, já analisaram gravuras que desconheciam em vários dos livros expostos, admiraram os mapas cartográficos e deliciaram-se com essa curiosidade que é ver a Lisboa do passado pelos olhos de outros – principalmente, referem, os pintores flamengos. Estão de visita a A Cidade Global para cumprir um hábito. “Gostamos de visitar museus”. Não é o caso de Ludivine e de Thomas Filloque. O jovem casal (têm ambos 26 anos) veio com um propósito definido. “Viemos por isto”, diz Ludivine, historiadora de arte, enquanto aponta para o Cofre Relicário contendo as relíquias do Mártir São Vicente. No dia anterior, haviam passado pela Sé de Lisboa e encontraram vazio o lugar da relíquia que procuravam, semelhante, mas com maiores dimensões, a uma que Ludivine muito aprecia e que se encontra no Louvre. Vieram ver o Cofre Relicário ao MNAA e acabaram a fazer paralelismos com outras realidades. “Vimos recentemente em Paris uma exposição de arte exótica, sobre a influência da arte africana no Ocidente e vice-versa”. Ficou-lhes na memória um saleiro do Benim. “Já vimos aqui um semelhante. É curioso ver como tudo se liga”, comentam. Cidade global, mundo globalizado.
REFERÊNCIAS:
João Salaviza rappa
Com Altas Cidades de Ossadas, regressa à competição de curtas de Berlim que venceu em 2012. Um filme que se afasta da cidade e dos subúrbios para filmar, através do rapper Karlon, aqueles que não costumam ter voz no cinema (...)

João Salaviza rappa
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0
DATA: 2017-02-15 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20170215070109/http://publico.pt/1760704
SUMÁRIO: Com Altas Cidades de Ossadas, regressa à competição de curtas de Berlim que venceu em 2012. Um filme que se afasta da cidade e dos subúrbios para filmar, através do rapper Karlon, aqueles que não costumam ter voz no cinema
TEXTO: Quando a sua primeira longa-metragem, Montanha (2015), estreou, João Salaviza disse – ao PÚBLICO, mas não só – que tão cedo não lhe apetecia “voltar a filmar adolescentes em Lisboa”. O seu primeiro filme depois dessa longa, Altas Cidades de Ossadas, com estreia esta semana no concurso de curtas de Berlim, confirma-o: protagonizado e co-escrito pelo rapper luso-cabo-verdiano Karlon, desenha em 20 minutos uma misteriosa rêverie nocturna à volta de um homem que parece viver numa “selva” africana que, na verdade, se esconde junto ao subúrbio. Altas Cidades de Ossadas – que retira o seu título à escrita do poeta e activista da Martinica Aimé Césaire - afasta-se das paisagens urbanas que o realizador explorou nas curtas que fizeram o seu nome, Arena (2009, Palma de Ouro de Cannes) e Rafa (2012, Urso de Ouro de Berlim) e na sua longa. Ao telefone do Brasil, onde está em pleno processo de rodagem junto do povo indígena Krahô, Salaviza reitera como a última coisa que lhe passou pela cabeça era, mesmo, voltar a filmar o que já tinha filmado. Com um possível problema à mistura: Altas Cidades de Ossadas surgiu de um convite ao realizador feito pela Terratreme Filmes, para um filme colectivo onde se pretendia “distorcer as narrativas mais convencionais sobre os bairros sociais periféricos de Lisboa, desafiar a narrativa oficial que reproduz sempre os mesmos estigmas e estereótipos”, como explica Salaviza. “Ir à procura das histórias verdadeiras de alguns lugares que não têm direito à representação. Quando o Pedro Pinho me fez o convite, fiquei um bocadinho angustiado quando comecei a pensar, porque não me apetecia, mesmo, voltar a estes lugares para os filmar da mesma maneira, voltar a filmar prédios, esta coisa meio estéril da cidade. . . ”A solução acabou por nascer, segundo o realizador, “dos impulsos da vida” - do encontro com Karlon, “do fascínio e de uma espécie de paixão imediata por alguém”, no mesmo momento em que Salaviza começava a viajar para o Brasil para conhecer os Krahôs com a sua companheira, Renée Nader Messora. Como se os movimentos que o levaram a cruzar-se com Karlon e os Krahô tivesse, nas