“Dá-me gozo estragar o bonitinho”
Republicamos aqui a entrevista que o Ípsilon fez a Armando Silva Carvalho em 2007, a pretexto do lançamento de O Que Foi Passado a Limpo, compilação da sua obra poética. (...)

“Dá-me gozo estragar o bonitinho”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Republicamos aqui a entrevista que o Ípsilon fez a Armando Silva Carvalho em 2007, a pretexto do lançamento de O Que Foi Passado a Limpo, compilação da sua obra poética.
TEXTO: Armando Silva Carvalho acabou de lançar, na Assírio & Alvim, O Que Foi Passado a Limpo, onde reúne quarenta anos de trabalho poético, desde Lírica Consumível (1965) a Sol a Sol (2005). Nunca lhe faltaram sinais exteriores de reconhecimento, incluindo prémios literários, mas escreveu-se pouco sobre a poesia. Ele não liga muito. Diz que já está habituado a “causar uma certa estranheza”. Nunca apreciou poemas “bonitinhos” e, se escreveu alguns, foi porque se esqueceu de “torcer o pescoço à rima”. Ao aproximar-se, agora, dos 70 anos, confessa um desejo: “Gostava de escrever poemas políticos”. O Que Foi Passado a Limpo abre com um longo texto do poeta e ensaísta José Manuel de Vasconcelos. Além desta, não me lembro de muitas outras abordagens de fundo à sua poesia. . . Penso que não há mesmo mais nenhuma. E não acha isso insólito?Já estou habituado à reacção das pessoas e da crítica. Não tenho tido problemas com os críticos, no sentido de dizerem que os meus livros são horrorosos, mas acho que o que escrevo causa uma certa estranheza. E há grandes confusões: ou sou anti-lírico, ou sou satírico, ou sou um continuador espúrio do Alexandre O’Neill. Penso que tenho uma vertente lírica que não é levada em consideração. Neste prefácio, José Manuel de Vasconcelos faz uma abordagem mais abrangente. Porque é que não está na Poesia 61 [colectânea constituída por cinco livros autónomos, assinados por Maria Teresa Horta, Fiama Hasse Pais Brandão, Casimiro de Brito, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz]? Conhecia aquelas pessoas, colaborou com elas na Antologia da Poesia Universitária…Conhecia as pessoas, mas não havia grande intimidade. Penso que eles próprios não estavam interessados em criar nenhuma escola. Aquilo aconteceu por acidente, e depois acabou por se transformar em algo que foi considerado uma posição nova. Não sei bem dizer porque é que não estou lá. Foi por acaso. Aquelas pessoas, por qualquer razão, aproximaram- se naquele momento e decidiram publicar aquilo. Mas depois cada qual fez a sua vida, em termos de trabalho poético. Já na altura eram poetas bastante diferentes. Completamente diferentes. Talvez o Gastão [Cruz], mais do que todos os outros, tenha organizado as coisas dele em função de uma determinada forma de encarar o trabalho poético. Lírica Consumível saiu em 1965, mas escreveu-o antes, uma vez que o livro já ganhara o Prémio de Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Tinha vinte e poucos anos. Tendo em conta a sua idade, e o facto de se tratar de uma obra de estreia, não era já um livro um tanto programático?O que havia de sentido programático era em relação a mim próprio e a leitura que eu fazia do Portugal da época. Tinha também a ver com as minhas origens, com o modo como eu cheguei à universidade, com a visão que tinha do mundo académico. E do mundo burguês, eu que vinha de um universo completamente rural. Acho que tudo isto está na Lírica Consumível. Apesar de algumas semelhanças ao nível dos processos de construção com poetas como Gastão Cruz ou Fiama. . . Tínhamos afinidades. Era a fruta da época. . . …mas não lhe parece que, já nesses seus primeiros livros, se sente como que uma suspeita da poesia, uma certa dessacralização da palavra poética, que o distingue desses autores?Essa ideia é interessante, mas penso que aquilo que há de dessacralizante naquilo que escrevo é o resultado da minha relativa ignorância. É um pouco forte o que estou a dizer, mas a verdade é que o que eu lia, em termos de poemas, não me espantava o suficiente para que eu levasse aquilo demasiado a sério. Talvez seja o espírito do homem do campo, que é sempre muito desconfiado. (E não estou aqui a defender o homem do campo, que, aliás, já não existe. ) Havia sempre qualquer coisa que me fazia ficar de pé atras. Vou dar um exemplo. A dada altura senti muito a influência do João Cabral de Melo Neto, fiquei muito espantado com aquilo, gostava imenso. E pensei: isto pode ser feito assim dentro da minha casa, da minha fábrica. Mas o que eu lia do Melo Neto eram alguns poemas ou excertos, e três ou quatro críticas que o Gaspar Simões lhe fez. Daí eu dizer que essa dessacralização é fruto da ignorância. Não sou, realmente, um autor muito culto. Mas há muitas referências culturais na sua poesia. Sim, mas essas referências são um pouco para espantar. E traduziu vários poetas e ficcionistas…A tradução já veio depois. Tem sido aproximado de Alexandre O’Neill, como disse, mas o seu humor parece ser bastante mais duro. Gosto muito do texto do O’Neill. É muitíssimo trabalhado, coisa que o meu não é, mas penso que ele estava de certo modo integrado naquilo mesmo que criticava. Era um anti-burguês dentro da burguesia. Eu não estava mesmo integrado. Isto pode parecer uma pose da minha parte. Hoje sou um burguês como outra pessoa qualquer, mas, nessa época, quando escrevi os primeiros livros, não era mesmo. Também o Cesariny nunca foi um burguês, em termos de comportamento. Tenho uma grande admiração por ele. Mas nessa altura não lia muito nem um, nem outro. O autor que lia com mais intensidade era o Mário de Sá-Carneiro. Os poetas da sua geração, mesmo os que procuravam uma linguagem mais distante do uso comum, davam muita atenção ao modo como os poemas soavam, e moviam-se num território vocabular que não transgredia assim tanto as fronteiras convencionais do poético. O seu jogo parece ter sido outro desde o início, quer pelo modo como ia buscar palavras a múltiplas proveniências, quer pelo que se diria ser uma sabotagem deliberada da eufonia. A construção, o bonitinho, o composto sempre me fizeram confusão. O O’Neill dizia que não gostava do bonito, mas estava a fazer bonito. Nos seus últimos textos, sente-se muito essa construção. E há quem defenda que, num poema, a construção está acima de tudo. Não tenho essa posição, mas é aceitável. A mim, dá-me gozo estragar o bonitinho, porque a musicalidade convencional, a metáfora adjectivada, tudo isso é-me bastante acessível. Há até testemunhos disso: volta e meia, aparece nos seus livros um soneto em decassílabos impecáveis…Pois, às vezes esqueço-me de torcer o pescoço à rima. Essa recusa do “bonitinho” não justificará a tal estranheza da crítica a que há pouco se referiu?Há uma frase do António Ramos Rosa que ficou quase como um “slogan”. Ele escreveu que eu era “anti-lírico por excelência”. Nunca disse mal do que escrevi, até pelo contrário, mas nessa frase conseguiu sintetizar tudo o que então se dizia dos meus textos. A mim parece-me que já nos primeiros poemas, independentemente de também serem de crítica social e política, há ali de vez em quando um transbordar lírico muito forte. Num texto de O Alicate [1972], invectiva “os poetinhas [que] marujam na versátil confusão dos versos”. Já estou velho, e quando agora leio isso faz-me confusão. O que é que me levou a escrever aquilo? O sangue na guelra? O estar despeitado por uma razão ou por outra? Hoje não escreveria isso. Mas, descontada a terminologia, foi sempre mantendo uma atitude crítica em relação ao modo como a literatura se foi tornando indistinguível de outros produtos de consumo. E saberá do que fala, uma vez que foi técnico de publicidade. A grande tragédia da minha vida foi ser publicitário. Digo isto muito seriamente. Uma vida que fui obrigado a viver de forma. . . Esquizofrénica?Exactamente, a palavra é essa. Nessa altura, a publicidade era vista pelos bem pensantes como um trabalho quase de prostituição. O facto é que não consegui arranjar emprego com o curso de Direito, e também não me interessava muito ser advogado. E na função pública estava proibido de trabalhar por razões políticas. Eu achava que um dia poderia ir para a diplomacia. Via o Saint-John Perse, esses tipos, o Paul Claudel, e achava que era o que me convinha. Sentava-me a uma secretária e tinha tempo para fazer versos. Não fazia mais nada, só versos, e andava com uma faixa ao peito. É ridículo, mas é verdade que pensava nisto. Também podia ter ido para Medicina. E se calhar devia ter ido. Houve um professor que insistiu muito comigo, mas acabei por ir para Direito. Sempre com a expectativa de que um dia o Salazar ia morrer – caía de uma cadeira qualquer –, e depois havia liberdade e eu podia ir para a diplomacia. Em Portuguex [1977], usa o discurso publicitário para criticar o país e, em certa medida, também a própria publicidade. Esse livro tinha muita coisa misturada – eu usava várias estruturas textuais – e acho que aquilo ficou um pouco amalgamado, uma confusão. Nessa altura, não havia trabalho nas agências publicitárias. Estava tudo parado. Passávamos o tempo em reuniões de comissões de trabalhadores. Eu estava lá no meu gabinete e ia escrevendo aqueles textos. Agora, noutro registo, poeticamente, fiz uma coisa, chamada Armas Brancas, que considero um trabalho honesto sobre o desenvolvimento da chamada revolução. Mas praticamente ninguém deu por isso. É um texto de que nunca se falou, mas tenho orgulho nele. Não era panfletário, era um texto, desculpe a palavra, reflexivo sobre o que se estava a passar. Escrevi quase diariamente – só faltou pôr as datas –, mais ou menos até ao Natal de 1975. Não pôs datas, mas acrescentou notas. . . São umas notas um bocado pretensiosas, mas achei que as devia dar. Por exemplo, pus num poema alguns chavões do Abraham Moles, e achei que devia justificar isso. Outras notas são indicativas de episódios, uma ocupação, uma manifestação. Referi as notas, porque elas deveriam ter deixado claro para os leitores da época qual era o pretexto do livro. Pois, se calhar também as pus com essa intenção pedagógica. Embora os poemas de Armas Brancas sejam autonomizáveis, vê o livro como um único texto?Sim, não é propriamente um diário, mas é um escrever ao lado do que se estava a passar, com atenção aos fenómenos sociais e políticos. E tive a pretensão de encontrar uma linha de interpretação racional, sem andar atrás dos foguetes, nem com euforias excessivas, como acontecia com a maior parte das pessoas. Em 1983 publicou Alexandre Bissexto, que é consensualmente reconhecido como um ponto alto da sua obra. Nada fazia prever que estaria depois 12 anos sem voltar à poesia. Entretanto, escreveu ficção. Fiz um ou dois romances e também contos. Regressa com Canis Dei, onde a presença de Deus não parece ter já a carga irónica que tinha em Alexandre Bissexto. Conciliar a existência de Deus com o mal do mundo é uma dificuldade teológica clássica. Mas esse Deus que irrompe na sua poesia com Canis Dei parece nascer justamente do mal. O livro tem um ambiente pestífero. O Bissexto, como lhe chamo, é um livro um pouco litúrgico. Está muito ligado à minha profissão, por assim dizer, de ajudante de padre. Em miúdo eu ajudava na missa, na liturgia, na paramentação. Mas nunca tive fé, ou tive apenas períodos muito curtos com fé. O Alexandre Bissexto está muito preso à liturgia católica. No Canis Dei, nem liturgia, nem Deus. Ou um Deus só por oposição, por carência, por incapacidade de ver no mundo um sinal que me leve a conceber a existência dele. Já essa referência à peste era uma coisa que andava muito no ar: a irrespirabilidade da existência, uma natureza que deixara de ter sítio, que estava completamente disfuncional. Falava-se muito das chuvas ácidas. Havia essa ideia de apocalipse, de terror, um mundo em que o próprio homem – ou Deus, sendo o homem feito à sua semelhança – estava a levar isto cada vez mais depressa até à etapa final. Há duas palavras recorrentes na sua poesia, que atravessam todos os livros: cão e mar. Trinta anos antes de Canis Dei, escreve no poema O Peso das Fronteiras: “Esse sou eu. Um cão dentro do túnel”. . . É um texto abusadamente lírico. Aí eu assumo a posição de cão. E não faz o mesmo em Canis Dei?Sim, obviamente. A noção de cão, para mim, é a de um animal dependente. Não é o que defende, é o que depende. A minha experiência com cães vem sobretudo da infância, dos perdigueiros que o meu pai tinha na aldeia, que eram animais submissos, solícitos. E essa carga que eu transporto na metáfora “cão”. E o mar também é o da infância, o mar do Baleal. A minha aldeia fica a 15 quilómetros do mar, mas para se lá chegar, nesse tempo, era uma odisseia. O meu pai punha uns burros em cima da camioneta e, quando deixava de haver estrada, eram os burros que transportavam os haveres. No seu último livro, Sol a Sol, diz que “O mar é um vasto céu de belas caixas cranianas”. É uma imagem estranha. Muito estranha. Quando ma disse, agora, eu próprio fiquei espantado. É também uma imagem violenta. José Manuel dos Santos aproxima Canis Dei de Vulcão de Luís Miguel Nava, que me parece um dos livros mais violentos da poesia portuguesa contemporânea. Desse ponto de vista, Canis Dei até nem será o melhor exemplo. Mas na generalidade dos seus livros há, de facto, uma violência pouco comum na nossa lírica. Ainda em relação ao mar: eu costumo pensar que ele só nos dá o que nele pomos. E eu ponho lá muito pouco. A Sophia ia lá buscar – como é que era? – os momentos todos que não viveu. Espantam-me as pessoas como ela, a quem o mar inspira aquelas imagens de tanta beleza. Eu tento interrogar o mar, a ver se ele me responde, mas a resposta é sempre absurda. Aquele infinito de água devolve-me um absurdo também infinito, sem fundamento, que é a minha vida e a dos outros. Onde vejo mais violência é em alguns animais. Nas gaivotas. A gaivota, coitada, nunca mais sai dos versos. Entra num poema, sai, e vai logo para outro. Mas é um animal predador extremamente desagradável. Na gaivota encontro a violência da vida, da sobrevivência, mas no mar, quando ele está liso, só vejo algo que está morto. O que é curioso, uma vez que é dali que vem tudo o que vive. O seu penúltimo livro, Lisboas, parece ser um livro um pouco diferente dos outros. É talvez o mais fácil de ler, não é?É um livro de circunstância. Tinha de apresentar um projecto para me darem uma bolsa e lembrei-me daquilo. Só tinha escrito um ou dois poemas, que acrescentei ao projecto, para exemplificar. Há tempos vi na Internet uma coisa escrita por um brasileiro que esteve em Lisboa, comprou o livro, e gostou muito. Mas, depois, já falava de comidas, de coisas pitorescas da cidade. Eu pensei: bem, o homem quase transforma o livro. . . Num guia turístico?Sim, num guia. Hoje escreveria uma coisa completamente diferente. Acho que tem razão quando diz que é o livro mais facilmente percorrível. Não digo que roce o pitoresco, mas pode ter alguns toques de bairrismo ou coisa que o valha. Quando disse “fácil de ler”, a intenção não era de todo pejorativa. Mas parece ser um livro menos “sabotado” ao nível da escrita. Tem alguns desses tais poemas. . . À Carlos de Oliveira, não é?, com as sílabas todas muito bem medidas. Esse, sim, é que era um grande trabalhador do verso, e que nunca foi devidamente apreciado como poeta. Ficou sempre na sombra de dois ou três nomes muito mais conhecidos, e mais acessíveis. Tenho uma grande admiração por ele. No que escreve, há muitas referências à infância. Mas não é uma infância nada idílica. Pois não. O Borges dizia que o pior do homem é sempre a infância. E a dele parece ter sido a de um menino de ouro, com tudo o que havia de melhor em termos de cultura. A minha não foi mesmo nada idílica. Sabia lá o que era um livro, quanto mais ter uma biblioteca. Andei sempre a tentar denegar a infância, a ver se ela me deixava de vez, mas claro que nunca me deixou. Agora, quando vou à aldeia, tenho encontros, às vezes simpáticos, com pessoas da minha idade, mas nunca farei as pazes com aquele mundo. A ignorância da burguesia urbana do que era a vida no campo fazia-me confusão. Essa vida também já não existe, mas mesmo na época, naquilo que eu lia, não encontrava um conhecimento profundo do que era ser-se originário do mundo rural. Nem nos neo-realistas, apesar dos seus clichés. Essa ignorância exasperava- me, e talvez esteja aí a mola que me acicatou para que eu tivesse este tipo de violência face a tudo o que me rodeava. Ninguém me marginalizava, mas eu marginalizava-me a mim próprio para depois poder agredir o outro. Em Sol a Sol, cruza a sua infância com a de Fiama Hasse Pais Brandão. . . Há um poema em que ando a brincar com as nossas infâncias. Com aquilo que eu supus que pudesse ter sido a dela, porque não a conheci. Nem sequer era assim tão íntimo dela como se possa pensar. E não conversávamos muito sobre poesia, ainda que a Fiama não fosse como a Luiza Neto Jorge, que gostava de falar de tudo menos de poesia. Era fantástica. Em termos de escrita, não está mais próximo da Luiza Neto Jorge do que de qualquer outro dos chamados poetas de 61?Ao nível da escrita, é verdade. Em termos eróticos, ela é extraordinariamente violenta. Conheço poucos homens – até não conheço nenhum – que cheguem lá perto. Eu posso aproximar-me, mas ela vai muito à frente. Por contraste com a primeira fase da sua obra, os seus últimos livros parecem um pouco mais apaziguados. Concorda?Alguém até disse que o Sol a Sol parecia póstumo. Os últimos livros são mais pacificadores. Lutar por quê? Pela sobrevivência? Às vezes nem me apetece. Por causas sociais? Gostaria, antes de morrer, de escrever poemas políticos. Mas não sei como. Mas boa parte do que escreveu não é poesia política?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Penso que sim. Mas, agora, gostaria de a escrever de uma forma muitíssimo mais directa. O problema é encontrar a linguagem certa, para que aquilo não soe completamente fraudulento e amorfo. É muito difícil. Mas a ideia de que não há nada a fazer, essa aceitação, irrita-me. Já não posso ouvir falar do fim das ideologias. O que é que isso quer dizer? Só porque acabou o pseudo-socialismo, ou o pseudo-pseudo-comunismo na pseudo-União Soviética? Isso não quer dizer nada. Foi um acontecimento histórico, foi um falhanço, mas porque é que não podem existir outras possibilidades? Gostaria de ter a esperança, nestes anos que me restam, de que isto não é para acabar tudo de vez, se bem que tudo me diga que é mesmo para acabar, e nada me diga o contrário. Sente-se uma efervescência na humanidade, nos cidadãos, nos consumidores – é esta a melhor palavra –, como se quisessem apressar o fim disto tudo. Mas como eu não tenho filhos nem sobrinhos, talvez não saiba o que querem estes jovens de hoje. Há um autor recente, José Miguel Silva, que me parece ter resolvido bem o problema de encontrar uma linguagem eficaz para a poesia política. Gosto imenso. Mas como sou muitíssimo mais velho do que ele, já não o posso copiar. Estes que escrevem a tal poesia do quotidiano começam a ter uma linguagem – e uma linguagem que eu aceito, e sou velho –, que ultrapassará toda aquela imagética, todas aquelas metáforas que tínhamos há vinte anos e que iriam tornar-se insuportáveis.
REFERÊNCIAS:
Seis corpos, uma instrução: manterem-se de pé
Em Celui qui Tombe , Yoann Bourgeois coloca seis corpos sobre uma plataforma giratória e elevatória com uma instrução simples: tentarem manter-se de pé. Um propósito simples que oferece um espectáculo belíssimo, pleno de sugestões, que encerra os Dias da Dança e segue para o FIMFA. (...)

Seis corpos, uma instrução: manterem-se de pé
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em Celui qui Tombe , Yoann Bourgeois coloca seis corpos sobre uma plataforma giratória e elevatória com uma instrução simples: tentarem manter-se de pé. Um propósito simples que oferece um espectáculo belíssimo, pleno de sugestões, que encerra os Dias da Dança e segue para o FIMFA.
TEXTO: Yoann Bourgeois tem “uma relação muito ambivalente com a queda”. Formado em artes circenses, aprendeu e tomou como regra fundamental a ideia de que a queda é inaceitável. Nos mais variados malabarismos, em trapezismos e noutras disciplinas do circo, a queda é o fim, é o falhanço, é o corte abrupto com a manutenção da ilusão. “De início, quando se está a aprender, tudo bem, ainda pode acontecer”, diz Bourgeois ao Ípsilon. “Mas depois, com o avançar do tempo, torna-se cada vez mais inaceitável. E a razão pela qual é inaceitável, hoje creio já ter percebido, é porque conduz à imobilidade. ”Em Celui que Tombe, peça que o artista francês apresenta a 13 de Maio enquanto espectáculo de encerramento dos Dias da Dança, no Coliseu do Porto, e a 20 e 21 no Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA), no Teatro São Luiz, em Lisboa, a iminência da queda é constante. Sobre uma plataforma giratória ou elevatória, seis bailarinos correm, andam, rendem-se à boleia do movimento numa sequência de alternativas de, individual ou colectivamente, se relacionarem com essa força cuja origem desconhecem. É impossível não pensar em ratos a correr dentro de gaiolas, a correr para o entretenimento de terceiros, a correr como animais que apenas eternizam um ciclo vicioso. E é difícil não pensar também no mito de Sísifo, quando os seis bailarinos correm para não sair do mesmo lugar, correm para nunca se aproximarem verdadeiramente de algum lado, correm, caem, levantam-se e retomam uma marcha que sabemos estar condenada a repetir-se nesta mesma sequência uma e outra e outra vez. “A leitura de O Mito de Sísifo, o livro de Albert Camus, foi algo que me marcou imenso há alguns anos e que ressurge com muita frequência no meu trabalho”, confirma Yoann Bourgeois. “E não apenas no Celui qui Tombe, porque me interessa muito essa questão de reflectir sobre a impossibilidade de resolver o sentido. É a razão pela qual, por exemplo, num outro espectáculo tenho uma escada que vai para lugar nenhum. Um imenso vazio. Esse vazio é uma condição para se levantar este tipo de questões. ” E essas questões podem, naturalmente, implicar a manutenção de uma situação sem sentido, a subjugação a regras ditadas não se sabe bem por quem, a forma cruel como a mecânica da vida atira corpos por terra, cuspindo-os sem qualquer misericórdia, a maneira como a obrigação de uma actividade física constante para resistir à queda se destina a manter aquelas pessoas exaustas e lhes roubar a capacidade de se entregarem quer a uma disponibilidade mental de combate quer simplesmente a uma pouco culpada e pecaminosa ociosidade. As implicações políticas e éticas são de tal forma sugeridas por um dispositivo que carrega também uma extraordinária beleza poética, que Bourgeois se arrepia só de pensar que o seu papel, ao colocar seis homens e mulheres a terem de responder àquele estímulo por si criado, pode ser comparável ao de um deus que manipula os seus “filhos”. Para si, a resposta dos bailarinos dá-se perante uma dinâmica geológica, diante de fenómenos físicos que existem na Terra e que não são criados ou controlados pelo Homem. “Simplesmente damos-lhes uma forma para que se tornem perceptíveis”, justifica. Coreografia:Yoann Bougeois Coliseu do Porto, Porto, Sábado, 13 de Maio de 2017 às 21h30O certo é que, sejam manipulados por acção humana ou respondam pura e simplesmente a uma dinâmica geológica, os seis bailarinos comportam-se como seis pinos atirados ao ar por um malabarista, mantendo o exercício em curso, a habilidade usada em resposta circular e de aparência infinita, por a queda ser inaceitável — como antes dizíamos. Só que começávamos este texto com uma citação de Yoann Bourgeois confessando ter uma relação ambivalente com a queda. Yoann sabe que, se pensa a queda como inaceitável, esse é um reflexo condicionado, uma natureza que lhe foi colada à pele pela formação no circo, acredita ser-lhe intolerável sem discernir com clareza quanto disso existe realmente em si e quanto é resultado dessa construção. Celui qui Tombe é também uma provocação que lança na sua própria direcção, como se inquirisse quanto daquilo que reconhece como seu lhe pertence de facto e não é simplesmente ditado pelo mundo que o rodeia. “Creio que em toda a minha obra”, afirma, “a um nível muito íntimo tento aceitar a queda, tento aprender a cair. Tento acolher o prazer que há nisso. ” A resposta, talvez de quem acredita que o melhor remédio será virar a sua fraqueza contra si própria, poderá estar no trampolim — adoptando uma outra prática física de agilidade e equilíbrio que o possa levar a saborear a queda. Celui qui Tombe foi o espectáculo de abertura da importante Bienal da Dança de Lyon em 2014, primeiro espectáculo de raiz circense a alguma vez ser montado sobre o palco da Ópera de Lyon. E nasceu de um “longo processo de pesquisa” que Yoann Bourgeois vem desenvolvendo há vários anos. A mesma pesquisa, que originou vários espectáculos anteriores, decorre da disciplina que foi aprimorando em várias escolas circenses e em que responde àquilo que sempre lhe interessou no circo: “a amplificação dos fenómenos físicos”. A plataforma giratória e elevatória sobre a qual os seis intérpretes correm, andam ou tentam resistir sem cair à verticalização do plateau foi o dispositivo que Yoann procurou para que “manifestasse princípios físicos e mecânicos elementares, como a força centrífuga, a gravidade, o equilíbrio e a oscilação”. “Aquilo de que precisava era devolver esses fenómenos à sua condição mais simples”, explica. “Essa pesquisa de simplificação habita-me ao longo de todos estes anos de processo, o que me leva a concluir que quanto mais a pesquisa avança mais se simplifica. Não é um processo que tende para a sofisticação ou a complexificação; é algo que se aproxima de qualquer coisa essencial. A plataforma é a forma de representar diferentes fenómenos e o seu impacto sobre um pequeno grupo de homens e mulheres. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Embora com uma óbvia base coreográfica, Celui qui Tombe não segue uma partitura de absoluta precisão. Quase se pode resumir a uma única instrução: os seis devem tentar manter ou recuperar o equilíbrio. Para Bourgeois, o início e o final do espectáculo estão bem delineados, mas tudo o que acontece entre esses dois momentos deve obedecer a uma estrutura suficientemente mutável para que nunca chegue a cristalizar, nunca se torne uma repetição daquilo que já foi feito e conserve uma reacção tão espontânea quanto possível quaisquer que sejam os movimentos assumidos e ditados pela plataforma. A Yoann agrada-lhe a ideia de que a peça possa resumir-se à tentativa de os seis se manterem de pé, algo que tem uma óbvia ressonância de luta pela manutenção da dignidade. Em todos os muitos sentidos que Celui qui Tombe admite, o da luta através da verticalidade, da resistência e da oposição é certamente um dos mais imediatos e de maior impacto, mesmo que por vezes sejam apenas corpos a descrever uma corrida de enorme e simples beleza, contrariando um indiferente movimento mecânico. Admitindo que a imagem da resistência política lhe é cara, Yoann Bourgeois diz que gosta de “um público numa sala de espectáculos em que uma criança pode rir ao lado de um adulto que está a sentir medo”. É também com essa multitude de sentidos possíveis em mente que o malabarista, actor, bailarino e coreógrafo — actualmente co-director do Centre Coréographique National de Grenoble, juntamente com Rachid Ouramdane, também ele com presença nesta edição dos Dias da Dança — diz ter seleccionado para a banda sonora do espectáculo músicas tão distintas quanto a interpretação de Frank Sinatra do clássico My way (depois de vertido para inglês por Paul Anka a partir do original francês) ou a popularíssima ária Casta diva da ópera Norma, de Bellini. Ao espalhar estas pistas suficientemente distintas, Yoann pretende deixar uma esticada amplitude de interpretações e de estabelecimento de relações entre aquilo que se ouve e que acontece sobre a plataforma — “acredito que a diferença de registos permite que se possa contar todas as histórias”, defende. A escolha de temas populares e reconhecíveis cumpre assim um consciente efeito de familiaridade, como se esse facto, sobreposto ao movimento, facilitasse a sua compreensão em vez de lhe emprestar uma aura impenetrável. De cada vez que um corpo cai ou ameaça cair uma mão pode ajudar a recuperar a postura e retomar a marcha. É nesse sentido que Bourgeois defende que “os motivos físicos põem sempre em causa a solidariedade ou falta dela”. “Todos os espectáculos preconizam uma relação com o colectivo — se há uma sala para assistir e um espectáculo a decorrer, mais do que os temas é a relação com os espectadores que produz um efeito político. ” É sempre aí que Yoann tenta chegar. Quer haja ou não uma mão que segure um corpo em desequilíbrio no palco, aquilo que o seduz é sempre o que cada gesto concretizado, falhado ou recusado pode encontrar em quem assiste. É nessa falta de controlo que tudo acontece. Caso contrário, tal como recusa com os bailarinos, estaria apenas a assumir um papel de manipulador.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens homem criança medo mulheres corpo circo
O México de Frida Kahlo fechou o Portugal Fashion
Nuno Baltazar apresentou a sua 26.ª colecção que em breve estará à venda: "O desfile deve ser um teaser para o consumo", defende. (...)

O México de Frida Kahlo fechou o Portugal Fashion
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.1
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Nuno Baltazar apresentou a sua 26.ª colecção que em breve estará à venda: "O desfile deve ser um teaser para o consumo", defende.
TEXTO: O presidente Marcelo foi ao Portugal Fashion e assistiu ao desfile de uma colecção criada a partir de uma “carta de Frida Kahlo a Diego Rivera que mostrava o seu inconformismo, o lado corrosivo e ao mesmo tempo apaixonado e forte”, conta o designer Nuno Baltazar. A mistura de cores vivas foi definida a partir não do “México tradicional”, mas dos “ambientes onde [Frida Kahlo] se movimentava — o ateliê e o bairro onde vivia (Bairro Azul)”, por exemplo. Apesar de se tratar de uma colecção direccionada para a estação quente, Nuno Baltazar diz que, para si, “é apenas a colecção 26”. “Não lhe chamo uma colecção de Verão, abandonei essa formalidade”, revela. O criador saltou a última temporada de apresentações para, desta vez, mostrar as propostas que chegam em breve à sua loja no Porto. Junta-se a um crescente número de designers a experimentar modelos alternativos ao formato clássico de apresentações — com o designado see now, buy now. “Um desfile deve ser um teaser para o consumo”, comenta, acrescentando que o “envolvimento” que se gera à volta dos desfiles é positivo para os próprios retalhistas, se as peças estiveram imediatamente à venda. Jessica Athaíde e Raquel Strada pisaram a passerelle com cartazes onde se lia “girls can’t wait” ("as raparigas não podem esperar", em português) e “it’s my look now” ("agora é o meu visual"). Hugo Costa e Carla Pontes — dois designers que chegaram ao Portugal Fashion através da plataforma Bloom — sucederam à apresentação de Nuno Baltazar. Hugo Costa traduziu as “explorações glaciares e a necessidade que os seres humanos têm de explorar e conhecer coisas novas” numa colecção dominada por macacões em tons frios com fitas soltas, e Carla Pontes juntou numa nova colecção elementos de colecções anteriores. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem abriu o dia de desfiles foi Luís Buchinho, que escolheu o sétimo andar do parque de estacionamento Silo Auto para mostrar a sua colecção “inspirada no litoral português, com todos os ambientes que se pode encontrar nele — pescadores, falésias, rochas, varinas, redes de pesca e barcos, por exemplo”. Traduzindo para têxtil, passaram pelo alcatrão leggings estampadas com as matrículas das traineiras, gabardines com padrões de redes de pesca ampliadas e camisas de flanela repensadas. Micaela Oliveira, mais conhecida pelas suas colecções de noivas, estreou-se no calendário do Portugal Fashion com uma colecção repleta de vestidos compridos e pêlos. Coube a Miguel Vieira colocar o último ponto na 40. ª edição do Portugal Fashion. Fê-lo com a mesma colecção que levou a Milão, em Janeiro, e a Nova Iorque, em Fevereiro. "É uma colecção baseada em três técnicas que tentei explorar ao máximo: o enrugado — feito com um molde macho e fêmea —, o aglutinato — que transporta os fios de baixo para cima — e os plissados (inclusive em peles). "
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave humanos consumo
Para não esquecer Cannes
Não abalaram o mundo, mas mostraram os abalos do mundo. A nossa forma de vida. Em cenário de perda, inquietaram a memória colectiva. Cantaram. Com estes filmes vamos lembrar-nos da 70.ª edição do festival. (...)

Para não esquecer Cannes
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Não abalaram o mundo, mas mostraram os abalos do mundo. A nossa forma de vida. Em cenário de perda, inquietaram a memória colectiva. Cantaram. Com estes filmes vamos lembrar-nos da 70.ª edição do festival.
TEXTO: WesternValeska GrisebachUn Certain RegardViolência, preconceito, rivalidade, instinto de dominação, desejo de reconhecimento: numa aldeia búlgara para onde foram destacados, os operários alemães de um estaleiro, homens tensos que parecem esculpidos na rocha como nos Westerns, participam do teatro do mundo. O delicado filme da alemã Valeska Grisebach encontra nos corpos, nos gestos, na sua tensão e melancolia, as nossas histórias de negociação com o mundo – muito antigas, essenciais. 120 Battements par MinuteRobin CampilloCompetiçãoÉ um filme sobre os anos 90 das lutas do Act Up de Paris, ramo da organização internacional de luta contra a sida. Quando, depois do silêncio dos anos 80 que amarrou vítimas, familiares e amigos a uma epidemia, as palavras jorraram, e o activismo forjou-se de forma visceral, eufórica e trágica. É um filme sobre gente que quis controlar a sua história e para isso fez política na primeira pessoa. É um filme comovido sobre a memória de um tempo. É um filme sobre hoje: em momento de crise social, política e moral, de desaparecimento das causas, faz da perda e da dúvida propostas incandescentes de inquietação para um colectivo. Fábrica de NadaPedro PinhoQuinzena dos RealizadoresHá uma fábrica de elevadores na falência, decorrem as negociações para os despedimentos. Não há redenção à vista. Fábrica de nada: proposta de pensamento e agitação, agora que não se consegue ler o mundo. Grande filme instável, entre o ensaio e o musical, tanto monta debate sobre o património ideológico do século XX como estimula os intérpretes “a fazer como nos filmes”, a cantar e dançar. Não estabiliza, o que o torna angustiante. Está sempre a questionar (-se), a dar e a tirar, a acreditar e a destruir. Mas depois inventa, com várias estocadas, a sua forma de autogestão. Happy EndMichael HanekeCompetiçãoO essencial, no novo filme do cineasta austríaco já duas vezes premiado com a Palma de Ouro, é a aventura subterrânea e inquietante pela solidão, pelo egoísmo, pela falta de empatia. Com uma subtileza que talvez tenha derrotado os que esperavam “filme choque”. Happy End fala do mundo falando de “nós”, e “nós” é uma família europeia burguesa. Um filme coral – Jean-Louis Trintignant, Isabelle Huppert, Mathieu Kassovitz e outros - em que não pode haver grupo. A nossa maneira de viver. Good TimeDe Josh e Ben SafdieCompetiçãoAscensão à competição de dois irmãos revelados na Quinzena dos Realizadores com The Pleasure of Being Robbed, 2008, e Vão-me Buscar Alecrim, 2009. Uma noite no submundo nova-iorquino, um assalto que corre mal, um criminoso ofegante para tirar o irmão da prisão. A expressividade fantasista do caos no cinema dos Safdie. E uma surpresa que vai dar que falar: o inglês Robert Pattinson a “desaparecer” na personagem de um criminoso americano. The Day AfterHong Sang-SooCompetiçãoAs mulheres da vida e as mulheres que (não) ficaram na memória de um editor, as que ele engana e as de que ele se esquece, o falhanço dos ideais perante a realidade. Ele chora várias vezes, é como um grito. É esse o movimento íntimo do cinema de Hong Sang-soo: progressão sensorial que se abeira do fracasso humano. E nesse percurso, entre comédia, álcool e mal entendidos, uma revelação. Jeannette, l’Enfance de Jeanne d’ArcBruno DumontQuinzena dos RealizadoresA música é da autoria de Igorrr, vai do electro ao heavy metal, mas há espaço para “rapar”. As coreografias são de um homem do circo e da mímica, Philippe Decouflé. O texto de duas exaltações de Charles Péguy (1873-1914), Jeanne d’Arc e Le Mystère de la charité de Jeanne d’Arc, é cantado no plateau por actores que não sabem cantar, entre os quais duas miúdas que interpretam Joana d'Arc aos oito e aos 16 anos, a idade do despertar, quando se mete em marcha para libertar a França da opressão inglesa, missão encomendada pelos santos. Este filme faz dos improváveis encontros uma série de dificuldades que leva o espectador a negociar o seu caminho em direcção à graça. Dumont provocou êxtase místico: aplausos entusiásticos para esta comédia musical. Visages, VillagesAgnès Varda e JRFora de competiçãoEla tem 89 anos, ele menos 50, encontram-se como se o devessem ter feito há muito, ele com a sua atenção amorosa aos mais velhos, à avó e a todas as rugas que fotografa nos retratos gigantes que cola nas paredes do mundo, ela com uma curiosidade sem desculpas por tudo, pelos murais que são os rostos e pelas ruas (Visages, Villages, afinal, como Mur, Murs, de 1980). A viagem pela França esquecida é um investimento de memória e de imaginação, como se devolvessem isso a quem encontram, filmam e fotografam. 24 FramesAbbas KiarostamiSessão EspecialSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. São 24 “cenas”, duas horas de filme, realismo imaginado, fabricado e animado, a partir de fotografias que o cineasta iraniano tirou. Para encontrar a vida antes e depois da imagem imobilizada. Como se uma natureza-morta desenrolasse, sem precisar de autorização humana, a sua vida própria — a melancolia vai tomando conta da experiência de assistir a 24 Frames, a vida continuou sem Abbas Kiarostami. Foi o último filme que nos deixou.
REFERÊNCIAS:
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Imaginarius está de volta e este ano acolhe o Fresh Street#2
Seminário internacional traz responsabilidades acrescidas, mas também uma maior visibilidade, àquela que é a 17.ª edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira (...)

Imaginarius está de volta e este ano acolhe o Fresh Street#2
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Seminário internacional traz responsabilidades acrescidas, mas também uma maior visibilidade, àquela que é a 17.ª edição do Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira
TEXTO: O centro histórico de Santa Maria da Feira está prestes a transformar-se num enorme palco de performances, espectáculos e instalações artísticas, naquela que é já a 17. ª edição do Imaginarius — Festival Internacional de Teatro de Rua. Dias 25, 26 e 27, as artes de rua são quem mais ordena na cidade, com mais de 40 espectáculos programados — no total dos três dias, serão 140 apresentações —, e cerca de 400 artistas, de 13 países, envolvidos. Este ano, com uma novidade: o Imaginarius acolhe o Fresh Street#2, o maior seminário internacional para profissionais das artes de rua. Depois de a primeira edição ter decorrido em Barcelona, coube, agora, a Santa Maria da Feira acolher o evento bienal promovido pela rede europeia Circostrada, que acontece nos dias 24, 25 e 26. “É uma responsabilidade acrescida mas também uma motivação acolher um seminário que acolherá mais de 400 participantes, de cerca de 40 países”, destaca Gil Ferreira, vereador da Cultura da câmara de Santa Maria da Feira, a propósito da realização do Fresh Street#2, praticamente em simultâneo com o Imaginarius. Artistas, programadores, jornalistas, investigadores e decisores políticos, estarão, assim, concentrados no Europarque e no Cineteatro António Lamoso para cumprir um programa de três dias “de partilha de experiências, debates e criação de redes profissionais”. E também para assistir aos espectáculos do festival de teatro de rua que é, cada vez mais, uma referência a nível internacional. “Decidimos ter mais uma noite de Imaginarius, acrescentando a quinta-feira ao programa habitual de duas noites, dedicada às antestreias com uma forte componente de criação artística local”, destaca Gil Ferreira. Entre os grandes destaques da edição deste ano está o espectáculo de grande formato Pedaleando Hacia el Cielo, da companhia belga “Theater TOL”, que combina “imagens cinematográficas com luz, música e dança nos céus, contextualizando um poético mundo de sonho” (apresentações nas noites de sexta-feira e sábado, pelas 23h00 e 23h30, respectivamente). “É um espectáculo que aborda os obstáculos e elementos da sociedade de hoje e que acaba por retratar aquele que é o fio condutor desta edição do Imaginarius, o repensar a sociedade, com esse chavão em inglês Think about a new world”, enquadra Bruno Costa, da direcção artística do festival. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Do cartaz consta ainda a estreia nacional do espectáculo Block, das companhias britânicas “NoFit State Circus” e “Motionhouse”, e no qual o circo e a dança competem pelo protagonismo, transportando a assistência para uma viagem em torno de metas, obstáculos e conquistas. Igualmente vinda do Reino Unido, a instalação Pentalum – da colecção Luminarium, criada Alan Parkinson – promete proporcionar uma “experiência sensorial característica e irrepetível” a quem a visita. “É um espaço intimista, uma espécie de refúgio dentro da dinâmica acelerada do festival”, realça Bruno Costa. Em destaque estará também a performance Cegos, dos brasileiros “Desvio Coletivo”, na qual “homens e mulheres, em trajes sociais, cobertos de argila e de olhos vendados, caminham lentamente interferindo poeticamente no fluxo quotidiano da cidade”, propondo “uma reflexão acerca do modo de vida da sociedade contemporânea, pautada pela busca incessante do poder que petrifica as relações humanas em prol do capitalismo”. Mas há mais – muito mais – para ver nos três dias de Imaginarius. “Em alguns momentos, vão ser oito espectáculos a acontecer em simultâneo”, confessa o director artístico. Contas feitas, no final dos três dias, serão 140 apresentações. Com essa referência, também, à peça A Donzela, célebre colcha de croché, produzida, em 2007, pela comunidade sénior de Santa Maria da Feira sob a direcção da artista plástica Joana Vasconcelos, vai voltar ao castelo. “É uma forma de celebrarmos os dez anos da sua criação”, vinca Bruno Costa.
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A luz e a cegueira em duelo no Imaginarius de Santa Maria da Feira
O Festival Internacional de Artes de Rua traz 400 artistas de 13 países a Santa Maria da Feira, Aveiro, entre 25 a 27 de Maio. (...)

A luz e a cegueira em duelo no Imaginarius de Santa Maria da Feira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: O Festival Internacional de Artes de Rua traz 400 artistas de 13 países a Santa Maria da Feira, Aveiro, entre 25 a 27 de Maio.
TEXTO: O Imaginarius, Festival Internacional de Artes de Rua, regressa a Santa Maria da Feira de 25 a 27 de Maio, com 400 artistas, 49 companhias e 11 estreias mundiais, num cartaz inspirado pela antítese entre cegueira e luz. "Com um programa artístico que conceptualmente coabita na antítese entre a cegueira e a luz, o Imaginarius apresenta em 2017 um conjunto de propostas de todo o mundo, que nos farão reflectir a sociedade e a nossa forma de ser e estar", anunciou na quinta-feira à noite a organização do programa, apresentado em conferência de imprensa. A luz como elemento "de união e propagação de emoções sociais" contrastará assim "com a escuridão da competição e da ascensão ao poder", no que o objectivo do festival é demonstrar como esses dois conceitos podem constituir "elementos de provocação e reflexão crítica nas cidades de hoje", levando assim a "pensar um novo mundo", adiantou a organização. O presidente da autarquia disse acreditar que, nessa semana de maio, "Santa Maria da Feira vai ser o centro do mundo" no que se refere à criação artística para intervenção no espaço público, já que, além do programa com dezenas de propostas gratuitas para todas as idades, o festival acolherá em paralelo o seminário internacional Fresh Street #2, com 450 profissionais do sector, oriundos de 40 países. "Já discutimos uma visão nova do mundo em Santa Maria da Feira. Tínhamos vontade de desenvolver toda uma oferta criativa que também vendesse (. . . ) e agora já temos mercado para a nossa criatividade e as nossas companhias - área em que vão surgir muitos empregos no futuro", realçou Emídio Sousa. O programa da 17. ª edição do Imaginarius será protagonizado por 400 artistas, em representação de 49 companhias, de 13 países, propondo 41 espectáculos, instalações efémeras e intervenções em espaço urbano. Onze dessas performances nunca antes foram apresentadas ao público, pelo que constituem estreias absolutas, e 23 terão agora a sua primeira exibição em Portugal. Nos seus diferentes horários, o cartaz inclui mais de 140 apresentações ao público, sempre sobre temáticas que pretendem fazer reflectir sobre a sociedade actual e o espaço urbano. Entre as propostas anunciadas, a organização destaca o regresso da instalação "A Donzela", peça de renda que Joana Vasconcelos criou há 10 anos com a ajuda da comunidade sénior da Feira e que agora voltará a decorar a torre de menagem do castelo local, depois de uma nova intervenção por artesãs locais. As companhias britânicas NoFit State Circus e Motionhouse, por sua vez, apresentarão em estreia nacional o espectáculo Block, que abordará com circo e dança a forma como o bloco de betão se tornou um elemento central e estrutural das cidades de hoje. Também do Reino Unido, chegará a tenda com túneis de luz caleidoscópicos que o colectivo Architects of Air propõe para "uma viagem intimista e introspectiva" e da Bélgica virá o espectáculo de grande formato Pedaleando hacia el cielo, com que a companhia Theater TOL se propõe reconquistar o céu da Feira com projecções a 360 graus e "anjos que pedalam as nuvens". Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A cidade acolherá ainda instalações de luz desenvolvidas sob a coordenação do festival sueco Lights in Alingsas; um espectáculo sobre "feridas da memória", concebido em parceria luso-catalã com o festival FiraTàrrega; e a performance interactiva em que a companhia brasileira Desvio Colectivo exibirá 30 performers vendados e cobertos de argila, depois de "petrificados" pelo capitalismo. O festival voltará ainda a explorar as vertentes específicas do Imaginarius Infantil, com propostas específicas para os mais novos, e do Mais Imaginarius, que, entre 190 candidaturas de 38 países, seleccionou para esta edição 20 projectos emergentes de intervenção no espaço público. Na Rua Roberto Alves foi já hoje inaugurada a instalação Canopy, do coleCtivo português FAHR 021. 3, que até 11 de Junho recorre a 126 metros de ripas de madeira suspensas para direccionar o olhar dos transeuntes para o castelo e assim estabelecer "um jogo de perspectivas entre o cidadão e os limites da cidade".
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Twin Peaks: fomos ao inferno e voltámos — e foi maravilhoso
Twin Peaks é uma ignição e um lugar. A televisão e aquele Noroeste Pacífico nunca mais foram os mesmos. Está a acontecer outra vez, na televisão e na região dos abetos que sussurram e dos anões que dançam. Há novo Twin Peaks e nova atracção pelo Norte americano. Floresta dentro. (...)

Twin Peaks: fomos ao inferno e voltámos — e foi maravilhoso
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Twin Peaks é uma ignição e um lugar. A televisão e aquele Noroeste Pacífico nunca mais foram os mesmos. Está a acontecer outra vez, na televisão e na região dos abetos que sussurram e dos anões que dançam. Há novo Twin Peaks e nova atracção pelo Norte americano. Floresta dentro.
TEXTO: “Na minha famosa imagem, morta, David pôs, à mão, todos os grãos de areia na minha cara e brincou com o plástico como se fosse um ramo de flores. ” David Lynch, cientista louco do improviso, adora os seus “acidentes felizes” que originam assassinos paranormais, anões e gigantes, mas compôs meticulosamente a cena do crime. Criou uma imagem que perdura, um fotograma tanto do Noroeste Pacífico americano como da televisão. Ambos nunca mais foram os mesmos. Twin Peaks ressuscita agora, 27 anos depois de uma estreia que foi uma chama de ignição. A imagem é a de Laura Palmer azulada, descoberta na cidade do estado de Washington indissociável do seu nome — e da ficção e criação que no início da década de 90 saíram do nevoeiro chuvoso e das florestas frondosas da região para o mundo. E Sheryl Lee adorou ser cadáver. A actriz que interpretou a adolescente “morta, embrulhada em plástico”, as primeiras palavras ouvidas em Twin Peaks, deitada na margem do rio, “podia ser uma esponja e absorver tudo”, como recordou ao The Guardian em 2010. E tudo era muita coisa, que a história guardaria com deleite nas peculiaridades de Twin Peaks e seus autores (Mark Frost, saído de A Balada de Hill Street, é o seu co-autor, o homem que torna as suas e as ideias de Lynch em guiões) e com a firmeza de quem desenha uma linha na areia. Twin Peaks é uma fronteira narrativa e artística, cheia de defeitos e sublime ao mesmo tempo, e é um lugar aonde agora o mito volta para tentar voltar a ser (in)feliz. Depois da primeira hora de Twin Peaks, edição de 2017, pensa-se na obra da artista plástica Louise Bourgeois. Porque fomos ao inferno e voltámos — e foi maravilhoso. Ou qualquer coisa como isso. Reencontramo-nos com velhos amigos, mergulhamos no abismo das diferentes paisagens, perdemo-nos nas novas caras Lynch. Para (tentar) perceber o que é esta hora de televisão hoje, é preciso recuar no tempo. As provas não são meramente circunstanciais — Twin Peaks é mesmo basilar. Naquele mês de Abril de 1990 nos EUA, e a 22 de Novembro de 1990 na RTP, a fronteira entre TV e cinema foi apagada. Parecia uma série de crime, ou uma novela sobre os amores e segredos de uma comunidade de flanela e cerejas, até um whodunnit porque a pergunta “Quem matou Laura Palmer?” se tornou um slogan de uma era. Mas em Twin Peaks, e em torno de Laura Palmer, reuniam-se uma mulher que falava através de um tronco, um polícia que não parava de chorar, uma sedutora que enrolava pés de cereja com a língua e um submundo de crime, prostituição e de sobrenatural em tudo surreal. O agente infiltrado, o homem da cidade que nos levava para a floresta na fronteira norte da América e do Pacífico era Dale Cooper, um Kyle MacLachlan enérgico, obcecado com comida e com o inevitável “damn good coffee”, desconcertante e intuitivo. O seu deslumbre com a paisagem, as montanhas e as árvores sussurrantes indiciavam logo a alteridade daquele território, a distância entre nós e aquele espaço. Lá voltaremos, neste texto e no domingo, dia 28, quando a “nova Twin Peaks” como os autores lhe chamam sem nada revelar sobre ela, se estrear às 22h no TVSéries. MacLachlan trabalhara com Lynch em Duna (o filme em que o realizador diz simplesmente que se vendeu), mas depois da série nunca mais filmaria com o autor de Eraserhead. Nunca saiu de 1990-91. “Para o David, sou o Cooper. Sou o Cooper e vivo em Twin Peaks”, disse agora ao Los Angeles Times. Dois anos depois de Veludo Azul (1986), convencido por um agente a tentar a TV, Lynch começou a trabalhar numa série com o amigo Frost. A ideia inicial foi só “uma rapariga é encontrada morta”. Quando, em 1990, na esteira de dramas criminais como Crime, Disse Ela, e de comédias como Cheers — Aquele Bar, Twin Peaks aterra no horário nobre de um canal generalista, a ABC, o abalo foi sentido a quilómetros de distância. “David Lynch vem para a televisão? Os doidos vão tomar conta do hospital psiquiátrico!”, recorda Kyle MacLachlan no The Guardian em 2010. Abdicava do arco narrativo convencional, a intriga era serpenteante, as personagens eram compostas e numerosas, os diálogos sobre donuts e os abetos-de-douglas tinham um humor especial com sabor a peixe no coador do café. Tinha mitologia e era lynchiano. Mas aos muitos motivos do padrão Lynch — a sensualidade, a inocência corrompida, os códigos de cor, as personagens excêntricas, os ambientes sonoros perfurantes — juntavam-se dois ingredientes fundamentais: o que é familiar ao espectador, nas lágrimas excruciantes da mãe de Laura Palmer e nos romances proibidos debaixo do tapete da comunidade, e o que é surrealista. Os duplos, outro símbolo favorito de Lynch, existem em Twin Peaks não só com as duas personagens interpretadas por Sheryl Lee, homenagem a Vertigo de Hitchcock, mas também no mundo de sonhos e realidade em que há uma White Lodge e uma Black Lodge, o lugar dos assassinos e do anão que dança, um Man From Another Place. É aqui que entram em cena algumas curiosidades: Lynch teve a sua revelação com uma visão da icónica sala vermelha nos sonhos de Cooper e foi ela que tornou Twin Peaks na novela surrealista que é; o fantasmagórico Bob não existia na história, era só um aderecista de cabelo comprido, Frank Silva, que apareceu num plano por acidente e que Lynch catrapiscou para o seu mundo; um dia, Lynch telefonou a Frost e disse: “Mark, acho que há um gigante no quarto do Agente Cooper”. E ele respondeu-lhe: “OK…”. E seguiu. A primeira temporada de Twin Peaks, oito gloriosos episódios, foi assim. Quando, no episódio final da segunda temporada, Laura prometia a Cooper vê-lo 25 anos depois, isso não encerrava mesmo a possibilidade de voltarem, um quarto de século passado, à televisão. Os autores negam-no. Mas o diminuto Man From Another Place foi testemunha, naquela sala vermelha, de que o acontece em Twin Peaks não fica em Twin Peaks. Transpira para o mundo. “Aprendi muito cedo que era sempre melhor ser muito receptivo para seja o que for que possa borbulhar e vir à tona do subconsciente de David”, admitiu Mark Frost à Variety. Curiosidades e improvisos são o processo criativo de David Lynch. “Esperava-se que a televisão nos fizesse sentir confortável e isto não era sobre estar confortável. Isto era sobre outra coisa”, descrevia há dias MacLachlan no The Guardian. Lynch fala: “Há aulas de guionismo em que reduzem as coisas a fórmulas, mas não há regras, não deveria haver regras”. O público embarcou. O primeiro episódio teve quase 35 milhões de espectadores. Numa altura em que o gravador de vídeo era a única hipótese de rever um programa e as conversas de viva voz a forma mais imediata de trocar ideias sobre a nova sensação da cultura pop, vendiam-se cassetes VHS a 20 dólares com os 90 minutos do primeiro episódio. A realizadora Penny Marshall fazia festas de visionamento porque nunca tinha visto nada tão belo na televisão; reza a lenda que Mikhail Gorbachov, espectador como Isabel II, pediu ao Presidente George Bush para lhe dizer quem era o assassino; a Rua Sésamo fez a sua versão, Twin Beaks. A magnífica banda sonora de Twin Peaks saía de carros, de lojas, uma cascata. O conforto daquela televisão era o da boa comédia de Cheers, era o da novidade de Os Simpsons, o sofá de Cosby Show, a banalidade de Obras em Casa e a voz estridente de Roseanne. Em Portugal, só com dois canais, via-se Herman José na Roda da Sorte, as séries Os Melhores Anos e EuroNico ou Agora Escolha, com TV Rural ainda no ar e cinema semanal nas sessões da Lotação Esgotada. Antes tinham existido Twilight Zone, Hitchcock Apresenta e O Fugitivo, mas se houve Ficheiros Secretos, Perdidos, True Blood, Hannibal, Buffy ou Veronica Mars, e se hoje há Legion, Mr. Robot, Stranger Things, American Horror Story ou True Detective, isso deve-se ao alçapão para o nosso subconsciente colectivo (ou será o inconsciente) aberto à traição por Twin Peaks. “Twin Peaks, como lugar, é um substantivo, mas quase se tornou um adjectivo”, resume David Nevis, CEO da Showtime, o canal que traz a série de volta (e deu a Lynch, após uma ameaça de deixar a produção a meio por falta de orçamento, todo o dinheiro e liberdade que queria para fazer Twin Peaks 3). “Os planos de árvores a ondular ao vento, por exemplo. Acho que as pessoas nunca tinham visto isso na televisão de sinal aberto, só as árvores a ondular”, disse David Chase, autor de uma pequena série chamada Os Sopranos, ao Vulture no 25. º aniversário de Peaks. “O que raio é aquilo?”, perguntou-se na altura. Anos mais tarde, Tony Soprano, um dos difficult men que protagonizavam a televisão de ouro, afirmava-se como filho da revolução de qualidade operada nos anos 1990 na TV — os seus sonhos são dos momentos mais memoráveis da série de Chase. Aquilo era, além de dois autores a trabalhar sem rédeas — “artistas a trabalhar próximo das suas mentes subconscientes, a escrever e a realizar e a produzir muito da mesma maneira que Cooper tomava muitas das suas decisões de investigação”, como descrevia há dias o crítico Matt Zoller Seitz no site Vulture — um lugar. Um espaço único, tão único que de repente toda a América (e parte do mundo que a consumia) queria um pedaço dele. O sortilégio do Noroeste Pacífico abatia-se sobre a cultura. “Não sei como explicar isto, mas por mais que Twin Peaks pudesse ser surreal, e por mais peculiar que pudesse ser, mesmo assim para mim era mais parecido com a vida real do que as séries costumeiras de televisão. Para mim, sempre foi importante sentir a geografia de um lugar”, continua Chase. Na altura, pensou: “Acredito nesta cidade na floresta, na terra da madeira, em Seattle. Além disso, a série era visualmente bela, e acho que muita da televisão não o era na altura”. Mark Frost, que em 2015 editou The Secret History of Twin Peaks, insiste que esta é uma série sobre a cidade. “Uma cidade normal, com um mistério, e mistérios dentro de mistérios. É um lugar real, mentalmente, mas não é um lugar real”, diz, por seu turno, o cifrado Lynch ao The New York Times. O realizador não considera que os 30 episódios que deu ao mundo tenham um sentido mais profundo sobre a cultura americana, embora o cineasta pareça adorar tanto a beleza das mulheres tristes — “Gosto de raparigas que choram”, disse à GQ — como exibir o negativo da fotografia superficial da América. O regresso da série de culto de David Lynch é tudo o que esperávamos e nada do que esperávamos. Um motivo próprio de Twin Peaks, e que é parte do padrão do momento em que nasceu, é o Noroeste Pacífico. No nevoeiro pós-Reagan e na atmosfera de chumbo das últimas tensões da Guerra Fria, a série ia chamar-se Northwest Passage (o título do episódio-piloto) e era um de vários sinais saídos do Noroeste dos EUA, da finisterra mais a norte, do estado de Washington e, logo ali acima da Califórnia, do Oregon e dos vizinhos Idaho e Montana. A biografia de Lynch diz singelamente “escuteiro, Missoula, Montana”. Mergulhou nos bosques, na humidade e no feitiço da região, de onde saiu a música definidora da década — o som do grunge, de Kurt Cobain nascido em Aberdeen, Washington, e ícone geracional de Seattle (e fã de Twin Peaks), cidade também de Thomas Pynchon, Bruce Lee e Jimi Hendrix —, e onde muita da cultura da época parecia fazer-se. Gus Van Sant e My Own Private Idaho (1991), Douglas Copland e os Microservos (e muitas outras obras passadas no Noroeste Pacífico), Matt Groening de Os Simpsons a nascer e crescer em Portland, Oregon. Até as filmagens de Northern Exposure (1990-95), a série sobre o Alasca, foram perto do vale de Snoqualmie, que, com a cidade de North Bend, compreendia os locais de rodagem de Twin Peaks. “De repente, personagens que há muito fazem parte da paisagem no Noroeste Pacífico”, relatava em 1991 o escritor de Seattle Timothy Egan no The New York Times, os “lenhadores, os solitários do ar livre e os polícias que comem donuts são a matéria de alguns dos trabalhos mais ousados no cinema e televisão”. Os seus autores “têm em comum, além da geografia, uma visão do mundo decididamente descentrada”, criada “sob os céus cinzentos, longe dos centros de ambição da América” — “uma visão que combina a meteorologia e a loucura e que produz uma espécie de Northwest noir”. Para Egan, “a chuva acrescenta profundidade às personalidades sombrias. ”Kyle MacLachlan, por exemplo, é de Yakima, no estado de Washington. Ao entrar em Twin Peaks, incorpora o homem dominado pela natureza, isolado do seu poder urbano. Tem de saber que árvores são aquelas, como quem tenta saber o que há na água na Suécia para produzir tantos romances policiais de qualidade. Está enfeitiçado. “São qualquer coisa!”. O encanto não se quebra. “Cheirem-me estas árvores. Cheirem-me aqueles abetos-de-douglas”, repete mais à frente. Ele representa, no fundo, o que James Lyons considera, em Selling Seattle: Representing Contemporary Urban America (2004), a fetichização do Noroeste. Nas árvores, nas camisas de xadrez, uma espécie de “natureza design”. Nos últimos anos, MacLachlan foi o mayor da série Portlandia, uma construção de ironia sobre a capital hipster, a nova tribo do século XXI, do Noroeste Pacífico. Carrie Brownstein, co-autora de Portlandia e guitarrista e vocalista da banda Sleater-Kinney, fundada em 1994 em Olympia, Washington, descreve no The New York Times o que é isso de ser do Noroeste Pacífico: “Há uma afinidade, uma sensação de estar na ponta do país, a última paragem nesta noção potencialmente falsa do que é o sonho americano”. No novo Twin Peaks, os contrastes entre esse abismo geográfico e as mecas do sonho americano vêm ao de cima, com os mochos a ver mais coisas, porque o mundo hoje é ainda maior. Nos “bosques amistosos” da região, que “ainda assim contêm mistério”, como Lynch disse à Rolling Stone, mora parte da atracção, e continuou a dar frutos. Nos anos seguintes, Ficheiros Secretos e Frasier continuavam na região com Michael Crichton, que escrevia Revelação (1993) para depois se tornar um filme também por ali. Mais recentemente, a saga Crepúsculo e as séries The Killing e Riverdale são passados no Noroeste Pacífico, usando as mesmas brumas e fantasmagoria para diferentes fins. Mas há sempre esses símbolos, o adolescente, o lugarejo perdido na floresta — na última até um corpo de um adolescente dá à costa num rio da cidade homónima, cheia de batons vermelhos e encenações operáticas. Twin Peaks era “uma celebração do místico no meio do orgânico da floresta do Noroeste”, dizia o seu director de arte, Richard Hoover. E “parte da nossa atracção para Twin Peaks era a sua localização abertamente intersticial”, defende a académica Linnie Blake no seu ensaio Trapped in the Hysterical Sublime: Twin Peaks, Postmodernism, and the Neoliberal Now, publicado em Return to Twin Peaks (2016). Não só no espaço, terra de fronteira e de fim no mar, mas também “entre vida e morte, bem e mal, passado e presente”, exemplifica. “No período antes de o grunge pôr Seattle no mapa da cultura de massas, o Noroeste Pacífico era território desconhecido para muitos de nós. As montanhas envoltas em névoa, os rios preguiçosos, os campos madeireiros e a chuva ofereciam tanto uma paisagem específica como a sensação de nenhum sítio em especial. Era algo que ficava entre, a meio. E se a sua localização era intersticial, o mesmo pode ser dito do seu período. ” Twin Peaks era de todo o tempo e de tempo nenhum, com o motociclista James, um James Dean dos anos 90, Audrey como pin up angelical dos anos 1940, Bobby Briggs e a sua farpela entre o greaser dos anos 1950 e o grunge. Esse tempo voltou a mexer connosco, e está a acontecer outra vez. Esta não era uma série de massas, mas o contexto tecnológico e televisivo tornaram-na uma refeição de culto que as massas provaram. Hoje, “vai ser muito diferente”, disse Mark Frost à Variety. Tendo alterado a forma como se contam histórias na televisão, nomeadamente no que toca à fotografia, a criação de Lynch e Frost não vai ser a excepção que foi em 1990. E não será o desaire de 1991, quando a segunda temporada ficou sem Lynch. E sem rumo. E se tornou tão “estúpida e pateta”, “ridícula” mesmo, que Lynch deixou de ver, como admitiu ao The New York Times. A ABC, com apoio forte do actual CEO e rei Midas da Disney, Bob Iger, tinha-lhe dado espaço para fazer a série, mas à medida que as audiências caíam exigiu a morte da galinha dos ovos de ouro (resolver “Quem matou Laura Palmer?”) logo no início da segunda temporada. Foi a resposta “que matou Twin Peaks”, como disse o realizador aos jornalistas em Janeiro. Lynch nunca quis sequer responder à pergunta. Entretanto já tinha voltado os olhos para outro projecto — Coração Selvagem (1990) —, numa altura em que as atenções dos espectadores se voltavam também para outra novidade no horário nobre, a Guerra do Golfo em directo na CNN. Voltou só para filmar o episódio final, que produz o cliffhanger “o que aconteceu a Dale Cooper”, e agora quer acabar o que começou. O filme mal-amado Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, que será reposto nos cinemas portugueses a 1 de Junho, é essencial para a intriga da nova temporada, diz o realizador, que desta vez realiza os 18 episódios (a que chama partes) e tem um elenco de mais de 200 actores. Quase todo o elenco original regressa (Lara Flynn Boyle e Joan Chen não voltam, Frank Silva morreu em 1995) e estrelas como Naomi Watts, Tim Roth, Jim Belushi, Jennifer Jason Leigh, Monica Belluci, Michael Cera ou Laura Dern e os músicos Trent Reznor, Eddie Vedder e Sharon van Etten preencherão muitos papéis. Lynch, tal como disse ao The New York Times em Abril, continua a sonhar com as personagens de Twin Peaks. “São como velhos amigos. Pensamos neles de tempos a tempos e questionamo-nos como estão. ”Estão agora num novo mundo. A televisão dos últimos 30 anos é herdeira de Twin Peaks e há novos inquilinos a ocupar o seu lugar original. Pulverizada em centenas de canais e suportes, do streaming à televisão em directo, a programação do audiovisual é um cacho de nichos, agarrados a um tronco de televisão generalista ainda mais convencional, em que há séries de terror e fantasia na lista dos mais vistos e premiados, um mundo de poderes sobrenaturais, criaturas alienígenas, homicidas de culto, narradores pouco fiáveis e dramas em que várias camadas de realidade colidem como o Bates Motel de Carlton Cuse, que assume que foi “roubar a Twin Peaks”, ou o cluster de nostalgia que é Stranger Things. Até há um “Twin Peaks com rappers”, como Donald Glover descreve a sua comédia Atlanta. Houve e continua a haver muitas más imitações, mas o que Lynch fez teve efeitos que se sentiram dez, 20 ou quase 30 anos depois. Matthew Weiner, autor de outra obra aclamada de toques vintage e momentos oníricos que foi Mad Men, percebeu em Twin Peaks o que era possível na televisão. (Lynch, que não via e não vê televisão, também gosta de Mad Men — e de Breaking Bad. ) O splash que Lynch fez ao lançar-se do cinema para a piscina televisiva em 1990 também já não é novo — Lynch constata na Rolling Stone que “o novo [cinema] art house é a televisão por subscrição”. Na última década, a televisão encheu-se de cineastas, entre eles os autores do cinema americano dos anos 90 como David Fincher a fazer House of Cards, Soderbergh em The Knick ou Baz Luhrmann em Get Down e Todd Haynes em Mildred Pierce. Ou Woody Allen, Scorsese, Van Sant. Twin Peaks hoje “não será uma presença singular”, resume a crítica de televisão Maureen Ryan. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi uma das primeiras séries a serem discutidas online, nos primórdios da Web, por exemplo, e nos últimos anos, os podcasts, as recapitulações, os gifs, os livros, as reedições, o streaming e a teoria académica mantiveram-na viva e trataram-na como se, no fundo, ainda estivesse no ar. Lynch fala das 18 partes da terceira temporada de Twin Peaks como um filme, como se faz muito hoje na televisão que quer ser levada a sério, e Frost rejeita que este retorno seja uma trip nostálgica, como se faz muito hoje na televisão das reanimações de corpos do passado. Chegou sem nada se saber sobre ela. “Quanto mais sabemos, mais isso retira à experiência total”, explica o autor à Hollywood Reporter. O que é algo lynchiano, esse qualitativo que, 40 anos passados sobre Eraserhead, ainda se constrói — “Um tipo particular de ironia em que o muito macabro e o muito mundano se combinam de forma a revelar a perpétua inclusão do primeiro no segundo”, lê-se na história de David Foster Wallace sobre a filmagem de Estrada Perdida. “É difícil perceber se é um génio ou um idiota”, escreveu o autor de A Piada Infinita, que viu o realizador pela primeira vez nas filmagens quando David Lynch “fazia chichi numa árvore”. Lynch não filma senão curtas desde 2006, quando fez Inland Empire, mas continua uma figura lendária, embora mais permeável a críticas. “Ele quer sempre dizer-nos quem somos verdadeiramente”, diz Mel Brooks, produtor de O Homem Elefante. “Precisamos que David no-lo diga. Quem é que somos, na verdade? Parte animal, parte empresário, parte doido. Ele sabe. ” Na nova Twin Peaks, a certa altura alguém importante diz aquilo que nunca sentimos verdadeiramente em qualquer dos planos em que Lynch nos coloca. “Compreendo. ”
REFERÊNCIAS:
O homicídio brutal de Hazel foi praticamente esquecido – até ter inspirado Twin Peaks
Mark Frost inspirou-se no caso da adolescente morta em 1908 para trabalhar com David Lynch no que seria a icónica série encetada em 1990. (...)

O homicídio brutal de Hazel foi praticamente esquecido – até ter inspirado Twin Peaks
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.33
DATA: 2017-06-02 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mark Frost inspirou-se no caso da adolescente morta em 1908 para trabalhar com David Lynch no que seria a icónica série encetada em 1990.
TEXTO: A comunidade com um resort de luxo de Sand Lake, no norte do estado de Nova Iorque, registava um calor de 32ºC pelo terceiro dia consecutivo a 7 de Julho de 1908, quando Hazel Irene Drew, de 18 anos, percorria a pé uma secção remota da Taborton Road. Rodeado de floresta, este caminho perto do Lago de Teal era popular entre caçadores de esquilos, campistas e pescadores à procura de iscos – mas era arriscado uma jovem como Hazel andar sozinha à noite. Tudo indica que ela era uma mulher atraente, com cabelo louro com uma poupa e olhos azuis. Pelas 17h30, aproximadamente, ela encontrou dois homens: Frank Smith – um trabalhador rural adolescente com fama de ser “burro” que se tinha encontrado com ela algumas vezes e que estaria apaixonado por ela – e Rudolph Gundrum, de 35 anos – um vendedor ambulante de carvão que conduzia a sua carroça na direcção da cidade quando Frank lhe pedira boleia. Com a mão enluvada, Hazel abanou levemente o seu chapéu de palha debruado a preto, decorado com três plumas grandes e um crachá com um monograma da letra H. Hazel e Frank trocaram cumprimentos. Enquanto a carroça seguia o seu caminho, Smith virou-se para Gundrum e disse: “Aquela é a filha mais velha do velho Drew. ”Este foi o último avistamento confirmado de Hazel Drew antes de o seu cadáver inchado e sem vida ter sido encontrado a flutuar de barriga para baixo no Lago de Teal, quatro dias depois. Causa da morte: um golpe na parte de trás da cabeça, o crânio esmagado com uma arma incisiva e desconhecida. A água tinha distorcido as feições de Hazel de tal maneira que era impossível reconhecê-la e só pode ser identificada pela roupa e pelas obturações de ouro nos dentes. As provas apontavam de forma contundente para um homicídio. Actualmente, o mistério sobre quem matou Hazel e porquê continua por resolver. Apesar de na altura o caso ter atraído a cobertura da imprensa todos os Estados Unidos durante semanas – incluindo uma cobertura extensa no Washington Post –, provavelmente hoje em dia Hazel e a sua história teriam sido esquecidas há muito, se não fosse uma coisa: o homicídio aconteceu nas proximidades de Taborton, Nova Iorque, onde o futuro co-criador de Twin Peaks, Mark Frost, passava as férias de Verão quando era jovem. A avó materna de Frost, Betty Calhoun, tecia histórias derivadas da sabedoria popular local, incluindo o homicídio de Hazel, representando-o “como uma espécie de história de terror que servia de aviso: não andes sozinho nos bosques à noite”, como recordou Frost numa entrevista recente. Frost herdou o dom da avó para contar histórias, tornando-se um romancista, argumentista e autor televisivo de sucesso que co-criou, com David Lynch, a série da ABC da década de 1990 – que agora regressa com novos episódios a 21 de Maio, no canal Showtime, (e em Portugal no TV Séries, a partir deste domingo, 28, às 22h) 26 anos depois de ter sido cancelada. A avó de Frost nunca teria imaginado que as suas histórias de terror exageradas viriam a ajudar a lançar um dos maiores fenómenos da história da televisão. Frost e Lynch estavam a trocar ideias para histórias num café de Los Angeles quando invocaram a imagem do corpo sem vida de uma jovem a aparecer na margem solitária do lago de uma terra pequena. Lynch, como se pode depreender da sua filmografia, era obcecado com mulheres jovens, perturbadas e vulneráveis, especialmente loiras. (Antes, ele e Frost tinham trabalhado num biopic ficcionado sobre Marilyn Monroe, que sugeria que os Kennedy estavam envolvidos na sua morte). Quanto a Frost, “tinha ouvido histórias sobre (Hazel) durante toda a minha infância, porque, supostamente, ela assombrava esta zona do lago”, disse ele num reencontro de Twin Peaks em 2013, na Universidade da Califórnia do Sul. “Foi mais ou menos daí que veio Laura. ”Referia-se a Laura Palmer (interpretada por Sheryl Lee), cujo homicídio está no centro da série original e, segundo Lynch, vai voltar a ser um tema central quando o programa regressar. Durante o desenvolvimento da série, Frost começou a fazer pesquisa na câmara municipal de Sand Lake, à procura de pormenores sobre o homicídio. “Foi a noção de o corpo da rapariga ser encontrado à beira da água, o mistério que ficou por resolver, os vários suspeitos e a espécie de pessoas de classes sociais diferentes e transculturais com que ela interagia”, diz ele. “Isso despertou muito a minha imaginação. ”Laura, uma rainha do baile de finalistas de 17 anos, e Hazel, que trabalhava como empregada doméstica desde os 14, eram ambas beldades de uma terra pequena cujos homicídios revelaram uma abundância de segredos pessoais. À primeira vista, Laura tinha uma vida tranquila e exemplar: boa aluna, namorada fiel do quarterback da equipa de futebol americano do liceu, voluntária da associação Meals on Wheels, etc. Mas, à medida que a investigação avançava, foram emergindo amantes secretos e relações sórdidas, fascinando o Agente Especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e também os telespectadores. Do mesmo modo, os amigos e a família de Hazel começaram por insistir que ela não tinha um interesse amoroso em especial. No entanto, os primeiros indícios não davam em nada mas os investigadores desenterraram depois numerosas pistas que sugeriam relacionamentos e encontros clandestinos. Tal como o Agente Cooper recolheu informação crucial nas páginas do diário de Laura Palmer em Twin Peaks, as autoridades do condado de Rensselaer – dirigidas pelo Procurador Distrital Jarvis P. O’Brien – descobriram dúzias de postais e cartas trocadas entre Hazel e os seus conhecidos – identificados apenas pelas iniciais – guardados no baú de Hazel. A narrativa de Twin Peaks, em momentos diferentes, apontou o dedo da culpa ao motoqueiro sensível James Hurley, ao traficante de droga local Leo Johnson e ao construtor de imobiliário duvidoso Benjamin Horne. Os investigadores do caso de Hazel, sob a pressão crescente do público e da imprensa nacional, descobriam novos suspeitos aparentemente todos os dias. Frank Smith, o trabalhador rural que se cruzou com Hazel pouco antes da morte dela, foi um dos primeiros alvos. Além do seu afecto pela falecida, ele contou repetidamente relatos contraditórios às autoridades. Quando os alibis que o corroboravam pareceram provar a sua inocência, seguiu-se uma série de suspeitos excêntricos, a começar pelo tio rude e melancólico de Hazel, William Taylor, cuja quinta ficava a menos de uma milha do Lago de Teal. Apesar de os seguidores do caso acharem que Taylor era estranho e suspeito, as autoridades nunca conseguiram descobrir provas directas que o relacionavam com o homicídio e ele acabou por ser ilibado. Outras personagens irascíveis viriam a saltar por momentos para a linha da frente da investigação enquanto suspeitos – incluindo um dentista que tinha pedido Hazel em casamento, um maquinista de comboios com quem ela teria um relacionamento e um milionário de Albany, Henry Kramroth, que geria um resort nas proximidades onde se dizia que se passavam acontecimentos estranhos que envolviam orgias (semelhante a Ben Horne e o seu bordel-casino One Eyed Jacks de Twin Peaks). Kramroth defendeu-se de alegações de que havia mulheres detidas contra a sua vontade no resort e de que os vizinhos tinham ouvido gritos vindos do campo perto da hora do homicídio. Como conclui Frost, “Parecia uma investigação realizada à pressa e como ela não era de uma família prominente (acho que é justo dizê-lo) e porque havia pouca compaixão por mulheres vítimas como ela naquela altura, ela pode ter sido negligenciada. ”Mas, ao certo, que influência directa teve o caso de Hazel em Twin Peaks? Frost insiste que a sua pesquisa nunca foi tão aprofundada quanto isso. Contudo, reconhece que as suas impressões gerais da zona tiveram um papel crucial na forma como conceptualizou o cenário. “Toda a vida vivi em cidades grandes ou nos subúrbios”, recorda Frost. “Cresci a ouvir falar de pessoas das montanhas que eram fora do vulgar, que por vezes eram um pouco excêntricas. Portanto, acho que todas estas histórias tiveram um impacto na maneira como penso em pessoas assim e, sem dúvida, lembro-me de pensar, 'Sim, isto é um bocado como o tipo que vivia perto da fábrica' ou 'Este é um dos eremitas de que eu ouvia falar'. ”Sand Lake é, em muitos aspectos, uma cópia da sua homóloga fictícia do Noroeste Pacífico, situada no nordeste dos EUA. Localizada nas encostas da Montanha Taborton, a cerca de 16 km a leste de Albany, tem 10. 135 habitantes (mais perto dos 5 mil que Lynch e Frost tinham inicialmente imaginado para Twin Peaks, antes de a ABC ter insistido que a placa icónica “Welcome to Twin Peaks” ampliasse este número para 51. 201 – a estação acreditava, por alguma razão, que um número reduzido de habitantes não ia interessar aos telespectadores). Tal como Twin Peaks, a história de Sand Lake está ligada aos recursos naturais abundantes da região. O historiador de Sand Lake Bob Morore refere, sobre Twin Peaks: “A indústria de madeira, o Grand Northern Hotel e os campos de caça isolados parecem estranhamente relacionados com a Sand Lake do final do século XIX e início do século XX. ”O manto omnipresente de árvores que cobre a vila abafa a paisagem, não dispensando quase nenhum espaço para as estradas, os edifícios e as pessoas que vivem as suas vidas. Apesar de não existirem abetos de Douglas – pelos quais o Agente Dale Cooper tinha uma famosa obsessão – a variedade de elmos, carvalhos e áceres do norte do Estado de Nova Iorque evoca sem dúvida as imagens icónicas de ramos fustigados pelo vento que dominavam Twin Peaks. As montanhas e o clima geralmente cinzento e chuvoso dão à vila fictícia e à sua homóloga da vida real uma atmosfera generalizada de intriga perigosa. Como recorda Scott Frost – irmão de Mark, que também foi argumentista da série original – sobre a região, “É o tipo de lugar que permite a uma criança ter um sentido de imaginação espantoso. ”Infelizmente, os paralelos entre Hazel Drew e Laura Palmer têm limites. Como é bem conhecido, Frost e Lynch não conseguiram rejeitar a pressão da estação para revelar quem era o assassino de Laura (não há spoilers neste texto), mas não havia executivos metediços da ABC para obrigar a história de Hazel a ter uma resolução. Em vez disso, semanas de investigação culminaram num grande inquérito onde foram reunidas testemunhas para obter depoimentos definitivos. Infelizmente, surgiram poucas informações novas e o caso terminou abruptamente. “Um sábio disse-me uma vez que o mistério é o ingrediente mais essencial da vida, pela seguinte razão: o mistério cria fascínio, que leva à curiosidade, que, por sua vez, gera os fundamentos do nosso desejo de compreender quem somos e o que somos verdadeiramente”, escreveu Frost no seu romance de 2016, The Secret History of Twin Peaks. A solução do homicídio de Hazel pode escapar-nos para sempre, mas é o nosso desejo de respostas que torna a história dela – e a história de Laura Palmer – tão sedutora. ----Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. David Bushman é curador televisivo do Paley Center for Media em Nova Iorque e co-autor do livro de 2016 Twin Peaks FAQ e do futuro Buffy the Vampire Slayer FAQ. Mark Givens apresenta um podcast mensal sobre Twin Peaks chamado Deer Meadow Radio. Actualmente, estão a trabalhar num livro sobre o homicídio de Hazel Drew. Exclusivo PÚBLICO/The Washington PostTradução: Rita Monteiro
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Exames: o melhor é estudar sem parar
A organização e a disciplina são chave. Esqueçam, portanto, as saídas à noite e ao fim-de-semana, telemóveis, WhatsApp, Facebook, Instagram, Snapchats e afins incluídos, até porque os exames são agora e os amigos podem esperar. (...)

Exames: o melhor é estudar sem parar
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 1.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: A organização e a disciplina são chave. Esqueçam, portanto, as saídas à noite e ao fim-de-semana, telemóveis, WhatsApp, Facebook, Instagram, Snapchats e afins incluídos, até porque os exames são agora e os amigos podem esperar.
TEXTO: Os exames nacionais não estão à porta. Os exames nacionais já começaram e o segredo para o sucesso é só um: estudar sem parar, e de preferência um mês antes de cada exame, sem nunca estudar para mais de três exames ao mesmo tempo. A organização e a disciplina são chave. Esqueçam, portanto, as saídas à noite e ao fim-de-semana, telemóveis, WhatsApp, Facebook, Instagram, Snapchats e afins incluídos, até porque os exames são agora e os amigos podem esperar. Ao longo da minha carreira como aluno do secundário nunca estudei menos de duas semanas para cada teste. Fazia resumos da matéria, muitos resumos, mais resumos e, não sei se já o disse, ainda mais resumos. E depois lia-os uma, duas, três, sete ou mais vezes, de trás para a frente e da frente para trás, até chegar ao ponto de saber, de ver à minha frente no momento do teste, no momento do exame, onde estava cada letra, cada palavra, em que linha, em que página, memorizando compêndios inteiros. Na universidade, entrei para Biologia, o meu curso de eleição. As notas de acesso? À data, 19 a Biologia e 19 a Psicologia. Nunca parei de estudar. Queria entrar para Biologia, estudar o comportamento animal, fazer documentários, amar os animais, viver com e entre os animais e, se querem mesmo saber, comecei a estudar para entrar para a universidade aos 10 anos quando, à frente do meu pai, declamei este meu desejo de ser biólogo. E se até lá somos todos estudantes, então o nosso trabalho é um e um só: estudar. Porque, para podermos estudar, há quem trabalhe por nós, na esperança de que nos façamos homens e mulheres, independentes, empreendedores, realizados, felizes. Porque, para podermos estudar, gerações de pais sacrificaram-se e sacrificam-se em nosso nome e, por conseguinte, o mínimo que podemos fazer é estudar, como se não houvesse amanhã. Devemos-lhes isso, aos nossos pais. É nosso dever, é a nossa obrigação. Por isso, estudei sem parar, sempre, até à hora de cada teste de folhas na mão, revendo e revendo, fazendo exercícios e testes antigos, procurando padrões e respostas, procurando aprender e saber na ponta da língua todos os ossos do corpo humano e o saber não ocupa lugar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Afinal, é o nosso futuro em causa, é o vosso futuro em causa. Escrevo-vos do futuro, do meu futuro. Não fiz os tais documentários, descobri a paixão pelo ensino. Inicialmente como professor de Biologia, hoje vivo ao leme de uma escola em Inglaterra. Chegou a vossa vez, o futuro é vosso, agarrem-no com as duas mãos, com as duas pernas, com o corpo todo, e nunca, mas mesmo nunca, parem de estudar, mesmo se já tocou para o exame e vocês ainda à porta a trocar ideias com um colega. E boa sorte!
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Palavras-chave homens escola mulheres corpo animal
"O único cinema político, neste momento, é o meu"
Alvo de retrospectiva na Cinemateca até ao final de Julho, o autor de O Lugar do Morto, Os Imortais ou Call Girl é uma figura quixotesca, enérgica, polarizadora. Nesta entrevista afirma que o seu cinema nunca foi desligado da realidade - ao contrário do cinema português... (...)

"O único cinema político, neste momento, é o meu"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: Alvo de retrospectiva na Cinemateca até ao final de Julho, o autor de O Lugar do Morto, Os Imortais ou Call Girl é uma figura quixotesca, enérgica, polarizadora. Nesta entrevista afirma que o seu cinema nunca foi desligado da realidade - ao contrário do cinema português...
TEXTO: “Falei pouco dos meus filmes”! A frase chega por e-mail, depois do empate de Portugal com a Espanha, horas depois do fim de uma conversa no café da Cinemateca Portuguesa. Mas é inevitável que isso aconteça quando o entrevistado é António-Pedro Vasconcelos, senhor de palavra torrencial, articulada, apaixonada, que parece pedir discussão. O seu cinema, o seu discurso e o seu pensamento sobre o cinema, são indissociáveis da sua travessia por meio século de cinema em português, durante o qual apenas assinou dez longas-metragens de ficção: Perdido por Cem. (1972), Oxalá (1980), O Lugar do Morto (1984, um dos maiores sucessos do cinema português), Aqui d’El Rei (1991), Jaime (1999), Os Imortais (2003), Call Girl (2007), A Bela e o Paparazzo (2010), Os Gatos Não Têm Vertigens (2014) e Amor Impossível (2015), com a 11ª, Parque Mayer, em pós-produção. Meio século iniciado com a “segunda geração” do Cinema Novo, a par de José Fonseca e Costa, Alberto Seixas Santos ou João César Monteiro — ponto de partida de um percurso polémico, agora recordado numa retrospectiva integral (iniciada com o arranque do Mundial de Futebol) que a Cinemateca lhe dedica até finais de Julho. Há qualquer coisa de quixotesco nesta figura que, aos 79 anos, admite ter feito parte de uma geração que não cumpriu as expectativas; que se envolveu e envolve, energicamente, nas discussões sobre os modelos (estéticos, de financiamento. . . ) do cinema português, e chegou a assumir cargos oficiais de direcção da política audiovisual de um governo com o qual nem sequer se identificava; que continua a defender acerrimamente a Nouvelle Vague que inspirou toda a sua geração a filmar, mesmo quando aos olhos de muitos ele se transformou no bastião do cinéma de papa contra o qual a sua geração se ergueu. A retrospectiva da Cinemateca — que inclui as curtas “institucionais” que realizou nos anos 1960 ou os documentários que fez após o 25 de Abril como Emigr Antes. e Depois? (1975) ou Adeus, Até ao Meu Regresso (1974), e será acompanhada pelo próprio realizador — é o pretexto para uma conversa onde se aborda o seu cinema, o seu percurso histórico e a sua maneira de pensar a imagem. Fez durante muito tempo crítica de cinema [sobretudo entre 1960 e 1970]. Tem saudades disso?Não. A crítica foi um prolongamento de uma paixão absolutamente louca pela descoberta do cinema, e pela descoberta dos mestres. Temos de inventar os nossos próprios pais. Sou um autodidacta, tive uns pais fantásticos, mas costumo dizer que o cinema me ensinou a viver e que foi a vida que me ensinou a fazer cinema. Fez parte de uma geração de cineastas que, até ao 25 de Abril, apresentava uma “frente unida” contra o regime. Depois da Revolução, começam as fracturas. Existia essa sensação de uma geração unida, uma tribo, que se desfaz?Se analisarmos todos os movimentos estéticos em qualquer área, mesmo em termos mais modernos como a Nouvelle Vague ou o neo-realismo italiano, houve sempre uma união contra um inimigo comum, que era a tradição académica instalada. E houve outra coisa, no caso do [nosso] cinema, que foi a interferência de posições políticas. Antes do 25 de Abril, havia já diferenças entre o José Fonseca e Costa ou o António de Macedo e as nossas posições — refiro-me ao grupo da [pastelaria] São Remo, eu, o João César Monteiro, o Carlos Saboga e o Alberto Seixas Santos. Juntámo-nos ao Fernando Lopes e ao Paulo Rocha, que tinham acabado de fazer filmes com os quais nos identificávamos. O que nos marcava eram os Cahiers du Cinéma, uma certa ideia do cinema, uma certa reabilitação do cinema americano, e uma certa ideia daquilo a que se chamou depois Cinema Novo. Tínhamos em comum a necessidade de criar condições para poder filmar. E a Fundação Calouste Gulbenkian é que provocou essa união, porque viram que havia um grupo unido nessa urgência de fazer cinema. Pediram-nos para apresentarmos uma proposta. E o Azeredo Perdigão, um homem visionário, teve uma ideia extraordinária: “Vamo-vos dar dinheiro durante três anos para provarem que têm a oportunidade de filmar e de conquistar público”. Foi um momento único, não podíamos perder a oportunidade e tínhamos de estar unidos. A seguir ao 25 de Abril, não só terminou o apoio da Gulbenkian, como entretanto foi criado o Instituto Português de Cinema e o que veio ao de cima foram as divisões partidárias. . . Essas divergências começaram por ser partidárias, políticas, mas depois evoluíram para algo mais ideológico e estético. Há aquela frase do Jacques Rivette sobre a Nouvelle Vague: “não me espanta que o Godard e o Truffaut se tenham zangado, o que me espanta é que tenham demorado tanto tempo”. No vosso caso, essa frase faz sentido?Sempre fui muito próximo do Seixas Santos, e no grupo da São Remo foi ele que nos levou a ler os Cahiers. Quando fui para Paris com ele, víamos todos os dias os mesmos filmes, tivemos uma aprendizagem semelhante — ele gostava mais do Fritz Lang, eu gostava mais do Renoir. O que aconteceu foi que houve no cinema europeu, particularmente em França, uma ruptura que marcou aquilo que aconteceu em Portugal, que tem a ver com o Maio de 68, a contestação ao Vietname — uma grande atracção pelo Maoísmo e pelo Guevarismo, o mais romântico da revolução cubana. E o radicalismo político do Seixas [influenciado por essa ruptura] foi devastador, porque ele era inteligente, muito culto, e ficou muito aquém daquilo que poderia fazer. Torna-se um radical do ponto de vista estético. O único [desse grupo] que fica igual a si próprio é o João César — tanto quanto era possível ser amigo do César, porque ele cultivava a inimizade!Deixe-nos pegar nessa questão política. Os seus filmes são, no geral, relativamente apolíticos. . . Não é verdade. Acho que o único cinema político, neste momento, é o meu. Não vejo outros. O Jaime é um filme político! O Call Girl é o meu filme mais político, uma reflexão sobre os motivos pelas quais o capitalismo ganhou, porque é, como o catolicismo, o que melhor conhece as fraquezas humanas. Mas, ao contrário de Roma, que pretende evitar que os homens sejam tentados, o capitalismo usa-as para os tentar. O filme é inspirado no modo como Monica Lewinsky foi usada por Wall Street para levar Clinton a revogar a lei Glass-Steagall, o que deixou os bancos à solta e conduziu ao colapso do Lehmann Brothers em 2008. E que viria a repetir-se com a ratoeira a Dominique Strauss-Khan. Para quem queira olhar sem preconceitos, é uma reflexão sobre isso: num mundo em que o valor supremo é o dinheiro e o poder que ele dá às pessoas, porque razão um polícia, um autarca ou uma mulher hão-de ser “honestos”, se podem ganhar em poucas horas, corrompendo-se, mais do que a trabalhar honestamente a vida inteira?O Perdido por Cem é um filme que, na medida em que lhe é possível porque existe a censura, fala de um problema importante que são os efeitos da guerra colonial, E é um filme que mostra um Portugal completamente diferente, e a vontade de sair daqui. Os três primeiros filmes [Perdido por Cem, Oxalá, O Lugar do Morto] são uma trilogia muito pessoal, aquilo a que chamo de cinema confidencial. As três personagens são um prolongamento da minha pessoa. E a partir de certa altura não podia continuar a falar na primeira pessoa, dos meus problemas com as mulheres, com o mundo. . . Achei que tinha de começar a olhar à minha volta. Sempre achei que o cinema tinha um papel fundamental na sociedade, na maneira como interagia com a sociedade, porque o que me interessa é a ficção, e o papel que a ficção tem nas sociedades e nas civilizações. O meu cinema nunca foi desligado da realidade. Surpreende-me que o cinema português não fale da realidade. Praticamente não há filmes sobre a guerra, sobre o regime, sobre o que foi Portugal. Isso reflecte-se nos meus filmes, na medida em que me preocupo espontaneamente com os problemas que naquela altura me chamam a atenção. Em que momento é que teve consciência disso?Há um filme que marca isso, que é o Aqui d’el Rei. Houve um filme fatal para mim, O Lugar do Morto. A partir daí criou-se essa coisa, que é uma aberração, que é um filme que tem público, um “filme comercial”. E aquilo que vocês classificam como cinema de autor é uma coisa que não tem nada a ver com aquilo a que assisti a partir dos meados de 1950 com o percurso do François Truffaut, que começou a falar de cinema de autor em relação ao Jacques Becker. A sorte que eu e o Seixas tivemos de estar em Paris durante os dois anos decisivos em que os jovens críticos passam à realização. . . Ainda me lembro de ver na sala o Godard, o Truffaut, que continuavam a ir à Cinemateca Francesa! Essa geração ajuda-nos a descobrir o cinema americano. Sempre defendeu aprender a fazer cinema vendo cinema, mais do que a aprender a técnica. Isso tem também a ver com a época, e com uma frase do Claude Chabrol: “a técnica do cinema aprende-se em cinco horas”. E com uma coisa que dizia o Glauber Rocha: “o que é importante é uma ideia na cabeça e uma câmara na mão”. São frases que marcam jovens que de repente querem fazer cinema. Dêem-nos o mínimo de condições e a gente faz. A Nouvelle Vague tinha isso. Acabamos sempre a falar da história do cinema, do que pensa sobre o cinema — mas falamos menos dos seus filmes do que tudo aquilo que os rodeou. . . Devo dizer-vos que tenho uma enorme frustração porque nunca tenho oportunidade de falar dos meus filmes, e gostava disso. Por exemplo, considero A Bela e o Paparazzo o meu filme mais perfeito, com o melhor conflito, e, sendo o único de género — comédia romântica —, com a articulação perfeita entre a comédia e o romance, com o lado negro infiltrado, como nas comédias do [Billy] Wilder, e com os três actos na medida certa como manda o Aristóteles. Mas sou o primeiro crítico dos meus filmes. Ainda hoje sofro com algumas coisas que estão mal em certos filmes meus — por exemplo, não me perdoo na Bela e o Paparazzo fazer sair a Maria João Luís pela direita no plano do café. Ou nos Gatos Não Têm Vertigens ter deixado, no grande plano da Maria do Céu Guerra a sair de casa, uma pessoa passar à frente, o plano fica sujo. . . O cinema que custa dinheiro. Tenho de respeitar o dinheiro do produtor para que o produtor respeite o meu trabalho. Se não há essa relação, está tudo perdido. Disse, aquando do Jaime, que precisou de esperar até esse momento para sentir que tinha obra, apesar de já filmar há mais de vinte anos. . . Estive oito anos sem filmar, em parte por causa do sistema, em parte porque fiz uma opção que foi, em determinada altura, aceitar — e ainda por cima num governo com o qual não tinha nada a ver — o que me pareceu uma missão fundamental para conseguir fazer sair o cinema português da sua pequenez. Percebi que o cinema tinha mudado do ponto de vista daquilo que eram as suas formas de comercialização, tinha deixado de ser exclusivamente pago em salas e tinham duas novas janelas que eram a televisão e o vídeo, e que era preciso uma política integrada para o audiovisual, ir buscar dinheiro a essas fontes. E por outro lado era preciso ajudar a internacionalizar o cinema português. Depois do êxito do Lugar do Morto, fiz o Aqui d’El Rei em co-produção porque achei que era preciso aspirar um bocado mais alto, não só eu próprio mas todo o cinema português. É o primeiro filme coral que faço, em que a personagem principal não sou eu. O que é muito curioso, porque sou sobretudo um homem dos livros, é que só depois de ter escrito e de filmado o Aqui d’El Rei é que percebi que aquilo era a Cartuxa de Parma do Stendhal, e não me dei conta! Assim como quando retomei a escrita dos Gatos Não Têm Vertigens é que me apercebi que era o David Copperfield do Dickens. Desde o Jaime, que é o primeiro filme em que começo a ter uma percepção política mais aguda daquilo que é a realidade social em Portugal, não fiz um único filme inspirado numa determinada realidade sem fazer uma enorme investigação. Sou incapaz de falar de uma realidade sem tentar percebê-la. O puto do Jaime é muito inspirado no puto do América, América do Elia Kazan. Mas isso são coisas espontâneas, são as coisas que me marcaram. Mas, por exemplo, nos Gatos Não Têm Vertigens existe um desequilíbrio entre as duas histórias. A história da idosa sozinha (Maria do Céu Guerra) é óptima, com qualquer coisa de Umberto D [Vittorio de Sica], mas a história do miúdo abandonado soa a falso, como se fosse uma telenovela. [indignado] Vocês podem achar tudo o que quiserem sobre os meus filmes, mas isso acho insultuoso. Como é possível que não perceba o trabalho incrível que há na estrutura daquele filme? Levou-me dois anos a escrever, tem 18 versões. Sabe qual é a diferença entre o Umberto D e Os Gatos Não Têm Vertigens? É que onde num há um cão no outro há um puto. É a diferença. Vocês podem dizer tudo o que quiserem, mas dizer que não há uma coerência entre todos os filmes que faço a pensar no que o público gosta. . . Não foi isso que dissemos. Entre a estética da telenovela e os meus filmes há um abismo inultrapassável, impossível de confundir, nem na construção nem na pertinência dos temas, porque a telenovela é uma pastilha elástica, descreve uma realidade que não existe. Eu queria falar da crise, daquilo que se estava a viver, e comecei à procura de uma ideia abstracta — e depois encontrei esta coisa das pessoas que estão a ser empurradas para fora da sociedade, os idosos e os putos. Conheço esta mulher, é da minha geração; mas não conheço estes putos marginais, e andei quase um ano até falar com eles e com as pessoas que tomavam conta deles. O que me interessava era falar de miúdos que estavam na margem entre cair para um lado e cair para o outro. Putos que nasceram do lado errado da rua, como o Jaime, que era uma reflexão sobre o que acontecia depois dos Ladrões de Bicicletas. Mas todos os meus filmes têm uma pesquisa enorme. Agora fiz um filme sobre o Parque Mayer nos anos 1930: fiz imensa investigação, como é que era a revista, a PIDE, a censura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Desde Call Girl, em 2007, que filmou mais frequentemente do que até então. Isso tem a ver com a sua relação com os produtores, no caso com Tino Navarro?Tenho produtores desde o Aqui d’El Rei. No Lugar do Morto [que teve dois produtores que saíram do projecto], acabei por ser eu a produzi-lo — e felizmente porque foi o único filme em que ganhei dinheiro! A partir daí tive produtores, e quis sempre ter produtores, porque é desagradável ser produtor e realizador. Para já, há um conflito. O produtor tem que ter a preocupação de não falir e o realizador quer a perfeição. E por outro lado há uma coisa ingrata — não devo ter relações com os actores e com os técnicos que passem pelo cheque. Ter um produtor implica comprometer-me com um plano de trabalho, porque isso obriga-me a fazer muito trabalho antes. Tenho um livro para aí de 500 páginas só com notas diárias sobre o Perdido por Cem. , e outro sobre o Oxalá. Não há nenhum filme que não seja 100% o que eu quero fazer, não há nenhum actor que seja imposto por seja quem for. Tenho a preocupação — que tinha o Dickens, o Tolstoi, o Verdi, o Puccini, o Homero! — de antecipar a reacção do público. A emoção é silenciosa, mas está lá; se se cortar a emoção uns fotogramas antes do público ter digerido uma emoção, está-se a comunicar mal, a prejudicar a reacção do espectador. Isso é uma sabedoria. Aquilo que me identifica com os grandes mestres é que eles sabem antecipar qual vai ser a reacção do público. E isso não tem nada a ver com fazer cinema para o público. Estamos numa era em que cada vez menos pessoas vêem um filme numa sala de cinema, cada vez mais pessoas o vêem em casa ou em DVD ou no computador. . . Até que ponto é que pensar o filme em função da sala ainda faz sentido?O universo que me interessa é o da ficção, e quando o cinema deixar de contar histórias não me interessa. Contar histórias é comunicar com o público, contá-las a alguém. Isso para mim é fundamental: contar uma história que provoque aquilo a que Aristóteles chamava temor e compaixão. Os ficcionistas conseguiram comunicar com o público porque tinham um dom, e porque interpretaram aquilo que eram os anseios e os temores de uma época. Essa relação de catarse com o público é fundamental. Aprendi tudo o que sou, bom ou mau, com os grandes narradores, os escritores, o Mozart, o Shakespeare, o Dickens, o Ford, o Hawks, o Preminger, o Rossellini, o Renoir — este último filme que fiz, sobre o Parque Mayer, é uma homenagem ao Renoir, ao French Cancan, A Comédia e a Vida, a homenagem constante do Renoir ao público. Fala do público e do prazer que é um actor sentir que a sua representação é amada pelo público, que há uma empatia. Toda a tradição em que cresci e me formei foi essa tradição, e continuarei a querer contar histórias. Mas o mundo evoluiu. A ópera acabou, a pintura acabou no princípio do século XX, porque deixou de ter uma função social. Sei que o cinema está a prazo condenado, mas faço filmes para uma sala. E aquilo que gosto de fazer em cinema, enquanto tiver possibilidade de o fazer, é o que vou continuar a fazer.
REFERÊNCIAS: