Portugal vai receber 30 migrantes de navios humanitários
Ministro da Administração Interna diz que Portugal está articulado com Espanha e França. (...)

Portugal vai receber 30 migrantes de navios humanitários
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Refugiados Pontuação: 5 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ministro da Administração Interna diz que Portugal está articulado com Espanha e França.
TEXTO: Portugal está disponível para acolher 30 dos 244 migrantes que se encontram no navio humanitário Aquarius e em outras pequenas embarcações que estão a atracar em Malta, disse nesta terça-feira à Lusa o ministro da Administração Interna. "Portugal, Espanha e França articularam-se e, tal como já tinham feito em casos anteriores, mostraram uma disponibilidade comum para acolhimento e Malta autorizou a atracagem do navio. Haverá uma operação semelhante à que foi feita há um mês com o Lifeline", explicou Eduardo Cabrita. A decisão foi conjugada entre os Governos dos três países e comunicada à Comissão Europeia, mas há outros países que ainda estão a ponderar participar na ajuda a estes migrantes. "Entendemos que deve haver uma posição estável de nível europeu envolvendo todos. Não podemos andar aqui de solução ad hoc em solução ad hoc sempre que um navio está à deriva no Mediterrâneo", acrescentou o ministro, defendendo uma solução europeia integrada para responder ao desafio dos fluxos migratórios. A maioria (73) dos 141 imigrantes a bordo do Aquarius são menores de idade e 70% são naturais da Somália e da Eritreia, mas também há cidadãos do Bangladesh, Camarões, Gana, Costa do Marfim, Nigéria, Marrocos e Egipto.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave ajuda marfim
Os mundos da ansiedade
As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença. (...)

Os mundos da ansiedade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 6 Homossexuais Pontuação: 6 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: As “políticas do medo” não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença.
TEXTO: Os “Perigos Amarelos”Em 24 de Outubro de 1871, em Los Angeles, cerca de 500 homens irromperam pela Chinatown local e atacaram violentamente os residentes chineses. Entre 17 a 20 emigrantes chineses foram enforcados, alguns já depois de mortos. A um faltava-lhe um dedo, por ter um anel de diamantes que alguém cobiçara. A cultura do justicialismo popular e do linchamento, bem disseminada nas “sociedades de fronteira” da época e hoje ainda familiares, não escolhia origens étnicas. Dos dez homens julgados pelo acto, oito foram condenados por homicídio, destinados à famosa prisão de San Quentin. Graças a expedientes “técnicos”, as condenações foram inconsequentes. A causa directa invocada para justificar este acontecimento dizia respeito a um ataque de um emigrante chinês a um polícia e a um rancheiro. O polícia, Jesus Bilderrain, interviera numa altercação de rua. O rancheiro Robert Thompson perseguira um dos envolvidos e foi morto. Não tardou que um boato circulasse velozmente indicando que a comunidade chinesa da Calle de los Negros, uma viela pobre e destituída, estaria a assassinar “brancos” em massa. Seguiu-se um dos mais brutais linchamentos da história americana. O boato, então como hoje, produzira as consequências esperadas. Outras causas pesaram também neste desfecho. O aumento regular da população chinesa na Califórnia suscitara desde cedo inúmeros ressentimentos, pouco justificados. As populações brancas e mestiças sentiam-se ameaçadas com a presença de estrangeiros, apesar destes providenciarem uma força de trabalho fiável e de baixíssimo custo. O decréscimo na oferta de emprego e a desvalorização de salários no mercado laboral, por certo acicatada e aproveitada por proprietários e empresas, assim o determinava. O fluxo de trabalhadores chineses era consequência da fuga à pobreza extrema, à fome, epidemias e violência resultantes da Rebelião Taiping (1851-1964), na qual se estima que tenham morrido entre 20 a 30 milhões de soldados e civis. Em 1863, a legislação local já subtraíra um importante direito a esta comunidade: o de poder testemunhar contra alguém da comunidade branca. Em 1868, um tratado entre o Império Chinês e os EUA regulava os fluxos migratórios, de natureza pouco restritiva. A migração era essencialmente pendular, maioritariamente composta por homens. As mulheres migrantes eram sobretudo prostitutas e escravas sexuais. Um ano antes do massacre, o Naturalization Act estendeu direitos de cidadania a afro-americanos, mas não a asiáticos, vistos como sendo impossíveis de “assimilar”. Em vários lugares não podiam comprar terra, votar, participar no processo judicial ou ter negócios de qualquer espécie. Em 1875, o Page Act proibiu a entrada de imigrantes “indesejáveis” nos EUA. A entrada de trabalhadores asiáticos não remunerados e mulheres passíveis de se envolverem em prostituição estava vedada. O efeito depressivo nos salários e a imoralidade da mulher chinesa foram invocados como justificação, sobretudo por políticos conservadores, mas também por organizações laborais, com envolvimento presidencial. O “mal” da importação da mulher chinesa tinha de ser atendido, não necessariamente devido à desumanidade imposta, mas sobretudo pelo seu suposto impacto nocivo na “moral pública” e nos “valores familiares cristãos”. A Associação Médica Americana defendia que os imigrantes chineses eram portadores de germes que acabariam por liquidar as comunidades brancas. As prostitutas chinesas seriam um agente eficaz neste processo. Dos cerca de 40 mil chineses que, então, entraram no país, apenas 136 eram mulheres. A lei contra a prostituição gerou mais prostituição. E aumentou a tensão entre quem a controlava. Em 1882, o Chinese Exclusion Act veio responder ao crescente sentimento sinófobo nos EUA. Foi um dos mais significativos exemplos de restrição à liberdade de circulação de pessoas com base num critério exclusivamente étnico e durou até 1943. Proibia trabalhadores de qualquer qualificação de entrar no país durante dez anos, contando com o apoio entusiasta da Federação de Trabalho Americana. Os já residentes eram tornados estrangeiros, privados de cidadania. Uma série de adendas posteriores acentuou as restrições, sempre acompanhada de justificações baseadas em estereótipos raciais e étnicos. Como um dos poucos críticos, um senador republicano declarou, à época, era a “legalização da discriminação racial”. Visava o controlo da circulação de pessoas e a gestão do mercado laboral bem como a manutenção de privilégios de classe e raciais. De permeio, estimulou dinâmicas de tráfico ilegal de pessoas. Gerou ainda inúmeros momentos de violência e perseguição de comunidades chinesas. Os massacres de Rock Springs, no Wyoming (1885), e de Snake River, no Oregon (1887), são apenas dois exemplos. O primeiro envolveu uma série de mineiros brancos que culpavam os chineses pelo seu desemprego. O facto de estes aceitarem salários muito mais baixos e de terem substituído os trabalhadores brancos numa greve em 1875 alimentou o ressentimento. Os trabalhadores chineses pagaram o preço das políticas salariais da empresa e da instrumentalização de preconceitos raciais existentes. Os agressores estavam ligados aos Knights of Labor, a mais importante associação americana de trabalhadores na altura. O resultado foi a violência descontrolada, que conduziu pelo menos à morte de 28 pessoas. Queimadas na sua própria casa, mortas por animais, à fome ou a tiro. Alguns dos agressores foram presos, mas logo libertados, sendo ovacionados pela população. O segundo massacre resultou na morte de 34 garimpeiros, envolvendo actos de tortura. Ninguém foi punido pelo crime, apesar de alguns dos implicados terem sido julgados. Estes episódios pontuaram a longa história de sentimento antichinês nos EUA, não esgotando, contudo, as suas manifestações. O argumentário do “perigo amarelo” assumiu inúmeras formas e justificações. O amarelo teve várias tonalidades e serviu para várias composições. A futurologia da desgraça impendente foi alimentada pela literatura, muita dela publicada em fascículos em jornais de referência. Emergiu um género literário que prosperou nos últimos anos do século XIX. A sinofobia foi promovida por políticos e pelos moralistas de serviço. Os “guerreiros-como-imigrantes” invadiam para depois conquistar. Induziriam os americanos ao vício do ópio ou do jogo, ou propagariam doenças. Corromperiam a moral e sorveriam os recursos americanos. O medo do “amarelo” não se esgotou nos chineses, envolvendo mais tarde os japoneses, os sul-coreanos e os vietnamitas. A metáfora sobre o acordar do “gigante adormecido” ganhou contornos claros e duradouros durante o reinado do imperador alemão Guilherme II. A invocação do cortejo de depredações de Genghis Khan ganhou uma nova expressão. A conhecida alegoria de Hermann Knackfuss, Povos da Europa, guardem os vossos preciosos bens, encomendada pelo imperador em 1895, supostamente após um sonho, sintetizou de modo claro a relação entre imaginação (geo)política, racialização do outro e politização do medo. A litografia foi enviada para outros monarcas europeus. A mensagem era clara: uma aliança ocidental, assente numa civilização cristã e liderada pelo império alemão, devia fazer face ao “perigo amarelo”. De outro modo, o declínio do ocidente seria inevitável. O Inverno da civilização faustiana, como diria Oswald Spengler, em 1918, estaria próximo. O “perigo amarelo” escondia ambições imperiais óbvias, a weltpolitik alemã. Tal já sucedera com o envolvimento alemão na Tripla Intervenção associada à Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. Em 1900, por ocasião da partida das tropas alemãs para combater a Rebelião dos Boxers na China, Guilherme II revelou as suas ideias chauvinistas. Instigou as tropas à liquidação absoluta do inimigo, sem tréguas, sem prisioneiros, invocando Átila e os hunos. À xenofobia da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros (os Boxers) deviam-se contrapor sentimentos racistas antichineses, em voga um pouco por todo o mundo. Os alemães deviam dar um exemplo de “masculinidade” e “disciplina” a todos. Anos depois, sob a sua autoridade, os Herero e os Nama eram massacrados no Sudoeste Africano Alemão. Uma década depois começava a Primeira Guerra Mundial, com as conhecidas consequências. Aquando da sua abdicação, Guilherme II revelou ainda todo o seu anti-semitismo, reclamando uma vingança futura. Com a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, a invocação do “perigo amarelo” deslocou-se para os japoneses, também eles reduzidos a “povos de raça amarela” ou “mongóis”. A sua ascensão no Pacífico justificou todo o tipo de estereótipos, sendo o da impossibilidade da sua assimilação recorrente. O fim da guerra de 1905 trouxe inúmeras crises nas relações com os americanos. A segregação das crianças japonesas nas escolas públicas de São Francisco ou os boatos, outra vez os boatos, de que os imigrantes japoneses no México e no Canadá eram agentes disfarçados que se preparavam para invadir os EUA são apenas dois exemplos. Como quase sempre, o momento foi acompanhado pela emergência do especialista em “vulnerabilidades” nacionais e indefinições “estratégicas”. O livro sensacionalista de Homer Lea, The Valor of Ignorance (1909), sintetizou esse processo. Lea foi uma figura fascinante, tendo sido conselheiro de Sun Yat-sen durante a revolução republicana chinesa de 1911. No seu livro profetizou um confronto entre os EUA e o Japão, aventando uma invasão da Califórnia e das Filipinas. As suas ideias “geoestratégicas” foram acolhidas por “analistas” e corpos de interesse directamente envolvidos no processo. A sua insistência na “virilidade” e “estabilidade” das “nações”, dependentes da “homogeneidade da raça”, foi abraçada por muitos. O seu prognóstico de que a Alemanha e o Japão dividiriam o mundo entre si se continuassem a resistir “à influência deteriorante do industrialismo, do feminismo e da charlatanice política” encantou, atemorizando, vários círculos. A “homogeneidade anglo-saxónica” tinha de ser assegurada face ao largo contingente de cidadãos negros e ao aumento da imigração. O influxo de japoneses, os verdadeiros representantes do “perigo amarelo”, constituíam a grande ameaça. A “segurança nacional” estava, supostamente, em perigo. A sugestão da ideia da existência de uma quinta-coluna japonesa nos EUA ecoaria anos mais tarde. Durante os anos 1930, o FBI desenvolveu programas de counter-intelligence clandestinos nos Little Tokyos de Washington, Oregon e da Califórnia. Durante a guerra, a ideia serviu de justificação para o realojamento e internamento forçado de cerca de 110. 000 americanos de ascendência japonesa. Cerca de 62% destes tinham cidadania americana. Os antigos medos de uma invasão e os interesses específicos associados à agricultura e à pesca na Califórnia, que temiam a concorrência, atingiam um corolário dramático. "The Russians are coming" tornou-se uma expressão popularizada enquanto forma de paródia sobre o medo que tomou conta da sociedade norte-americana durante a Guerra Fria, em grande medida devido à comédia com o mesmo nome, de 1966. Ela remete, no entanto, para as notícias de que, nos finais dos anos 1940, o primeiro secretário da Defesa dos EUA, James Forrestal, tinha sido encontrado na rua anunciando uma invasão soviética, notícias que são hoje tidas por apócrifas. Esta não é, no entanto, a única polémica que envolve Forrestal. Suicidou-se em 1949, saltando da varanda do hospital psiquiátrico onde estava internado. Teorias da conspiração multiplicaram-se aos longos dos anos, nomeadamente sobre a possibilidade de um assassinato. Todavia, não restam dúvidas sobre a pressão a que se encontrava sujeito. Anunciara-se que não apoiaria a recandidatura de Truman, que o havia, entretanto, demitido. O seu casamento havia terminado de forma turbulenta. Mais, Forrestal tinha sido, desde início, um dos principais defensores de uma política externa implacável face à União Soviética. Este episódio não deve ser lido como um exercício de análise psíquica da política internacional. Ele mostra como as “políticas do medo” não têm de ser, necessariamente, uma maquinação instrumental de elites políticas engenhosas. Num certo sentido, a trajectória de Forrestal não é excepcional. Primeiro, o medo anti-comunista não nasceu com o início da Guerra Fria. Ele já tinha um importante precedente no primeiro Red Scare. O House Un-American Activities Committe, que tornaria famoso o senador Joseph McCarthy, tinha sido criada em 1938. Com ritmos diferentes, o medo soviético foi-se alastrando progressivamente pelos diferentes sectores da administração. Os debates historiográficos sobre o início da Guerra Fria têm frequentemente sido marcados por oposições antagónicas. No entanto, é relativamente unânime que, à época, a União Soviética não tinha o poder para desafiar militarmente os Estados Unidos. Os efeitos devastadores da guerra na URSS ou o monopólio atómico tornavam inconcebível um ataque em solo americano e improvável uma intervenção armada na Europa Ocidental, como afirmava um relatório da CIA de 1947. O perigo fundamental era a subversão económica e política. A influência dos partidos comunistas francês e italiano, a Guerra Civil na China ou a independência da Índia contribuíam para uma visão caótica e ameaçadora do mundo. A essas circunstâncias juntou-se a dramatização e simplificação do perfil do “inimigo”. Da URSS não se podia esperar conciliação ou razoabilidade. O seu objectivo era um “Soviet-Dominated World Communism”, como indicava um relatório do então criado National Security Council. A relutância em retirar militarmente do Irão, entre outras reacções, adensou estas apreensões. O recurso a estereótipos para caracterizar o inimigo reforçava os temores de decisores políticos e instilava um sentimento de perigo iminente. Tratava-se de nada menos do que um embate entre civilizações irreconciliáveis. A luta era apocalíptica, o inimigo radicalmente novo. Não possuía fronteiras identificáveis. Era dissimulado. Por vezes era russo, noutras asiático. Poderia até ser americano ou “ocidental”. As dinâmicas do medo popularizavam-se também internamente. O perigo de uma “quinta coluna” foi exacerbado. Para além da limitação de liberdades individuais, bem conhecida, iniciativas como a National Conference on Citizenship alertavam que a ilusão da paz estava a fazer esmorecer o sentimento patriótico. Como alertava o comandante nacional da American Legion, as “filosofias anti-americanas floresciam”. Em 1948, uma “semana da democracia derrotando o comunismo” foi organizada. Em 1950, na West Virginia, uma “semana do americanismo” incluía o “dia de combate ao comunismo-socialismo”, o “dia de responsabilidades cívicas” e o “dia da liberdade de oportunidades”. Estas manifestações pretendiam responder àquilo que era visto como um sintoma mais profundo. A sociedade norte-americana tornara-se refém do consumo e os valores patrióticos esmoreciam. Em suma, esta era uma sociedade despojada de virilidade. Essa visão era perfilhada por autores liberais como Arthur Schlesinger Jr. . No seu Vital Center (1949) – símbolo do liberalismo e conservadorismo unidos por valores comuns face à ameaça totalitária de esquerda e de direita – alertava para uma “era da ansiedade” que tornava as massas propensas a aderirem a visões radicais da sociedade. Essa “feminilidade” era identificável nas forças de esquerda que se deixavam seduzir pelo comunismo. Uma nova geração de liberais menos idealistas e mais empreendedores era a solução. Ironicamente, o remédio para a ansiedade só gerava mais ansiedade. O recurso a metáforas de virilidade foi bem mais acentuado no seio da direita conservadora. Para homens como McCarthy, o liberal da costa leste ou de Washington D. C. , merecia desprezo. Era, como se diz hoje, um “bem-pensante”, distante do povo real. O establishment liberal, que venerava os “comunistas e maricas do Departamento de Estado”, tinha vendido a “China a uma escravatura ateísta”. Os medos sobre a homossexualidade exacerbavam-se e foram associados à Guerra Fria. Na sequência do despedimento de 91 funcionários do Departamento de Estado por serem homossexuais, um senador republicano defendeu que se realizasse um estudo sobre os homossexuais que trabalhavam para o Estado. O motivo: Estaline tinha obtido de Hitler uma “lista mundial” de homossexuais que podiam ser usados como elementos de subversão. Um relatório produzido na sequência destes eventos sublinharia que aqueles que se envolviam abertamente em “actos de perversão” não dispunham da “estabilidade emocional” de uma “pessoa normal”. Os temores de uma sociedade emasculada conjugavam-se com uma retórica de decadência civilizacional que pretendia galvanizar a opinião pública e, aspecto fundamental, limitar a dissensão. O conjunto de dinâmicas do medo aqui enunciadas revelou-se de forma particularmente aguda aquando do episódio dos prisioneiros de guerra norte-americanos no conflito na península norte-coreana. O facto do número de prisioneiros chineses e norte-coreanos que não queria voltar aos países comunistas ser muito superior ao do número de norte-americanos que não queria voltar aos EUA e que estes fossem apenas 21 de um universo de cerca de três mil não impediu que a opinião pública norte-americana reagisse alarmada. Dada a convicção generalizada da superioridade política, moral e económica da sociedade norte-americana, a recusa destes prisioneiros em voltar só se poderia dever a técnicas misteriosas empregadas pelos comunistas. A ideia de lavagem cerebral, com antecedentes, tornou-se então central no debate público americano. Disseminaram-se as teorias sobre as técnicas pavlovianas e hipnóticas dos comunistas, reveladores do seu carácter radicalmente novo e ameaçador. O medo de que a subversão alastrasse levou a que este grupo social se tornasse um dos mais estudados na história dos EUA. As forças militares ficaram aterrorizadas com a perspectiva dos “métodos de aniquilação mental dos comunistas”. A cena cultural reproduziria estes medos, facto particularmente visível no filme The Manchurian Candidate (1962). Se nos EUA o comunismo se apresentava como ameaça fundamental ao “modo de vida” americano e à civilização ocidental, em várias capitais europeias esse vento não soprava apenas do Leste, vinha também do Sul. Após a progressiva descolonização asiática, o temor da ascensão do nacionalismo africano conjugou-se com o que era visto como o perigo do declínio do Ocidente, temperado pela persistência de visões racializadas das populações nativas. Estes temores tornaram-se particularmente salientes em momentos em que o domínio colonial foi posto em causa através de meios violentos. Foi esse o caso da revolta Mau Mau no Quénia. A revolta, iniciada em 1952 e atribuída aos Kikuyu, foi no essencial o resultado de problemas agrários. Todavia, foi desde cedo retratada pelas autoridades britânicas como um exemplo de “selvajaria” decorrente de uma mentalidade “primitiva”. Houve quem não hesitasse em associar a rebelião a uma infiltração comunista em África, por via da intromissão das Nações Unidas e dos elementos progressistas ocidentais, ambos instrumentalizados pelos comunistas. Este argumento faria escola entre as várias potências coloniais. No entanto, foram as próprias autoridades britânicas que negaram qualquer interferência comunista. A dissociação dos eventos no Quénia de uma trama comunista pretendia reforçar a ideia de que este era um movimento desprovido de qualquer “racionalidade” moderna. Os múltiplos relatos na imprensa britânica de uma violência inaudita visavam demonstrá-lo. A imagem dos juramentos iniciáticos que eram atribuídos aos Mau Mau e que invadiam a mente tanto dos colonos como das audiências britânicas era apenas uma das ilustrações disponíveis. Mas estes eram fortemente exagerados pela imaginação dos cronistas e das autoridades civis e militares. Num documento privado, que não chegou ao conhecimento público por ser demasiado explícito, referia-se que os juramentos incluíam actos como a masturbação em público, beber sangue menstrual e actos “não-naturais” com animais. Apesar disso, os colonos acreditavam que 80% dos Kikuyu tinha participado nestes actos. O que não era verdade. Mas este tipo de exercício legitimava medidas de repressão e punição colectivas. Os relatos, com ampla circulação, sublinhavam a violência contra brancos e as práticas de violência cruéis. Instilou-se um temor na sociedade colona acerca dos seus trabalhadores e empregados domésticos Kikuyu. A realidade, essa, era substancialmente diferente. A revolta traduziu-se na morte de quase 13 mil Kikuyu e apenas 58 brancos. As práticas de desmembramento foram esporádicas, ao contrário do que era amplamente sugerido. Mas o boato e a propaganda tornavam mais fácil legitimar o estado de emergência instaurado pelas autoridades britânicas, marcado por múltiplas violações de direitos humanos e liberdades individuais. A essencialização e a desumanização do “inimigo” e a projecção de uma luta de vida e de morte entre a “civilização” e a “barbárie” também se fizeram sentir no caso da libertação da Argélia. Aqui, as desigualdades sociais e económicas organizadas em torno da diferença étnica e cultural eram manifestas, reforçadas que eram por um sistema político discriminatório. Em 1947, existiam dois colégios eleitorais distintos, cada um elegendo seis representantes. Para o primeiro votavam cerca de 460 mil europeus e 58 mil muçulmanos “assimilados”. No segundo, um milhão e quatrocentos mil “nativos”. Ademais, as eleições eram frequentemente viciadas pelas autoridades francesas. Quando a violência organizada foi despoletada em 1954 pela Front de Libération National (FLN), as autoridades francesas estavam cientes destas realidades. A população argelina crescia a um ritmo muito superior ao da sociedade metropolitana e ao da população colona, o que colocava problemas de monta à ideia de uma Argélia francesa. A livre circulação de argelinos para a metrópole, que se contavam então nos 300 mil, e que regressavam à origem transportando “perigosas ideias políticas e sociais”, exacerbava os temores administrativos franceses relativos à integração plena do território. Em sentido contrário, essa imigração traduzia-se numa “invasão real e berberização de bairros inteiros em Marselha e Paris”. Os perigos abundavam. Mas a vontade francesa de manter a Argélia como parte integrante da França persistiu. Para alguns, depois de contida a ofensiva do pan-eslavismo, o Ocidente confrontava-se agora com a do pan-islamismo. A ideia de choque civilizacional era promovida. Um primeiro-ministro de De Gaulle declarava que a Argélia era a “fronteira entre dois mundos hostis”. As intenções francesas visavam transformar os termos do debate, num momento em que a autodeterminação e os direitos humanos se tornavam princípios orientadores da ordem global. Os seus oponentes eram retratados como “assassinos sem piedade” ou “instrumentos de um imperialismo teocrático, fanático e racista”. A sua desumanização era evidente. O governo francês invertia as acusações de racismo e xenofobia, atribuindo-as à FLN. A centralidade da questão feminina nos debates suportava esse esforço. Por exemplo, num filme produzido para audiências norte-americanas disseminava-se a ideia de que apenas a França poderia acabar com a tradição muçulmana da subjugação da mulher. A descrição do adversário como essencialmente fanático, imbuído de um espírito de Jihad, além de simplificar e reduzir as causas do ressentimento a uma “essência” muçulmana, autorizava respostas violentas. Quando as forças nacionalistas argelinas massacraram 123 pessoas em Constantinois, em 1955, a resposta francesa em Philippeville saldou-se na morte de 1237 muçulmanos. A ordem era para atirar em qualquer árabe que as tropas francesas encontrassem. Os episódios de tortura sistemática ou de suspensão de direitos fundamentais são amplamente conhecidos. A defesa da “civilização ocidental” autorizava a desproporção, alimentada que era pela desconfiança generalizada relativamente a qualquer muçulmano, resumido à sua condição religiosa e étnica pelo temor da diferença. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O livro de Corey Robin, Fear: the History of a Political Idea (2004), escrito num momento em que a Guerra ao Terror colocava desafios de monta às promessas de liberdade, providencia um guia fundamental sobre como o “medo”, enquanto dispositivo político, orientou alguns dos mais importantes pensadores que reflectiram sobre as sociedades ocidentais. Hobbes, Montesquieu, Tocqueville ou Arendt prestaram o devido tributo filosófico ao poderoso incentivo do medo, nas suas múltiplas formas e, crucialmente, de modos diversos. A incursão histórica que dá forma a este texto procurou, deliberadamente, sinalizar historicamente formas de politização do medo em contextos democráticos. Todos eles incluíram zonas interditas, definidas em função da nacionalidade, da aceitabilidade política ou da raça ou etnia. Mas estes casos não autorizam um libelo contra estas sociedades. Restam poucas dúvidas que as políticas do medo assumiram proporções muito mais vincadas em sociedades autoritárias ou totalitárias, corporizadas no judeu ultraminoritário enquanto potencial ameaça ao corpo nacional ou no kulak desapossado que poderia reverter a marcha da história. O objectivo é o de sinalizar como as políticas do medo podem ser, hoje, facilmente reavivadas. O exagero desproporcionado da ameaça, o estereótipo e unificação do “inimigo” enquanto forma absoluta do mal, as imagens de civilizações decadentes ou emasculadas permanentemente acossadas, a ligeireza no recurso a sentenças apocalípticas são algumas das suas manifestações mais comuns. E elas abundam, um pouco por todo o lado. Todos os episódios aqui elencados podem ser vistos como manifestações de problemas globais. Não se reduzem a geografias concretas. Não são propriedade de sociedades ou “culturas” específicas. São resultado de múltiplos factores históricos, muitos deles associados às múltiplas globalizações que desde há muito originaram o encontro da diferença e as ansiedades e receios deste resultantes. Nascem do estereótipo e do rumor. Decorrem de simplificações de vária ordem, da redução de problemas a explicações mono causais ou da sua claríssima manipulação interesseira. Promovem “soluções” que frequentemente ampliam o problema que declaram resolver. É obrigatório descodificar os seus usos mais grosseiros e perniciosos.
REFERÊNCIAS:
Religiões Islamismo
Um sorriso pode ajudar a identificar um morto
A fotografia de alguém a rir pode ajudar a identificar um cadáver. Mais do que uma foto do tipo passe. Já as selfies, não são de grande utilidade. E quem acha que é sempre possível tirar teimas com uma recolha de ADN está enganado. Falámos com homens e mulheres que descobrem identidades. (...)

Um sorriso pode ajudar a identificar um morto
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 3 Asiáticos Pontuação: 6 | Sentimento 0.049
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A fotografia de alguém a rir pode ajudar a identificar um cadáver. Mais do que uma foto do tipo passe. Já as selfies, não são de grande utilidade. E quem acha que é sempre possível tirar teimas com uma recolha de ADN está enganado. Falámos com homens e mulheres que descobrem identidades.
TEXTO: Um coveiro revolve o terreno para o preparar para mais um enterro e depara-se com um corpo enrolado em plástico. Não há caixão. Apenas um corpo pequeno, deitado de lado. Uma vez no gabinete médico-legal perceber-se-á que o cadáver está mumificado. E que pertence a uma criança do sexo masculino, que teria dois anos quando morreu. Assim começou um caso que intrigou alguns dos elementos do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária. Daquele corpo enterrado havia mais de 45 anos, cuja identidade era desconhecida, parecia impossível, pelo estado em que estava, recolher-se sequer uma simples impressão digital. Noémia e Jorge Calarrão, peritos em impressões digitais, são marido e mulher. Ele trabalha na Judiciária desde o final dos anos 70. Ela — que ajudou na identificação de vítimas do tsunami de 2004 no sudeste asiático —, desde os anos 80. Reconhecem que muitas vezes os casos mais difíceis, por muito pouco românticos que possam parecer, os acompanham nas conversas até casa, depois de terminado o dia de trabalho na sede do LPC, em Lisboa. O corpo mumificado, encontrado em Março de 2013, foi um verdadeiro desafio. No computador de uma das salas do LPC, Jorge Calarrão mostra-nos as fotografias feitas então: parecia feito de barro. A pedido do gabinete médico-legal da Covilhã, o casal de peritos pôs-se a caminho para ajudar a resolver o mistério. Como o cadáver estava, “já não era possível, por exemplo, hidratar os dedos para ‘reavivar’ as cristas”, explica Noémia — as cristas são a parte mais saliente que vemos na pele na ponta dos dedos, os sulcos são o espaço entre as cristas e é tudo isto que compõe uma impressão digital quando pintamos os dedos com tinta e os calcamos, ainda frescos, numa folha. Mas daqueles dedos desidratados não se conseguia retirar qualquer imagem usando este método simples. “Com muita paciência”, e depois de muitas horas de trabalho à volta dos dedos do cadáver, Jorge e Noémia conseguiram fazer um molde de cada um — uma pasta cinzenta, que parece plasticina, da qual é posteriormente feita uma fotografia tridimensional. . . Acabou por resultar. Estavam recolhidas as impressões digitais — o elemento que constitui o mais rápido e o mais barato recurso para identificar um corpo, como nota Carlos Farinha, director do LPC. Mas que nem sempre é possível obter, ou que nem sempre é útil nesta coisa da identificação humana, como vamos ver em breve. Para já, de bata e luvas brancas, Noémia Calarrão mostra-nos alguns dos instrumentos que fazem parte da sua mala de trabalho, quando é chamada a uma morgue: uma espécie de pinça, “para quando é preciso mergulhar os dedos dos cadáveres em água quente”; outra, para endireitá-los de forma a ser possível manuseá-los; os frasquinhos de vidro, “com os reagentes para encher os dedos”; tintas; tiras de papel onde se fixam as marcas. . . Os médicos recolhem as impressões digitais quando fazem as autópsias, mas quando os cadáveres estão demasiado decompostos pedem ajuda a quem mais conhecimentos tem de lofoscopia, “o estudo dos relevos da pele”, como diz o dicionário — precisamente, pessoas como Noémia e Jorge. Mesmo quando já não há pele visível nos dedos, vai explicando Noémia, a derme, camada intermédia que fica logo abaixo da epiderme, “pode conter pontos característicos suficientes para permitir fazer uma identificação”. Regresso ao cadáver mumificado da Covilhã: o que torna o “caso absolutamente extraordinário” é que, provavelmente, nunca se tinha conseguido retirar uma impressão digital de um corpo enterrado havia mais de 45 anos, explica o director do LPC. Por isso, pretende partilhar a experiência, futuramente, com outros peritos no estrangeiro. É certo que a identidade do corpo da criança continuava por descobrir. “Este caso mostra que vale sempre a pena tentar recolher impressões digitais”, diz Noémia. Mas o facto é que o mistério permanecia. Uma impressão digital só tem valor se houver possibilidade de a comparar com outra. E neste caso, até ver, não havia. “O que se apurou foi o seguinte: houve um acidente de carro, em 1968, envolvendo emigrantes portugueses em França. Morreram cinco pessoas da mesma família, que foram enterradas no cemitério da Covilhã”, conta Carlos Farinha. O pai de família sobreviveu. “Por alguma razão, o corpo da criança não terá sido enterrado com os outros. . . não sabemos porque estava sem caixão”, prossegue. “Como aquela zona é particularmente fria, a destruição dos tecidos foi muito mais lenta” do que é habitual. Tendo a autópsia detectado lesões que eram compatíveis com as de um acidente de viação e tendo a polícia recolhido, nas suas averiguações no terreno, indícios de que aquela criança podia ser um dos elementos da família acidentada em 1968, o pai foi informado da descoberta. Veio de França, de propósito. Não trazia nenhum documento do filho com impressões digitais para comparar com as recolhidas por Noémia e Jorge — em 1968 crianças pequenas não tinham passaporte, conta Carlos Farinha, “estava agregado ao da família”. Não havia também “como ir ao coval originário — na medida em que quando não se trata de campa ou jazigo térreo de família os covais são periodicamente renovados”. Ou seja, não era possível confirmar se faltava um corpo à família enterrada em 1968. A identificação através do ADN — comparando o perfil recolhido no cadáver com uma amostra do alegado pai — foi inconclusiva. As amostras recolhidas no corpo mumificado estavam demasiado danificadas. Beco sem saída? Este menino era, afinal, o menino que se pensava, ou não?Desfecho da história: “O tribunal fechou o processo mesmo assim, porque o pai disse: ‘É o meu filho. Tenho a certeza. Ele tem a boca assim porque tinha a chupeta’”, recorda Noémia, com duas fotografias da criança na mão — duas imagens a preto e branco, com mais de 45 anos, que o emigrante trouxe de França quando veio fazer o reconhecimento do filho. Noémia confessa que também vê parecenças entre estas fotografias, de uma criança pequena, muito bonita, de rosto redondo, e a fotografia do rosto mumificado que aparece no ecrã do computador. Com uma “natureza muito focada no apoio ao processo crime”, o que faz o LPC nisto de trabalhar na busca da identidade dos cadáveres, mesmo quando não estão em causa suspeitas de crimes?“Poderia dizer-se: ‘ah, se não tem a ver com crime não tem a ver com PJ. ’ Mas não. . . Em termos de impacto, esta componente do nosso trabalho, da identificação humana, pode ser tão significativa quanto a outra”, responde Carlos Farinha. “E seria um desperdício não aproveitar o desenvolvimento das nossas técnicas” para esse fim. Por isso colaboram em muitos casos com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF). Dar um nome a um corpo pode ajudar uma família a fazer um luto, “a fechar ciclos”. Pode ajudar a resolver um problema de uma herança. Pode encerrar uma investigação policial de um desaparecimento. . . E pode, seguramente, cumprir aquele que é um desígnio para pessoas como Noémia: “Todos têm direito a ter uma identidade”, mesmo depois de mortos. Farinha dá exemplos recentes, a começar pelo jovem português encontrado morto no mês passado em Brighton, Inglaterra, junto a uma linha de comboio, depois de ter estado alguns dias desaparecido. “A polícia inglesa contactou o consulado português em Londres para perguntar se estávamos disponíveis. E nós dissemos que claro que sim. Enviaram-nos as impressões digitais recolhidas no local. Nós pedimos cá as impressões do jovem ao Instituto dos Registos e Notariado (IRN). E os nossos peritos fizeram a análise e comparação. ” Cada ponto concordante entre a “amostra-problema” — as impressões recebidas de Inglaterra — e a “amostra-referência” — as fornecidas pelo IRN — foi assinalado a vermelho pelos técnicos (a validação é feita por pessoas e não por computadores, nota o director do LPC). No final: “houve um hit” — na gíria que aqui se usa, “concordância”. Corpo identificado. De resto, sempre que há notícia do desaparecimento de um português no estrangeiro ou de um desastre em que é previsível que as vítimas apareçam, o LPC adianta trabalho e pede os registos ao IRN — onde estão os dados biométricos de todos os cidadãos com cartão do cidadão, continua Carlos Farinha. “Lembra-se do pesqueiro que naufragou na Galiza [em Abril do ano passado]? Sabíamos que havia cinco portugueses e tratámos de ir logo junto do IRN pedir aquelas identificações para que se pudesse fazer a comparação mal os corpos fossem encontrados e as autoridades espanholas nos mandassem os dados. . . ”O director do LPC chama a isto “fazer o trabalho de casa”. Tornar o processo de identificação mais célere, é, desde logo, ser capaz de dar respostas mais rápidas a famílias que vivem momentos de grande ansiedade. O mesmo aconteceu em 2013, diz, quando um avião das Linhas Aéreas de Moçambique que ligava Maputo a Luanda caiu na Namíbia, matando 33 pessoas, incluindo sete portugueses. “Uma equipa do Instituto de Medicina Legal foi para o terreno, mandava-nos para Lisboa a informação que recolhia e nós aqui [no LPC] fazíamos as comparações e dávamos os resultados. Outros países que sabiam que estávamos a fazer aquilo para os nossos nacionais, encaminharam para nós os registos de identificação dos seus cidadãos: a França mandou dos seus, Angola mandou de angolanos, o Brasil mandou de brasileiros. . . ”, conta Farinha. “Aperceberam-se que tínhamos uma equipa na frente e uma equipa pericial na retaguarda, e recorreram a nós. Das 33 vítimas acabámos por identificar 18. ”No LPC da PJ, João Paulo Cardoso é “o perito que trata de imagem, dos rostos, da reconstrução facial” — é assim que Carlos Farinha o apresenta à Revista 2. Este é o homem a quem Noémia e Jorge recorrem quando os dedos dos mortos não estão em estado de lhes dar respostas. “A mim só me interessa o crânio, preferencialmente com mandíbula e completamente limpo de tecidos moles”, explica João Paulo, cabelo grisalho, bata branca, sorriso discreto. Uma das técnicas que usa passa por comparar imagens de crânios de mortos com fotografias de vivos, sobrepondo-as. Dito de uma maneira mais profissional: João Paulo Cardoso faz “identificação forense por sobreposição craniofacial”. À frente do seu computador, cheio de fotografias de crânios — de frente, de perfil, mais de lado. . . —, explica: “Fazemos a documentação fotográfica do crânio, ou através de vídeo, no INMLCF. É que nós somos diferentes uns dos outros porque o nosso crânio e mandíbula são diferentes. ”Depois, faz-se a sobreposição de fotografias. “Uma fotografia ante mortem de uma pessoa a sorrir é o ideal para usar neste tipo de identificação, por causa da dentição”, prossegue João Paulo “A dentição dá-nos uma série de elementos. ”Já as selfies e todas as fotografias tiradas muito próximas do rosto não são boas, “porque alteram a forma do rosto”. Uma foto tipo passe, por exemplo, também está longe de ser ideal para este trabalho. Fotografias a sorrir e a rir, sim. O resultado do trabalho de João Paulo é uma espécie de foto montagem, pedaços de um rosto de alguém vivo, que sorri, sobre a fotografia que alguém fez do seu crânio, depois de morto. Nas sobreposições vão-se assinalando os “pontos concordantes”, até se chegar, ou não, a um veredicto que nunca é de 100% de certeza mas que deve andar lá perto — outras técnicas, como a comparação de perfis de ADN, poderão corroborar ou reforçar o resultado obtido por João Paulo que para explicar como funciona este método utiliza uma montagem que fez, para uma apresentação pública, do seu próprio rosto sobre um crânio. “Um processo de identificação é sempre um processo de comparação, se não temos nada com que comparar podemos ter as melhores perícias, que elas não nos servem de grande coisa. . . ”, sublinha João Pinheiro, vice-presidente do INMLCF — este patologista forense, foi o primeiro perito português a participar em missões internacionais das Nações Unidas para a documentação de crimes contra a Humanidade (no Kosovo e na Bósnia), a partir do ano 2000, tendo trabalhado na identificação de cadáveres encontrados nas valas comuns que os massacres deixaram. Esta regra básica vale mesmo para os mais complexos processos de recolha de perfis de ADN, diz. “Se não houver ADN do próprio [que pode ser obtido em objectos de uso íntimo, como uma escova de dentes] ou de primos, de pais, de tios para comparar, não serve de nada. ”Nos casos do jovem estudante português, que tinha sido dado como desaparecido na zona de Brighton, e dos pescadores, na Galiza, sabia-se que identificações pedir ao IRN. “É preciso explicar isto: só podemos ir à base de dados do IRN buscar as impressões digitais na perspectiva de 1 para 1: ‘olhe, dê-me a impressão do senhor não sei quantos ou do BI número tal’ — enfim, é uma maneira de falar, tudo isto tem um processo”, diz Farinha. “Depois, vemos se há correspondência. As coisas são muito rápidas e a colaboração com o IRN é muito boa. ”Ou seja, aparece um cadáver sem nome, não há pistas, mas há impressões digitais? A base de dados do IRN é inútil. Não há fotografias de alguém que se admite pode ser o morto encontrado? João Paulo não tem como trabalhar. No caso das impressões digitais, há sempre a hipótese de recorrer a uma base de dados da própria PJ — chama-se AFIS (sigla para Automated Fingerprints Identification System). Mas esta é limitada: tem cerca de 200 mil entradas de impressões digitais recolhidas apenas a arguidos e em locais de crime. Noémia diz que nos casos dos indigentes encontrados mortos, cujos cadáveres não chegam a ser reclamados é frequente encontrar correspondência, porque muitos cruzaram-se algures na vida com a Justiça. Mas há todos os outros casos. . . E há também todas aquelas situações em que não conseguem recolher nem impressões digitais, por o corpo estar demasiado degradado. Nem sequer um perfil de ADN. “Podemos conseguir tirar impressões digitais de um cadáver com um ano, dois ou três e num corpo com quatro dias não conseguir tirar nada”, diz João Pinheiro. “Depende tudo muito de uma série de factores, a estação do ano, o sítio onde está o corpo, onde foi abandonado ou onde ficou, se havia animais, insectos, formigas, ratos, se estava dentro de água ou não. . . ”Em relação ao ADN, passa-se algo semelhante. Dá um exemplo recente, um caso “difícil”, que felizmente acabou com uma identificação. O de uma jovem mulher cujo cadáver foi encontrado muitos meses depois da morte, em Tábua, em Novembro do ano passado. Estava em avançado estado de decomposição. “Tratava-se de um corpo esqueletizado não identificado, incompleto, com alguns ossos ainda articulados”, explica. Havia uma suspeita de quem podia ser. O laboratório de Genética do INMLCF encarregou-se do caso. “Do cadáver foram recolhidas amostras dos pêlos púbicos e do úmero. A análise aos pêlos, a primeira a ser efectuada, não permitiu obter resultados. A análise ao osso, a partir da pulverização com azoto líquido, obrigou a sete extracções, na tentativa de obter material biológico em quantidade e qualidade suficientes para permitir a comparação com a amostra do suposto familiar. As amostras estavam bastante degradadas. ” O processo de obtenção de um perfil genético só ficou concluído a 2 de Março deste ano. “E foram precisas sete extracções!”, sublinha João Pinheiro. Aquele era mesmo o corpo da jovem de que se suspeitava. Nem todos os processos envolvem amostras tão difíceis de analisar como as deste caso, frisa o médico. Se se trata de “um corpo fresco” pode ser “muito rápido”. Mas as identificações podem levar até um ano. Num tempo em que por causa de séries do tipo as norte-americanas CSI ou Ossos há um pedacinho de cientista forense em cada um de nós, é preciso que se diga isto: “Nas ciências forenses nem tudo o que é possível está garantido”, sublinha o director do LPC, Carlos Farinha. “Na ficção, se se encontra um cabelo, ou uma mancha de sangue está garantido que se vai determinar um perfil de ADN. Na realidade, muitas vezes, em Portugal, os pingos de sangue, por exemplo, caem em superfícies que são lavadas com lixívia, cozinhas, casas de banho, e só isso pode prejudicar a análise. ”A verdade, diz João Pinheiro, é que a identificação humana é, na maior parte dos casos, feita a partir de vários elementos, uma soma de informações recolhidas por diferentes pessoas — dos médicos, antropólogos e geneticistas forenses que trabalham no Instituto aos polícias. “Raramente usa apenas um método”, prossegue. No caso dos cadáveres que ninguém reclama — 66 no ano passado —, “poucas vezes se fez a identificação pelas impressões digitais”, precisamente por falta de termo de comparação. No LPC não há cadáveres — há máquinas, computadores, câmaras fotográficas, reagentes, laboratórios, e, eventualmente, amostras biológicas recolhidas no terreno ou nas morgues. . . Os cadáveres propriamente ditos para os quais é preciso ir à procura de identidade vão directos para os gabinetes do INMLCF, onde todas as salas de autópsias obedecem a rigorosas regras de higienização e ninguém entra sem batas e umas botas altas de borracha brancas. O trabalho dos médicos forenses começa com descrição de todos os detalhes. “Todos os órgãos são pesados — o peso diz-nos muito sobre a saúde ou não de um determinado órgão: um fígado pesa um quilo e meio, se pesar 3 quilos é anormal. Um coração pesa 300 gramas, um de um atleta pode pesar 700, ou 800 gramas. . . se pesar um quilo, não é normal. No coração medimos as válvulas por dentro. . . estão ali muitas fitas métricas”, diz João Pinheiro, numa das salas do INMLCF em Coimbra. Tudo isso pode ajudar a identificar uma pessoa. “Depois todos os líquidos são medidos: o conteúdo do estômago, o sangue na cavidade pleural. . . ” Perto da mesa de autópsias, há uma mesa de fotografia de órgãos. “Em tempos tínhamos fotógrafos. Agora somos nós que fotografamos na hora. ” Se o corpo estiver “fresco”, as tatuagens, os piercings, os sinais, a roupa podem ser essenciais para chegar a identidade. “E os dentes. Vê-se que dentes perdeu antes da morte, anotam-se as cáries, os tratamentos feitos, com que materiais — em Portugal usam-se uns, no Brasil outros. ” Tudo isto pode dar pistas para ajudar a identificar um cadáver. Sobretudo, claro, se o morto quando era vivo ia ao dentista e se consegue chegar aos seus registos dentários. Os corpos não identificados chegam ao INMLCF, em muitos casos, acompanhados pela polícia — “que já perguntou no terreno, já fez perguntas, às vezes chegamos até a atrasar um pouco as autópsias para dar mais tempo às polícias para chegarem a uma identificação”. Por vezes, como se viu, peritos do LPC assistem — “mas quem toca nos corpos são sempre os médicos”, nota Carlos Farinha. Algumas amostras acabam a ser analisadas no LPC. Alguns resultados acabam por ser difundidos para a Interpol, quando se assume que se está perante um corpo de um estrangeiro mas não se consegue chegar a nenhuma conclusão sobre quem possa ser. No Verão de 2013, por exemplo, dois corpos foram encontrados no porão de um navio que vinha do Togo e atracou em Ponta Delgada. “Ter-se-á tratado de uma tentativa de emigração. Morreram por confinação. Recolhemos as impressões digitais, foram difundidas internacionalmente mas não temos resposta até hoje”, diz Carlos Farinha. Em suma, polícias, LPC e INMLCF complementam-se. “Temos regras de articulação, complementaridade e obediência ao interesse público e processual… e vamos funcionando”, prossegue o director do LPC. Ainda assim, em 2014, segundo as estatísticas do INMLCF, houve 16 cadáveres para os quais não foi mesmo possível encontrar um nome. As autópsias revelaram que morreram por suicídio (3), acidente (5), homicídio (1). Noutros casos não se conseguiu sequer determinar a causa de morte. No site da PJ há uma secção com registos de cadáveres por identificar há anos. São cerca de 60 — o de um homem de 50 ou 60 anos encontrado junto a uns arbustos na Travessa dos Salgueiros, no Porto. Outro que caiu na rua, em Lisboa, que deu entrada no Hospital do Capuchos, morreu, e nunca foi reclamado. Outro encontrado junto à linha do comboio, em Benfica. Outro num talude que desce ao Rio Douro, em Canelas…Na maior parte dos casos, são as autarquias que pagam os funerais destas pessoas. Em Lisboa, é a Santa Casa da Misericórdia (SCML) que os suporta. A Revista 2 acompanhou em Novembro dois deles — aconteceram ambos numa tarde húmida e fria. “Nestes funerais não há ninguém para confortar, nem há forma de saber alguma coisa da vida das pessoas para dizer umas palavras”, contou o padre António Cecílio Pereira, que está bastante habituado a fazer funerais de não reclamados. “Quando há familiares, vai-se ter com eles antes, pergunta-se: ‘Que idade tinha? O que fazia? Do que gostava?’ E às vezes, no fim da cerimónia, as pessoas vêm perguntar-me: ‘Mas conhecia-o?’ Porque podemos fazer uma narrativa da vida da pessoa. Nestes casos. . . nestes casos não se pode fazer isso. . . São funerais diferentes. ”À hora marcada, chegaram as carrinhas e os funcionários da agência funerária Servilusa, com quem a Santa Casa tem protocolo. A assistir, estavam apenas dois voluntários da Irmandade da Misericórdia e de São Roque, que tem entre as suas missões acompanhar até à última morada estas pessoas. Levaram flores. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. “São dois homens, não têm nome, nem têm idade, nada. O resto é com a polícia”, limitou-se a explicar um funcionário da agência, depois de retirados os caixões das carrinhas. Uma vez posicionados nas covas abertas na terra molhada, o padre leu umas palavras: “Senhor, que a morte deste nosso irmão nos comprometa a viver mais de acordo com o evangelho, a levar uma vida mais cristã, que nós vivamos mais unidos e que a nossa fé aumente. Senhor, Nosso Pai, recebe a alma deste nosso irmão. Morrendo para este mundo, viva para nós e nenhum de nós que aqui estamos se perca ou desanime na sua caminhada. Amén! Assim seja!”Repetiu duas vezes — uma por cada corpo que baixou à terra.
REFERÊNCIAS:
Entidades PJ
O que é o Estado Islâmico?
O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será ele o agente do apocalipse que se aproxima. Aqui explicamos o que isso significa para a sua estratégia — e como acabar com ela. (...)

O que é o Estado Islâmico?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será ele o agente do apocalipse que se aproxima. Aqui explicamos o que isso significa para a sua estratégia — e como acabar com ela.
TEXTO: De onde veio e quais são as suas intenções? A simplicidade destas perguntas pode ser enganadora e poucos líderes ocidentais parecem saber as respostas. Em Dezembro, o New York Times publicou declarações confidenciais do major Michael K. Nagata, o comandante de Operações Especiais dos Estados Unidos no Médio Oriente, em que este admitia que não conseguia perceber o autoproclamado Estado Islâmico (EI). “Não conseguimos derrotar a ideia [por trás do movimento]”, disse. “Nem sequer conseguimos perceber a ideia. ” No último ano, o Presidente Barack Obama tem-se referido ao Estado Islâmico ora como “não islâmico”, ora como “a equipa de novatos” da Al-Qaeda, comentários que revelam a confusão sobre o grupo e que podem ter contribuído para erros de estratégia grosseiros. O EI conquistou Mossul, no Iraque, em Junho passado, e já exerce poder sobre uma área maior do que o Reino Unido. Desde Maio de 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi é o seu líder, mas até ao Verão passado, a última vez que tinha sido filmado fora sob cativeiro americano em Camp Bucca durante a ocupação do Iraque, onde aparecia numas imagens granuladas. Então, a 5 de Julho do ano passado, durante o Ramadão, subiu ao púlpito da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, para um sermão em que se autodeclarava o primeiro califa ao fim de várias gerações — fazendo um up grade na resolução da sua imagem, que passou de granulada a alta definição, e da sua posição de guerrilheiro fugido das autoridades a comandante de todos os muçulmanos. O afluxo de jihadistas que se seguiu, vindo de todo o mundo, foi inédito em ritmo e quantidade, e ainda não parou. De certa forma, a nossa ignorância sobre o Estado Islâmico é compreensível: é um reino obscuro e poucos foram até lá e regressaram. Baghdadi só falou para as câmaras uma vez, mas o seu discurso e os incontáveis vídeos de propaganda e encíclicas do EI estão acessíveis na Internet, e os apoiantes do califado têm feito tudo o que está ao seu alcance para dar a conhecer o seu projecto. Podemos concluir que o EI rejeita que a paz seja uma questão de princípio; que deseja um genocídio; que as suas posições o tornam constitucionalmente incapaz de certas mudanças, mesmo que estas garantam a sua sobrevivência; e que se considera o agente — e actor principal — do fim do mundo, que está iminente. O Estado Islâmico, também conhecido como Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), segue uma variante específica do islão, cuja crença no Dia do Juízo Final tem importância na sua estratégia e poderá ajudar o Ocidente a conhecer melhor o inimigo e prever o seu comportamento. A sua subida ao poder é menos parecida com o triunfo da Irmandade Muçulmana no Egipto (um grupo que os líderes do EI consideram apóstata) do que com a realidade alternativa distópica que [os líderes de seitas americanas] David Koresh ou Jim Jones quiseram criar para governar não apenas umas centenas de pessoas, mas oito milhões. Não temos sabido compreender a natureza do Estado Islâmico. Primeiro, tendemos a ver o jihadismo como monolítico e a aplicar a lógica da Al-Qaeda a uma organização que, sem dúvida, a ofuscou. Os apoiantes do Estado Islâmico com quem falei ainda se referem a Osama bin Laden como “xeque Osama”, um título honorífico. Mas o jihadismo evoluiu desde a época áurea da Al-Qaeda, entre 1998 e 2003, e muitos jihadistas desprezam as prioridades do grupo e a sua actual liderança. Bin Laden "odiava mais os inimigos do que amava os filhos"Bin Laden encarava o seu terrorismo como o prólogo de um califado que não contava ver realizado durante o seu tempo de vida. A sua organização era flexível e operava como uma rede geograficamente dispersa de células autónomas. Pelo contrário, o Estado Islâmico precisa de território para se legitimar e de uma estrutura hierarquizada que o governe. (A sua burocracia divide-se nos ramos civil e militar, e o seu território em províncias. )A segunda razão pela qual não o compreendemos tem que ver com uma campanha bem intencionada mas desonesta que nega ao EI a sua natureza religiosa medieval. Peter Bergen, que em 1997 fez a primeira entrevista a Bin Laden, intitulou o seu primeiro livro de Holy War, Inc. , em parte por reconhecer Bin Laden como uma figura do mundo secular moderno. Bin Laden corporatizava o terror e fez dele um franchising. Exigia concessões políticas específicas, tal como a retirada das forças americanas da Arábia Saudita. Os seus soldados rasos moviam-se com confiança no mundo moderno. Na véspera de morrer, Mohamed Atta [um dos atacantes do 11 de Setembro] fez compras no Walmart e jantou na Pizza Hut. É uma tentação fazer encaixar no Estado Islâmico a observação de que os jihadistas são pessoas seculares modernas, com preocupações políticas modernas, vestidas com disfarces religiosos medievais. Na realidade, muito daquilo que o grupo faz parece ilógico, a não ser que seja analisado à luz do seu empenho sincero e cuidadosamente arquitectado em transportar a civilização para um ambiente do século VII e da crença de que será o portador do apocalipse. Os porta-vozes mais articulados dessa intenção são os próprios responsáveis e apoiantes do Estado Islâmico. Falam com gozo dos “modernos”. Em conversas, insistem que não irão — nem podem — afastar-se dos conceitos de governação integrados no islão pelo profeta Maomé e os seus primeiros seguidores. Falam frequentemente em código e com alusões que parecem estranhas ou antiquadas a não-muçulmanos e que se referem a tradições e textos específicos do islão dos primórdios. Para dar um exemplo: em Setembro, o xeque Abu Muhammad al-Adnani, o principal porta-voz do Estado Islâmico, apelou aos muçulmanos dos países ocidentais, como a França e o Canadá, a encontrarem um infiel e “esmagarem a sua cabeça com uma pedra”, envenenarem-no, atropelarem-no com um carro ou “destruírem as suas colheitas”. Aos ouvidos ocidentais, os castigos de pendor bíblico — o apedrejamento e a destruição de colheitas — justapõem-se estranhamente ao seu incitamento mais modernizado de homicídio com um veículo. (E como se pretendesse mostrar que pode aterrorizar usando apenas o imaginário, Adnani chamou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, “ancião não circuncidado”. )Mas Adnani não estava a dizer apenas inutilidades. O seu discurso estava entrelaçado de fundamentos jurídicos e teológicos, e o seu apelo à destruição de colheitas ecoa ordens de Maomé para que se deixasse os poços de água e as colheitas dos inimigos em paz — a não ser que os exércitos do islão se encontrassem numa posição defensiva, e nesse caso os muçulmanos nas terras dos kuffar, ou infiéis, deveriam ser impiedosos e envenenar à vontade. A realidade é que o Estado Islâmico é islâmico. Muito islâmico. Sim, tem atraído psicopatas e pessoas à procura de aventura, saídos sobretudo das populações marginalizadas do Médio Oriente e da Europa. Mas a religião pregada pelos seus mais fervorosos seguidores vem de uma interpretação coerente do islão. Praticamente todas as grandes decisões e leis promulgadas pelo Estado Islâmico aderem ao que chama — na sua imprensa e nas suas declarações, nos seus painéis informativos, matrículas, material de escritório e moedas — “metodologia profética”, o que significa seguir rigorosamente a profecia e o exemplo de Maomé. Os muçulmanos podem rejeitar o Estado Islâmico; quase todos fazem-no. Mas fingir que não é verdadeiramente um grupo religioso e milenar, com uma teologia que tem de ser compreendida para ser combatida, já levou os Estados Unidos a subestimá-lo e a apoiar esquemas tontos para o debelar. Temos de entender a genealogia intelectual do Estado Islâmico se queremos uma resposta que não o fortaleça ainda mais mas que o ajude a auto-imular-se pelo seu próprio excesso de zelo. I. DevoçãoEm Novembro, o Estado Islâmico publicou um vídeo tipo info-comercial a ligar as suas origens a Bin Laden. Reconheceu Abu Mussab al-Zarqawi, o líder brutal da Al-Qaeda no Iraque entre 2003 até à sua morte, em 2006, como um progenitor mais directo, seguido sequencialmente por outros líderes guerrilheiros antes de chegar a Baghdadi, o califa. Uma omissão assinalável: o sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, o cirurgião oftalmológico egípcio que actualmente lidera a Al-Qaeda. Zawahiri não jurou obediência a Baghdadi e é cada vez mais odiado pelos seus colegas jihadistas. Para o seu isolamento, não ajuda a sua falta de carisma; nos vídeos parece sempre estar aborrecido. Mas a separação entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico há muito que vem sendo fabricada e ajuda, pelo menos em parte, a explicar os excessos sanguinários do EI. O companheiro de isolamento de Zawahiri é um religioso jordano chamado Abu Muhammad al-Maqdisi, de 55 anos, que será o arquitecto intelectual da Al-Qaeda e que é o mais importante jihadista desconhecido do público americano. Maqdisi e o EI estão de acordo na maior parte das questões doutrinárias. Ambos se identificam com a ala jihadista de um ramo do sunismo chamado salafismo, do árabe al salaf al salih, os “fundadores devotos”. Ou seja, o próprio Maomé e os seus primeiros seguidores, que os salafistas honram e seguem como modelo de todo e qualquer comportamento, incluindo a guerra, as vestes, a vida familiar, até os cuidados com os dentes. Maqdisi ensinou Zarqawi, que partiu para a guerra no Iraque com os seus conselhos em mente. Mas, com o tempo, Zarqawi excedeu o fanatismo do seu mestre e foi criticado por ele. Isto devido ao seu gosto por espectáculos sanguinários — e, do ponto de vista doutrinário, o seu ódio aos outros muçulmanos, a ponto de os excomungar e matar. No islão, a prática do takfir, ou excomunhão, é teologicamente perigosa. “Se um homem diz ao seu irmão ‘és um infiel’, então um deles está certo”, diz o profeta. Se o acusador estiver errado, ele próprio cometeu apostasia ao fazer uma falsa acusação. O castigo da apostasia é a morte. Zarqawi alargou sem temor o tipo de comportamentos que tornam os muçulmanos infiéis. Maqdisi escreveu ao seu antigo discípulo dizendo-lhe que precisava de ser mais cauteloso e “não fazer proclamações cegas de takfir”, ou “proclamar as pessoas como apóstatas devido aos seus pecados”. A diferença entre um apóstata e um pecador pode parecer subtil, mas é um ponto fundamental da divergência entre a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. Negar a santidade do Corão ou as profecias de Maomé é claramente uma apostasia. Mas Zarqawi e os seus companheiros consideram que muitas outras acções podem afastar um muçulmano do islão. Estas incluem, em alguns casos, vender álcool ou drogas, usar roupas ocidentais ou rapar a barba, votar em eleições — mesmo se for num candidato muçulmano — ou ser-se laxista na acusação de apostasia. Ser xiita, como são a maioria dos árabes iraquianos, também encaixa nos critérios, porque o Estado Islâmico encara o xiismo como uma inovação e inovar no Corão é negar a sua perfeição inicial. (O Estado Islâmico defende que algumas práticas comuns dos xiitas, como a adoração em alguns túmulos de imãs e a autoflagelação pública, não têm base no Corão nem no exemplo do profeta. ) Isto significa que cerca de 200 milhões de xiitas estão marcados para morrer. Tal como os chefes de Estado de todos os países muçulmanos, que elevaram as leis feitas pelos homens acima da sharia, concorrendo ao cargo ou aprovando leis que não foram feitas por Deus. Seguindo a doutrina takfiri, o Estado Islâmico compromete-se a purificar o mundo matando um número elevado de pessoas. A falta de objectividade das notícias vindas do seu território torna desconhecida a verdadeira extensão da chacina, mas os comentários feitos nas redes sociais na região sugerem que as execuções individuais acontecem mais ou menos continuamente, e as execuções em massa são separadas por poucas semanas. Os “apóstatas” muçulmanos são as vítimas mais comuns. Isentos das execuções sumárias estão os cristãos que não resistirem ao novo governo. Baghdadi permite-lhes viver, desde que paguem uma taxa especial, conhecida como jizya, e reconheçam a sua subjugação. A autoridade corânica para esta prática não é questionada. As guerras religiosas na Europa já acabaram há séculos e desde então que os homens deixaram de morrer em larga escala devido a obscuras disputas teológicas. Daí talvez a incredulidade e a negação com que os ocidentais receberam as notícias das práticas e da teologia do Estado Islâmico. Muitos recusam-se a acreditar que este grupo é tão religioso como diz ser, ou tão antiquado e apocalíptico como as suas acções sugerem. O cepticismo é compreensível. No passado, os ocidentais que acusavam os muçulmanos de seguir cegamente as escrituras antigas eram criticados por académicos — nomeadamente o falecido Edward Said — que afirmavam que chamar antiquados aos muçulmanos era geralmente apenas mais uma maneira de os denegrir. Em vez disso, defendiam estes académicos, olhe-se para as condições em que estas ideologias se formam — má governação, mudanças de costumes, a humilhação de viver em terras que apenas são valorizadas pelo seu petróleo. Sem o reconhecimento destes factores, nenhuma explicação para o crescimento do Estado Islâmico ficará completa. Mas se nos focarmos apenas neles e excluirmos a ideologia estamos a incorrer noutro tipo de desvio ocidental: o de que se a ideologia religiosa não quer dizer muito em Washington ou Berlim, seguramente será igualmente irrelevante em Raqqa ou Mossul. Quando um carrasco com uma máscara diz Allahu Akbar enquanto decapita um apóstata, às vezes fá-lo por razões religiosas. Muitas organizações religiosas muçulmanas não radicais foram ao ponto de dizer que o Estado Islâmico é, na verdade, não islâmico. Claro que é reconfortante saber que a vasta maioria dos muçulmanos não tem qualquer interesse em substituir os filmes de Hollywood por execuções públicas como entretenimento nocturno. Mas, como diz o académico de Princeton Bernard Haykel, o grande especialista na teologia do grupo, os muçulmanos que dizem que o Estado Islâmico não é islâmico estão “envergonhados e a ser politicamente correctos, com uma perspectiva cor-de-rosa da sua própria religião”, que negligencia “o que histórica e juridicamente a sua religião exigiu”. Muitas das negações da natureza religiosa do Estado Islâmico, afirma ele, estão enraizadas numa “tradição cristã de um disparatado diálogo inter-religioso”. Todos os académicos a quem fiz perguntas sobre o EI me mandaram falar com Haykel. Na voz que sai da sua barbicha mefistofélica há um ligeiro sotaque estrangeiro de uma localização indefinida. Segundo Haykel, as fileiras do Estado Islâmico estão profundamente impregnadas de fervor religioso. Há citações do Corão por toda a parte. “Mesmo os soldados rasos veiculam estas coisas constantemente”, diz Haykel. “Olham para as câmaras e repetem as suas doutrinas básicas como uma fórmula, e fazem-no a toda a hora. ” Encara a afirmação de que o Estado Islâmico distorceu os textos do islão como uma coisa ridícula, apenas justificada por uma enorme ignorância. “As pessoas querem absolver o islão”, comenta. “É aquele mantra ‘o islão é uma religião de paz’. Como se houvesse uma coisa como ‘o islão’! É aquilo que os muçulmanos fazem e a forma como interpretam os seus textos. ” Esses textos são partilhados por todos os muçulmanos sunitas, não apenas pelo Estado Islâmico. “E estes tipos têm tanta legitimidade como quaisquer outros. ”Todos os muçulmanos reconhecem que as primeiras conquistas de Maomé não foram limpas e que as leis da guerra transmitidas no Corão e nas narrativas sobre a governação do profeta foram calibradas para encaixar numa época turbulenta e violenta. Pelas estimativas de Haykel, os combatentes do EI retrocederam ao islão inicial e estão a reproduzir fielmente as suas regras de guerra. Este comportamento inclui uma série de práticas que os muçulmanos modernos tendencialmente se recusam a admitir que são parte integrante dos textos sagrados. “A escravatura, a crucificação e as decapitações não são uma coisa que uns amalucados [jihadistas] escolheram selectivamente no meio de uma tradição medieval”, comenta. Os combatentes do EI “mergulharam numa tradição medieval e estão a querer trazê-la inteira para a actualidade”. O Corão refere especificamente que a crucificação é um dos poucos castigos permitidos aos inimigos do islão. A taxa aos cristãos encontra um apoio claro no Surah al-Tawbah, o nono capítulo do Corão, que encoraja os muçulmanos a combater os cristãos e judeus “até que estes paguem a jizya com uma submissão voluntária, e se sintam eles próprios subjugados”. O profeta, que todos os muçulmanos consideram exemplar, impôs estas regras e possuía escravos. Os líderes do Estado Islâmico consideram ser seu estrito dever copiar Maomé e reavivaram tradições que há centenas de anos estavam adormecidas. “O que é espantoso neles não é só o seu literalismo, mas também a seriedade com que lêem estes textos”, diz Haykel. “Há uma seriedade obsessiva e constante que os muçulmanos normalmente não têm. ”Até ao aparecimento do Estado Islâmico, nenhum grupo nos últimos séculos tentara uma fidelidade tão radical ao modelo profético para além dos wahhabitas da Arábia do século XVIII. Conquistaram a maior parte do que é agora a Arábia Saudita, e as suas práticas estritas sobreviveram ali numa versão diluída da sharia. Mas Haykel aponta para uma distinção importante entre os grupos: “Os wahhabitas não eram exuberantes na sua violência. ” Estavam rodeados de muçulmanos e conquistaram terras que já eram islâmicas. “O ISIS, pelo contrário, está realmente a querer reavivar o período inicial. ” Os primeiros muçulmanos estavam rodeados de não muçulmanos, e o Estado Islâmico, devido às suas tendências takfiri, considera-se na mesma situação. Se a Al-Qaeda quis recuperar a escravatura, nunca o disse. E porque haveria de querer? O silêncio sobre a escravatura reflecte provavelmente um pensamento estratégico, com a necessidade de atrair a simpatia popular: quando o EI começou a escravizar pessoas, até alguns dos seus apoiantes se retraíram. Ainda assim, o califado continuou a abraçar a escravatura e a crucificação sem se desculpabilizar. “Vamos conquistar a vossa Roma, quebrar os vossos crucifixos e escravizar as vossas mulheres”, prometeu Adnani, o porta-voz, numa das suas ameaças periódicas ao Ocidente. “Se não o fizermos a tempo, então os nossos filhos e netos o farão e venderão os vossos filhos como escravos no mercado de escravos. ”Em Outubro, a Dabiq, a revista do EI, publicou A Ressuscitação da Escravatura Antes da Hora, um artigo que questionava se os yazidis (membros de uma seita antiga curdófona que foi buscar alguns elementos ao islão e que foi atacada por forças do EI no Norte do Iraque) são muçulmanos seculares, e portanto marcados para a morte, ou meros pagãos e por isso prontos para serem escravizados. Um grupo de estudo de académicos do EI reuniu-se, sob ordens do governo, para resolver a questão. Se são pagãos, escreveu o autor anónimo do artigo, “as mulheres e crianças yazidi, [devem ser] divididas de acordo com a sharia entre os que combatem pelo Estado Islâmico que participaram nas operações de Sinjar [no Norte do Iraque]. . . Escravizar as famílias dos kuffar [infiéis] e tomar as suas mulheres como concubinas é um dos aspectos determinados pela sharia e, se alguém o negar ou gracejar, estará a negar ou gracejar dos versículos do Corão e das palavras do profeta. . . e por isso a ser apóstata do islão”. II. TerritórioCalcula-se que dezenas de milhares de muçulmanos estrangeiros terão emigrado para o Estado Islâmico. Houve recrutamentos a partir de França, Reino Unido, Bélgica, Alemanha, Holanda, Austrália, Indonésia, Estados Unidos e outros locais importantes. Muitos foram para lutar e muitos tencionam morrer. Peter R. Neumann, professor no King’s College em Londres, disse-me que as comunicações online têm sido essenciais para espalhar a propaganda e garantir que os recém-chegados sabem em que acreditar. O recrutamento feito pela Internet também tem alargado a demografia da comunidade de jihadistas, permitindo que muçulmanas conservadoras — fisicamente isoladas nas suas casas — cheguem a recrutas, se radicalizem e arranjem transporte para a Síria. Apelando a ambos os géneros, o EI espera construir uma sociedade completa. Em Novembro, fui à Austrália para me encontrar com Musa Cerantonio, um homem de 30 anos que Neumann e outros investigadores identificaram como uma das mais importantes “autoridades espirituais emergentes” na condução de estrangeiros ao Estado Islâmico. Durante três anos era tele-envagelista na Iqraa TV do Cairo, mas saiu depois de a estação ter objectado aos seus apelos frequentes à criação de um califado. Agora prega no Facebook e no Twitter. Cerantonio — um homem grande e amigável com uma atitude livresca — diz que empalidece perante os vídeos das decapitações. Odeia ver a violência, ainda que os apoiantes do Estado Islâmico sejam obrigados a apoiá-la. (E, o que é controverso entre jihadistas, repudia os bombardeamentos suicidas, na medida em que Deus proíbe o suicídio; difere do EI também em mais alguns pontos. ) Tem o tipo de barba que usam alguns fãs mais crescidos do Senhor dos Anéis e a sua obsessão com o apocaliptismo islâmico soa familiar. Parece estar a viver um drama que visto de fora, sob a perspectiva de um estrangeiro, se assemelha a um romance de fantasia medieval, só que com sangue a sério. Em Junho passado, Cerantonio e a mulher tentaram emigrar — não disse para onde (“é ilegal ir para a Síria”, afirmou cautelosamente) — mas foram apanhados no caminho, nas Filipinas, e deportados para a Austrália, que criminalizou as tentativas de aderir ou viajar para o Estado Islâmico e por isso lhe confiscou o passaporte. Está preso em Melbourne, onde é conhecido das autoridades locais. Se for apanhado a facilitar a movimentação de indivíduos para o EI, será preso. Mas para já continua em liberdade — um ideólogo que tecnicamente não está filiado mas que ainda assim, para os outros jihadistas, fala com autoridade sobre a doutrina do Estado Islâmico. Encontrámo-nos para almoçar em Footscray, um subúrbio densamente povoado e multicultural de Melbourne, onde está a sede do Lonely Planet, a editora de guias de viagens. Cerantonio cresceu ali numa família meio irlandesa, meio italiana, da Calábria. Numa rua normal encontramos restaurantes africanos, lojas vietnamitas e jovens árabes a andar de uniforme salafista: barba comprida, camisa longa e calças pelo meio da canela. Cerantonio explica a alegria que sentiu quando Bahgdadi foi declarado califa, a 29 de Junho — e a súbita atracção magnética que a Mesopotâmia começou a exercer sobre ele e os seus amigos. “Estava num hotel [nas Filipinas] e vi a declaração pela televisão”, conta. “E fiquei simplesmente pasmado, do tipo: ‘O que é que estou a fazer fechado neste maldito quarto?’”O último califado foi o Império Otomano, que conheceu o seu apogeu no século XVI e que depois entrou num longo declínio, até o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk, acabar com ele de vez, em 1924. Mas Cerantonio, como muitos apoiantes do Estado Islâmico, não reconhece legitimidade a esse califado, porque não instaurou totalmente e lei islâmica, que exige apedrejamentos e escravatura e amputações, e porque os califas não descendiam directamente da tribo do profeta, a Quraysh. Baghdadi falou detalhadamente da importância do califado no seu sermão em Mossul. Disse que para reavivar a instituição do califado — que há mil anos que não existia, excepto de nome — era uma obrigação. Ele e os seus fiéis foram “céleres a declarar o califado e a colocar um imã” na sua chefia, diz. “Isto é um dever dos muçulmanos — um dever que durante séculos se perdeu. . . Os muçulmanos pecam ao perdê-lo e devem sempre procurar restabelecê-lo. ” Como Bin Laden antes dele, Baghdadi fala com floreados, com referências frequentes às escrituras e com controlo sobre a retórica clássica. Ao contrário de Bin Laden, e desses falsos califas do Império Otomano, ele é Quraysh. O califado, diz-me Cerantonio, não é apenas uma entidade política, mas também um veículo de salvação. A propaganda do EI noticia regularmente as declarações de baya’a (fidelidade) vindas de grupos jihadistas de todo o mundo muçulmano. Cerantonio cita um ditado do profeta: morrer sem prestar fidelidade é morrer jahil (ignorante) e por isso morrer “da morte da descrença”. Os muçulmanos (e também, neste caso, os cristãos) imaginam negociações entre Deus e as almas dos que morrem sem conhecer a verdadeira religião — não são obviamente salvas nem definitivamente condenadas. Da mesma forma, diz Cerantonio, um muçulmano que reconhece um Deus omnipotente e que reza, mas que morre sem jurar fidelidade a um califa legítimo e descurando as obrigações desse juramento, não tem uma vida totalmente islâmica. Refiro que isto significa que a grande maioria dos muçulmanos ao longo da história, e todos os que morreram entre 1924 e 2014, tiveram uma morte de descrença. Cerantonio assentiu com firmeza. “Vou ao ponto de dizer que o islão foi restabelecido” pelo califado. Pergunto-lhe sobre o seu próprio baya’a e ele rapidamente me corrige: “Eu não disse que iria jurar fidelidade. ” Segundo a lei australiana, recorda-me ele, é ilegal prestar baya’a ao Estado Islâmico. “Mas concordo que Baghdadi preenche os critérios”, continua. “Eu vou pestanejar para si, e você depreende o que quiser. ”Ser califa implica cumprir uma série de condições impostas pela lei islâmica — ser adulto de ascendência quraysh; ter legitimidade moral e integridade física e mental; e ter amr, ou autoridade. Este último critério, diz Cerantonio, é o mais difícil de cumprir e requer que o califa tenha território no qual possa exercer a lei islâmica. O EI de Baghdadi conseguiu isso muito antes de 29 de Junho, diz Cerantonio, e assim que o fez, um convertido ocidental que faz parte da hierarquia — descreve-o como “uma espécie de líder” — começou a murmurar sobre a obrigação religiosa de declarar um califado. Ele e outros falaram discretamente para os que estavam no poder, dizendo-lhes que adiar isso por mais tempo seria pecaminoso. Cerantonio diz que apareceu uma facção preparada para combater o grupo de Baghdadi caso este adiasse ainda mais. Prepararam uma carta para vários membros poderosos do ISIS dando conta do seu desagrado pelo falhanço de nomear um califa, mas foram apaziguados por Adnani, o porta-voz, que partilhou com eles um segredo: que o califado já tinha sido declarado, muito antes do anúncio público. Eles tinham o seu califa legítimo e nessa altura só havia uma opção: “Se ele é legítimo, é preciso dar-lhe o baya’a”, afirma Cerantonio. Depois do sermão de Julho de Baghdadi, uma série de jihadistas começaram a chegar diariamente à Síria com uma motivação renovada. Jürgen Todenhöfer, um autor alemão e antigo político que visitou o Estado Islâmico em Dezembro, deu conta da chegada de cem combatentes num centro de recrutamento na fronteira turca em apenas dois dias. O seu relato, entre outros, sugere uma afluência constante de estrangeiros, prontos para desistir de tudo na sua terra por um vislumbre do paraíso no pior sítio do mundo. Em Londres, uma semana antes do meu almoço com Cerantonio, encontrei-me com três antigos membros de um grupo islamista chamado Al Muhajiroun (Os Emigrantes): Anjem Choudary, Abu Baraa e Abdul Muhid. Todos manifestaram o seu desejo de emigrar para o Estado Islâmico, tal como já tinham feito muitos dos seus colegas, mas as autoridades confiscaram os seus passaportes. Como Cerantonio, encaram o califado como o único governo legítimo da Terra, embora nenhum tenha confessado ter já jurado obediência. A principal razão pela qual quiseram encontrar-se comigo foi para me explicar aquilo que o EI defende e como as suas políticas reflectem a lei de Deus. Choudary, de 48 anos, é o antigo líder do grupo. Aparece frequentemente nas notícias por cabo, porque é uma das poucas pessoas que os produtores podem agendar para uma entrevista e que defenderá o EI a vociferar até que o microfone seja cortado. No Reino Unido, tem fama de ser um opinativo desagradável, mas ele e os seus discípulos acreditam sinceramente no Estado Islâmico e, em assuntos de doutrina, falam com a mesma voz. Choudary e os outros destacam-se nos feeds dos residentes do EI no Twitter, e Abu Baraa mantém um canal no YouTube para responder a perguntas sobre a sharia. Desde Setembro que as autoridades têm investigado os três homens suspeitos de apoiar o terrorismo. Por causa desta investigação, tiveram de se encontrar comigo em separado: a comunicação entre eles violaria os termos da sua liberdade condicional. Mas falar com eles foi como falar com uma única pessoa, com máscaras diferentes. Choudary foi ter a uma loja de doces no subúrbio de Ilford, no Leste de Londres. Estava bem vestido, com uma túnica azul que lhe chegava praticamente aos tornozelos, e bebericava um Red Bull enquanto falava. Antes do califado, “talvez 85% da sharia estava ausente das nossas vidas”, diz-me. “Estas leis estavam suspensas até termos o khilafa” — um califado — “e agora temos um. ” Sem um califado, por exemplo, vigilantes individuais não são obrigados a amputar as mãos dos ladrões que apanham em flagrante. Mas criando-o, esta lei, tal como um gigantesco corpo de outra jurisprudência, despertará subitamente. Em teoria, todos os muçulmanos são obrigados a emigrar para o país onde o califa está a aplicar estas leis. Um dos estudantes premiados de Choudary, um convertido do hinduísmo chamado Abu Rumaysah, fugiu da polícia e levou a sua família, de cinco pessoas, de Londres para a Síria, em Novembro. No dia em que me encontrei com Choudary, Abu Rumaysah tinha posto no Twitter uma fotografia de si próprio com uma kalashnikov num braço e o seu filho recém-nascido no outro. Hashtag: #GenerationKhilafah. O califa é obrigado a implementar a sharia. Qualquer desvio levará aqueles que lhe juraram fidelidade a informá-lo em privado do seu erro e, em casos extremos, caso ele persista, a excomungá-lo e substituí-lo. (“Fui contagiado com esta grande questão, contagiado com esta responsabilidade e é uma responsabilidade pesada”, disse Baghdadi no seu sermão. ) Em troca, o califa exige obediência — e aqueles que insistem em apoiar governos não muçulmanos, depois de serem avisados e educados sobre o seu pecado, são considerados apóstatas. Choudary afirma que a sharia tem sido mal compreendida por ser aplicada apenas parcialmente por regimes como a Arábia Saudita, apesar de decapitar assassinos e cortar as mãos a ladrões. “O problema”, explica, “é que quando lugares como a Arábia Saudita apenas aplicam o código penal, e não providenciam a justiça económica e social da sharia — o pacote completo —, estão apenas a gerar ódio contra a sharia. ” O pacote completo, diz, incluiria habitação gratuita, alimentação e roupas para todos, sendo que qualquer pessoa que quiser enriquecer através do trabalho pode, evidentemente, fazê-lo. Abdul Muhdi, de 32 anos, segue a mesma linha. Chega ao restaurante local onde marcámos encontro vestido como um mujahedin (combatente) puro: barba desalinhada, boné afegão, uma carteira pendurada na roupa presa ao que parece ser um coldre. Quando nos sentamos, mostra-se desejoso de falar sobre o apoio social. O Estado Islâmico pode ter castigos de estilo medieval para crimes morais (chicotadas por embriaguez ou fornicação, apedrejamento para adultério), mas o seu programa de assistência social é, no mínimo em alguns aspectos, progressista. A assistência social é gratuita, declara. (“Não é também gratuita no Reino Unido?”, pergunto-lhe. “Na realidade não”, responde. “Alguns aspectos não estão cobertos, como a visão. ”) Esta assistência social não é uma política escolhida pelo EI, adianta. É uma política obrigatória inerente à lei de Deus. III. O ApocalipseTodos os muçulmanos reconhecem que Deus é o único que sabe o futuro. Mas também concordam que nos ofereceu um vislumbre, no Corão e nas palavras do profeta. O Estado Islâmico difere de praticamente todas as outras correntes actuais do movimento jihadista ao acreditar que o futuro está traçado nas escrituras divinas e é a sua personagem central. É aqui que o EI se distingue claramente dos seus antecessores, e é mais claro quanto à natureza religiosa da sua missão. Em traços gerais, a Al-Qaeda comporta-se como um movimento político clandestino, tendo sempre em vista objectivos globais — a expulsão dos não muçulmanos da península Arábica, a abolição do Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras muçulmanas. O EI tem a sua quota-parte de preocupações mundanas (incluindo, nas terras onde governa, recolher o lixo e manter a água a correr), mas o Fim dos Tempos é o leitmotiv da sua propaganda. Bin Laden raramente mencionou o apocalipse e quando o fez deu a entender que quando chegasse esse momento de castigo divino ele estaria morto há muito tempo. “Bin Laden e Zawahiri são de famílias sunitas da elite que olhavam com sobranceria para este tipo de especulação e achavam que era uma coisa do povo”, diz Will McCants do Brookings Institution e que está a escrever um livro sobre o pensamento apocalíptico do EI. Durante os últimos anos da ocupação americana do Iraque, os fundadores do EI viam, pelo contrário, sinais do fim dos tempos por toda a parte. Anteciparam que, no prazo de um ano, chegaria o Mahdi, uma figura messiânica que levaria os muçulmanos à vitória antes do fim do mundo. McCants diz que uma responsável islamista importante foi ter com Bin Laden em 2008 para o avisar de que o grupo estava a ser liderado por homens que “falavam a toda a hora do Mahdi e que tomavam decisões estratégicas” baseadas na data em que eles pensavam que o Mahdi iria chegar. “A Al-Qaeda teve de escrever-lhes a dizer: ‘Parem com isso’. ”Para alguns verdadeiros crentes — o tipo de crentes que anseia por batalhas épicas do bem contra o mal —, as visões de banhos de sangue do apocalipse preenchem necessidades psicológicas profundas. De todos os apoiantes do EI que conheci, Cerantonio, o australiano, era aquele que mostrava mais interesse no apocalipse e de como seriam os dias que restavam ao EI — e ao mundo. Uma parte dessa previsão é nova para ele e ainda não tem o estatuto de doutrina. Mas outra parte baseia-se em fontes sunitas mainstream e aparecem em toda a propaganda do EI. Esta inclui a crença de que haverá apenas 12 califas legítimos e que Baghdadi é o oitavo; que os exércitos de Roma se juntarão para combater contra os exércitos do islão no Norte da Síria; e que o último confronto do islão com um anti-Messias será em Jerusalém depois de uma nova conquista islâmica. O EI atribuiu uma grande importância à cidade síria de Dabiq, perto de Alepo. Deu o seu nome à sua revista de propaganda e celebrou intensamente quando (a grande custo) conquistou os planaltos sem valor estratégico de Dabiq. O profeta terá dito que será aqui que os exércitos de Roma irão acampar. Os exércitos do islão encontrar-se-ão com eles, e Dabiq será a Waterloo de Roma, ou a sua Antietam [a batalha mais sangrenta da guerra civil americana]. “Dabiq é basicamente uma zona de cultivo agrícola”, twittou recentemente um apoiante do EI. “Conseguimos imaginar grandes batalhas ali. ” A propaganda do EI fala com ansiedade deste acontecimento e dá a entender que ele chegará em breve. A revista cita Zarqawi: “A fagulha foi acesa aqui no Iraque e a sua chama continuará a intensificar-se. . . até incendiar os exércitos dos cruzados em Dabiq. ” Um vídeo recente mostra imagens de filmes de guerra de Hollywood passados na época medieval — talvez porque muitas das profecias referem que os exércitos estarão montados a cavalo e a carregar armas antigas. Agora que tomou Dabiq, o EI espera a chegada do exército inimigo ali, cuja derrota vai iniciar a contagem decrescente para o apocalipse. Os media ocidentais deixam escapar frequentemente as referências a Dabiq feitas nos vídeos do EI e focam-se em vez disso nas cenas vívidas das decapitações. “Aqui estamos nós a enterrar o primeiro cruzado americano em Dabiq, esperando ansiosamente que chegue o resto dos vossos exércitos”, dizia um carrasco de máscara num vídeo publicado em Novembro, onde se mostrava a cabeça decapitada de Peter (Abdul Rahman) Kassig, o assistente humanitário que estava sequestrado há mais de um ano. Durante os confrontos no Iraque em Dezembro, depois de mujahedin terem dito (talvez incorrectamente) que viram soldados americanos em combate, as contas de Twitter do EI irromperam em regozijo, como anfitriões que esperam com excesso de entusiasmo os convidados para uma festa. A narrativa profética que prevê a batalha de Dabiq refere-se ao inimigo como Roma. Quem é “Roma”, agora que o Papa não tem exército, é um assunto em debate. Cerantonio sustenta que Roma significa o Império Romano do Oriente, que tinha a sua capital naquela que agora é Istambul. Devemos pensar em Roma como a República da Turquia — a mesma república que acabou com o último califado, há 90 anos. Outras fontes do EI sugerem que Roma pode significar qualquer exército de infiéis e que os americanos encaixam perfeitamente nessa designação. Depois desta batalha de Dabiq, diz Cerantonio, o califado irá expandir-se e tomar Istambul. Há quem acredite que depois cobrirá a Terra inteira, mas Cerantonio sugere que esta vaga possa nunca passar para além do Bósforo. Um anti-Messias, conhecido na literatura pós-apocalíptica como Dajjal, virá da região de Khorasan, no Leste do Irão, e matará muitos combatentes do califado, até ficarem apenas cinco mil, encurralados em Jerusalém. E no momento em que Dajjal estiver prestes a acabar com eles, Jesus — o segundo profeta mais venerado no islão — voltará à Terra, expulsará Dajjal e conduzirá os muçulmanos à vitória. “Só Deus sabe” se os exércitos do EI serão avisados, diz Cerantonio. Mas ele tem esperança que sim. “O profeta disse que um dos sinais da chegada iminente do Final dos Tempos é que as pessoas deixam de falar do Final dos Tempos durante um tempo”, diz. “Se for agora às mesquitas, verá que os pregadores estão calados sobre este assunto. ” Sob este prisma, os reveses do EI não têm qualquer significado, uma vez que de qualquer forma Deus tinha contemplado a sua quase destruição. O Estado islâmico tem os seus melhores e piores dias pela frente. IV. O combateO purismo ideológico do Estado Islâmico tem uma virtude: permite-nos prever algumas das suas acções. Osama bin Laden raramente foi previsível. Terminou a sua primeira entrevista televisiva de forma encriptada. Peter Arnett, da CNN, perguntou-lhe: “Quais são os seus planos para o futuro?” e Bin Laden respondeu: “Irá vê-los e ouvir falar deles nos media, se Deus quiser. ” Pelo contrário, o EI fala abertamente dos seus planos — não de todos, mas o suficiente para que, se ouvirmos com atenção, se possa deduzir como projecta governar e expandir-se. Em Londres, Choudary e os seus discípulos fizeram descrições detalhadas de como o EI deve conduzir a sua política externa, agora que é um califado. Já assumiu aquilo a que a lei islâmica chama “jihad ofensiva”, a expansão forçada para países governados por não muçulmanos. “Estamos só a defender-nos”, afirma Choudary; sem um califado, a jihad ofensiva é apenas um conceito inaplicável. Mas fazer a guerra para expandir o califado é um dever fundamental do califa. Choudary refere que as leis da guerra segundo as quais o EI se rege são de misericórdia e não de brutalidade. Diz que o Estado tem a obrigação de aterrorizar os seus inimigos — uma ordem sagrada para lhes pregar sustos de morte com decapitações e crucificações e escravatura de mulheres e crianças — porque fazê-lo acelera a vitória e evita o conflito prolongado. O seu colega Abu Baraa explica que a lei islâmica apenas permite tratados de paz temporários, não mais duradouros do que uma década. Da mesma forma, aceitar uma fronteira é um anátema, tal como disse o profeta e é ecoado pelos vídeos de propaganda. Se o califa consente um tratado de paz prolongado ou uma fronteira permanente, estará a errar. Os tratados de paz temporários são renováveis, mas poderão não ser aplicados a todos os inimigos de uma só vez: o califa tem de lançar a jihad pelo menos uma vez por ano. Não pode descansar, ou estará a pecar. Uma das comparações com o Estado Islâmico são os khmer vermelhos, que mataram cerca de um terço da população do Cambodja. Mas o Khmer Vermelho ocupou o assento do Cambodja na ONU. “Isso não é permitido”, comenta Abu Baraa. “Enviar um embaixador para a ONU é reconhecer uma outra autoridade que não Deus. ” Este tipo de diplomacia é shirk, ou politeísmo, argumenta, e seria justificação para declarar o califa herege e substituí-lo. Mesmo o apoio ao califado por via democrática, através de eleições, por exemplo, seria shirk. É difícil dizer quão prejudicado o EI será pelo seu radicalismo. O sistema internacional moderno, nascido em 1648 do tratado de paz de Vestefália, assenta na vontade de cada Estado em reconhecer fronteiras, por muito que estejam relutantes. Para o EI, esse reconhecimento é ideologicamente suicida. Outros grupos islâmicos, como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, sucumbiram aos princípios da democracia e à possibilidade de um convite para a comunidade das nações, completado com um assento na ONU. A negociação e a cedência também funcionaram, algumas vezes, com os taliban. (Sob o regime taliban, o Afeganistão trocou embaixadores com a Arábia Saudita, Paquistão e os Emirados Árabes Unidos, um gesto que invalidou a autoridade dos taliban aos olhos do Estado Islâmico. ) Para o ISIS, estas não são opções, mas actos de apostasia. Os Estados Unidos e os seus aliados reagiram ao Estado Islâmico com atraso e aparente estupefacção. As ambições e a estratégia eram evidentes nos primeiros discursos e nas pistas deixadas nas redes sociais já desde 2011, quando era apenas um dos muitos grupos terroristas na Síria e no Iraque e ainda não tinha cometido atrocidades em massa. Adnani, o porta-voz, disse então aos seguidores do grupo que a ambição era “restaurar o califado islâmico” e evocou o apocalipse, afirmando: “Só restam alguns dias. ” Baghdadi já se tinha apresentado como “comandante dos fiéis”, um título normalmente reservado aos califas, em 2011. Em Abril de 2013, Adnani declarou que o movimento estava “pronto para redesenhar o mundo segundo a metodologia profética do califado”. Em Agosto de 2013, afirmou: “O nosso objectivo é criar um estado islâmico que não reconheça fronteiras, segundo a metodologia profética. ” Nessa altura, o grupo tinha já tomado Raqqa, uma capital provincial da Síria de cerca de 500 mil pessoas, e estava a atrair números significativos de combatentes estrangeiros que tinham ouvido a sua mensagem. Se tivéssemos identificado mais cedo as intenções do EI e percebido que o vazio no Iraque e na Síria lhe daria amplo espaço para as concretizar, teríamos no mínimo forçado o Iraque a fortalecer a sua fronteira com a Síria e feito acordos preventivamente com os seus líderes sunitas. Isso teria no mínimo evitado o efeito da propaganda electrizante criado pela declaração de um califado logo a seguir à conquista da segunda cidade iraquiana. Mas, há pouco mais de um ano, Obama declarou à revista New Yorker que considerava o ISIS o parceiro mais fraco da Al-Qaeda. “Não basta uma equipa juvenil vestir o equipamento dos Lakers para se tornar um Kobe Bryant”, disse o Presidente. A nossa incapacidade de perceber a diferença entre o EI e a Al-Qaeda, e as diferenças essenciais entre os dois, levou a decisões perigosas. No Outono passado, para dar só um exemplo, o Governo americano aprovou um plano desesperado para salvar a vida a Peter Kassig. O plano facilitava — e até exigia — a interacção entre algumas das figuras fundadoras do EI e da Al-Qaeda, e dificilmente poderia ter sido mais debilmente improvisado. Nele sugeria-se a aproximação de Abu Muhammad al-Maqdisi, mentor de Zarqawi e um nobre da Al-Qaeda, a Turki al-Binali, o principal ideólogo do EI e antigo aluno de Maqdisi, apesar de estarem afastados devido às críticas de Maqdisi ao Estado Islâmico. Maqdisi já tinha apelado ao EI por clemência para Alan Henning, o britânico que entrou na Síria para prestar ajuda a crianças. Em Dezembro, o The Guardian noticiou que o Governo americano, através de um intermediário, pedira a Maqdisi que intercedesse por Kassig junto do EI. Maqdisi vivia então livremente na Jordânia, mas tinha ficado proibido de comunicar com terroristas no estrangeiro e estava a ser vigiado de perto. Depois de a Jordânia ter dado autorização aos EUA para apresentar Maqdisi a Binali, Maqdisi comprou um telefone com dinheiro americano e foi autorizado a comunicar com o seu antigo aluno durante alguns dias, até o Governo jordano acabar com as conversas e as usar como pretexto para o prender. Uns dias depois, a cabeça decapitada de Kassig aparecia num vídeo da Dabiq. Maqdisi é frequentemente gozado no Twitter pelos fãs do EI, e a Al-Qaeda é também mal vista por se recusar a reconhecer o califado. Cole Bunzel, um académico que estuda a ideologia do Estado Islâmico, leu a opinião de Maqdisi sobre a situação de Henning e achou que ela iria acelerar a sua morte, tal como a de outros reféns. “Se eu estivesse preso pelo Estado Islâmico e Maqdisi dissesse que eu não deveria ser morto, diria adeus à vida”, diz-me Bunzel. A morte de Kassig foi trágica, mas o êxito do plano teria sido uma tragédia ainda maior. Uma reconciliação entre Maqdisi e Binali teria começado a sarar a principal discórdia entre as duas maiores organizações jihadistas do mundo. É possível que o governo apenas quisesse atrair Binali para obter informação secreta ou para ser assassinado. (Várias tentativas para que o FBI comentasse falharam. ) Ainda assim, a decisão de juntar os dois maiores antagonistas dos Estados Unidos revela uma surpreendente falta de senso. Envergonhados pela nossa indiferença inicial, estamos agora a conhecer o Estado Islâmico através dos combates no Curdistão e no Iraque, com ataques aéreos regulares. Essa estratégia não desalojou o Estado Islâmico de nenhum dos seus territórios principais, apesar de ter evitado ataques directos a Bagdad e Erbil massacrando xiitas e curdos. Alguns observadores pediram uma resposta mais forte, incluindo algumas das vozes previsíveis da direita intervencionista (Max Boot, Frederick Kagan), que apelaram ao envio de dezenas de milhares de soldados americanos. Não se deve afastar demasiado depressa este cenário: uma organização genocida está à porta de casa das suas vítimas e diariamente comete atrocidades no território que já controla. Uma das formas de quebrar o feitiço do EI nos seus seguidores seria superá-lo militarmente e ocupar as partes da Síria e do Iraque que estão agora sob domínio do califado. A Al-Qaeda não pode ser erradicada porque consegue sobreviver, como uma barata, ficando na clandestinidade. O Estado Islâmico não. Se perder o poder nos seus territórios na Síria e no Iraque, deixará de ser um califado. Os califados não podem existir como movimentos clandestinos, porque necessitam da autoridade territorial: acabe-se com o território que comandam e todos os votos de obediência deixam de estar em vigor. Claro que alguns freelancers poderão continuar a apelar ao combate contra o Ocidente e a decapitar inimigos. Mas o valor propagandístico do califado desapareceria e com ele o alegado dever religioso de imigrar para o servir. Se os EUA invadissem, a obsessão do EI pela batalha de Dabiq faz depreender que seria necessário enviar vastos recursos para lá, como se fosse uma batalha convencional. Se o Estado investisse fortemente em Dabiq e depois a perdesse, poderia nunca mais recuperar. Mas os riscos de uma escalada são enormes. O maior defensor de uma invasão americana é o próprio Estado Islâmico. Os vídeos provocatórios, nos quais um carrasco de máscara negra se dirige ao Presidente Obama pelo nome, destinam-se claramente a arrastar os Estados Unidos para a guerra. Uma invasão seria uma enorme vitória da propaganda para os jihadistas em todo o mundo: independentemente de terem dado a baya’a ao califa, todos acreditam que os EUA querem lançar uma cruzada moderna e matar os muçulmanos. Mais uma invasão e ocupação confirmariam essas suspeitas e aumentariam o recrutamento. Se acrescentarmos a incompetência dos esforços anteriores enquanto ocupantes, temos razões para estar relutantes. O crescimento do ISIS, afinal, só se verificou porque a ocupação anterior abriu espaço para Zarqawi e os seus fiéis. Quem sabe quais seriam as consequências de outro trabalho mal feito?Tendo em conta tudo o que sabemos sobre o Estado Islâmico, a melhor das opções militares será continuar a sangria lenta e a guerra por procuração. Nem os curdos nem os xiitas jamais se subjugarão nem controlarão o centro sunita da Síria e do Iraque — são odiados ali e também não têm qualquer desejo de uma aventura dessas. Mas podem impedir o Estado Islâmico de cumprir o seu desígnio de expansão. E por cada mês que falha em expandir-se fica menos parecido com o estado conquistador do profeta Maomé. Será mais um estado do Médio Oriente que não consegue trazer prosperidade ao seu povo. O custo humanitário da existência do EI é elevado. Mas a sua ameaça para os EUA é menor do que pode sugerir o seu permanente confronto com a Al-Qaeda. O ponto central da Al-Qaeda é raro entre os grupos jihadistas por se focar no “inimigo distante” (o Ocidente); a maior parte das preocupações da maioria dos jihadistas está mais perto de casa. Isso é especialmente verdade no caso do Estado Islâmico, precisamente por causa da sua ideologia. Vê inimigos a toda a volta e, apesar de a sua liderança não querer bem aos EUA, a aplicação da sharia no califado e a expansão para os territórios contíguos são prioritários. Baghdadi afirmou-o directamente: em Novembro, declarou aos seus agentes sauditas que “lidassem com os rafidah [xiitas] primeiro. . . com os al-sulh depois [apoiantes sunitas da monarquia saudita]. . . antes dos cruzados e das suas bases”. Os combatentes estrangeiros (e as suas mulheres e crianças) têm viajado para o califado com bilhetes só de ida: querem viver sob o domínio da sharia e muitos desejam o martírio. Recorde-se que a doutrina exige que os crentes vivam no califado se lhes for possível. Um dos vídeos menos sangrentos do ISIS mostra um grupo de jihadistas a queimar os seus passaportes franceses, britânicos e australianos. Isto seria um gesto excêntrico para alguém que pretendesse regressar para se fazer explodir no Louvre ou tornar refém mais uma loja de chocolates em Sydney. Alguns “lobos solitários” que apoiam o EI atacaram alvos ocidentais e mais ataques surgirão. Mas a maioria são amadores frustrados, incapazes de emigrar para o califado por terem os passaportes confiscados ou outros problemas. Ainda que o EI felicite estes ataques, e fá-lo na sua propaganda, ainda não planeou nem financiou nenhum. (O ataque ao Charlie Hebdo em Paris, em Janeiro, foi sobretudo uma operação da Al-Qaeda. ) Durante a sua visita a Mossul, em Dezembro, Jürgen Todenhöfer entrevistou um jihadista alemão e perguntou-lhe se algum dos seus camaradas tinha regressado à Europa para lançar ataques. O jihadista falou dos retornados não como soldados mas como desistentes. “O facto é que os que regressam do Estado Islâmico devem arrepender-se do seu regresso”, afirmou. “Espero que reavaliem a sua religião. ”Se for adequadamente contido, o EI fará a sua própria implosão. Nenhum país é seu aliado e a sua ideologia garante que assim continuará. A terra que controla, apesar de poder expandir-se, é praticamente desabitada e pobre. À medida que estagnar ou que for encolhendo, o argumento de que pratica a vontade de Deus e é o agente do apocalipse perderá força e poucos crentes chegarão. E quanto mais notícias de pobreza saírem para fora, mais os movimentos islamistas radicais nos outros sítios ficarão desacreditados. Ninguém tentou tanto aplicar a sharia de forma tão estrita através da violência, e é isto que acontece. Mesmo assim, é pouco provável que a morte do Estado Islâmico seja rápida e as coisas podem ainda correr muito mal: se o EI obtiver a obediência da Al-Qaeda — aumentando de uma assentada a sua base —, poderá tornar-se a pior força a que já assistimos. O fosso entre o EI e a Al-Qaeda tem crescido nos últimos meses; a edição de Dezembro da Dabiq trazia um relato extenso de um desertor da Al-Qaeda que descrevia o seu grupo como corrupto e ineficaz e Zawahiri como um líder distante e desadequado. Mas devemos estar atentos a qualquer aproximação. Sem uma catástrofe como esta, ou a ameaça de o EI tomar Erbil, uma grande invasão terrestre certamente pioraria a situação. V. DissuasãoSeria fácil, quase uma desculpa, dizer que o problema do Estado Islâmico é “um problema com o islão”. A religião permite muitas interpretações e os apoiantes do EI estão moralmente agarrados à que escolheram. E, contudo, denunciar pura e simplesmente o EI como anti-islâmico pode ser contraproducente, sobretudo se quem ouve a mensagem conhece os textos sagrados e vê neles justificadas muitas das práticas do califado. Os muçulmanos podem dizer que, agora, a escravatura não é legítima e que a crucificação é reprovável na actual conjuntura histórica. Isto é, de facto, o que muitos dizem. Mas não podem condenar liminarmente a escravatura ou a crucificação sem contradizer o Corão e o exemplo do profeta. “O único terreno seguro para os que se opõem [ao EI] é clamarem que alguns textos e ensinamentos do islão perderam a validade”, diz Bernard Haykel. E isso seria abjuração. A ideologia proposta pelo Estado Islâmico exerce uma forte influência junto de uma certa camada da população. Perante ela, as hipocrisias e inconsistências da vida pura e simplesmente desaparecem. Musa Cerantonio e os salafistas que conheci em Londres são assertivos: nenhuma das questões que lhes coloquei os deixou a gaguejar. Foram muito eloquentes no seu sermão e, se aceitarmos as suas premissas, convincentes até. Dizer que são anti-islâmicos parece-me que é estar a desafiá-los para uma discussão em que saem a ganhar. Se eles fossem somente uns maníacos fala-barato, podia vaticinar que o seu movimento implodia à medida que os seus psicopatas se fazem detonar e, um a um, caem redondos no chão. Mas estes homens falavam com uma precisão académica que só me fazia lembrar que estava perante licenciados de peso. Até gostei de estar na companhia deles, e isso deixou-me com tanto medo como tudo o resto. Os não muçulmanos não podem dar lições aos muçulmanos sobre como devem praticar a religião. Mas, entre os muçulmanos, este não é um debate de agora. “Temos de ter padrões”, disse-me Anjem Choudary. “Qualquer um pode dizer-se muçulmano mas se acredita na homossexualidade ou em beber álcool, então não é muçulmano. Também não existem vegetarianos não praticantes. ”Há, contudo, uma outra variante do islão que oferece uma alternativa de linha dura ao EI — igualmente intransigente, mas com resultados opostos. É uma alternativa que já provou ter o seu encanto para os muitos muçulmanos amaldiçoados, ou abençoados, na ânsia psicológica de assistirem a qualquer mudança de vírgula na implementação dos textos sagrados tal como o eram nos primeiros tempos do islamismo. Os que apoiam o EI sabem bem como deve reagir aos muçulmanos que ignoram partes do Corão: com o takfir [excomunhão] e ridicularizando-os. Mas sabem também que outros muçulmanos lêem tão assiduamente o Corão como eles próprios e representam uma séria ameaça à sua ideologia. Baghdadi é salafista. O termo salafi foi deturpado e isso deve-se, em parte, aos patifes que têm entrado na guerra com a bandeira salafista hasteada. Mas a maioria dos salafistas não é jihadista e adere a seitas que rejeitam o Estado Islâmico. Como refere Haykel, estão comprometidos em expandir o Dar al-islam, a terra do islão, ainda que, eventualmente, tenham de pôr em prática coisas monstruosas como a escravatura e a amputação — mas no futuro. As suas prioridades são a purificação pessoal e o cumprimento dos ditames religiosos. E acreditam que qualquer coisa que os desvie desse caminho — que dê origem a guerras e a distúrbios que desfaçam vidas ou impeçam a prossecução dos estudos — é proibido. Eles vivem no meio de nós. No último Outono, fui a Filadélfia visitar a mesquista de Breton Pocuis, um imã que dá pelo nome de Abdullah, de 28 anos. A sua mesquita fica na fronteira entre um bairro onde reina o crime, o Northern Liberties, e uma área gentrificada a que poderíamos chamar Dar al-Hipster, na qual até a sua barba passa despercebida. Pocius, um polaco de Chicago educado no catolicismo, converteu-se há 15 anos. Tal como Cerantonio, também ele fala como uma alma veterana, mostrando a sua familiaridade profunda com os textos antigos e o seu compromisso com os ensinamentos, na crença de que é neles que reside a salvação ao fogo dos infernos. Quando nos encontramos num café das redondezas, ele traz consigo um trabalho académico em árabe sobre o Corão e um livro de auto-ajuda para aprender japonês. Estava a preparar o seu sermão sobre as responsabilidades e obrigações da paternidade para os cerca de 150 fiéis da sua assembleia das sextas-feiras. Diz Pocius que o seu principal objectivo é encorajar os fiéis da mesquita a que conduzam as suas vidas de uma forma halal [aquilo que é permitido ou legal à luz da lei islâmica]. Mas o crescimento do EI têm-no forçado a equacionar determinadas questões políticas que à partida estariam longe da cabeça de qualquer salafista. “A maior parte das coisas que eles dizem sobre como devemos orar ou nos vestir é tal e qual o que transmito à minha masjid [mesquita]. Mas quando abordam questões sobre convulsões sociais, parecem o Che Guevara. ”Quando Baghdadi apareceu, Pocius adoptou o slogan “Não é o meu khalifa”. “Nos tempos do profeta, muito sangue foi derramado”, diz-me, “e ele sabia que o caos seria o pior que poderia acontecer a todos, sobretudo dentro da umma [comunidade]. ” Por isso, diz Pocius, a atitude correcta de um salafista não é semear a discórdia aderindo a facções e declarando os outros muçulmanos apóstatas. Pelo contrário, Pocius e a maioria dos salafistas acham que os muçulmanos se deveriam afastar da política. Estes salafistas reservados, como são conhecidos, concordam com o que diz o Estado Islâmico de que a única lei é a de Deus e rejeitam o voto e a criação de partidos políticos. Mas interpretam o ódio que o Corão tem ao caos e à discórdia como um pedido para que sigam o líder, seja ele qual for, incluindo os que são verdadeiros pecadores. “Diz o profeta que, enquanto o líder não ceder claramente ao kufr [descrença], lhe devemos toda a obediência”, explica-me Pocius, dizendo que os clássicos “livros de credo” alertam todos para o perigo da revolta social. Os salafistas reservados estão completamente proibidos de separar um muçulmano de outro, nomeadamente pela excomunhão em massa. Viver sem baya’a, diz Pocius, faz de uma pessoa um ignorante, ou incivilizado. Mas a baya’a não significa lealdade imediata e cega a um califado, e muito menos a Abu Bakr al-Baghdadi. De uma forma mais alargada, pode querer dizer, isso sim, lealdade a um contrato social religioso e compromisso com a comunidade muçulmana, seja ela liderada por um califa ou não. Estes salafistas preconizam que os muçulmanos devem conduzir as suas energias para o aperfeiçoamento da vida privada, incluindo a oração, os rituais e a higiene. E, assim como os judeus ultraortodoxos debatem se no Sabath e à boa maneira kosher faz sentido rasgar papel higiénico em pedaços [uma das regras na preparação do descanso semanal do judaísmo] — e será que a moda da “roupa rasgada” também conta? —, eles passam uma enorme quantidade de tempo a avaliar se têm as calças demasiado compridas ou se as suas barbas estão bem aparadas num lado mas desgrenhadas no outro. Com toda esta exigente devoção, Deus, assim o crêem, irá retribuir-lhes em força e em número, e talvez um califado possa emergir. Só então, os muçulmanos terão a sua vingança, e sim, chegarão a uma vitória gloriosa em Dabiq. Mas Pocius cita alguns teólogos modernos salafistas que asseguram que um califado não vem se não da vontade indómita de Deus. E isso é algo com que o Estado Islâmico irá com toda a certeza concordar, acrescentando que Deus já nomeou Baghdadi. A réplica de Pocius pretende apelar à humildade. E cita Abdullah Ibn Abbas, um dos companheiros do profeta, que se sentou com dissidentes e lhes perguntou como poderiam ter o descaramento, sendo eles uma minoria, de afirmar que a maioria estava errada. A dissidência propriamente dita, assim como o derramamento de sangue e a divisão da umma, é proibida. De certa maneira, até a constituição do califado de Baghdadi contradiz todas as expectativas, diz. “É a Alá que cabe estabelecer o khilafa e envolveria consenso dos eruditos de Meca e Medina. Não foi isso que aconteceu. O EI apareceu vindo do nada. ”Mas esta é uma conversa que o EI não aceita, e os seus seguidores são sarcásticos nos tweetts sobre os salafistas reservados. Gozam chamando-lhes “salafistas da menstruação” por causa dos seus obscuros julgamentos sobre quando as mulheres estão limpas ou não, bem como sobre outros aspectos menos prioritários da vida. “Do que precisamos agora é de uma fatwa [decreto] que nos indique como é haram [proibido] andar de bicicleta em Júpiter”, twittou um deles de forma muito seca. “É nisto que os eruditos se deviam focar. Pressionar mais do que andarem a frisar a Umma. ” Já Anjem Chouldary diz que não há maior pecado do que a usurpação da lei de Deus e que as posições extremistas em prol do monoteísmo não devem ser vistas como fraqueza. Os Estados Unidos não apoiam de modo nenhum Pocius, ainda que este se apresente como alternativa de peso ao jihadismo. Tendem inclusive a desacreditá-lo. E ele é amargo e diz que a América o trata “menos do que a um cidadão”. (Alega que o governo infiltrou espiões na sua mesquita e assediou a mãe no trabalho colocando-lhes questões sobre ele ser um potencial terrorista. )Contudo, o seu salafismo apresenta-se como antídoto ao jihadismo ao estilo de Baghdadi. Nem todos os que chegam à fé ansiosos por lutar podem escapar do jihadismo, mas para aqueles cuja principal motivação é encontrar uma versão ultraconservadora e inflexível do islão, esses têm aqui a alternativa. Não é o islão moderado, alguns vê-lo-ão mesmo como extremado. É, contudo, a versão do islão que até para as mentes mais literais não é hipócrita nem foi expurgada de forma blasfémica dos seus inconvenientes. A hipocrisia não é pecado que as mentes mais jovens da teologia tolerem. O melhor seria que as autoridades ocidentais parassem de lançar mais achas para a fogueira do debate teológico islâmico. O próprio Barack Obama, ao afirmar que o EI não é “islâmico”, entrou nas profundas correntezas do takfiri e derrapou — logo ele, que ironicamente é um não muçulmano filho de um muçulmano que até poderia ser considerado apóstata e agora pratica o takfir contra os muçulmanos. Os não muçulmanos que agem conforme os requisitos do takfir gracejam com os jihadistas (“Como porcos cobertos de porcaria que dão lições de higiene a outros”, twittou um deles). Imagino que a maioria dos muçulmanos aprecie os sentimentos de Obama: o Presidente mostrou estar do lado deles e contra Baghdadi e os chauvinistas não muçulmanos que os tentam implicar nos crimes. Mas a maioria dos muçulmanos não é sujeita a juntar-se à jihad. E os que aderem vêem confirmadas as suas suspeitas de que os Estados Unidos mentem sobre a religião para alcançar os seus objectivos. E o EI lá vai cantando e rindo, trauteando energicamente — até com criatividade — dentro dos limites apertados da sua teologia. Mas fora desses limites não poderia ser mais árido ou silencioso: uma visão da vida enquanto obediência, ordem e destino. Muse Cerantonio e Anjem Choudary tanto podem estar a discutir mortes em massa e tortura diária como as virtudes do café do Vietname e de bolos demasiado açucarados. E fazem-no com aparente deleite. Parece-me, contudo, que abraçar os seus pontos de vista seria ver todos os sabores que existem neste mundo tornarem-se insípidos por comparação às atrocidades grotescas do que pode aí vir no futuro. Até posso apreciar a companhia de um e de outro, enquanto exercício intelectual que me faz sentir tão culpado quanto me dá prazer. . . mas até um certo ponto. Na recensão que George Orwell fez ao Mein Kampf, em Março de 1940, o escritor confessou: “Nunca consegui sentir antipatia por Hitler”; apesar dos seus objectivos abomináveis e cobardes, havia qualquer coisa de pobre coitado naquele homem. “Se matava um rato que fosse, fazia-o como se de um dragão se tratasse. ” Os apoiantes do EI têm uma allure muito semelhante. Acreditam estar pessoalmente envolvidos numa luta que transcende as suas vidas e que o simples facto de serem arrastados para o drama, estando no lado do bem, é um privilégio e um prazer — sobretudo se for igualmente um fardo. O fascismo, continuava Orwell, é “psicologicamente muito mais sólido do que qualquer ideia hedonista da vida. . . Enquanto o socialismo, e até mesmo o capitalismo de uma forma mais relutante, tem dito às pessoas ‘dou-te a oportunidade de passares um bom bocado’, Hitler disse às pessoas “dou-vos luta, perigo e morte, e em resultado teve uma nação prostrada a seus pés. . . Não devemos subestimar o encanto que possa ter ao nível das emoções. Nem, no caso do EI, o seu encanto religioso ou intelectual”. Que o EI sustente como dogma o cumprimento iminente da profecia, isso ao menos transmite-nos o valor do nosso opositor. Está disposto a louvar a sua quase autodestruição mas mantém-se confiante, mesmo quando cercado, de que irá receber a graça divina se se mantiver fiel ao modelo profético. As ferramentas ideológicas podem convencer alguns dos possíveis convertidos de que a sua mensagem de grupo é falsa, e as ferramentas militares podem impor limites aos seus horrores. Mas para uma organização tão impenetrável à persuasão como é o EI, poucas medidas importarão, e a guerra pode bem vir a ser longa, ainda que não termine com o fim dos tempos. Exclusivo PÚBLICO/The AtlanticLeia tambémSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Conto: Ž
No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho. (...)

Conto: Ž
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Homossexuais Pontuação: 6 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho.
TEXTO: No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho. Ð ligou para Lisboa, no seu português fluente, pedindo-me que reconstituísse a história de Ž. Eu encontrara Ž duas vezes e estava interessada no assunto, como Ð sabia através de um amigo comum. De resto, Ð e eu não nos conhecíamos, mas ele saltou, alegre, por cima disso:— Quando podes vir a Belgrado?Foi assim que na noite de 2014 para 2015 me achei na colina do Kalemegdan, a fortaleza da capital sérvia que já foi celta, romana, bizantina, otomana. O cigarro de Ð apontou a confluência do Sava com o Danúbio, em breve o frio daria para andar sobre as águas. Quem nos ofereceu um gole de rakija disse que estavam doze negativos, mas já bebera meia garrafa. Acho que deviam estar pelo menos vinte negativos quando Ð e eu caímos na neve, ele de costas, eu de bruços. Um snipper não faria melhor, ao primeiro beijo. Notas iniciais sobre Ž: tinha quinze anos a 4 de Maio de 1980, o dia em que a Jugoslávia começou o seu luto (e não era artificial, nem o luto, nem a Jugoslávia). Um antigo vizinho lembra-se de estar com Ž no Centro Cultural de Estudantes quando chegou a notícia: Tito morrera. Apanharam o autocarro de volta a casa e foram para a garagem da filha do futuro presidente ensaiar uma nova canção dos Jungle Anarchists, a banda que haviam fundado com outro vizinho. Porque eram punks de Dedinje, o bairro-bosque dos aparatchiks, hierarquia acima até à mansão de Tito. Os punks do centro chamavam-lhes mesmo punks de Dedinje como se lhes chamassem ricos. Só que os pais deles eram pequenos aparatchiks em pequenos apartamentos no fim da hierarquia, prédios feios até hoje. Aos quinze, Ž partilhava o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar com eles o tráfego de namoradas. Portanto, punks de Dedinje mas não menos punks por isso, fuck off. Em 1981, a filha do então já ex-presidente fundou a sua própria banda, e dois anos depois explodia na rádio com o álbum Perfektan Dan Za Banana Ribe. O título era uma homenagem à primeira das Nove Histórias de J. D. Salinger, Um dia perfeito para o peixe banana, que Ž terá oferecido à futura musa quando tinham dezoito anos: sabia-o de cor. Muito sofisticado para dezoito anos, mas aos dezoito Ž já se achava um fracasso desde os treze, que foi quando começou a partir guitarras e a cheirar cola. Aos treze, cola; aos dezoito, heroína. A filha do ex-presidente morreu nem dez anos depois, a irmã dela também, e eram só os ícones de uma longa lista. Belgrado parecia mais perto de Londres que da Cortina de Ferro. Os anos 1980 foram a década em que o New Musical Express vinha cobrir a cena cool jugoslava, e os adolescentes morriam a solo, deixando o tal belo cadáver. Vista dessa Jugoslávia, a ideia de guerra não passava de uma farsa entre Moscovo e Washington. A Jugoslávia era a praia e a montanha dos não-alinhados, um sudeste ao mesmo tempo mediterrânico, eslavo, otomano e centro-europeu. Os jugoslavos viajavam, os jugoslavos viviam bem, os jugoslavos recebiam os Rolling Stones (Zagreb 1976, Ž fechou-se no quarto porque não o deixaram ir). Até os meus tios-avós passaram férias na Jugoslávia: nem se dava pela repressão, Tito era um esteta. Então, claro, quem na geração de Ž acreditava mesmo que nos anos 1990 a Europa teria de novo campos de concentração, genocídios, valas comuns, deportações, violações em série, e que tudo isso aconteceria justamente ali, na costura do socialismo de rosto humano? As únicas bombas que os punks de Dedinje conheciam eram as dos Clash (The hillsides ring with ‘Free the people’ / Or can I hear the echo from the days of ‘39? / With trenches full of poets (. . . ) I’m hearing music from another time). Se a letra anuncia a guerra, é porque a ouço no futuro, e de fora. Sou de fora, eis o que levou Ð a procurar-me: essa seria a minha vantagem e o meu limite. O trabalho dele é convencer-me de que a vantagem é maior do que o limite, o meu trabalho é saber que à partida já perdi. Pois que poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nuance entre a neve e a lama, como a neve é uma ilusão que queima, tudo o que a neve cobre, tudo o que a neve adia, porque o frio retém a revelação, e é o sol que traz os mortos. Assim aterro em Belgrado no começo do Inverno para uma espécie de garimpo, de fora para dentro. Se ninguém detém a narrativa de outro, esta história de Ž será só a minha, como o meu anfitrião sabe há muito. Quando Tito morreu, já Ð estava a milhas, bolseiro de estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said. E nem a América fez dele um ex-fumador. A 25 de Dezembro, uma quinta-feira banal para os ortodoxos, apanho um táxi até à antiga mansão de Tito em Dedinje. O primeiro nevão deve acontecer no fim de semana, por enquanto copas negras, céu dourado, nem uma folha. O táxi pára junto ao muro, mais alto do que eu mas muito mais baixo do que as árvores lá dentro. Extenso parque, sim senhor, se é para receber Elizabeth Taylor há que fazer as coisas bem, embora para esses casos também houvesse a Casa de Verão, na ilha. A Taylor, a Lollobrigida, a Loren, o Burton, assim do que me lembro. Tito era pop. Já Miloševic foi o anti-pop mundial. Deu cabo da telegenia sérvia ao ser o mais poderoso protagonista de uma violência inédita na Europa desde a Segunda Guerra, dezenas de milhares de cadáveres para todos os lados, até aos bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia. Ainda hoje, em Belgrado, Miloševic parece o-homem-do-saco na infância de milhares de sérvios, só que real até à morte. Um caso de ascensão máxima da paranóia. E quem era a multidão que o seguia?, perguntei ontem a um dos velhos amigos de Ž. Ele suspirou, creio que até o cão a seus pés suspirou (um rafeiro que aprendeu a encantar estranhos para sobreviver, de preferência raparigas, até hoje encanta e já é senhor da casa, questão de feitio). Ah, o lumpen-proletariado, respondeu enfim o velho amigo de Ž. Ao pé da letra, homens-trapo, sem consciência política, à mercê de quem os manipule. Não é com eles que se fará a revolução, e a revolução não se fará também por causa deles, mas isto já não é Marx que diz, nem o velho amigo de Ž. Tão sérvio de pai e mãe como Ž, o velho amigo rematou: horror, horror dessa Sérvia. (De qualquer massa inflamada, além do lumpen-proletariado, não? A velha questão da banalidade do mal. O paranóico comanda e o mal banaliza-se pela massa. A massa é o sistema digestivo do paranóico. Processa tudo. )Não, não me perdi, estou bem em frente à mansão de Tito, mas Miloševic instalou-se aqui nos anos 90, então é impossível não me lembrar dele também. Os imperialistas têm um fetichismo pelo metro quadrado de quem os antecedeu, tal como os europeus de 1500 tiveram pelos templos indígenas, um eterno retorno igual à guerra. Miloševic morar na mansão de Tito era a Grande Sérvia a ocupar a casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar nele. (Esta noite, saindo de uma kafana para outra num eterno retorno à rakija de marmelo, Ð há-de contar-me que existem internados em hospícios convencidos de que ainda estão na Jugoslávia. Imaginar um destes internados a ter alta dava um romance, se calhar já deu). Caminho ao longo do muro da mansão. O táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma tabuleta, a jugo-nostalgia contemporânea não parece chegar aqui, talvez porque não se possa entrar, talvez porque Miloševic morou lá dentro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Miloševic enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bombardeada pela NATO em 1999. Os destroços continuam à vista, através do rendilhado de um portão. (Há uns curto-circuitos assim no meio de Belgrado, subitamente numa avenida dois edifícios bombardeados, lado-a-lado. Não sei se é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje não perguntei. )Esta rua — Užicka — entrou para a história do século XX à bomba (já na Segunda Guerra, os Aliados bombardearam os alemães que a tinham ocupado), mas o que me interessa hoje é como ela coincide com o mapa de Ž. Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos prédios com bicicletas, com trenós, com guitarras, com namoradas, consoante a estação e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros nevões, ficava tudo fofo, depois duro, e depois pedregulhos podiam cair se a temperatura subisse de repente, desprendendo o gelo dos telhados, morre-se disso em Belgrado, como nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de fuga, silêncio de bosque mais que de bairro: não é Tito nem Miloševic que suponho a atravessar a estrada (também não atravessariam a estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles ténis, aqueles blasers, aqueles pins no blaser, aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos de ressaca, de quem não dá trela a ninguém. Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo acaba de morrer. Quem ainda cá está em 2014 confirma: nesse grupo, nesse tempo, a morte era mais real do que a guerra. Aos vinte, Ž via-se como um velho sobrevivente, entre overdoses e hiv. A lista das partidas aumentava dessas e de outras formas, Londres, Roma, Viena. Não suficientemente longe para ele, segundo um contemporâneo que não chegou a tomar drogas, e hoje mora num casarão. Os anos 1990 fizeram a fortuna de quem teve jeito, Ž teria morrido de tédio, se não tivesse chutado tudo antes. No Verão de 1985 desembarcou na praia catalã de Blanes porque uma amiga de Belgrado que emigrara para Barcelona acabava de conhecer um beatnik sul-americano lá. Eis como, depois de uma semana a beber com o beatnik — um tal de Roberto Bolaño, que vendia pulseiras mas tinha cem livros na cabeça —, Ž decidiu ir para o México. Estudar fotografia, disse aos pais. A vida mexicana de Ž terá de esperar pelo meu próprio regresso ao México. O que posso registar agora é que foram duas temporadas, a primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-86), de facto a morar no formidável campus da Universidade Nacional Autónoma, enquanto estudava fotografia, entre biscates vários. E a segunda, aos trinta e quatro (1999), a fotografar a violência das fábricas de Ciudad Juárez para a revista do New York Times. A sua nota biográfica desse ano resumia: “Cobriu conflitos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano, Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão, Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina e nas repúblicas da ex-Jugoslávia. ” Ou seja, em apenas treze anos, Ž catapultou-se para a linha da frente do fotojornalismo, de trincheira em trincheira. A primeira vez que o vi foi em Sarajevo. Portanto, vou voar para Sarajevo este sábado, 27 de Dezembro, ao começo da tarde. Hora perfeita, se não estamos interessados em mudar um ritmo nocturno que já vem de há dias. Ainda ontem, porque era quinta, e é algo que só acontece às quintas, Ð levou-me a uma catacumba onde cavalheiros de cerca de oitenta e quatro anos trazem rakija de casa em garrafas de plástico que oferecem a toda a gente, começando pelas senhoras. As senhoras têm grandes toucados. As paredes estão cobertas de fotografias. Pareceu-me ver Amália Rodrigues numa esquina e quando olhei melhor era Amália Rodrigues. Um cavalheiro de cerca de oitenta e quatro anos recitou-me Octavio Paz, outro disse-me que tocara bateria com Charlie Haden quando ele cá esteve em 1971. Isto, na véspera de Haden ter ido tocar no primeiro Cascais Jazz, onde dedicou as cordas do seu contrabaixo às lutas africanas de libertação, o que lhe valeu ser levado pela polícia política da ditadura. Este octogenário até se lembra de como Haden depois festejou Abril com a sua própria versão da Grândola Vila Morena. E para que eu não duvide, canta. Como não amar Belgrado. Nem de propósito, um amigo de Lisboa manda-me, de boas festas, essa Grândola porque o pai tinha estado no Cascais Jazz e aparece numa fotografia a olhar para Charlie Haden (também me manda a fotografia). A sintonia cósmica é tal que quando entram os sopros julgo ouvir uma nota balcânica. Sábado, com a alegria e o cigarro de sempre, Ð vem pôr-me no táxi para o aeroporto, não vá o motorista achar que sou uma turista sem amigos. Isto, claro, apesar de os taxistas sérvios serem meninos comparados com os de Lisboa. Asseguro a Ð que no fim de semana vai nevar, ele ri da minha autoridade no assunto, fecha a porta do táxi e fica a ver-me arrancar. Eu fico a vê-lo cada vez mais pequeno. (Até cair nos braços de Ð não me passa pela cabeça cair nos braços de Ð, mas pela primeira vez ainda estou a pensar nele quando ele já saiu de vista). Belgrado-Sarajevo são 45 minutos de viagem a tão baixa altitude que podemos observar a passagem da planície sérvia para as montanhas bósnias como se de súbito o mundo se levantasse num movimento interminável. Uma imagem de contornos esfumados, com a cor e a consistência de um desenho a carvão. O carvão são as árvores, o papel é a neve. Depois, o avião desce, curva para a esquerda e começa a percorrer o vale de Sarajevo na última hora de sol. Tudo me espanta, a paz alpina de casinhas, o rio incandescente, os prédios de espelho, talvez porque a última vez que aqui vim foi num avião militar, a cidade estava cercada, entrei no Holliday Inn à luz de velas, e entre o aeroporto e o hotel só havia uma coisa a fazer: acelerar. Até o Oslobodenje tem uma fachada de espelho, vejo do lado direito. O jornal que nunca deixou de sair em três anos e meio de cerco, nem um só dia, agora é propriedade de um homem de negócios e vizinho de um outdoor da Coca-Cola. Sarajevo estende-se como uma grande recta ao longo do rio Miljacka, montanhas de um lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o fundo começa o pedaço austro-húngaro, palacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assassinado o arquiduque Franz Ferdinand, que assim, tão involuntariamente, teve para sempre o seu nome associado ao início da Primeira Guerra, em 1914. Na esquina em frente há um mini-museu onde podemos ver, por exemplo, como as armas do assassino — Gavrilo Princip — eram mínimas. Um revólver menor do que a palma da minha mão. Ele próprio parece um homem pequeno, de olhar melancólico. Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como anti-otomano, que acreditou febrilmente numa futura Jugoslávia. Paralela ao rio, mais para dentro, está a avenida a que toda a gente ainda chama Titova. No monumento da Chama Eterna, sigo pela rua pedonal. De um lado, a megastore da Benetton em saldos; do outro, uma feirinha com carrocel, baloiços, quiosques de doces; por cima, pontudos domos ortodoxos contra o lusco-fusco; e finalmente a montanha nevada, cheia de janelas acesas, que há dezanove anos era o antro dos snippers. Há dezanove anos, cá em baixo, também era Dezembro mas não havia meias vermelhas, bonecos de gengibre, luzinhas a piscar. A vida era urgente, furtiva, subterrânea, uma aposta contra o atirador. Agora olho os bonecos animados deste postal de 2014 que são os bósnios atafulhados de casacos, de golas, de barretes, de luvas, com grandes botas a patinhar na neve, porque na neve andamos todos como bonecos (ou pinguins, diz aquele velho amigo de Ž, o do cão encantador), e penso que cada um deles sabe tudo sobre a guerra, e que isso jaz em cada conversa, como a morte sob a neve. Eles estavam cá, e cá estão. MARX, leio em letras garrafais. Depois por baixo: CLOTHES FOR THE PEOPLE. Como a Benetton, só que Marx. A catedral católica, pouco adiante, tem um João Paulo II de alumínio no pátio. Foi inaugurado em Abril, para celebrar a sua passagem a santo. E no prédio ao lado, em letras garrafais, leio SREBRENICA. Não me lembro ao certo como conheci David Rohde em 1995, talvez tenhamos partilhado um transporte entre Sarajevo e Mostar, mas estou a ver a cara de escuteiro dele, correcto, discreto. Aos vinte e tal anos, nesse Outono-Inverno, já era o repórter que meses antes revelara o massacre de Srebrenica nas páginas do Christian Science Monitor. É sobretudo disso que me lembro, a densa sobriedade com que me contou como chegara a Srebrenica em Agosto, um mês depois das tropas do sérvio bósnio Ratko Mladic, e encontrara ossos de bósnios muçulmanos. As primeiras testemunhas apontavam para uma morte em massa, e quando a investigação acabou a Europa estava perante o seu maior massacre desde o Holocausto: mais de oito mil bósnios muçulmanos, separados das mulheres e dos filhos e executados, sob o comando de Ratko, e perante a total incapacidade dos capacetes azuis da ONU, um pelotão de holandeses que estavam lá para proteger os civis e hoje hão-de vaguear em qualquer inferno quando fecham os olhos. Penso em David Rohde por causa deste cartaz agora, na praça da catedral, anunciando um trio de imagens de guerra (Srebrenica, 1995; Sarajevo, 1992-1996; Síria, em curso). E porque, numa daquelas noites de cerco a Sarajevo, num bar onde alguém tocava trompete, foi Rohde quem me apresentou a Ž. Eu já o vira por aqui, era difícil não reparar nele, tão alto, tão mudo, tão zangado, franja sobre os olhos, nuca rapada. Duas horas depois já não me parecia tão alto, tão mudo nem tão zangado. Separámo-nos logo na manhã seguinte mas em Janeiro, de volta a casa, eu estava grávida. A exposição sobre Srebrenica, Sarajevo, Síria começa no elevador da galeria, frases que se prolongam na parede do terceiro andar, quando a porta abre: milhares de nomes, branco sobre preto. Depois caras, centenas de caras. Depois, ossos, o puzzle do DNA para dar sepultura aos mortos, ciência aplicada à tragédia grega. Antropólogos forenses penaram a combinar crânios, tíbias, ilíacos e falangetas das valas comuns de Srebrenica. Um filme mostra uma das mulheres no momento em que lhe dizem que há noventa e nove e algo de hipóteses de aquele ser o marido dela (restam os ossos e o casaco). Filmagens de 1995 mostram os incapazes de capacete que a ONU não julgou necessário reforçar. Ratko aparece a rosnar para a câmara, vamos lá vingar a Sérvia. Isto aconteceu na Europa, e toda a gente deixou. Todos mataram, todos morreram, todos tiveram os seus loucos, os seus déspotas, sérvios, croatas, bósnios, mas em nenhum lugar da ex-Jugoslávia se morreu como na Bósnia nos anos 1990, onde sobretudo sérvios mataram sobretudo bósnios de origem muçulmana. E até hoje, em Sarajevo, muita gente faz questão de distinguir entre sérvios da Sérvia e sérvios da Bósnia, porque estes últimos é que eram vistos como nacionalistas radicais, associados a paramilitares, milícias e snippers. A propósito de snippers, e porque estou prestes a encontrar o autor, eis o poema completo:Podia ser a Pequena História do Cerco de Sarajevo, mas no caso de Faruk Šehic é a Pequena História do Cerco de Bihac (extremo noroeste da Bósnia e Herzegovina), em qualquer dos casos não menos de três anos de cerco. Quero pensar em Faruk antes da guerra, este rapaz ainda vagamente louro que agora entra num bar do bairro otomano de Sarajevo por gentileza para comigo, porque estou na cidade, porque temos um amigo comum, e tudo isto apesar de ele estar com uma gripe daquelas. Sim, este rapaz mais ou menos da minha idade mas há vinte e tal anos, quando, imagino, se poderia dizer, sem dúvida, que era um rapaz louro, um rapaz com uma profissão, um rapaz que estudara Veterinária em Zagreb, bósnio mas formado na Croácia porque, claro, as pessoas iam e vinham, uma moeda, uma língua, um país, e além disso, para quem é de Bihac, Zagreb era um pulinho. Ele ia tratar cães, gatos ou cavalos, quem sabe, os anos 1990 apenas começavam. E então começaram. Primeiro, em 1991, independência da Eslovénia; guerra e independência da Croácia. Depois, em Abril de 1992, a Bósnia. Até hoje, neste bar pesado de fumo, Faruk sabe o dia exacto em que voltou a casa, 15 de Abril de 1992. Fácil de saber, porque a 21 de Abril os sérvios atacaram Bihac e ele já estava no exército bósnio como voluntário. Em Maio, a cidade ficou cercada pelos sérvios. E durante 45 meses — quase quatro anos — este rapaz manteve-se em Bihac, ao comando de 130 homens. Quando foi ferido por um morteiro no pé passou meio ano de muletas, nada, um arranhão, comparando com a morte à volta, os amigos que perdeu. Então, depois da guerra, cut the bullshit, toda a tralha non sense, as metáforas de quando ia ser um poeta louro. E além dos poemas começou a escrever contos, uma prosa decomposta, fragmentária. Foi publicado, traduzido, premiado. Teve uma namorada meio-sérvia em Belgrado. Sim, mais fácil estar com um sérvio de Belgrado do que com um sérvio daqui. Mas só acredito na responsabilidade individual, diz ele, não há culpa colectiva. Bairro otomano, turco, muçulmano, como chamar à Bašcaršija, este pedacinho de Sarajevo no fim da recta, quase colado às montanhas: casinhas de madeira com lâmpadas orientais, serviços de café, briquebraque para os turistas que se alojam em hostels chamados Franz Ferdinand, e fazem o tour dos túneis, do cerco, dos snippers, suvenires de guerra. Mas à noite há bares cheios de gente que estava a nascer quando a guerra acabou, raparigas muçulmanas com lenço/sem lenço, com rapazes/sem rapazes, a fumarem/sem fumarem, entre uma bandeira da Palestina e um ecrã de futebol. Podia ser Ramallah, Beirute ou o Cairo. Neva toda a noite. Domingo de manhã, os carros são contornos brancos nos passeios, difícil distinguir o passeio da estrada. Um repórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-me pelas montanhas. Vejo então Sarajevo de onde a viam os atiradores, com os seus restos de castelos otomanos, o seu casario, as suas florestas, como se um cozinheiro celeste tivesse derramado açúcar-glacé por cima de todos nós, e dos séculos. Foram os dias mais felizes da minha vida, diz-me a melhor amiga de Ž em Sarajevo, sobre os últimos meses do cerco. Ela passara os primeiros meses sem dormir, a inventar tudo o que era possível, teatro, concertos, leituras. Em Abril de 1993 veio Susan Sontag, ficaram amigas, Sontag voltou em Julho, fizeram aquele Godot no pátio do Teatro Nacional de Sarajevo, junto ao qual estou a dormir, vejo-o da janela do quarto. Veio 1994, o cerco continuava, era preciso continuar. Até que em 1995 ela se viu com trinta e oito anos e um amante. Queria ter um filho? Talvez, antes precisava de respirar. Foi ter com Sontag à América, visitou amigos, era para ser uma viagem de meses mas em Maio ela já sabia, sim ia ter um filho, ia voltar. Tal como Faruk, sabe o dia exacto em que voltou a casa, 22 de Maio. Na manhã seguinte o amante veio e ela acredita que engravidou nesse dia mesmo. A filha nasceu em Março de 1996, primeiro mês depois do cerco, o que quer dizer que a gravidez coincidiu com os últimos nove meses de cerco. Por isso foram os dias mais felizes da sua vida, o bebé ia protegê-la de tudo. Segunda-feira, 29 de Dezembro, continua a nevar. Passeio ao longo do rio com o filho de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a que depois voltou várias vezes. Atravessamos a Ponte Latina, e voltamos à direita para o parque do coreto (que aqui se chama pavilhão musical). Teria mais de cem anos, não fosse ter sido bombardeado e reconstruído, mas a neve fica-lhe bem. O meu parceiro de caminhada tem 27 anos. Todas as suas primeiras memórias são de guerra. Aos cinco já se escondia de snippers e sabia distinguir granadas. Volta e meia tinham de ir para uma cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos prédios tinham abrigos, vinha do tempo da Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé, porque o pai estava a combater, operava um lança-chamas, ficava fora durante meses, voltava por um mês, às vezes trazia latas de comida. Às vezes também conseguiam comida da ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta. As pessoas escavavam para encontrar água e toda a gente ia com recipientes, por trás das casas, encostada aos prédios. As crianças sabiam que não podiam brincar no meio dos pátios. A escola também era numa cave, mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como quase sempre não havia luz, acendiam velas, candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em suma, o que ele sabia era que os sérvios atacavam e eles se defendiam: faz a tua coisa a cada dia e espera que a cidade não caia. À custa de tanto, Sarajevo não caiu. E aqui está ele hoje, três palmos mais alto do que eu, senhor dos céus. Não é metáfora, acaba de se diplomar controlador aéreo. Um ano a viver em Belgrado, começou nervoso, depois passou. Os responsáveis não eram aqueles, havia que pôr a guerra para trás das costas e ter a certeza de que não voltava a acontecer. Ter uma namorada sérvia ajudou, decerto a ambos. A guerra que ela vivera directamente era a das semanas em que a NATO bombardeou alvos sérvios em 1999. Quando ele lhe contou da infância em Sarajevo foi uma surpresa porque os livros na escola dela diziam coisas diferentes dos livros aqui. De resto, ele nunca teve um problema em Belgrado com o nome, claramente muçulmano. Tudo correu bem, voltou com um trabalho bem pago, raridade na Bósnia, onde o desemprego é o principal problema, num sistema tão corrupto que ele nem vota. E fará parte da primeira geração de bósnios a controlar o espaço aéreo da nação, até agora nas mãos de sérvios e croatas, fifty-fifty. Há um mês, Sarajevo tomou conta da metade inicial, 10. 000 metros, em Fevereiro recebe a segunda metade. Ele chegou no momento certo e descobriu que tudo o preparara para isso, a pressão de um trabalho onde não pode haver erro, dos mais difíceis do mundo. Tudo desde o cerco, numa rua de Sarajevo onde metade dos amigos de infância se tornaram junkies, numa casa onde o pós-guerra devolveu um pai alcoólico. O filho resume isto de forma implacável, diz que teve de assumir o controle das coisas muito cedo, e desde então nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai de que o mataria se voltasse outra vez a casa embriagado, o pai desapareceu uma semana mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok, tanto quanto depende dele. Arranjou o seu próprio apartamento. Não vai à mesquita, é ateu. Continua a namorar a rapariga de Belgrado, ela vem para a passagem de ano, ele ficará a morar aqui, é certo. Adora a adrenalina do que faz, todos os dias aviões diferentes, a diferentes altitudes, a diferentes velocidades, que não podem chocar, ou entrar numa daquelas nuvens com trovoada. O trabalho dele é pensar depressa. Terça, 30 de Dezembro: também nevou aqui. Branco ao aterrar, branco até à entrada de casa. Tenho de me agarrar ao braço de Ð para não cair nos passeios. Ou não tenho, mas é muito melhor. Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão encantador). Diz coisas tão inesperadas para um sérvio como ter sido a favor das bombas da NATO sobre os alvos de Miloševic (apesar dos erros, apesar dos erros, incluindo um hospital). A capacidade auto-crítica destes sérvios só se compara ao humor negro dos bósnios, que fazem da morte a mais escandalosa anedota. Mas nada é mais escandaloso, mesmo. (E viciante? Toda uma bibliografia sobre como a guerra pode ser aditiva, toda uma medicina, endorfinas, dopamina. A urgência, a intensidade, a alucinação. A segunda oportunidade que é a compaixão? A certeza de, enfim, ter um coração? Ð sabia que o assunto me interessava, era esse o assunto que levava a Ž: a guerra como única forma de estar vivo. )Toda a gente fuma três maços por dia em Belgrado, em virtualmente todos os lugares fechados, incluindo o elevador do meu prédio. O tabaco é barato, as rendas são baratas, a cidade tem dois rios e os homens são grandes. Do que entendi até agora parece que o único impedimento de Belgrado é que se eu beijar uma mulher na rua dá insulto, e homem com homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm objectivo, qual é o objectivo dos não-hooligans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um homossexual reprimido. Matou seis milhões mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos no inferno?Já agora, em que inferno penará Arkan, que chegou a comandar uma claque do Estrela Vermelha quando já tinha uma sólida carreira de bandido internacional, e depois fez dos seus hooligans a mais temida milícia dos Balcãs, raptos, torturas, execuções, extorsões? Fascinante imaginar as conversas dele com deus quando se refugiava num mosteiro ortodoxo com os seus tigres armados, todos bem acolhidos, quem sabe até o seu tigre bebé. Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma geração antes de Ž. A única vez que se cruzaram foi quando Ž o fotografou no instante da morte, coincidência raríssima na história da fotografia. Porque, por acaso, às cinco da tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no foyer do Hotel InterContinental de Belgrado à espera de alguém. Como não vinha para fotografar tinha só uma pequena câmara na mochila, com um filme já a meio, e pegou nela discretamente ao avistar o gangue de Arkan: os homens que o guardavam, a interacção com tudo em volta. Minutos depois os assassinos entraram no seu campo de visão. Em 38 tiros, três foram fatais, boca, têmpora, olho. A última imagem de Ž capta o momento em que a senhora Arkan — Ceca, inflada diva do turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia compras. Depois, o filme acaba. Ž publicou as fotografias, com uma curta declaração sobre o acaso que o levara ao hotel, mas recusou-se uma vez mais a dar entrevistas. Anos de especulação mundial. Uns viram nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm péssima fama. A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre. Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah invadida por tanques israelitas, sob recolher obrigatório. Não lhe contei o que acontecera da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira sozinha, e neste fim de 2014, em Belgrado, brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda ter de abortar clandestinamente. de alperce: amanhã, antes de o ano acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer a Ð que não consigo reconstituir a história de Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele, o que provavelmente significa que ele será cada vez mais ele próprio. Portanto a história continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo, como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também não gostaria de escrever a história de Salinger contra o seu próprio silêncio. Uma banda de outro planeta ataca numa antiga igreja transformada em teatro, clube, bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um DJ, eles misturam Marvin Gaye com música iraniana, eles querem que a gente dance. E quando vou lá perguntar se já gravaram um disco dizem que não estão interessados, que é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao mesmo tempo, aqui. Coitado do Kusturica. 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REFERÊNCIAS:
Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, recebe a Palma de Ouro da 71.ª edição de Cannes
Prémios ainda para Spike Lee, Nadine Labaki e Godard, e para os actores Samal Yeslyamova e Marcello Fonte. (...)

Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, recebe a Palma de Ouro da 71.ª edição de Cannes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 Asiáticos Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Prémios ainda para Spike Lee, Nadine Labaki e Godard, e para os actores Samal Yeslyamova e Marcello Fonte.
TEXTO: É uma história de família, daquelas a que talvez todos queiramos pertencer pelas cores e pelos sentimentos que são não só a sua promessa mas a sua realidade – toda ela inventada, claro. Porque é uma família que se formou pelo crime, pelo delito – e o roubo é apenas um deles –, é uma família recomposta com quem já falhou antes no casamento ou com quem foi vítima de abuso. Shoplifters, de Hirokazu Kore-eda, recebeu este sábado a Palma de Ouro de Cannes 2018, atribuída pelo júri presidido por Cate Blanchett, e que integrou ainda o actor chinês Chang Chen (Happy Together, de Wong Kar-wai), a argumentista, realizadora e produtora norte-americana Ava DuVernay (Selma), o realizador francês Robert Guédiguian, a cantora do Burundi Khadja Nin, a actriz francesa Léa Seydoux (A Vida de Adèle), a actriz americana Kristen Stewart, e os cineastas Denis Villeneuve e Andrey Zvyagintsev. Belíssimo palmarés da presidente e dos seus jurados, que fecham sem mácula uma prestação que há duas semanas começara com uma conferência de imprensa em que resistiram à produção de simplificações, à fixação de agendas sobre a sua equipa; em que assumiam o voto na longa duração. Este palmarés é o exercício dessas intenções: o trumpismo e o racismo, através do filme de Spike Lee (a história inacreditável mas verídica de um polícia negro que se infiltrou no Ku Klux Klan), os imigrantes, o cinema como plataforma, como porta-voz, através do filme de Nadine Labaki (a ficção, rodada com histórias reais, de um miúdo de 12 anos que leva os pais a tribunal por lhe terem dado vida), estão no palmarés, com queles que eram os dois títulos favoritos, BlacKkKlansman e Capharnaüm, sintonizados com a desordem bíblica do mundo. Mas nem Spike Lee chegou ainda à Palma, ele que é dos históricos do festival (e um dos seus "derrotados" históricos), nem a estreante no concurso, a libanesa Labaki, autora do filme empático desta edição. A Palma de Ouro fechou-se assim no espaço da intimidade como lugar de reinvenções também veementes, naquele que é o melhor dos últimos filmes do realizador de Nobody Knows/Ninguém Sabe (2004), resgatando o seu cinema à música ambiente com que vem decorando os festivais (O Terceiro Assassinato, que se estreou há semanas em Portugal, competiu por exemplo no último Festival de Veneza). Tudo, na cerimónia, começara com o dedo apontado ao mundo, com o j'accuse de Asia Argento, a contar que em 1997, quando tinha 21 anos, ali mesmo, em Cannes, fora "violada" por Harvey Weinstein, e que o festival, com muitos dos que estavam ali sentados, tinham sido não apenas cúmplices como mesmo o ambiente propício a esse tipo de comportamento – desejou a actriz que Weinstein nunca mais seja aceite no festival. O palmarés propriamente dito foi primeiro ao prémio de interpretação feminina, atribuído a Samal Yeslyamova, por Ayka, de Sergey Dvortsevoy, maravilhosa e dolorosa epopeia por Moscovo, colocando-nos no corpo, nas dores, de uma mulher que acabou de dar à luz mas não tem tempo para ser mãe, porque tem dívidas. Seguir Samal e seguir o actor premiado, Marcello Fonte (Dogman), em quem o italiano Matteo Garrone disse ter encontrado a poesia lunar de Buster Keaton, seu ídolo, foram duas revelações do festival; com eles, por eles, acedemos aos filmes, eles são-nos revelados. Curioso ter sido Roberto Benigni a entregar o prémio a Marcello, actor de 39 anos que pode ser encontrado em Corpo Celeste (2012) de Alice Rohrwacher (vencedora, ex-aequo com 3 Faces de Jafar Panahi, do prémio de argumento por Lazzaro Fellice) e que tem em Dogman o seu primeiro papel principal como tratador de cães abusado por um bully cocainómano: uma das versões iniciais do argumento, quando Dogman ainda se chamava O Amigo do Homem, chegou a ser proposta a Benigni. E last, but not the least, o júri de Cate Blanchett fez uma coisa bonita, pediu autorização aos directores do festival para atribuir uma Palma de Ouro Especial a Jean-Luc Godard, por Le Livre d'Image mas sobretudo por tudo o que o cineasta continua infatigavelmente a perseguir. Godard, 87 anos, tanta determinação e tanta tristeza, que segundo ele nunca é de mais para o mundo poder vir a ser melhor, foi uma espécie de Jesus Cristo anunciado na 71. ª edição. Ele que não esteve em Cannes mas está em todo o lado, materializado e desdobrado, encontrou-se com os fãs através de telemóvel – naquilo que, em descrição terrena, deve ter sido uma conferência de imprensa. Palma de Ouro Shoplifters, de Hirokazu Kore-edaGrande Prémio BlacKkKlansman, de Spike LeePrémio do Júri Capharnaüm, de Nadine LabakiPalma de Ouro Especial Jean-Luc Godard, Le Livre d'ImagePrémio de Realização Pawel Pawlikowski, por Cold WarSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Prémio de Argumento (ex-aequo), Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher, e 3 Faces, de Jafar PanahiPrémio de Interpretação Feminina Samal Yeslyamova, por Ayka, de Sergey DvortsevoyPrémio de Interpretação Masculina Marcello Fonte, por Dogman, de Matteo Garrone
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
"Aproximei-me tanto da natureza que me tornei natureza"
Há 15 anos que Sebastião Salgado não expunha em Portugal. Regressa com Génesis, uma odisseia fotográfica que o levou a todo o planeta à procura do que é primitivo, dos vestígios do que é mais puro, seja na natureza seja no homem. A exposição já foi vista por 2,5 milhões. Chega a Lisboa no dia 10 de Abril. (...)

"Aproximei-me tanto da natureza que me tornei natureza"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2015-05-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 15 anos que Sebastião Salgado não expunha em Portugal. Regressa com Génesis, uma odisseia fotográfica que o levou a todo o planeta à procura do que é primitivo, dos vestígios do que é mais puro, seja na natureza seja no homem. A exposição já foi vista por 2,5 milhões. Chega a Lisboa no dia 10 de Abril.
TEXTO: Sebastião Salgado foi avisando que, quando o telefone tocasse, ele poderia não atender. Ou se atendesse poderia pedir para lhe ligar mais tarde. E o certo é que primeiro não atendeu, e pouco depois atendeu Lélia, a sua alma gémea no amor, no trabalho e na vida, que pediu para ligar mais tarde. Sebastião estava a controlar e a rever as páginas numa gráfica em Itália que vai imprimir o seu próximo livro. É sobre o café, um tema muito próximo da vida e da família do fotógrafo, que começou por ser economista e funcionário da Organização Mundial do Café em Londres, no início dos anos 70. Uma gráfica com a maquinaria toda em funcionamento é capaz de não ser o sítio ideal para dar uma entrevista por telemóvel, por isso, quando o telefone tocou outra vez, já Sebastião se instalara noutra sala. E começou a falar, com um ritmo calmo, muito entusiasmado, de como as páginas estavam a sair bonitas, no ponto em que queria que saíssem. Só lamentou a falta de um editor para lançar o livro em Portugal, mas prometeu não desistir de o encontrar. O fotógrafo gosta de estar onde estão os trabalhos que levam o seu nome e este café, embora se ter intrometido no meio de uma odisseia fotográfica chamada Génesis, não foi excepção. Apesar de no outro da lado linha correr tinta fresca e de estarem a sair páginas quentes com imagens sobre os grãos do cafeeiro, a conversa correrá mais ao sabor daquele que é o mais ambicioso trabalho do fotógrafo brasileiro. Em 2004, quando se encaminhava para os 70 anos e depois de uma pausa na fotografia para respirar, Sebastião Salgado lançou-se numa empreitada de dimensões homéricas que consistia em captar lugares e homens que representassem o que de mais prístino se pode contemplar hoje. O resultado dessa longa viagem, fruto de oito anos de trabalho e de mais de 30 viagens por todos os continentes, é Génesis (da raiz grega "nascimento", "origem"). A exposição que vai ser inaugurada no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, em Lisboa, no dia 10 de Abril, tem a curadoria de Lélia, inclui mais de duas centenas de fotografias e está organizada em cinco secções: Sul do Planeta, África, Santuários, Terras a Norte e Amazónia e Pantanal. Desde que abriu ao público pela primeira vez, em Londres, em 2013, Génesis já foi vista por mais de 2, 5 milhões pessoas em várias cidades em todo o mundo. Sebastião acha que este número não se deve ao seu nome. Acha que se deve à nossa insaciável vontade e ao prazer de vermos o lugar em que vivemos. Já encontrou o que fotografar depois de Génesis?Já. Vou publicar um livro sobre o café. Só vai sair agora, mas comecei a fotografar para ele antes do Génesis e depois do Génesis. Já fotografei na Costa Rica, na Tanzânia, na Indonésia. . . Comecei em 2002 e terminei em 2014. Já fotografei também duas tribos de índios na Amazónia porque estou a fazer um trabalho a longo termo sobre o movimento indígena brasileiro. Não parei de trabalhar. Parece que a fotografia não lhe sai do corpo, é um vício?É isso. Mas é o que eu sei fazer, é a minha vida, tenho de o fazer. Ainda agora, por exemplo, nestes dias em que estou muito ocupado com várias exposições a começar, a preparação deste livro e tudo resto, tenho já o pensamento nas próximas fotografias que vou fazer. O tema do café faz parte da sua vida profissional, já que começou a trabalhar na Organização Mundial do Café (OIC), em 1971. Não deixa de ser um círculo interessante. O café para mim é muito mais do que este círculo. Como brasileiro é um pouco estranho dizer isto, mas tenho de confessar: não bebo café. Mas o café corre-me nas veias, junto ao meu sangue. Quando o meu pai foi para a região de Aimorés, no final dos anos 30, ele transportava café com mulas. Vinha da serra da Mantiqueira (Minas Gerais) para Aimorés, onde depois o café seguia de comboio para Vitória e daí para exportação. Quando era menino acompanhava o meu pai no negócio em torno do café. Fazíamos grandes caminhadas. Dormíamos nas fazendas de café e trabalhava na apanha dos grãos. Acompanhava todo o circuito. Até que, depois de me ter formado em Economia, fui trabalhar na OIC. Por tudo isto, o café é muito importante para mim. Foi um enorme prazer fazer este trabalho. Génesis, o primeiro livro da Escritura, remete-nos para uma narrativa sobre a criação do mundo sobrenatural. Mas ao percorrermos este trabalho vemos a natureza e o homem mais pelo lado evolucionista, sendo que as ilhas Galápagos, coração do evolucionismo darwiniano, foram a sua primeira paragem. Sentiu-se a balançar entre o místico e o científico?Se existe um Deus esse Deus é a natureza. É certo que as teorias que foram criadas em torno da evolução natural são muito estritas, tão estritas como se crê que Deus seja estrito. As regras da natureza são invioláveis, não falham, a justiça que a natureza pratica às vezes custa a chegar, mas ela chega. Estas duas dimensões são muito parecidas. Se existe um enviado pelo senhor da natureza, esse homem é Darwin. Eu não sou crente. Não acredito em religião nenhuma. Mas creio que existe uma ordem criada pela evolução. Escolhi as ilhas Galápagos como a primeira viagem de Génesis para tentar compreender o que Darwin compreendeu. Li o diário dele e pude perceber onde ele esteve exactamente em Galápagos. Tentei ir aonde ele foi, tentei ver a vida que ele viu, ir às crateras e aos vulcões que ele descreveu. Foi muito importante compreender a vida daquelas tartarugas gigantes, das iguanas, sentir a evolução através destes animais. Sentir que a evolução surge de uma maneira diferente em cada uma daquelas ilhas, dependendo de cada um dos seus ecossistemas. Foi uma lição fantástica. Quando a compreendi, fui embora. Mas é perceptível um apego enorme a este trabalho, como alguém que abraça um dogma. Nesse sentido, acha que este é o seu trabalho mais… religioso?Não. Não tenho nenhum trabalho religioso. É um trabalho de coração. Aquilo que disse sobre a natureza serve apenas para exemplificar a similitude entre as coisas da natureza e as coisas que se atribuem a um suposto Deus. Mas não tenho religião nenhuma. O que fiz foi dedicar-me muito a este trabalho, da mesma maneira que me dediquei a outros. Faço estas histórias porque tenho prazer em fazê-las, identifico-me com elas. Depois de décadas comprometido com um olhar mais ligado ao jornalismo, afirma que, desta vez, partiu como um romântico. Foi uma forma de dizer “Quero fotografar com liberdade total”?Exactamente. Fotografei com liberdade total. Escolhi fazer este trabalho. Escolhi onde ir. Dediquei o tempo que achei necessário dedicar. Fiz uma imensa viagem para conhecer o meu planeta. Dei a mim próprio um presente. Na idade que tenho [71], esse era o maior presente que podia ter. Ver as coisas que fui ver. Conquistei esse direito, corri atrás, preparei o projecto do sonho da minha vida e concretizei-o. Fui capaz, absolutamente. Mas acha que o jornalismo não lhe daria a liberdade para erguer Génesis como acabou por erguer?Dariam, porque o que fiz anteriormente também foi feito com esse espírito. Na realidade, jornalismo eu não fiz muito. O trabalho Êxodos foi feito a partir de uma ideia minha e só depois procurei as revistas. Aconteceu o mesmo com Génesis. Nenhuma revista põe um jornalista a trabalhar num projecto durante sete anos. Eu pude fazer porque me organizei para que isso acontecesse. Às vezes faz-se confusão dizendo que eu fiz um trabalho jornalístico. Na verdade eu fiz um trabalho documental. O facto de ter saído em muitas revistas de informação não transforma o meu trabalho em jornalisnmo. Vejo a missão do jornalismo muito conotada com a actualidade e por isso está mais destinada a cobrir um facto muito específico. Todas as histórias que eu fiz - Trabalhadores, Êxodos, Génesis, América Latina, Shael. . . - fiz porque quis fazer. Há uma pequena diferença aqui. Nas paisagens deste trabalho, está muitas vezes perto do céu, a ver de cima para baixo. Não receia que estas fotografias pareçam captadas por um gigante para os anões verem? Não receia perder o pé da terra, o contacto directo?Mas eu fui ver a terra. Caminhei muito, muito. Subi a montanhas… Lembro-me que no Alasca um aviãozinho largava-me num ponto e vinha-me buscar dez dias depois, ou duas semanas depois, dependendo do clima. Ficava em paz, sozinho. Subi àquelas montanhas a aprender a ver o meu planeta, a integrar-me nele. A partir de um momento era parte daquele todo. Quis muito olhar o todo. Fui o anão e o gigante ao mesmo tempo, porque eu também sou natureza, estive ligado a tudo. O nosso planeta é de uma beleza, de uma vastidão, de uma vivacidade… Tudo é vivo. Havia montanhas que imaginava mortas, mas elas são mais vivas do que eu. Se tivesse a capacidade de ver a natureza em milhares de anos, eu perceberia que aquilo tudo era móvel. Montanhas jovens, a crescer, ou velhas, a erodir e a renascer outra vez. Estive em cima de rochas que tinham um dia de existência. Tive de levantar um pé e pousar o outro por causa da temperatura com que vinham dos vulcões. Assim como estive em cima das rochas mais antigas do mundo, que ficam nas montanhas Guiana, na Venezuela. Foi um privilégio. Diz que com este trabalho experimentou a sensação de entrar no planeta. Em que parte do globo se sentiu mais perto das ideias de Génesis?Em todos eles. Mas houve uma viagem em que estive muito colado ao planeta. Foi durante uma viagem entre Lalibela, no Norte da etiópia, até ao Parque Nacional de Simien. Fiz 850 quilómetros a pé, caminhando por entre montanhas. Não havia estradas. Demorámos quase dois meses, 55 dias de marcha. Organizámos uma expedição com 18 jumentos, 15 homens, mais um guia, um cozinheiro e um assistente. Éramos 19 pessoas. A Lélia juntou-se depois à expedição. Foi uma viagem muito intensa. Pude sentir não só o planeta, como a nossa existência junto com o planeta. Passei em caminhos por onde o ser humano passa há dez mil anos. Sente-se um imenso poder em lugares assim. Estive muito, muito colado ao planeta. Costuma falar muito da Etiópia. Tem alguma ligação especial com este país?A Etiópia é o centro do mundo. Olha… a Etiópia é tão fabulosa! É o único país de África que nunca foi colonizado. Foi invadido mas não foi colonizado. A Etiópia é um país com um sistema global, completo, uma verdadeira cultura, um verdadeiro grupo de pessoas que se formaram há milhares de anos. A sua história, a história de Portugal, do tempo das grandes navegações, está ligada à Etiópia. Nessa altura foram enviados mensageiros por terra que fincaram a viver naquela terra. Nessa longa caminhada, vivi um pouco com os judeus negros da Etiópia, originários da rainha de Sabá e do rei Salomão. Muitos emigraram par Israel nos anos 80, mas ainda ficaram alguns. Aquelas tribos do Norte são coptas e judeus. Portanto, viajei por entre uma sociedade judaica e pré-cristã que há três mil anos já existia como sociedade, e é a mesma que existe ainda hoje naquele país. A Etiópia é de um poder imenso. A natureza é bela… para mim, a Etiópia é o umbigo do mundo. Uma das coisas para que este trabalho nos chama a atenção é que 46% do planeta permanece intocável ou quase intocável. Isto surpreendeu-o?Este dado é da Conservation International. Fiquei muito surpreendido e acho que são números que surpreendem toda a gente. Se pensar bem, esta percentagem é fácil de compreender, porque boa parte do planeta é formado por terras altas, terras áridas e terras frias de difícil acesso e difíceis de colonizar. Tudo junto, dá uma visão interessante. Não são as partes principais do planeta. Essas, nós conseguimos destruir. Uma grande parte dos 35 hotspots do planeta, como foram definidos pela Conservation International, já foi destruída. Mas ainda há muita terra virgem. Ao lermos o texto de Lélia no livro, ficamos com a impressão de que o planeamento e a concretização do projecto foram em si uma odisseia. Quer falar do papel da sua mulher nesta aventura? Sabe uma coisa: eu gosto muito da minha mulher. O principal acontecimento da minha vida foi o dia em que encontrei a Lélia. Pouco depois de nos termos encontrado, coisa de um mês, já tínhamos uma conta conjunta no banco. Tivemos uma vida de uma comunhão muito forte. Tenho uma grande admiração por ela. Não só porque acho a minha bela, mas também porque é inteligente, porque tem uma energia que pouca gente tem. A Lélia tem uma qualidade ética, um quadro de valores muito importantes. Falamos da fotografia e do fotógrafo, mas não se fala de quem está junto do fotógrafo, aquele que faz a base para que se possam construir projectos de fotografia. É como quando vemos os icebergs, vemos só uma pontinha, mas o que está em baixo é muito mais importante. O ditado diz que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Não estou a dizer que eu seja um grande homem, mas quero contrariar este ditado porque o que há é mulheres ao lado os homens. A Lélia sempre andou ombro a ombro comigo. Todas as ideias, todos os conceitos de trabalho, foram feitos com ela. Quando eu estudava Economia, ela estudava Arquitectura. Por coincidência, o arquitecto é o irmão gémeo do fotógrafo. Nós trabalhamos com espaços, com luz. A formação que tive em Economia não foi diferente de parte social da formação que a Lélia teve. Os arquitectos têm uma formação completa. Estudei muito com a Lélia. Estudamos o marxismo, estudamos geopolítica, estávamos no mesmo grupo de estudo. Nós pensámos muito em conjunto. Mais: é ela que desenha os meus livros, é ela que concebe as minhas exposições. A exposição de Lisboa, vai ter a sua curadoria. Ela faz a cenografia, escolhe as cores, experimenta sequências, tamanho das fotografias. Somos uma dupla muito complementar não só no trabalho, mas em tudo na vida. Então, na prática, ela é a parteira de todos os seus projectos…É a maior associada que podia ter na minha vida. Somos sócios em tudo. Porque é que a meio deste projecto decidiu isolar um livro e uma exposição sobre África?Tenho uma enorme admiração pelo continente africano. Para os brasileiros, África tem uma conotação muito especial, mesmo que a maioria dos brasileiros não a compreenda inteiramente. Há 150 milhões de anos o continente africano e o americano eram um só. Basta olhar para os contornos dos continentes do lado atlântico. Eles encaixam. O que nós no Brasil temos de minerais, do lado africano também tem, os vegetais, apesar de uma certa evolução, também não são tão diferentes assim. Houve um movimento de população importante iniciado com o comércio de escravos pelos portugueses. Uma das grandes componentes raciais brasileira é a africana. Para mim, a África terá sempre uma conotação especial. É o continente principal. Se a Etiópia é o umbigo do mundo, a África é a cabeça do mundo. É um continente completo, em culturas, em línguas, em história. É muito especial para mim. Alguma vez teve medo enquanto fotografava para este trabalho?Ah, sim, várias vezes. E corri alguns riscos sem saber que estava a corrê-los. O meu assistente é guia de alta montanha, Jacques Barthélemy. Quando planeámos este trabalho, percebemos que havia riscos que eu desconhecia. Até aqui, conhecia apenas o risco e o perigo da nossa espécie, da agressividade da nossa espécie, mas não conhecia inteiramente os riscos ao enfrentar a natureza. Decidimos ter alguém perto de mim que fosse chegado à natureza. O Jacques continua a ser o meu guia até hoje. Em África, fomos atacados por elefantes, por rinocerontes… Tive medo. Em 2013, cumpriram-se 40 anos desde que decidiu ser fotógrafo. Em vez de editar Génesis, o patrão da Taschen propôs-lhe uma obra retrospectiva. Porque recusou?Eles propuseram-me uma grande edição com todo o meu trabalho do tipo da edição especial que foi feita para Génesis. Mas não quis fazer nessas fotografias - que são imagens sociais, com sofrimento, e trabalho - um objecto de arte. Preferi não fazer. Depois de Migrações disse ter perdido a fé na humanidade. Génesis serviu para recuperar essa fé ou continua perdida?Não mudei o meu ponto de vista em relação à humanidade. Acho que a humanidade é uma espécie sem saída. Não somos uma espécie sustentável, destruímos tudo à nossa volta ao ponto de haver lugares onde já não é possível viver por causa da nossa destruição. A única espécie realmente predadora somos nós. Quando terminei Migrações não acreditava na espécie humana, como não acredito até hoje. Fiquei desesperado, porque os humanos eram a minha única referência. Mas depois, quando comecei a replantar uma floresta na nossa quinta no Brasil (Vale do Rio Doce, Aimorés), quando decidimos fundar o Instituto Terra e depois da concretização de Génesis comecei a viver em paz. Compreendi que se a nossa espécie desaparecer, sobreviverão muitas outras, a das formigas, a dos camaleões, a dos rinocerontes. . . São espécies tão importantes como a nossa. O problema é que nós estamos a acabar com uma das espécies mais importantes de todas, a das baleias. Os japoneses e os noruegueses estão a terminar com a cabeça de uma cadeia. Não compreendem que não podemos cortar a nossa cabeça. Se não mudarmos o nosso comportamento em relação à natureza, vamos desaparecer. E o certo é que não estamos a mudar esse comportamento, pelo contrário, estamos a usar cada vez mais espaços que não são os nossos. Mas, hoje, vivo em paz porque me aproximei tanto da natureza que me tornei natureza. É comum encontrar as palavras "épico" e "grandioso" para classificar o seu trabalho. Entende-as mais como uma elogio ou como uma crítica?Não me afecta. Quem faz essas críticas não sou eu. Vivi a vida que quis viver. Vi aquilo que quis ver. Fotografei o que me deu prazer ou o que me revoltou, em lugares onde tive o gosto de ir e outros em que tive o desgosto de ir. Há pessoas que acham a minha fotografia profundamente estética e que eu estetizo a miséria. Isso é problema deles, não é meu. Ver uma fotografia é o mesmo que ler um texto de um autor e gostar ou não gostar. Tem seguido a fotografia contemporânea? Como olha para um certo abandono do documental clássico a favor de outras linguagens mais centradas no conceptual?A fotografia é uma casa com muitos quartos, tem muitos estilos, muitas formas. A fotografia que me encanta é a fotografia da vida. E os fotógrafos de que gosto são aqueles que se envolvem a longo prazo, que colocam muito deles e da sua própria história, angústia e prazer no seu trabalho. Quando vou ao Paris Photo, noto que 90% das mais de 500 galerias que lá estão mostram sobretudo fotografias conceptuais, que são criadas para serem vendidas como objecto. Mas as fotografias que me encantam são as fotografias do Henri Cartier-Bresson, do Richard Avedon, do Álvarez Bravo, da Graciela Iturbide, são fotógrafos com uma certa maneira de estar vida. Considero essa a verdadeira fotografia. Tudo o resto é um trabalho plástico, vindo de artistas plásticos que usam o suporte da fotografia para exprimir um ponto de vista, a sua criatividade. Como usam o suporte da fotografia, aquilo passa a ser fotografia. Mas para mim, fotografia é outra coisa. Desde que foi inaugurada, a exposição Génesis já foi vista por quase dois e meio milhões de pessoas. O que imagina que leva um tão grande número de pessoas até às suas fotografias?Não acho que as pessoas venham à minha fotografia. Acho que são tão vistas pelo que estão a representar, pelo que contam. Temos um interesse muito grande pelo nosso planeta. As pessoas regressam à natureza. O que estamos a fazer em Génesis é uma espécie de estado da arte do planeta. É um corte representativo do que a Terra tem de prístino, de puro. Acho que as pessoas são atraídas nesse sentido. Não vão ver as fotografias do Sebastião Salgado. Elas vão ver o planeta Terra. Claro que haverá pessoas que virão porque gostam da minha fotografia, mas a maioria nem sabe que eu existo. Escreveu sobre um momento em que viu orcas a caçar as crias de leões-marinhos e da sua tristeza ao ver este lado cruel da natureza. Apeteceu-lhe alguma vez interceder pelo mais fraco? Chegou a fazê-lo em alguma ocasião?Na natureza não. Ela segue uma regra básica. O predador na natureza preda exclusivamente pela sua necessidade de sobrevivência. Ele não preda para acumular, para fazer negócio ou para alimentar o ego. Preda para existir. Se as orcas caçam o leão-marinho, o leão-marinho caça uma série de seres vivos dentro do oceano. É a cadeia da vida. Intercedi muitas vezes para nós, dentro da nossa espécie. Várias vezes parei e fiz, mas para as outras espécies não. Não tenho esse direito. Quer partilhar algum caso em que tenha intercedido por alguém?Prefiro não partilhar. Há 15 anos que não expunha em Portugal. Como vê este regresso?Tenho um imenso prazer em regressar. Adoro Portugal. Passou demasiado tempo desde a última vez que aí estivemos. Qual foi última fotografia que tirou?Foi da irmã da Lélia que morreu na semana passada no Brasil de uma maneira brutal. Foi atropelada por um carro enquanto caminhava na calçada. Era uma pessoa que eu adorava. Era uma das minhas melhores amigas, era uma irmã muito próxima de Lélia. Sofremos muito com essa morte. Acho que foi a última fotografia que fiz. Foi na terça-feira da semana passada, no Brasil.
REFERÊNCIAS:
“Mais do que um mistério, é uma evidência: não era preciso uma conspiração para matar King”
Parece meio doido, mas tem algumas coisas em comum com James Earl Ray, o assassino de Martin Luther King. Os dois fugiram para Lisboa, os dois sentiram-se impostores, os dois sabem de medo, de solidão e de fantasmas. Deste cruzamento improvável, nasceu o último livro do escritor. (...)

“Mais do que um mistério, é uma evidência: não era preciso uma conspiração para matar King”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Parece meio doido, mas tem algumas coisas em comum com James Earl Ray, o assassino de Martin Luther King. Os dois fugiram para Lisboa, os dois sentiram-se impostores, os dois sabem de medo, de solidão e de fantasmas. Deste cruzamento improvável, nasceu o último livro do escritor.
TEXTO: Trinta anos depois de O Inverno em Lisboa, o espanhol Antonio Muñoz Molina regressa à capital portuguesa com o livro Como a Sombra Que Passa, para mergulhar na misteriosa visita a Lisboa do assassino de Martin Luther King, líder do movimento de direitos civis norte-americano e Nobel da Paz. Cinquenta anos depois do crime, continua a ser um mistério a razão que levou James Earl Ray, um branco pobre, marginal e ladrão de meia-tigela que nunca tinha saído dos EUA, a escolher Portugal para se esconder da polícia. Ray matou King em Memphis, Tennessee, a 4 de Abril de 1968, e a 8 de Maio já aterrava no aeroporto da Portela com uma identidade falsa. Foi com surpresa que percebeu que fora montada uma operação de “caça ao homem” à escala mundial e que mais de três mil agentes do FBI seguiam pistas em diferentes continentes. Sabemos hoje que nenhuma apontava na direcção de Lisboa. Sabemos também que Ray queria estar na sombra e que o centro do velho império português oferecia esse conforto. Quando foi detido no aeroporto de Londres, depois de passar nove dias no Hotel Portugal — que ainda funciona na Rua João das Regras, no centro histórico da cidade —, disse à polícia que viera a Lisboa porque queria ir ter com um irmão que era mercenário em Angola. Os que acreditam que Ray não era um lobo-solitário mas o peão de uma conspiração governamental para matar o reverendo negro acrescentam um ponto: a vinda a Lisboa não foi nem um capricho, nem um acaso; Ray tinha gente à sua espera. “Raoul”, o “latino” que o contratara para o crime, chamava-se na verdade Raul e era um emigrante português que trabalhara numa fábrica de armas antes de sair de Portugal. A escolha de Lisboa “é um mistério total e, provavelmente, também um mistério banal”, diz Molina, que emergiu dos quatro anos de estudo exaustivo das fontes (oficiais, livros de História e reportagens) sem acreditar em teorias da conspiração, nem sequer na existência de Raoul/Raul, independentemente da grafia. “Este cretino matou King porque era fácil”, diz nesta conversa na livraria da Fábrica Braço de Prata, a mesma onde, nos anos 1950, quando aqui se fazia material de guerra, trabalhava o “Raul” que a família King acredita ser cúmplice do crime. Quando era um jovem escritor e se sentia, como Ray, “um pouco impostor”, também Molina fugiu para Lisboa. Como a Sombra Que Passa são por isso três viagens que, entre a ficção e (muitos) factos, contam os passos de Ray e de Molina pela cidade. O livro foi finalista do prémio Man Booker deste ano, mas em Portugal foi editado pela Ponto de Fuga, pequena editora com quatro anos de vida. A razão é simples e, tal como na fuga de Ray, inclui coincidências e acasos. Enquanto pesquisava para o livro, o escritor, que hoje vive entre Madrid e Lisboa, leu no semanário Sol uma reportagem de Vladimiro Nunes, que em 2007 entrevistou alguns dos portugueses com quem Ray se cruzou em Lisboa, os mesmos que o New York Times e a Life entrevistaram e fotografaram em 1968, após a prisão. Os factos que Molina aí descobriu foram tão úteis para o seu romance que só fazia sentido publicá-lo na editora que Vladimiro Nunes, o autor da reportagem, acabara de fundar. Escolheram lançar o livro na Fábrica Braço de Prata porque “Raul”, o suposto cúmplice português da conspiração para matar Martin Luther King, trabalhou nesta fábrica antes de emigrar para os EUA?Ai sim?! Não. Eu não sabia disso. Uma coincidência incrível. Para uma mente conspirativa, essa coincidência não seria aceitável!William Pepper, advogado da família de King, explica que, como “Raul” trabalhava nesta fábrica de material de guerra, tinha uma relação com o mundo das armas que o levou ao submundo do crime nos EUA, e que a razão da vinda de Ray para Lisboa seria encontrar-se com os amigos desse “Raul”, que o iriam ajudar a ir para África. Se Ray tivesse amigos em Lisboa, teria estado melhor do que esteve, teria vivido melhor. Ele não tinha amigos, não tinha ninguém. E essa ideia de que o “Raul” tinha contactos no mundo das armas. . . É preciso um português com contactos no mundo das armas para arranjar uma arma nos EUA, um país onde toda a gente tem armas?Descreve a solidão de Ray em Lisboa como “tão definitiva como a de um animal ou a de uma estátua”. Como chegou a essa imagem?Imagine uma pessoa que passou mais de metade da sua vida na prisão, que nunca esteve em nenhum sítio interessante e que de repente se vê em Lisboa. Como será essa solidão? Não entende uma palavra, não entende a comida, não entende as ruas, a topografia, não entende uma cidade histórica, vem de um mundo em que não existe História. Como é o mundo através dos seus olhos?Pôs Ray a ver Lisboa com um “filtro James Bond”. Ray tinha poucas referências e nos livros do James Bond os agentes e os espiões, quando chegam a uma cidade, já sabem tudo sobre ela. Os livros que lia eram fantasias machistas baratas, com homens espertos que dominam todas as armas e seduzem todas as mulheres. Tento imaginar-me sozinho e perdido numa cidade sem ter qualquer referência. Como será essa sensação? Ele não veio fazer turismo, não foi ver o Mosteiro dos Jerónimos. . . Quando começou a escrever este livro já sabia o que ia acontecer?Não. Tive de começar a escrever para saber. O impulso de escrever um livro não se torna real até haver um ponto de partida muito forte. Neste caso, qual foi?Ray em Lisboa. Este homem sozinho em Lisboa. A partir daí, rapidamente comecei a recordar a minha própria vida e a forma como cheguei aqui. Que livro é este: ficção com tese histórica, livro de viagens, autobiografia?É um romance. Tenho uma ideia generosa do romance: pode abarcar tudo isso. Acima de tudo, é ficção. Porque a ficção não tem limites, ao contrário da não-ficção. Há partes que são de não-ficção, mas grande parte é ficção. O último capítulo, por exemplo, é contado a partir do ponto de vista de Martin Luther King. Começa quatro minutos antes do disparo. King sai à varanda numa bonita tarde de Memphis e invento o que vai na sua cabeça. Sei muitas coisas: sei que tinha dois dólares no bolso, que tinha um cigarro apagado na mão, sei que creme de barbear usava. Mas não posso saber o que ia na sua cabeça. Por isso, é um romance. Há outro momento em que me ponho na cabeça de Ray, que é quando ele está em Lisboa. Essas são as minhas partes de ficção. Há uma coisa que sabemos: foi aqui em Lisboa que ele viu a famosa capa da Life que o mostra em menino. Em Maio de 1968, quando ele estava aqui em Lisboa e já era procurado, a Life encontrou e publicou uma fotografia dos seus tempos de escola, em que se vêem 30 crianças pobres e em que, com uma seta, está assinalado um menino na segunda fila. É James Earl Ray. É uma capa impressionante, que saiu na semana em que ele estava em Lisboa. Sei que estava sempre a perguntar aos empregados do hotel onde podia comprar jornais e revistas ingleses e americanos, pelo que estou seguro de que a viu aqui. Tenho esse dado, mas não sei quando a viu ou como a viu ou o que pensou. Que sentiu ele ao ver a sua fotografia de menino na capa de uma revista? Isso é o que tento imaginar e é por isso que este livro é um romance. A parte autobiográfica é toda verdadeira?Sim. Apesar de conhecer tantos factos, começa o livro com um sonho. Tinha de começar por algum lado! Queria contar a forma como esta história começou a surgir na minha imaginação e na minha vida. Além da história, queria contar o processo da minha obsessão para a encontrar e descobrir. E esse sonho é uma prova dessa obsessão. Um sonho de perseguição, um sonho de medo. O sonho foi real?Sim. A dimensão autobiográfica está muito misturada com a outra. Uma coisa que está relacionada comigo é saber o que faz com que alguém sinta tanto interesse por uma personagem destas. Porque me seduz? O que é que a sua história tem que ver comigo?Tem que ver com o facto de também ter fugido para Lisboa?Não sei exactamente e não me posso comparar a ele. . . mas há um paralelismo. Um escritor que vem para Lisboa à procura de uma ideia para um livro e o assassino de Martin Luther King que vem para Lisboa a seguir ao crime. É um paralelismo insólito: muitas outras pessoas vieram para Lisboa antes, durante e depois. Claro! O que me interessa é perceber por que razão isso tem uma ressonância tão grande em mim. Ray é uma pessoa terrível e é um marginal, mas há coisas em que nós, seres humanos, nos parecemos muito. O instinto de medo, a sensação de que nos pode acontecer algo de mau, de que temos de nos esconder, é uma coisa que muitas pessoas sentem muitas vezes na vida. Se uma pessoa tiver essa propensão, é-lhe mais fácil interessar-se por quem vive assim. Quando veio a Lisboa nos anos 1980, vivia com medo?Sim. O medo é um fenómeno psicológico comum. As pessoas têm medo de muitas coisas e muitas vezes vivem angustiadas. Não é preciso sermos perseguidos pelo FBI para sentirmos angústia. Eu talvez tenha uma certa atracção por esse tipo de histórias e de pessoas. É como quando vemos alguém a ser perseguido num filme, sentimos logo algum tipo de identificação com essa pessoa. O que trouxe Ray a Lisboa?Pensa que daqui consegue seguir para as colónias, fazer-se mercenário na Guerra Colonial e conseguir chegar à Rodésia ou à África do Sul. Ele chegou a pedir um visto para Angola no Ministério do Ultramar?Sim, chegou a pedir autorização para embarcar num barco sueco que ia para Angola. Só que esse visto demorava duas semanas para ser emitido e o barco partia daí a dois dias. Acabou por desistir. É verdade que um dos irmãos de Ray era mercenário em Angola?Isso não é verdade. Os seus irmãos não serviam nem para mercenários! Eram um desastre. Ele disse isso à polícia em Londres, que ia ter com o irmão, mas não era verdade. Como resolver a perplexidade de compreender o que leva este homem a matar o Nobel da Paz, o “Gandhi da América”, e a seguir vir para Lisboa?Ray não sabia o quão importante era Martin Luther King. Não tinha noção da ressonância negativa do seu assassínio. Sabia quem ele era, mas a sua imaginação estava cheia de preconceitos, era uma imaginação estreita. Tinha visto que muitos assassínios de negros não eram castigados e ficou surpreendido com a dimensão da operação de “caça ao homem” contra ele. Creio que a sua vontade era simplesmente “dar o salto” para África. Aliás, quando voltou a Londres, foi detido no aeroporto ao tentar embarcar para Bruxelas, que na altura era um dos principais centros de contratação de mercenários. Não sei como obteve essa informação, mas devia saber que, tal como Bruxelas, Lisboa era uma cidade onde se contratava gente para ir para a Guerra Colonial “matar pretos”, como eles diziam. Muito antes do assassínio, Ray já tinha dito a um amigo que queria ir para o Congo matar pretos. Era um típico racista do Sul dos EUA. Ele conseguiu dar algum passo nesse sentido em Lisboa?Parece que uma delegação não oficial da Rodésia ou da África do Sul lhe deu um contacto, mas estou convencido de que não conseguiu muita informação em Lisboa. No livro, fala da oposição entre a “tensão secreta do impostor” e o “conforto da pertença”. Isso também é autobiográfico?Sim. Temos grande dificuldade em colocarmo-nos na cabeça de um impostor. Cada um de nós tem o seu nome, o seu número de passaporte. . . Se nos perguntarem o nome, respondemos sem hesitação. Este homem usava um nome falso, teve de “aprender” o seu nome. É difícil ter um nome falso, ele próprio admite isso nas suas declarações. Precisava de encontrar um nome falso que fosse fácil de lembrar, mas que não fosse demasiado comum para não se enganar. Se decidisse chamar-se Peter Smith, iria esquecer-se rapidamente. Imagine-se a tensão de uma pessoa que tem de estar sempre a dizer um nome que não é o seu, que tem de estar sempre a inventar vidas que não são a sua. Ele contava uma história diferente de vida a cada pessoa que encontrava. Dizia que era da marinha mercante, dizia que era muitas outras coisas. E a minha pergunta é: como é a vida interior de alguém que tem de estar sempre a mentir? Foi isso que me atraiu mais nele. Esta personagem é o herói desta história?Ray não é um herói, é uma personagem. Um herói é outra coisa. O herói é Martin Luther King. A minha perspectiva aqui é saber como vive uma pessoa que tem de estar continuamente a fingir. Que peso teve a sua experiência de se sentir “impostor”?Senti isso muitas vezes na minha vida. Pode ser-se impostor de muitas maneiras. Eu sentia-me impostor quando ia para a faculdade, porque vinha de uma classe trabalhadora e muitas das pessoas com quem me relacionava eram de classes superiores. Eu sentia a diferença que nos separava. Ou quando trabalhava na câmara municipal de Granada: se um artista entrasse lá, ver-me-ia simplesmente como um burocrata, por muito que, no meu interior, eu já fosse um escritor. Isso não interessava a ninguém, nesse momento só eu o sabia. Precisou de ser escritor a tempo inteiro para deixar de se sentir impostor?Em parte. Muitas pessoas vivem de uma determinada maneira, mas por dentro sentem outra coisa. Tal como as pessoas que estão numa relação e traem o companheiro. Escreve que o herói d’O Grande Gatsby [F. Scott Fitzgerald] só existe porque há um narrador que o observa. Traz-nos essa referência para nos dizer o quê sobre o seu processo de escrita?Na não-ficção não há ponto de vista. Geralmente, limitamo-nos a relatar os factos. Mas no romance tudo depende do ponto de vista. Imagine que o Dom Quixote era contado a partir do ponto de vista do próprio Dom Quixote. Seria uma história diferente. Gatsby é uma personagem quase lendária, misteriosa, e é visto a partir de fora, do ponto de vista de alguém que não o conhece bem. Como é que andar pela Rua dos Fanqueiros, na Baixa de Lisboa, “à procura de um fantasma”, como escreve, o ajudou a encontrar a sua história?Pensar que aquela pessoa foi tão real como eu, que andou por estas mesmas ruas, que viu a mesma Praça da Figueira que vejo, que esteve aqui uns dias, mas que já não existe. Até certo ponto, todas as pessoas são fantasmas. Essa ideia atraiu-me. Nesse dia, enquanto caminhava, achava que ia encontrar o seu hotel. Tinha lido comentários sobre o Hotel Portugal no Trip Advisor, mas eram anteriores à renovação. Quando lá cheguei, só vi as obras, estava fechado. Foi uma pena. Uma das coisas que se liam na Internet era algo que também se atribuía ao Ray, que eram queixas de que os quartos eram bons mas que se ouvia muito o barulho do metro. Não lhe interessava escrever um livro que não incluísse ficção?Poderia ter sido interessante, mas a história de Ray em Lisboa não fornece material suficiente para escrever um livro que não fosse de ficção. Só se fosse pequenino. . . ! Escrevo muito para jornais. Pode fazer-se grande literatura nos jornais, e eu gosto muito de não-ficção, mas neste caso senti que não era a ferramenta adequada para mim. Porque é que é importante ir aos lugares, como fazem os jornalistas, para escrever ficção?Para conseguir imaginar um sítio, tenho de o visitar. Aconteceu-me o mesmo quando escrevi O Inverno em Lisboa, precisava de vir cá. Quando comecei a escrever este livro, estava a viver em Nova Iorque, mas senti uma necessidade absoluta de ir a Memphis. Não podia ficar-me pela informação de que dispunha e pelas imagens e documentários que se encontram no Google, precisava de ir lá fisicamente. Foi quando lá cheguei que me dei conta de que Martin Luther King também tinha de ser uma personagem do livro. Quando estive no Motel Lorraine e vi pela janela a pensão em frente e, mais atrás, o brilho do rio Mississípi. . . Era um quarto com uma luz extraordinária. Esses detalhes foram informações fundamentais para mim. Faz sempre esse trabalho de repórter quando está a trabalhar num livro?Muitas vezes. Preciso muito do contacto com a realidade. Logo no início do livro, diz que “é espantoso o quanto se pode saber acerca de uma pessoa sobre a qual, no fundo, nada se sabe, porque ele não disse o mais importante”. O que é que James Earl Ray nunca disse?Nunca disse quem o ajudou a seguir Martin Luther King naqueles meses antes do assassínio e, claro, nunca disse que o matou. Sabemos que admitiu o crime ao fazer o acordo que lhe permitiu não ir a julgamento, mas realmente não sabemos o que havia dentro dele, o que é que o fez sair tão subitamente de Los Angeles e fazer aquele percurso de regresso ao Sul dos EUA, passando por Birmingham, Memphis, Atlanta. . . Por que razão o faz? Porque regressa tão subitamente? Tinha estado escondido no México e de repente faz todo esse percurso pelos EUA e começa a seguir Luther King. O que tinha na cabeça? Não sabemos. Sabemos que, três dias após ter confessado, passou os 30 anos seguintes a dizer que não assassinara Luther King e que caíra numa armadilha. Sim, ele disse isso — e essa é uma coisa que pode ser discutida —, mas também sempre disse muitas mentiras. Sempre mentiu muito sobre o seu comportamento e as suas acções, pelo que a verdade é que não sabemos. Não sabemos porque foi a Londres, não sabemos porque veio a Lisboa. . . Sabemos que não teria grande coisa preparada porque vivia miseravelmente. Tinha algum dinheiro no início da fuga, provavelmente resultado de um roubo no Canadá. Mas quando chega a Lisboa, tem muito pouco dinheiro. E quando volta a Londres está tão desesperado que tem de fazer dois roubos, um deles fracassado: tenta roubar a joalharia de um casal de idosos, mas a senhora apanhou-o e não o deixou levar nada! Acaba por roubar a agência de um banco, de onde levou uma pequena quantia. Então fica-se a pensar: como é que uma pessoa com tão poucos apoios podia fazer parte de uma grande conspiração? Não acredito nisso. Estamos a falar de um homem que comprou uma câmara de filmar porque queria ser realizador de filmes pornográficos. Ou seja, é um mistério total. Provavelmente, é também um mistério banal. Um mistério parece-nos sempre importante. Não tem qualquer dúvida de que Ray matou Luther King?De acordo com a informação que existe, não tenho qualquer dúvida. Há a possibilidade de que tenha tido algum tipo de ajuda, isso acho possível. Ajuda do Governo, como diz a família King?Não, isso não acredito. Acho que Ray pode ter tido algum tipo de ajuda, mas estou plenamente convicto de que foi ele quem matou Martin Luther King. Sobre isso, e de acordo com tudo o que li até hoje, não tenho dúvidas. De onde pode ter vindo essa ajuda? Dos irmãos, que eram extremistas e racistas?Provavelmente. Creio que a ajuda, se é que houve alguma, terá vindo dos dois irmãos e dos contactos que tinham. Há uma coisa muito importante: não pensar no difícil que era matar o Dr. King. Pelo contrário, era muito fácil. Muitas pessoas pertencentes aos movimentos dos direitos civis foram assassinadas nos Estados Unidos. E havia notícias nos jornais, “amanhã King estará em. . . ”. A fotografia do Motel Lorraine saiu nos jornais de Memphis. Tudo era público, King não tinha protecção. Era vigiado pelo FBI, mas não estava protegido. Sabemos que o vigiavam a partir do edifício dos bombeiros, mesmo em frente do motel, e que ainda hoje lá está. Ou seja, era fácil. Este cretino matou King porque era fácil. Era muito fácil arranjar uma arma de fogo, ele usou documentos falsos para comprar uma espingarda. Mais do que um mistério, é uma evidência: era muito fácil matar King, não era preciso uma grande conspiração. Lembra-se de quando quase mataram King no Harlem em 1955? No seu primeiro dia em Nova Iorque, uma mulher cravou-lhe um punhal e quase o matou. Era uma mulher negra, com perturbações. Era muito fácil. Hoje vivemos numa época em que há muito mais segurança, muito mais controlo, mas nessa época, e para uma pessoa como King, não havia segurança. Há uma diferença entre o Governo matar King ou não se importar que ele seja morto. É evidente que o director do FBI odiava King e o movimento dos direitos civis, e que o Presidente Johnson estava incomodado com ele naquele momento, mas creio que não houve nenhuma grande conspiração. Não era preciso. Foi preciso uma conspiração para matar o arquiduque Francisco Ferdinando em 1914 na Sérvia? Não. O nacionalista sérvio Gavrilo Princip aproximou-se dele com a sua pistola e disparou. Há anos que se fala da inteligência de Ray. A família e os que acreditam que houve uma conspiração usam o argumento de que não era um homem muito inteligente e portanto não tinha capacidade para montar um plano que tem alguma complexidade, como ter obtido documentos falsos com nomes de canadianos que viviam todos na mesma rua. Não era preciso capacidade especial para cometer este crime. Qualquer pessoa conseguia obter documentos falsos no Canadá. Todos os espiões soviéticos arranjavam passaportes no Canadá. Quando a União Soviética precisava de documentos falsos para entrar nos EUA, arranjava passaportes canadianos. Era muito fácil, bastava duas fotografias e um papel. Tudo isso mudou após o assassínio de King. As nossas opiniões sobre este momento estão muito afectadas pelo facto de que agora vivemos numa época muito mais controlada. Ray viajava com um revólver à cintura! É preciso uma conspiração para que um tipo voe de Toronto para Londres com um revólver no bolso e a seguir traga esse mesmo revólver para Lisboa?Essa mesma história do revólver é usada pela família King para, justamente, afirmar que Ray não era muito inteligente. Quando estava a escrever o romance, um dos exercícios era pensar em como é que uma pessoa como ele veria tudo isto. Tentar ver Lisboa pelos olhos de alguém como Ray. Uma pessoa que tinha tido uma vida de merda, que tinha sido condenado a 20 anos por roubar 200 dólares. Assaltou um supermercado com um parceiro e levou 20 anos. Não tinha advogado, tinha antecedentes criminais. . . O sistema penal americano é muito cruel para os pobres, negros ou brancos. Que sabia ele do mundo?No seu romance, Ray está sempre a ler e viaja sempre com livros na mala. Tem uma cultura geral desordenada e caótica. Eu tenho todos os livros que ele leu e li-os todos!Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Aprendi no seu livro que para hipnotizar alguém é preciso não pestanejar. Esse é um dos exemplos: um manual de hipnose disparatado. Eu li todos esses livros e os manuais de auto-ajuda que Ray lia. São livros ridículos. Segundo os relatórios escolares, era uma pessoa que tinha uma inteligência natural um pouco acima da média. Tinha curiosidade, mas era uma curiosidade desorientada porque não tinha qualquer fundamento cultural. Sem estrutura, sem enquadramento. Ao lermos os dois livros de Ray e as suas declarações, damo-nos conta da influência que os romances baratos tiveram sobre ele. A maneira como Ray descreve o “Raoul/Raul” é típica da má literatura, dos romances policiais e das histórias de espiões. Ele gostava do James Bond, mas o que mais lia era literatura pop de má qualidade e com todos os estereótipos: conspirações, encontros secretos, espiões sedutores, tudo isso. Ray tinha cunning, como se diz nos EUA, tinha uma astúcia delinquente, sabia fazer certas coisas. Mas não era preciso ter uma inteligência especial para matar Martin Luther King. Quantos anos trabalhou neste livro?Na história em si, quatro anos. Como foi o processo de pesquisa?Toda a informação está disponível online, é facílimo aceder a ela. Foi por isso que escrevi o livro! Há uma página onde é possível consultar as fotocópias de todos os interrogatórios, todos os relatórios dos agentes. E no site da polícia de Memphis encontrei os registos da vigilância a Ray depois da sua detenção. Quando o trouxeram de Londres, voou directamente para Memphis sob grandes condições de segurança, porque não queriam que se passasse o mesmo que com Lee Harvey Oswald. Foi quando lhe tiraram aquela famosa fotografia, em que está vestido com um colete à prova de bala. Vigiavam-no na prisão 24 horas por dia e registavam todos os seus movimentos. Tudo isso está online. “Às 7h14 da manhã, tomou o pequeno-almoço: café, banana e meia torrada. Deitou-se na cama. Esteve a escrever. ” É por estes registos que sei que não parou de escrever, estava permanentemente vigiado. “Teve pesadelos, mexeu-se muito durante o sono. ” Até este tipo de coisas está nos relatórios. São de uma riqueza de dados assombrosa.
REFERÊNCIAS:
Jazzé, 50 minutos de filme
Oitenta anos de vida, 60 do primeiro programa de rádio, quase 53 dos Cinco Minutos de Jazz: José Duarte deixou-se retratar num documentário de Jorge Paixão da Costa, que a RTP promete estrear ainda este ano. Histórias com jazz e outras músicas, a que ele acrescenta outras, nesta conversa. (...)

Jazzé, 50 minutos de filme
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Oitenta anos de vida, 60 do primeiro programa de rádio, quase 53 dos Cinco Minutos de Jazz: José Duarte deixou-se retratar num documentário de Jorge Paixão da Costa, que a RTP promete estrear ainda este ano. Histórias com jazz e outras músicas, a que ele acrescenta outras, nesta conversa.
TEXTO: O filme ainda não se estreou, mas o nome diz tudo: Jazzé Duarte. A ideia foi do cineasta Jorge Paixão da Costa, que se bateu por ele. Arranjar os fundos necessários não foi fácil, mas conseguiu-o. E o documentário já foi mostrado numa sessão na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em antestreia, num final de tarde, com a presença do “retratado”: José Duarte, em pessoa. No ano em que completou 80 anos, foi uma forma de os celebrar. Não que ele o quisesse, ou se empenhasse particularmente nisso. Mas aceitou o desafio e não se arrependeu. Na casa onde há anos vive com a mulher, Frances, um quarto andar na Lapa — em que discos, fotografias, cartazes, quadros e múltiplos objectos compõem o registo de uma memória histórica onde vida e música se combinam —, José Duarte recorda ao P2 como começou a aventura do filme. “Apareceram cá em casa uns homens que me propuseram pôr a minha vida em imagem. Não é que eu seja vaidoso, até tenho altos complexos em relação a mim próprio. Aceitei. Ainda não [se] estreou. Ouvi dizer que este ano irá para o ar, na RTP, não sei em que canal. E depois vai para a despensa, para ser arrumado. ”Não se julgue, no entanto, que o filme lhe desagradou. Pelo contrário, viu-se representado nele. “Acho que não estou mal. Conheci-me por fora. Porque um homem, quando vive com ele, conhece-se bem por dentro mas por fora é que não se conhece nada. Tenho costas largas, e curvas, e sou lento. Lento é intencional, para não cair, para ter tempo de me equilibrar. De resto, não ficou nada de essencial por dizer, porque andámos praticamente dois anos para fazer aqueles 50 minutos. E gosto da ideia de, no dia dos meus anos, véspera de São João, irmos de manhã ao British Bar, no bairro onde eu cresci, e à tarde à Praça das Flores, um sítio que agora está bastante melhorado, onde eu vivi e cresci. ”Nascido em 23 de Junho de 1938, em Lisboa (no Bairro Alto), José Duarte está há 60 anos consecutivos na linha da frente dos divulgadores do jazz em Portugal. Jazzé, alcunha usada no título do filme, deve-se a Raul Calado (1931-2018), que lha inventou. Não só. Em 1958, desafiou-o para participar na fundação do Clube Universitário de Jazz, como alternativa ao Hot Clube (este fundado em 1948) e que viria a ser fechado pela polícia em 1961. “Outro falhanço da minha vida”, diz ele, lamentando que tenha desaparecido. “Tinha uma solução harmónica muito boa, havia pessoas de todas as classes. Jovens, não havia droga, a não ser um saxofonista barítono belga, que se refugiava na casa de banho. Se hoje existisse, era o fim. ” Das muitas histórias vividas durante a efémera existência do clube, recorda uma: “Quando havia música, pagava-se cinco escudos. Um dia chegou lá um tipo que disse: ‘Eu não pago. ’ ‘Porque é que não paga?’, perguntou-lhe o colega que estava à porta. ‘Porque sou da PIDE. ’ ‘Então, para entrar, tem de pagar mais. ’ O pide foi-se embora, não entrou, e eu achei que ele estava tramado, que ia preso. Não foi. Está vivo e está bem. António Manuel Garcia Fonseca, chama-se ele. Acho que não mediu o que estava a fazer, não percebeu. ”Quem assistir ao documentário ouvirá de viva voz várias histórias, umas já conhecidas, outras menos. E por elas passam muitos vultos do jazz, como Armstrong, Miles e tantos outros. Histórias como a do encontro que ele relata, com o contrabaixista Charlie Haden, num festival de jazz na Polónia, pouco antes do primeiro Festival de Jazz de Cascais (organizado por Luís Villas-Boas e João Braga, entre outros), cuja primeira sessão foi a 26 de Novembro de 1971. No quádruplo disco comemorativo dos 40 anos do programa Cinco Minutos de Jazz, escreveu a história desta maneira: “Conheci Charlie Haden em Varsóvia em Novembro de 1971 e foi lá que o convenci a vir tocar a Lisboa, Portugal, que não era ‘um país fascista’, como ele dizia. ‘Não há países fascistas, há sim governos fascistas, o que é substancialmente diferente. ’ Ele, pasmado, concordou. Ainda lá, tudo preparámos, como a sua intervenção em palco dedicando Song for Che aos movimentos de libertação das então colónias portuguesas em África. Treinos de pronúncia correcta de Angola, Moçambique e Guiné. Foi preso por uma tarde, a do dia seguinte, pela PIDE-DGS, depois libertado e proibido de voltar a Portugal. ” Voltaria numa Festa do Avante!, do PCP, em 1979. Recuando ao ano da fundação do Clube Universitário de Jazz, foi também em 1958, há 60 anos, que José Duarte teve o primeiro programa radiofónico. Era na Rádio Universidade e chamou-lhe O Jazz, Esse Desconhecido. Mais tarde, em 1966, criou o célebre Cinco Minutos de Jazz, também com uma história já muito contada. Pediram-lhe cinco minutos para integrar um espaço radiofónico de quase 50 minutos, ele ainda tentou pedir mais tempo, não conseguiu, e os cinco minutos lá ficaram. E com eles o título. Transmitido pela primeira vez em 21 de Fevereiro de 1966, na Rádio Renascença (o indicativo original, que permanece até hoje, é o tema Lou’s blues, de Lou Donaldson), permanece o programa de jazz mais antigo da rádio portuguesa, transmitido agora pela Antena 1. Em 2014, recebeu o Prémio Autores da SPA para Melhor Programa de Rádio. Quantos já terá feito? “Eu numerava-os”, diz. “Mas quando cheguei aos 15 mil baralhei-me e deixei de os contar. ” Só põe aquilo de que gosta? Diz que não. “Meto discos que caibam, primeiro que tudo. Os que têm mais de cinco minutos, até sete ainda entram, embora com dificuldade. Ponho os discos de que gosto e os que, apesar de não gostar, cumprem a obrigação de divulgação. Custa-me, mas meto. Não oiço. ”Não é a sua única intervenção na rádio. É também dele a escolha de temas e discos para o Jazzin’, um canal online de jazz da Antena 2 e da RTP, inaugurado em Janeiro de 2017 e que apresenta música em contínuo, 24 horas de jazz por dia. Para trás, ainda na rádio, criou ou esteve ligado a outros programas, em nome próprio (A Menina Dança?, Jazz com Brancas, À Volta da Meia-Noite) ou em colaboração com outros autores (como Pão com Manteiga ou Abandajazz). Na RTP2 teve os programas Outras Músicas (1990 a 1993) e Jazz a Preto e Branco (2001). Responsável pela gravação do primeiro LP de jazz gravado ao vivo e editado em Portugal com músicos estrangeiros (Estilhaços, de Steve Lacy, registado em Lisboa, em 1972, no antigo Cine-Teatro Monumental, no 6. º aniversário do Cinco Minutos de Jazz), é autor dos seguintes livros: João na Terra do Jaze (1981), Jazzé e Outras Músicas (1994), Cinco Minutos de Jazz (2000), História do Jazz (2000), Jazz, Escute e Olhe — Portugal 1971-2001 (2001) e Poezz — Jazz na Poesia em Língua Portuguesa (2004). Foi também fundador e director da revista trimensal bilingue O Papel do Jazz (1997-1998) e, na imprensa, entre jornais e revistas, escreveu numerosos artigos sobre jazz e outras músicas, o primeiro dos quais no Diário de Lisboa, em 1960. Coligidos no primeiro livro há, por exemplo, e a par de vários textos sobre jazz, artigos sobre os Beatles, Edu Lobo, Blood Sweat & Tears, Melanie, Fernando Tordo, a Tropicália, Johnny Cash, Joan Baez, Frank Sinatra, Manuel Freire, até a Apolo XIII (mandaram-no como enviado do Zip à NASA, em 1970, e ele lá se desenrascou como pôde, vale a pena ler a história). Mas é pelo programa Cinco Minutos de Jazz, muitos milhares de minutos já, no ar há 53 anos, que José Duarte continua a ser mais conhecido. Como é que ele gere tal produção diária? “Ao fim destes 53 anos, vario. Às vezes é dedicado a um músico, a um tema. Quando a minha neta Stella nasceu, fiz um mês com Stella by starlight, um standard, em versões diferentes, Miles, Parker, só génios a tocarem o tema da minha neta. ” Uma chefia antiga disse-lhe uma vez, há anos: “Você não pode pôr a mesma música a tocar durante uma semana. ” E ele respondeu: “Não é a mesma música, é o mesmo tema. Mas os improvisos fazem versões diferentes. ” A chefia não se deixou demover: era a mesma música e pronto. “Proibido. Não fiz. Mas a chefia mudou e a liberdade chegou. ” Para ele e para todos. E Stella by starlight teve 22 versões, uma para cada noite do programa em Junho de 2017. Num dos programas, há anos, apresentou Strange Fruit, na voz de Billie Holiday, como “a melhor canção escrita no século XX, um manifesto anti-racista”. Não mudou de opinião. “A melhor? Claro! Ainda por cima estou agora a ler um livro sobre a canção e os vários artistas que a cantaram, do Sting ao Tony Bennet, uma variedade de estilos e vozes. Aquilo é de facto o primeiro panfleto sonoro, uma peça tristemente célebre [o “estranho fruto” de que fala a canção eram negros enforcados em árvores, assassinados por puro ódio racial]. E feita por um homem que não se chama Lewis Allan, como diz nos discos, mas sim Abel Meeropol [1903-1986; escritor e compositor americano, filho de judeus russos imigrantes; Lewis Allan era o seu pseudónimo, e foi com ele que escreveu Strange Fruit, em 1937]. A distinção de Strange Fruit estende-a José Duarte à sua histórica intérprete, a primeira e a melhor entre tantos outros que se lhe seguiram: “Billie Holiday foi e é a cantora. Se se fala em vozes de jazz, só se pode falar na Billie. Tudo o resto são vozes que passam. ” Todas, mesmo Ella Fitzgerald? “A Ella é tecnicamente, de longe, a melhor. Mas a validade da obra cantada não se mede por técnica. Há uma coisa que a Billie tem e ninguém mais tem, que é a versão, o meter a canção dentro dela e sair cá para fora outra coisa. Ela canta e acrescenta o drama que aquela canção já tem. E é uma voz feia, a da Billie. Já cheguei a uma conclusão: as melhores vozes que cantam jazz, e outras músicas, são feias. Dou três exemplos: a Billie, o Alfredo Marceneiro (imbatível!) e o Louis Armstrong. ”Mas nem só com “vozes feias” (na acepção que ele lhes dá) se entusiasma José Duarte. Em 1969, num dos muitos textos que ia escrevendo para jornais e revistas, lê-se esta frase: “O gira-discos iniciou a sua monótona tarefa e eu comecei a viver, auditivamente falando, alguns dos momentos mais felizes e importantes da minha vida: a voz de Melanie. ” Falava de Melanie Safka, cantora norte-americana que na altura tinha apenas 22 anos e estava em início de carreira, estreando-se com o disco Born To Be (1968). Chamou-lhe então, a fechar esse texto, “a voz mais interessante da moderna geração cantante”. Recorda-se bem disso, ainda hoje. “Apaixonei-me pela Melanie — foi muito popular em Portugal. As peças dela tinham uma característica bonita, infantil, pouco adulta. Ela também era bonita e cantava aquilo com uma ingenuidade muito grande. Gostava à brava dela. ”Um dia, a TAP, onde ele trabalhava, mandou-o em serviço a Nova Iorque. “E tive a suprema sorte de ela cantar no Carnegie Hall. A sala às escuras, só com luzes acesas entre a assistência. No final, pela única vez na vida, fui esperar na fila que me levava ao camarim. Estive lá meia hora. Entrei, sozinho. Ela também estava sozinha, a beber vinho branco, ofereceu-mo, eu disse que preferia tinto. Perguntou-me: ‘É português?’ ‘Sou. ’ E ela: ‘A minha avó é de Lagos. ’ Fiquei vidrado. ‘Já lá estive, em miúda. A minha avó emigrou para aqui. ” José Duarte voltou com a ideia de a trazer a Portugal para tocar. “Não o fiz. Mas ficou a ideia. ”Falando de cantoras, outro nome inesperado, nas preferências de José Duarte, é Barbra Streisand. “Cheguei a gostar muito, e ainda gosto, dela. É uma cantora fora de série. Eu ouvia-a à vol d’oiseau. Um dia sentei-me para ouvir com atenção e disse: isto é cantar! É uma mulher activa, de esquerda (é contra a trampa!), e tem uma voz que ninguém tem. Atinge registos que não têm nada que ver com os da Melanie. Mas também gosto muita da Dinah Washington [1924-1963], que cantava blues e tocava piano. Bebia, mas não em excesso, e isso dava-lhe uma certa alegria. Tinha frontalidade, era uma mulher brava. ”O efeito surpresa, ao fim de tantos anos de audições em disco ou em salas, não se dissipou em José Duarte, garante. Diz até que, e atribui isso à idade, se emociona mesmo quando há algo que o toca: “Nessa altura, choro. ” Ainda recentemente se surpreendeu num festival, o Guimarães Jazz. “Tive várias surpresas. O Aziza [Dave Holland, Chris Potter, Kevin Eubanks e Eric Harland]; depois o Marquis Hill e a sua banda, que apresentou maturidade mas com novidades, outro génio de deixar a pessoa sentada; e terminou com a orquestra de Mingus, onde ouvi um saxofonista muito jovem, branco, que me fez sentir o desespero de ser português. E pensar para mim: ‘Os jovens portugueses que tocam saxofone em Portugal hoje não te devem espantar porque conheces este, que está a quilómetros de distância. ’ Tal como o pianista, um jovem mulato, fabuloso tecnicista e inventor de sons! Impressionou-me imenso. E depois os dois tenores, toda a parte de saxofones, foi uma maravilha!”José Duarte diz que não há jazz europeu nem há jazz português. “O jazz é uma música americana. ” Mas isso não o impede de reconhecer a qualidade dos músicos portugueses que vai ouvindo. “Há um que é fora de série. Chama-se João Paulo Esteves da Silva, vou homenageá-lo na terça-feira [dia 27, às 18h], no CCB. ” Será numa das sessões audiovisuais de divulgação do Jazz em Portugal que vai fazendo em diversos espaços (este ano já soma 42), e a de terça-feira, em ligação com o programa Cinco Minutos de Jazz, é um tributo ao pianista João Paulo Esteves da Silva, designado como “O pianista português de jazz”. Além disso, ele homenageia ainda a associação Porta-Jazz (Porto) e a editora Sintoma Records, “duas empresas portuguesas que já colocaram no mercado cerca de 80 CD de jazz”. Há mais músicos portugueses, que ele queira referir, no panorama do jazz, além de João Paulo Esteves da Silva? “Nélson Cascais, pela discografia publicada, e um tipo que é misteriosamente pouco conhecido e que se chama Mário Santos. E gosto do Paulo Perfeito — é perfeito. ” De João Paulo Esteves da Silva lembra-se, em particular, de um espectáculo que foi “ouver” (para usar uma expressão sua) à Malaposta: “Gostei muito de um trabalho dele e da Ana Brandão, ela a cantar/recitar Pessoa e ele no piano. Foi lindo, lindo, 5 estrelas. Tem muito pouco que ver com o jazz, quase nada, mas é uma música superior. ”Em 2018, “há muito que ouvir & há pouco que impressiona”, escreveu José Duarte. E sugere para audição cinco discos:três Cohens, TightropeThelonious Monk, Les Liaisons DangereusesRoots Magic, Last Kind WordsVijay Iyer Sextet, Far From OverJohn Coltrane Quartet, The Lost AlbumHá hoje mais gente a ouvir jazz em Portugal dos que nos anos 1960? “Acho que não. As pessoas não vão ouvir jazz, vão ouvi-lo porque é na Casa da Música, na Culturgest, no CCB, na Gulbenkian. Vão às salas, não vão ao jazz! E depois batem palmas em demasia e nos sítios errados. E pedem encores como o dos três quartos de hora do Brad Mehldau no CCB! Tudo isto é mau comportamento. Eu digo no meu documentário, e é verdade, que o Duke Ellington estava com a orquestra em cena e disse: ‘Vamos tocar uns blues enquanto vocês se sentam. E quando estiverem sentados, se baterem as palmas no tempo forte, saímos todos. ’ Agora, ponham o público das nossas salas a bater as palmas bem!”Mas, apesar do que o contraria no que ouve e vê, há momentos que valem por uma vida. “Ia a sair de um concerto em Guimarães, a caminho do hotel, chuviscava, e aproxima-se uma senhora com um miudito desta altura [pequeno, pelo gesto] e diz: ‘Senhor Zé Duarte, desculpe, eu sei que está a chover mas queria-lhe apresentar o meu neto; ele não vai para a cama sem ouvir os Cinco Minutos de Jazz. ’ E eu disse: ‘Ai é?’ Olhei para ele, ele olhou para mim, perguntei-lhe: ‘Como é que te chamas?’ ‘João. ’ Aquilo tocou-me. Porque tive um filho que durou dois anos que se chamava João. ‘Sabes jazz?’, disse eu. ‘Então vou-te fazer uma pergunta: como é que se chama o trompetista de jazz de que gostas mais?’ E ele respondeu: ‘Miles Davis. ’ Isto foi há três anos, ele hoje terá uns 6 anos ou 7. Só isto já valeu os meus 60 anos de trabalho. Oxalá não seja como os outros Joões, que viva!”Foi morte súbita, uma bactéria. “Na véspera estive com ele, os dois sentados no chão, a ensinar-lhe o que era uma moeda de um escudo. E no outro dia. . . não me esqueço do grito da mãe. Tinha dois anos, um mês e 12 dias. Este ano teria 49. ” O primeiro livro que José Duarte escreveu (publicado em 1981 pel’A Regra do Jogo), João Na Terra do Jaze, é-lhe dedicado: “À memória do João, com Aires da mãe e Duarte do pai. ” José Mário Branco, no prefácio, também se lhe refere: “Um, dois, três, quatro. isto não acaba, Zé, vós todos de algum modo resistentes, em nome de todos os Joões que a vida-cabra nos foi levando. ”No ano em que João morreu, 1971, José Duarte escreveu o poema que dá título ao livro e o integra, a páginas 142-144, João na terra do jaze. Datou-o de Outubro de 1971. Um mês depois, em Novembro, escreveria um outro texto, na forma gráfica de poema, para o LP de estreia de José Mário Branco, Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades. Dizia assim (escrito sem maiúsculas): “estamos perante um mural sonoro/ do portugal das últimas gerações/ (. . . )/ aqui o circo foi desmantelado/ com todas as ferramentas do som. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Tirou da cabeça a ideia de ter filhos, até que, convencido por Frances, sua terceira mulher, tiveram duas filhas: Rita, que é advogada; e Adriana, que canta e já gravou dois discos. “Hoje sou feliz com as minhas filhas”, diz José Duarte. Com as filhas e com as netas, uma nascida em 2017 e outra já em gestação mas ainda a caminho, há-de nascer em 2019. Num curto texto biográfico que um dia escreveu, José Duarte disse: “Fui plagiado no All That Jazz” [filme de Bob Fosse onde o protagonista, um coreógrafo com a vida por um fio devido a um enfarte, imagina a morte como o apogeu de um espectáculo musical]. Mas o “plágio”, diz agora, não tinha que ver com a morte mas com os excessos do protagonista, “a maneira de ele viver, up and down”: “É a minha maneira de viver. De um dia para o outro, mudo de mood, de maneira de estar. Umas vezes estou bem, outras mal. Pode acontecer em segundos. ” Será da idade? “Não, sempre fui assim. Mas agora está mais apurado. ”
REFERÊNCIAS:
Percentagem de crianças com baixo peso à nascença não pára de aumentar
Plano Nacional de Saúde estabelecia como meta para 2010 uma taxa de apenas 5,8 por cento de bebés com menos de 2500 gramas. Mas a percentagem continua a crescer. (...)

Percentagem de crianças com baixo peso à nascença não pára de aumentar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Migrantes Pontuação: 6 Africanos Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2010-07-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Plano Nacional de Saúde estabelecia como meta para 2010 uma taxa de apenas 5,8 por cento de bebés com menos de 2500 gramas. Mas a percentagem continua a crescer.
TEXTO: Os cuidados de saúde antes do parto melhoraram substancialmente e Portugal deu um salto qualitativo impressionante a nível de mortalidade e morbilidade infantil nas últimas décadas. Mas há um indicador de saúde que está a piorar e transmite uma imagem negativa do país a nível internacional: a percentagem de crianças com baixo peso à nascença (menos de 2500 gramas) continua a aumentar, ao contrário do que seria de esperar. No ano passado subiu para 8, 2 por cento do total de nados-vivos, numa clara divergência em relação à meta estabelecida no Plano Nacional de Saúde, que previa uma taxa de apenas 5, 8 por cento já para este ano. Os dados acabam de ser divulgados pelo Alto-Comissariado da Saúde e estão relacionados com a elevada taxa de prematuridade (partos antes da 37 semanas) que também disparou nos últimos anos - só entre 2004 e 2009 passou de 6, 8 para 8, 8 do total de nados-vivos. Portugal é mesmo um dos países da Europa com as percentagens mais elevadas de recém-nascidos de baixo peso (a melhor taxa da União Europeia é a da Suécia, 4, 1 por cento). O fenómeno foi destacado num relatório sobre a saúde das mulheres divulgado no início deste ano pela Comissão Europeia e mereceu o reparo do representante da Organização Mundial de Saúde que há meses esteve em Portugal para avaliar os indicadores do Plano Nacional de Saúde. O baixo peso à nascença - que, para além do nascimento prematuro, pode ter como causa problemas de crescimento intra-uterino - pode agravar o risco de deficiências físicas e cognitivas. Normalmente está ligado à pobreza (má nutrição materna) e à falta de vigilância pré-natal (hipertensão materna não controlada), mas estes não serão seguramente os factores responsáveis pelo problema em Portugal, acentua a alta-comissária da Saúde, Maria do Céu Machado. O alto-comissariado acaba, aliás, de enviar dados para OMS que provam que o número de consultas pré-natais nos centros de saúde "não diminuíram" (mais de 502 mil, em 2008). Sem deixar de reconhecer que a prematuridade e o baixo peso à nascença são motivo de preocupação, Maria do Céu Machado defende que este fenómeno se justifica em parte com o decréscimo da natalidade entre as mulheres portuguesas - que faz com que o peso dos nascimentos na comunidade imigrante seja cada vez maior. No ano passado, as crianças nascidas de mulheres estrangeiras representavam já 10, 8 por cento do total, quando em 2000 correspondiam a apenas cinco por cento dos nascimentos em Portugal. E é nas mulheres de origem africana que há mais prematuridade, até por razões genéticas, sublinha a alta-comissária. Maior taxa no AlgarveCom uma grande comunidade imigrante, o Algarve é, aliás, a região onde a taxa de bebés com baixo peso à nascença é mais elevada (8, 8 por cento), seguida do Alentejo e de Lisboa e Vale do Tejo, respectivamente). Mas há uma série de outras razões que podem explicar este crescimento e uma delas - o tabagismo materno - está a ser objecto de análise pelo alto-comissariado. Por outro lado, as mulheres portuguesas tendem a ser mães cada vez mais tarde - cerca de um quinto das grávidas tem actualmente mais de 35 anos. E o adiamento da maternidade é um factor de risco para prematuridade e baixo peso à nascença, para além de uma taxa de fertilidade menor. É uma pescadinha de rabo na boca: os tratamentos de infertilidade aumentam a taxa de gravidezes gemelares, que aumentam o risco de prematuridade. E, graças aos avanços tecnológicos e da medicina, há bebés que há uns anos estariam condenados (nascidos com 500 gramas) que actualmente já conseguem sobreviver.
REFERÊNCIAS:
Entidades OMS