suas palavras, “um paralelo acidental com o meu movimento de me afastar das cidades. ” “Tudo aquilo que é contado no filme nasce de histórias que o Karlon partilhou comigo e que nos levaram a começar a pensar no filme num lugar diferente, ” explica o cineasta. “No filme há uma longa conversa da personagem com um amigo, nascida de experiências reais pelas quais ele passou. Há uma espécie de viagem mental, mas também física, que o Karlon de tempos a tempos decide realizar, num movimento de fuga da cidade que está próximo também daquilo que eu estava a fazer com a minha vida. Um abandono do lugar urbano, de regresso a um lugar mitológico que é Cabo Verde, mas que é um Cabo Verde que no fundo não existe, visto que a maioria dos cabo-verdianos da idade dele, que já nasceram em Portugal, nunca lá foram. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Pus-me a pensar no rapper como se ele fosse Jesus Cristo a falar para duas dúzias de pessoas que não o queriam ouvirParte dos diálogos de Altas Cidades de Ossadas são “rappados” por Karlon em crioulo a capella, sem acompanhamento, evocando a tradição milenar africana do griot, misto de xamã e memória viva. “Pus-me a pensar no rapper quase como se ele fosse o princípio do cristianismo, Jesus Cristo a falar para duas dúzias de pessoas que não o queriam ouvir…”, diz Salaviza. “E achei muito forte esta proposta de o filmar a rappar sozinho no mato. É uma viagem a um espaço quase mítico, ancestral, imaginário, uma espécie de raiz da negritude e da africanidade mas que é expressa através de elementos extremamente contemporâneos. E o cinema português tem uma tradição de se ancorar sempre em histórias 'antigas' que se relacionam com o contemporâneo. Nunca o cinema português conseguiu ser tão atento à contemporaneidade como no começo do Cinema Novo, com os primeiros filmes do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, que contam histórias muito quotidianas e aparentemente frívolas, e conseguem meter o país inteiro dentro de uma caixa de sapatos. ” Ou, neste caso, comunidades africanas de língua portuguesa que não passam de “construções que não existem”: “Existem 200 mil cabo-verdianos em Portugal que estão ligados muito mais por questões quotidianas do que por uma falsa ideia de nacionalidade, e o cinema português filmou muito pouco esses 200 mil cabo-verdianos. O Pedro Costa é o único cineasta que tem filmado nestes lugares. O rap saíu do bairro e deu um grito que pôs os afro-descendentes no mapa, mas o cinema não. O Karlon disse uma coisa muito bonita: que gostava imenso que um dia as pessoas do bairro não fossem só empregadas domésticas, trabalhadores da construção civil, jovens de 20 e 30 anos desempregados ou a trabalhar em centros comerciais ou call centres. ”Altas Cidades de Ossadas tem estreia mundial na competição de curtas de Berlim (a primeira de seis passagens é hoje) – é o regresso do realizador à competição que ganhou faz agora cinco anos, o primeiro filme desde que Montanha estreou em Veneza (na Semana da Crítica, em 2015). Mas Salaviza, que sempre mostrou um saudável distanciamento daquilo a que chama “o circo dos festivais”, diz que o que mais lhe agrada neste regresso ao certame alemão é “poder estrear o filme acompanhado pela equipa e pelo Karlon, é o que me dá mais alegria”. “Nunca me deslumbrei muito com a questão dos festivais e dos prémios, ” avança. “Sei que, se tenho estado a fazer filme após filme, com alguma continuidade, isso se deve também ao facto das curtas terem corrido bem. Mas, sinceramente, às vezes incomoda-me esse estigma dos filmes serem vistos à luz dos adereços que carregam, que são os prémios. Acho que isso lançou uma espécie de poeira, que não permite que eles sejam vistos nas condições ideais. Agora que já fiz uma longa, e volto a Berlim com outro filme, espero que o consigam ver como outro filme qualquer e não como «o filme do rapaz que ganhou o prémio tal e tal». ”
REFERÊNCIAS:
O cacau ainda mexe em São Tomé?
Foi um dos símbolos do colonialismo português, foi o produto rei de São Tomé, continua a ser o que mais se exporta. Quarenta anos depois da independência, o cacau já não tem o poder que tinha — mas ainda mexe. O que é que o cacau nos conta sobre estes últimos 40 anos? (...)

O cacau ainda mexe em São Tomé?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-12-29 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foi um dos símbolos do colonialismo português, foi o produto rei de São Tomé, continua a ser o que mais se exporta. Quarenta anos depois da independência, o cacau já não tem o poder que tinha — mas ainda mexe. O que é que o cacau nos conta sobre estes últimos 40 anos?
TEXTO: Na Avenida Marginal 12 de Julho há dois palcos preparados para celebrar este domingo o dia da independência de São Tomé. A festa avizinha-se com ensaios de som, e alusões à data com as cores da bandeira nacional espalhadas como logótipo das festividades: verde, amarelo e vermelho. Atrás do palco está o mar. Nazaré Ceita, historiadora, 50 anos, aponta para a avenida e lembra uma memória da sua infância: o cheiro a cacau que vinha dos armazéns onde era depositado um dos produtos que mais ficou associado a estas ilhas a partir dos finais do século XIX. "Tudo isto que está em fila, até à ponta, era cacau", diz, debaixo de um Sol intenso. "O cacau que a roça trazia era para escoamento, com serviçais que faziam o descarregamento". Horas antes, Nazaré Ceita está a guiar-nos por uma das mais conhecidas roças de São Tomé, a Roça Agostinho Neto, antiga Rio do Ouro. Mal o jipe entra pelo terreno adentro sente-se o cheiro a cacau. Os edifícios onde antes se fazia a secagem estão abandonados. A madeira das portas está partida. Crianças percorrem a enorme "avenida" que liga o antigo hospital à casa da administração. Por essa estrada espalham-se casas do tempo colonial em madeira e casas novas, algumas já com telhas e cimento, há gente na rua, estendais imensos de roupa. José, 61 anos, jardineiro que ali viveu toda a vida, faz de guia e explica que é a comissão de moradores que se ocupa da roça, onde vivem milhares de pessoas. Há 40 anos, quando se deu a independência de São Tomé e Príncipe, seria adoptado um regime socialista, de partido único (o MLSTP, que durou até 1990), e todas as plantações de cacau foram nacionalizadas. Esta também. Depois "cada um tomou pequenas células", explica "Zé", sobre os terrenos. Os antigos donos das roças deixaram para trás uma produção que chegou a atingir as 12 mil toneladas por ano: hoje não chega às três mil. O país foi em tempos o maior produtor mundial de cacau, diz-nos António Dias, director da CECAB, Cooperativa de Produção e Exportação de Cacau Biológico e ex-ministro da Agricultura. Ainda hoje o cacau representa cerca de 90% ou mais do valor total das exportações, segundo o economista Adelino Castelo David, ex-ministro, ex-governador do Banco Central. "O valor do cacau exportado foi sempre superior ao de serviços até 1992, período em que a situação começou a inverter-se até o aumento dos serviços, que compreende também viagens e turismo, que vêm crescendo gradualmente. " Hoje a grande fatia do emprego no sector agrícola é no cacau. Aqui na Agostinho Neto ninguém produz cacau, nas dependências como a Caldeira sim. "Como é que vocês deixaram o hospital cair?", pergunta Nazaré Ceita a José, apontando para o edifício que foi ocupado por várias famílias. De perto vê-se bem que este bloco cor-de-rosa, de arquitectura do século XVIII, está completamente abandonado. Andamos na estrada em direcção à cascata por onde os serviçais não passavam, explica José. O que mudou com o fim do colonialismo, o que mudou nestes 40 anos?, perguntamos a José. "Mudou muita coisa. Liberdade. " Liberdade é o que repete. Na roça mudou muito pouco. "Falta mão-de-obra e construir casas de trabalhadores". O abandono das roças é algo que são-tomenses como o economista Jorge Coelho, 56 anos, ex-candidato à Presidente da República, criticam. Poderia ter sido feita uma "certa negociação da parte económica da independência", mas as plantações foram abandonadas, "então teve que se fazer uma tomada à força", comenta. "Com a influência do comunismo e com a estatização da economia na altura, toda a produção de cacau ficou na mão do Estado. Mas o Estado tentou gerir a produção de cacau de forma centralizada e foi ineficiente", considera o também professor de História económica que deu aulas em várias universidades americanas. Nos anos 1990, continua o economista, distribui-se a terra pelos são-tomenses que começaram a trabalhar uma terra que seria parcelada, sob ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), explica. "Mandaram distribuir as roças pensando que ao distribuir as pessoas iam trabalhar e ficar donos. Esqueceram-se que temos uma população que tem muita dificuldade em assumir-se como dono, é o nosso ponto fraco. " O programa estrutural está a ser aplicado "há 20 anos, eles vêm cá e dizem que há mudanças mas nós que somos economistas não vemos mudança nenhuma", comenta. Uma das figuras históricas de luta pela independência, e mais tarde pela democracia, o jurista Filinto da Costa Alegre, diz que a intervenção do BM e do FMI nesta matéria tratou-se de uma imposição das premissas do pacto colonial, porque "era continuar a monocultura do cacau". "Estava-se a tentar fazer reviver algo que já não tinha sustentabilidade, era preciso uma reforma agrária no país, e repensar a diversificação para a modernização do sector agrícola, melhoria de gestão. Era preciso formarem-se verdadeiros agricultores e empresários agrícolas. O desenvolvimento não foi nesse sentido, foi um fracasso total. "Dependência externaO cacau era o petróleo de São Tomé, a sua maior fonte de riqueza, mas ao longo destes 40 anos a produção quase que morreu, sublinha o artista plástico Kwame de Souza, 35 anos. "Esqueceu-se que se criou uma sociedade à volta do cacau" e que as comunidades que viviam da agricultura empobreceram, empobrecendo assim o país, que passou a depender da ajuda externa. A quase totalidade do Orçamento do Estado depende da ajuda externa. O país continua a receber vários apoios, da educação à saúde, e ainda no ano passado acordou implementar uma estratégia para reduzir a pobreza, que está acima dos 60%. Porém, o BM prevê que o Produto Interno Bruto (PIB) deverá crescer de 4, 1% em 2014, para 4, 4% em 2016 e que o país tem tido uma melhoria significativa na área do desenvolvimento humano: está em 144. º lugar entre 186 países, no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acima da média dos países da África Subsariana. Mas se o principal produto de exportação são-tomense é o cacau, a quantidade (três mil toneladas em 2014) é irrisória, lembra Jorge Coelho, que defende que tem potencialidade para "ser um país riquíssimo em África". Em 2014, a venda de cacau rendeu nove milhões de dólares, representando 93, 9% das exportações de produtos agrícolas. Kwame de Souza lembra, por outro lado, que a marca da produção de cacau em São Tomé é tão grande que faz parte do desenho da arquitectura do país. "Em todas as zonas encontramos casas coloniais, feitas pelos colonos, onde produziam cacau e essas empresas estão hoje num estado lastimável, no limiar da pobreza. As pessoas que viviam lá — cabo-verdianos, moçambicanos, angolanos que vinham contratados — ficaram sem educação, saúde, saneamento e ainda por cima continuaram a ser estrangeiros durante muitos anos", critica. Hoje o cacau não é prioridade, "então o Estado o que faz?", interroga, retoricamente. "Trabalha com grandes empresas que consomem e compram todo o cacau produzido em São Tomé. " Contra a nacionalização das roças, Kwame de Souza critica também a falta de gestão pela parte do Estado. "Neste momento o cacau consegue ter muito pouco poder, não mexe com nada". Houve um período em que o cacau tinha poder e muito durante o colonialismo. Filinto da Costa Alegre fala do papel que o cacau teve como instrumento de colonização e de desigualdade. "Conquistada a independência, devíamos ter ultrapassado o anátema do cacau, devíamos ter caminhado para uma diversificação agrícola de modo a não estarmos nesta dependência de importarmos quase tudo o que necessitamos". A produção foi decaindo, não só por causa da velhice das plantações e das infra-estruturas como porque "não somos capazes de dominar a tecnologia". Apostar na qualidadeEm vez de acrescentar valor ao cacau, São Tomé continua a apostar na "parte menos rentável": no cultivo, na produção e na secagem. "Toda a rentabilidade vem depois de se colocar o cacau lá fora; por isso é que não avançamos. " Como vários são-tomenses ouvidos, também Filinto da Costa Alegre defende que se deveria apostar na qualidade e não na quantidade. "O nosso cacau é usado para melhorar os lotes que vêm de outros países; então era preciso que se tivesse atenção particular a isto, preservar a qualidade". Exemplo da falta de investimento é que há séculos que se cultiva cacau em São Tomé e, por exemplo, "não existe uma escola para ensinar as crianças a fazerem cacau", nota. A produção de cacau não vai poder resolver os problemas económicos de São Tomé e Príncipe e como é tão baixa não está em condições de contribuir, como se desejaria, para a economia local, diz, por outro lado António Dias. "Há muitas vozes que dizem que se trata do fim de um ciclo", comenta. "São Tomé representa uma gota no oceano, temos a Costa do Marfim que produz acima de um 1, 5 milhões de toneladas de cacau, logo a aposta tem que ser na qualidade. É essa aposta que se tem vindo a fazer para que seja o primeiro produtor na qualidade do cacau; mesmo ao nível dos mercados internacionais existem nichos e fazendo apostas estou convencido que pode contribuir um pouco mais para economia". Exemplos como a empresa do italiano Claudio Corallo, que produz um chocolate que já foi várias vezes considerado um dos melhores do mundo, são para seguir — assim como o de outras empresas como a Satocau que está a fazer um esforço de reabilitação de cacueiros. Memória da escravaturaMas para historiadores como Isaura Carvalho há uma questão mais complexa associada ao cacau: a memória da escravatura. Muitos dos trabalhadores agrícolas até aos anos 1960 estavam em regime de trabalho forçado e isso é um peso que "ainda paira" no ar. "O que as roças transmitem é a degradação de um património em que a maior falha foi não conseguir inverter a nosso favor toda uma História ligada a estas estruturas. Continuamos a manter quase que a relação de uma ideia colonial com os espaços". Hoje o cacau não deveria, porém, ser perdido de vista na economia de São Tomé e Príncipe, mas devia-se apostar nas cooperativas e nos mercados externos para escoar o produto, defende Nazaré Ceita. "De facto é preciso que o governo faça apostas, por exemplo no cacau de qualidade, evitando-se a super-produção, e investindo na criação de estruturas fabris que transformasse o cacau em chocolate. Falta trabalho de casa", resume a historiadora, especialista no período colonial. Caminhos? Apostar na diversificação agrícola, produzir culturas alimentares, e "produzir coisas e produtos que facilitassem a nossa integração na região", propõe Filinto da Costa Alegre. "São Tomé está colocado no Golfo da Guiné mas a sua balança comercial não tem trocas mínimas com a região porque o seu sector produtivo está virado para satisfazer outras. Qualquer programa de desenvolvimento teria que olhar para a questão da agricultura, das pescas — temos um mar com algum peixe mas não temos o equipamento necessário para capturar, conservar, transformar o peixe. O que São Tomé faz é vender licenças de pesca para os que têm frotas. Os co-culpados somos nós: em 40 anos não sabemos definir o que queremos ser. As relações internacionais são absolutamente desiguais e injustas e da nossa parte não tem havido a ponderação necessária para definir o caminho e tentarmos segui-lo. "Teotónio Torres, economista, um dos dirigentes da Associação dos Economistas de São Tomé e Príncipe, e um homem que tem denunciado alegados casos de corrupção na gestão do dossier do petróleo, discorda que se deva apostar no cacau porque exige um tipo de trabalho violento. E a população de 180 mil são-tomenses é escassa, "deve ser aproveitada no que der mais rendimento". Não o vê como um produto que possa melhorar a vida dos são-tomenses, ao contrário da pesca, do turismo, do petróleo. No fundo acha que os esforços deveriam ir para outros sectores que beneficiariam mais o povo. Embora a produção de cacau continue a ser uma das alternativas económicas, não está a ter a produção desejável, nota Isaura Carvalho. Não há mão-de-obra, técnicos formados para fazer o acompanhamento, falta a maquinaria de suporte, a tecnologia. "Há todo um conjunto de factores que emperram este processo e fazem com que não seja viável. Supondo que queríamos que a nossa economia vivesse do cacau: tínhamos que olhar para ele como um produto especial. ""Economia artificial"A viver há 20 anos em São Tomé, o italiano Claudio Corallo foi dos exemplos mais referidos nestas entrevistas: acrescentou valor ao cacau produzido na ilha, transformando-o em chocolate e apostando na qualidade. Fazê-lo não é uma receita para o destino do cacau do país, comenta-nos. "Claro que numa terra pequena assim é melhor ir para a qualidade do que para a quantidade. Mas aqui há uma economia totalmente artificial" — fruto dos projectos de cooperação que duram um curto período de tempo e não criam autonomia. "Aqui temos o problema da falta do Estado, não há lei, a lei não é respeitada", queixa-se ele que já teve várias pessoas a construírem casas nos seus terrenos. "A última casa começou a ser construída há dias e já decidimos que não merece queixas: perco dinheiro em advogados, tempo. . . é gente que recebeu terrenos para construir casa mas prefere ficar na nossa roça porque está limpa e etc. ". Num país tão pequeno, um projecto altera profundamente a economia, alerta. O mercado é extremamente difícil, até porque globalmente as chocolaterias de médio tamanho estão a desaparecer: "Ou é Nestlé, ou é super-qualidade; a confeitaria é outro trabalho. Verdadeiramente: é muito difícil. "É preciso mudar de paradigma, defende, por seu lado, João Carlos Silva, fundador da Bienal de São Tomé, do centro de artes Cacau e da Roça de São João dos Angolares, também autor do programa de televisão Na Roça com os Tachos. "O cacau condicionou a nossa vida, não vamos deixar que ele morra. Mas temos que olhar de outra forma, temos que ver que o próprio modo como era produzido está associado a um determinado tipo de sistema que não se compadece com a democracia. São Tomé nunca foi pensado como país que pode ter viabilidade económica mas como país que pode continuar de mãos estendidas. Quarenta anos depois temos que voltar a olhar para as roças como pequenos pólos de desenvolvimento local e de uma forma integrada" — algumas dessas roças, sugere, poderiam avançar para futuras vilas e cidades do país. "Temos que olhar para os próximos anos, pensar no que fazemos com as vulnerabilidades e com o património imenso que temos, olhando para o meio rural que é fundamental para a sobrevivência deste país. "De volta à roça de Agostinho Neto, o senhor "Zé" defende que se devia apostar e produzir mais cacau. Porque é que isso não acontece? "Tinha que ter gente para tomar conta disto. E não tem. A mata toda está abandonada". Esta reportagem foi feita com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos
REFERÊNCIAS:
“Autoritarismo” e “programação fechada ao mundo” levam Pinto Ribeiro a demitir-se da Gulbenkian
Programador deixa a fundação a 15 de Setembro, dia em que acaba o Próximo Futuro. E garante que a Gulbenkian precisa de inovar a sua oferta cultural, tornando-a mais contemporânea e cosmopolita. (...)

“Autoritarismo” e “programação fechada ao mundo” levam Pinto Ribeiro a demitir-se da Gulbenkian
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Africanos Pontuação: 2 | Sentimento -0.1
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Programador deixa a fundação a 15 de Setembro, dia em que acaba o Próximo Futuro. E garante que a Gulbenkian precisa de inovar a sua oferta cultural, tornando-a mais contemporânea e cosmopolita.
TEXTO: António Pinto Ribeiro vai deixar de ser consultor da Fundação Calouste Gulbenkian e director do Programa Próximo Futuro. Uma reviravolta depois de, no início de Fevereiro, a fundação ter anunciado que o programador cultural iria assumir o cargo de coordenador de todos os serviços da casa com oferta artística. Num breve email enviado ao PÚBLICO, Pinto Ribeiro justifica a sua saída em três pontos e revela que a sua decisão decorre de “um conjunto de episódios de autoritarismo tomados por alguns membros do Conselho de Administração” impossíveis de “aceitar numa sociedade livre e democrática” e de opções em relação à programação com as quais não concorda: “As orientações tomadas para a programação artística para os próximos anos colidem frontalmente com o que eu considero ser uma programação artística inovadora, internacional, de apoio à criação portuguesa e cosmopolita que uma fundação com os recursos da Gulbenkian deve oferecer aos portugueses”, escreve o programador. Em conversa telefónica, Pinto Ribeiro preferiu não dar exemplos do “autoritarismo” a que se refere mas, ao que o PÚBLICO apurou, entre esses episódios estará a ordem para que não se vendesse na livraria da fundação o álbum de BD Papá em África, do sul-africano Anton Kannemeyer (cidade do Cabo, 1967), um dos autores que a Gulbenkian recebe a 15 de Maio, num debate promovido pelo Próximo Futuro. O livro, que o crítico do PÚBLICO José Marmeleira classifica como ácido e feroz em histórias e imagens, começa por parecer um pastiche de Tintin no Congo, de Hergé, mas acaba por se revelar, através de uma sátira mordaz ao autor belga que aqui é representado envelhecido a abater animais e até um africano negro, uma crítica violenta ao colonialismo e à sociedade afrikaner em que o próprio Kannemeyer cresceu. Foi editado em Portugal pela Chili com Carne. Elisabete Caramelo, directora de comunicação da fundação, confirmou ao início da tarde desta sexta-feira que Pinto Ribeiro pediu a desvinculação da fundação, o que foi aceite pela Administração. Quanto ao livro, garantiu que já está à venda e que foi apenas “retirado temporariamente para que se pudesse identificar que se trata de uma Banda Desenhada para adultos”. Junto ao livro, confirmou mais tarde o PÚBLICO, está efectivamente um aviso que indica que os conteúdos do álbum - texto e imagem - não são apropriados para crianças. Desencontro total“Autoritarismos” à parte, Pinto Ribeiro diz que a sua decisão se deve sobretudo a um “desencontro total” naquilo que são – ou, na sua opinião, devem ser - os objectivos da oferta cultural de uma instituição como a Gulbenkian. “Inovação” e “internacionalização” deveriam ser ingredientes-chave na oferta artística da casa, disse ainda ao telefone: “A Gulbenkian não pode continuar a fazer uma programação fechada ao mundo, que não tem uma dimensão contemporânea, internacional. ”Como coordenador-geral para a programação da Gulbenkian, Pintor Ribeiro deveria vir a supervisionar a oferta do Centro de Arte Moderna, da responsabilidade de Isabel Carlos; do Serviço de Música de Risto Nieminen, que inclui a orquestra e o coro e gere o maior dos orçamentos da fundação na área cultural; e do Museu Gulbenkian, para o qual foi recentemente nomeada uma directora, a inglesa Penelope Curtis. No seu email, o programador, que até aqui não fizera quaisquer declarações públicas sobre a sua nomeação para o cargo, garante ainda que se afasta porque estas funções de coordenador-geral que deveria vir a desempenhar com efeitos a partir da temporada 2016-2017 decorrem, na sua opinião, de uma “figura de retórica”, já que “as programações continuariam a ser da responsabilidade dos directores e dos administradores”. Quando confirmou a nomeação de Pinto Ribeiro para coordenador-geral da programação – um cargo que até aqui não existia na Gulbenkian -, a directora de comunicação da fundação fez questão de sublinhar que a ideia não era tê-lo a substituir os directores dos serviços. O que se esperava do director do Próximo Futuro era que fosse "um coordenador de programadores", e não um megadirector artístico. Ora, Pinto Ribeiro não se revê num cargo que classifica como o de “técnico de coordenação”: “Não posso aceitar que, tendo sido convidado para este cargo, encontre já a maior parte da programação definida e, no caso das exposições, praticamente desenhada até Junho de 2017. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE