Vários locais de Lisboa: Os quadros estão na rua
Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles (...)

Vários locais de Lisboa: Os quadros estão na rua
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há quadros — com molduras e tudo — nas ruas de Lisboa. São reproduções de obras do Museu de Arte Antiga. E alguma coisa acontece em nós quando nos cruzamos com eles
TEXTO: A primeira vez que vi um fui apanhada de surpresa. O efeito foi exactamente aquele que imagino que se pretenda. Passava pela Rua do Loreto e vi o quadro na parede exterior de um edifício. Agora, quando penso nesse momento, tenho a sensação de que o meu cérebro demorou uma fracção de segundo a conseguir transmitir a informação correcta: está um quadro de museu, com moldura e tudo, pendurado na rua. Devo ter dado um passo atrás e parei para observar melhor. Dei uma olhadela rápida à minha volta para perceber se havia outras pessoas a olhar ou se tinha sido apanhada nalguma piada. Mas não, o movimento continuava normal. Descansada, dispus-me a observar o quadro mais atentamente. Li a legenda ao lado. Reparei nas personagens, na cena. Voltei a olhar à minha volta para confirmar que estava a ter um comportamento adequado. Tudo calmo. Havia um quadro de museu na rua. E, no meio da estranheza da situação, a maior estranheza continuava a ser a moldura. Como se esta fosse o elemento que fazia toda a diferença. Claro que existe street art e que temos peças originais nas ruas e que estamos habituados a isso, mas uma moldura é um elemento bastante mais estranho. Era ela que nos dizia “não sou um cartaz, sou um quadro a sério e decidi sair do museu, onde vocês nunca me iam visitar, para vir mostrar-me aqui na rua”. Há alguma coisa de comovente na súbita humildade da pintura à minha frente. Como se fosse ela a estender-nos a mão e a dizer que afinal somos importantes (ela pertence a todos, a verdade é essa) e que não faz sentido haver distância entre nós. É curioso perceber como a simples deslocação no espaço de uma obra de arte — como o Museu Nacional de Arte Antiga faz nesta iniciativa, que baptizou como ComingOut e que traz 31 reproduções de obras da sua colecção para as ruas de Lisboa (Chiado, Bairro Alto, Príncipe Real) durante três meses — lhe dá outros sentidos e pode alterar a nossa relação com ela. O museu, todos sabemos, empresta uma solenidade às coisas. Mesmo que já tenham sido inventadas muitas maneiras de o dessacralizar, nada altera o facto de estarmos entre aquelas paredes por vontade própria. E há uma intimidade diferente entre nós e um quadro. Muitas vezes estamos sozinhos e com todo o tempo para o observar. Há tempo e silêncio — precisamente o que não existe na rua. Desde que me cruzei com o quadro que não me sai da cabeça a cena de Vertigo em que James Stewart segue Kim Novak até ao museu e a observa naquele que é (ou ele pensa ser) um momento de profunda intimidade entre aquela mulher misteriosa e o igualmente enigmático Portrait of Carlotta. Seria possível um momento assim se o quadro estivesse na rua, se não existissem as paredes do museu? O pudor que leva a personagem de James Stewart a afastar-se existiria?Outras vezes — se estivermos a tentar ver a Mona Lisa, por exemplo — não há nem silêncio nem intimidade, há, antes, uma sensação de urgência porque atrás de nós estão muitas outras pessoas a querer ver — e fotografar — o mesmo quadro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não vale a pena entrar aqui pela questão da reprodução. Claro que os quadros na rua são reproduções (e mesmo assim já houve um roubo), e claro que uma coisa é ver uma reprodução (que se pode ver também na Internet ou num livro) e outra é ver um original. Mas muito provavelmente eu nunca me lembraria de procurar na Internet a obra Conversação (1663-1665), de Pieter de Hooch — essa mesma que me fez parar naquele dia na Rua do Loreto. São seis as personagens, são muitos os detalhes, do espaço mas também dos gestos, dos olhares. Há muito a tentar perceber aqui: quem são estas pessoas, porque estão reunidas nesta sala, de que falarão, que expressão terá o homem cuja cara está tapada pelo próprio braço e porque é que uma rapariga o olha com um ar iluminado, quem é o homem que entra e ao qual apenas o cão parece prestar atenção, que quadros estão representados dentro deste quadro? Acabo na Internet, claro, no site do MNAA, onde leio que nesta “ obra de referência da colecção de pintura holandesa do Museu, e uma das mais representativas deste contemporâneo de Vermeer, o significado da composição supera a mera representação de uma cena galante do quotidiano de Amesterdão pelos meados do século XVII [e que] as diversas personagens à volta da mesa poderão aludir ao conceito dos Cinco Sentidos”. Posso, no meio de tudo isto, ainda não ter visto o original, mas aquela moldura na rua fez-me parar e pensar. E nos tempos que correm (literalmente), isso parece-me já extraordinário.
REFERÊNCIAS:
Quem guardou as receitas da avó?
Fomos à procura de receitas de família que se tornaram tradição e que não passam pelo bacalhau e o peru. Mais secretas ou menos, guardadas em livros gastos pelo uso ou apenas na memória, são sempre uma forma de recordar mães, tias, avós, pais ou até tios que um dia também as cozinharam. (...)

Quem guardou as receitas da avó?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fomos à procura de receitas de família que se tornaram tradição e que não passam pelo bacalhau e o peru. Mais secretas ou menos, guardadas em livros gastos pelo uso ou apenas na memória, são sempre uma forma de recordar mães, tias, avós, pais ou até tios que um dia também as cozinharam.
TEXTO: Foi só quando se casou com José Paula, em 1967, que Maria Vitória aprendeu a cozinhar. Começou a tomar nota de todas as receitas que lhe davam num livro — algumas escrevia-as à mão, com todos os detalhes, outras recortava de revistas e jornais e ia colando ou simplesmente guardando entre as páginas do caderno. É esse livro, hoje muito gasto pelo uso, que o filho Miguel vai buscar e traz para cima de uma das mesas do restaurante que tem com o pai, o Delícias de Goa, em Lisboa. José Paula veio de Goa para Portugal em 1962 e foi aqui que conheceu a goesa Maria Vitória. Mas só depois de a guerra colonial o ter obrigado a embarcar para África é que os dois decidiram casar. “Mandei-lhe a passagem para ela ir ter comigo à Beira, em Moçambique”, conta. Como era enfermeira, pôde acompanhar o marido mesmo quando o destacamento dele foi mandado para o interior — algo que não era permitido às outras mulheres. Com o casamento à vista, Maria Vitória terá pensado que o melhor era aprender a cozinhar e acabou por se tornar uma óptima cozinheira. Veja os vídeos“Quando tínhamos visitas, ela desaparecia um bocadinho lá para dentro, abria o livro, decidia o que fazer e em pouco tempo a mesa enchia-se de coisas para o lanche”, conta o marido. Além disso, a despensa estava sempre cheia, porque “nunca se sabe o que pode acontecer”, como lhes tinha dito uma amiga na altura em que regressaram a Portugal, em 1975, quando “tudo estava a ferver”. “As primeiras receitas são as de doces mais indianos”, repara Miguel, enquanto passa as páginas. “Talvez fossem as que ela receava esquecer mais depressa. ” Mas não eram estes os mais populares em Goa, afirma José Paulo. “São demasiado doces. ” É por isso que as memórias de Natal — primeiro lá e depois já em Portugal — estão ligadas a doces muito particulares: a bebinca, claro, a bátega, com coco e cuja receita está também neste livro, e o cake de Natal, que se tornou obrigatório no Delícias de Goa durante a época natalícia (a bebinca marca presença o ano inteiro). Decidimos então para esta história escolher o cake. “É uma versão do bolo inglês, mas que leva vinho do Porto, além das sultanas, os corintos, a laranja cristalizada, e que é feito com o açúcar em ponto de caramelo, o que lhe dá um tom de mel”, explica Miguel. É preciso começar a prepará-lo com tempo porque tudo é feito em casa, incluindo a cristalização da laranja. Miguel, e a irmã, Célia, nunca chegaram a ir a Goa. E mesmo José Paula e Maria Vitória deixaram por concretizar esse projecto — ela morreu em 1989, com 46 anos. Mas em Portugal, para onde toda a família veio quando deixaram definitivamente Moçambique (Miguel tinha um ano), nunca faltaram as tradições de Natal. “E em Goa este bolo era obrigatório no Natal”, recorda José Paula. Quando Miguel e Célia eram pequenos, a mãe fazia o presépio e a árvore de Natal e, logo no dia 20, começava a preparar os doces e as outras especialidades da época. “Mas os doces só podiam ser comidos depois da Missa do Galo”, conta Miguel. “Era um cheirinho inacreditável pela casa toda. E até trocávamos doces com os outros vizinhos do prédio. ”Os miúdos ajudavam, claro. Hoje tudo é mais fácil, pode-se comprar o miolo da amêndoa já cortado, por exemplo. Mas antigamente fazer o cake era um ritual que exigia tempo e juntava a família em pequenas tarefas. “Um dos trabalhos que nós tínhamos era pôr as amêndoas em água quente para lhes tirar a pele. ” E no fim lutavam para poderem rapar a taça em que tinha sido preparado o bolo. Foi já alguns anos depois da morte de Maria Vitória que José Paula decidiu prestar atenção “ao bichinho” da restauração que tinha dentro de si. Com um amigo, abriu o primeiro restaurante, o Nova Goa, em 2004. Quatro anos depois, resolveu apostar num projecto novo e abriu o Delícias de Goa. Miguel, que entretanto tinha ido para Londres aprender cozinha com um primo que ganhou o concurso de melhor cozinheiro de pub no condado de Kent, voltou e foi para o restaurante do pai. Para fazer muitas das receitas tradicionais de Goa, socorre-se ainda do livro da mãe. A primeira vez que o foi buscar foi para aprender a fazer bebinca, mas a tarefa revelou-se mais complicada do que esperava. Só neste livro havia duas receitas diferentes, as tias que estão no Brasil deram-lhe mais três versões e as do Algarve mais duas. Foi dessas sete que ele chegou à bebinca que hoje faz. O cake é mais simples. Apesar de, nessa página, a tinta do caderno da mãe estar cada vez mais apagada, ele já o sabe fazer bem. O último Natal de Maria Vitória foi o de 1988, já no hospital (morreria no dia 13 de Dezembro do ano seguinte). Mas a família não quis que fosse menos Natal por isso. Houve Missa do Galo no IPO, e José Paula, Miguel e Célia levaram os pratos de sempre, o cabrito assado no forno, o sarapatel, os bolos de Natal. Passaram-se muitos anos desde essa noite, mas o velho livro de receitas continua a uso, e todos os Dezembros a cozinha da família volta a encher-se com o “cheirinho inacreditável” do cake de Natal de Maria Vitória. Tinha um nome raro a tia que passou a Joana a receita do bolo de noz — chamava-se Comba. “Ajudou a minha mãe a criar-nos e era uma excelente cozinheira”, conta Joana. “Fazia jantares chiques para a alta sociedade, as famílias mais ricas lá da Cuba. ” A receita do bolo de noz, tê-la-á recebido de uma amiga também de nome original, São Pedro, e mais para trás já não se consegue traçar a história deste doce. Foi em Cuba, no Alentejo, e depois em Beja, que Joana cresceu. Aí, na noite de Natal, não havia peru nem bacalhau. A tradição pedia que na mesa reinasse o porco, por isso aparecia sempre lombo assado com tempero do alguidar, além da sopa da panela feita com frango. Quando chegava a hora dos doces, o que saía das cozinhas era o bolo folhado, o pudim flan e, perto da meia-noite, a avó e a tia deitavam mãos à obra e começavam a fazer os coscorões. Joana não gostava de cozinhar. No que tocava aos trabalhos da casa, preferia limpar e arrumar. Até tarde foi assim. Depois de estudar em Beja, regressou a Cuba para trabalhar na Câmara Municipal e voltou a viver com a avó, que adorava. “Eu trabalhava e quando chegava a casa tinha a comidinha pronta e na mesa. Era uma princesa. ” De tal maneira que houve um tempo em que Joana também não apreciava particularmente o Natal. “Tinha de sair do meu lugar à mesa para dar lugar aos outros”, conta, a rir. E durante aqueles dias as atenções da avó já não eram só para ela. Mas chegou a altura de casar e de deixar a casa da avó. “Tinha um bocadinho de medo de não conseguir fazer nada na cozinha”, confessa. Valeu-lhe ter a professora certa. Foi em grande parte por correspondência que aprendeu a cozinhar e ainda guarda as cartas que a tia Comba lhe mandava de Beja, em que se misturavam notícias de família e receitas. Muitas dessas receitas, escritas em papéis soltos e na letra bem desenhada da tia, estão guardadas dentro dos seus livros de cozinha. Vai buscar um e espalha as folhas em cima da bancada. Por acaso, a do famoso bolo de noz já só existe numa versão escrita pela própria Joana e não no original da tia Comba. Mas hoje nem precisa de olhar para ela. Podia fazer este bolo de olhos fechados. Os filhos sempre o adoraram e por isso é o bolo que faz nas festas de anos e, claro, é obrigatório na noite de Natal. Quando Joana o levava para festas de crianças, havia sempre alguém a perguntar como se fazia. Sorri ao recordar que o filho, Leopoldo, sempre lhe disse para não dar a receita a ninguém. Hoje percebe-se que havia uma boa razão para tanto secretismo: o bolo de noz tornou-se uma sobremesa emblemática no restaurante que ele abriu há um ano na Parede, o Sociedade. Quando chegamos a casa de Joana, no Lumiar, em Lisboa, já ela tem tudo preparado. A arte, explica, está sobretudo na caramelização da forma, que faz com invejável destreza. Importante também ?? o ponto do açúcar, que deve ser de pérola. Tirando isso, o outro grande segredo deste bolo são as nozes, fresquíssimas, que vêm das nogueiras de uma propriedade do marido perto de Vila Franca. Enquanto conversa, Joana vai fazendo o bolo. As nozes já estão moídas (antigamente eram partidas à mão, o que dava muito mais trabalho), o pão está cortado em pedaços grosseiros, os ovos são batidos, o açúcar é trabalhado para chegar ao ponto certo. A forma, de ondinhas, é caramelizada e ganha no interior um lindo tom dourado-escuro. O preparado é despejado para esta forma e, em menos de nada, o bolo de noz (que pode também ser chamado “pudim” pela sua consistência húmida) entra no forno. Joana recorda uma outra receita de Natal, muito mais trabalhosa, mas que encanta a família, o nógado, uma espécie de nougat, que também lhe foi ensinado pela tia, mas que faz muito menos vezes porque são muitas horas de trabalho para depois os filhos e os netos fazerem desaparecer o resultado em menos de nada. Não nos podemos ir embora sem provar o doce que aqui nos trouxe, avisa, enquanto prepara um chá e traz para a mesa da sala chávenas e pratos. Falta apenas desenformar o bolo, há um momento de suspense com medo que não saia inteiro, mas um “ploc” da forma indica que é o momento — e o bolo desliza, perfeito, para o prato. Quem conseguiu ficar para sempre com o nome ligado a esta receita foi um tal de tio Eduardo. Mas Tó Ricciardi nunca conheceu esse tio, do lado materno, e a relação que criou com esta receita foi através do pai, Manuel, já falecido, que entretanto a transformou e melhorou, fazendo dela um dos pratos preferidos da família no Natal. Não se pode dizer que esta seja propriamente uma tradição de família, pelo menos para já, mas é uma receita que Tó — que é DJ e recentemente abriu um projecto também ligado à restauração, o Station, no Cais do Sodré, em Lisboa — gostaria que não se perdesse. Por isso, vai tentar cozinhá-la hoje para nós vermos, num ensaio que, se correr bem, poderá depois repetir-se no Natal. O livro de receitas original está em casa da mãe de Tó. O que ele tem é apenas uma fotografia tirada com o telemóvel a essa receita que alguém baptizou como “peixe à tio Eduardo” — e neste momento da história já é difícil perceber se foi de facto inventada por um tio Eduardo ou se era apenas do especial agrado deste antepassado. Seja como for, o facto é que alguém se deu ao trabalho de a registar. E, em meia dúzia de linhas batidas à máquina, reza assim: “Fazer um refugado [sic] com muitas cebolas, um cravo, uma folha de louro, pimenta em grão e sal. Cozer à parte o peixe (dourada, pescada, peixe-galo, etc. ) com pouca água. Logo que estiver cozido tirá-lo da água, deixá-lo escorrer bem e pô-lo no prato de servir. Misturar a água do peixe com o refugado [sic] e adicionar a mesma quantidade de caldo de carne. Deixar cozer tudo uns 20 minutos e deitar por cima do peixe, que vai a gelar. ” E termina com uma frase lapidar: “É um prato muito fino. ”É, além disso, uma receita dos tempos em que qualquer dona de casa tinha os conhecimentos básicos de cozinha e era desnecessário dar quantidades exactas — uma indicação como “muitas cebolas” já resolvia o problema. Mas já não é esta a receita que Tó Ricciardi quer reproduzir. A outra, a do pai, é mais complicada. O que se sabe é que no livro 40 Homens na Cozinha, de Kika da Costa Campos, editado nos anos 1990, Manuel Ricciardi apresenta, orgulhosamente, este prato frio de peixe. O problema é que Tó também não tem com ele esse livro. Portanto, a dificuldade aumenta pelo facto de o único registo que existe dela ter sido feito pelo próprio Tó enquanto via o pai executar o prato. “O meu pai era muito rápido e eu fui tentando tirar notas, mas ficaram estes gatafunhos”, explica. Na realidade, os “gatafunhos” no pequeno caderno de receitas são perfeitamente legíveis, mas parecem mais um peixe à tio Eduardo desconstruído, em que indicações sobre um determinado passo são completadas noutra página, ligadas por traços e setas — exactamente o tipo de esquema que, na altura em que o fazemos, parece claro e que mais tarde se assemelha a um puzzle. Tó olha e volta a olhar para as suas notas para confirmar que dá os passos pela ordem correcta e não está a saltar nenhum. Quando chegámos a sua casa, em Carcavelos, às duas da tarde em ponto, alguns desses passos já tinham sido dados: o peixe (neste caso, um lombo de pescada) já estava cozido, e um dos caldos também já estava pronto. “A paixão do meu pai era a cozinha”, vai contando o nosso anfitrião. Depois de se reformar, o que Manuel Ricciardi mais gostava de fazer era cozinhar para os amigos, receber em casa e recriar receitas como esta. O Natal era uma ocasião imperdível para isso, claro. “Semanas antes já ele estava a preparar as coisas para os pratos de Natal. ”Na mesa, para alegria dos seis filhos, aparecia sempre uma castanhada, uns nhocchis (influência do lado italiano da família) que, segundo Tó eram deliciosos. E ficaram para a história também umas perdizes com um molho especial. Muito amigo de Manuel Ricciardi era Gigi, o conhecido dono do restaurante Gigi’s na Quinta do Lago, no Algarve. Terá sido, aliás, num dos frigoríficos de Gigi que ficaram guardadas, congeladas, umas dessas perdizes, que ainda foi possível apreciar depois da morte do seu autor, recordando-o assim, justamente, através da arte da cozinha. Mas estamos aqui por causa do peixe à tio Eduardo, o bouillon já está ao lume, tudo parece bem encaminhado e um cheiro bom invade a cozinha. Tó coloca na panela o cravinho, que vai fazer toda a diferença mas que terá de ser retirado antes de servir. Juntam-se os caldos, depois de arrefecidos para não cozinharem mais o peixe, e por fim a gelatina. Vai ao frigorífico durante umas horas e serve-se com batata-palha. Não sabemos se esta tradição vai perdurar na casa dos Ricciardi. Muito depende do que resultar deste peixe que deixamos agora no frigorífico. Mas, pelo menos este ano, volta a haver peixe à tio Eduardo. Livro de Receitas — as três palavras foram bordadas à mão na capa do livro que Sandra vai buscar para nos mostrar, em bordado da Madeira, a terra onde nasceu e que é também a da sua mãe, Maria Teresa. E quando se abre o livro é como se viajássemos no tempo e no espaço: para a ilha e para uma época em que as senhoras bordavam, escreviam receitas e faziam longos cozinhados. Entre estas receitas, manuscritas por Maria Teresa e sempre com a indicação de quem lhe deu cada uma, está uma de cerveja (dada pela tia Clélia), assim como a de genebra e várias de licores. Há uma para “Bifes (quando a carne é dura)”, outra de “Gelatina ao vinho branco para adornar um prato com aves”, uns “Rins de Vitela Bellevue” da revista Modas e Bordados, e uma de peru assado que começa assim: “O peru deve ser sempre morto de véspera e depenado a seco. ”Na Madeira, fazia-se tudo de raiz, conta Sandra, e o Natal era — e continua a ser — a melhor altura do ano. Aliás, garante, “não conheço sítio nenhum em que o Natal seja vivido como na Madeira”. Quando era miúda, recorda, “começava-se a preparar tudo uma semana antes, ou ainda mais cedo porque primeiro era preciso arear as pratas, dar cera à casa, e isso era trabalho para dois meses”. A comida, essa, é que exigia uma semana de trabalho. “Era preciso cozer os bolos de mel, que, depois de serem amassados, têm de descansar três dias. ” E esse é um ritual importantíssimo. “Íamos de madrugada com todas as formas, umas 40, pequenas (a mãe usava as formas em que antigamente se vendia a banha, que ela coleccionava e que ‘tinham o tamanho ideal para os 400 gr. de cada bolo’), para a padaria, porque o bolo de mel deve ser cozido depois do pão. ” Já cozido e embrulhado em papel vegetal, “dura um ano”. Mas, avisa, é “uma receita muito cara para ser feita como deve ser” porque leva muitos ingredientes, o pão, o mel de cana, o cravinho, a cidra “que é fundamental”, nozes, amêndoas. Como se fazia muita quantidade de massa, era preciso alguém com força — geralmente o irmão — para conseguir amassar tudo. “Fica um peso imenso”, explica Sandra. Tratados os bolos de mel, havia ainda mil outras coisas para fazer. Uma delas é a receita que justifica a nossa visita à casa de Sandra em Montemor-o-Novo, um antigo palacete agora recuperado para receber hóspedes e baptizado como Palacete da Real Companhia do Cacau: a carne vinha e alhos (na Madeira diz-se assim, explica a nossa anfitriã, em vez de se usar a expressão mais habitual de “vinha d’alhos”). “A carne tem de ser gorda, tipo entremeada” e deve ficar a marinar num preparado que leva alhos, louro, cravinho, malaguetas e metade de vinho, metade de vinagre — “fica bem melhor assim do que só com vinho”, garante. Com esse preparado a repousar, cria-se uma camada de banha por cima e é depois nessa banha que a carne é cozinhada e que o pão é frito. Acompanha apenas um nabo cortado fininho, laranja cortada e, às vezes, pimpinela cozida. “Isto dá para a época do Natal inteira, porque a carne fica guardada em potes de barro e vai-se tirando à medida que se precisa. ”E bem é preciso comida armazenada porque a época das festas na Madeira à coisa séria. “A grande noite começa a 23, quando toda a gente vai para a rua. Nós costumávamos ir para os carrinhos de choque. O mercado está aberto toda a noite e as pessoas aproveitam para fazer as compras para a Consoada. As tascas à volta vendem todas carne vinha e alhos, têm panelas com a carne cozida, abrem um papo seco e deitam uma colherada de carne e molho lá para dentro. ” Mas esta tradição de comida de rua é mais recente, diz Sandra. Quando ela era pequena, a comida estava em casa. E aí, dentro das casas, já se prepararam “as broas de mel, que se começam a fazer uma semana antes e são servidas com café ou chá, os ligeirinhos, as bolachinhas de amêndoa, as de coco, as de cerveja”. Depois — e esta era uma tradição antiga que deixou de ser possível —, “na véspera de Natal, três ou quatro homens carregavam um pinheiro manso e pela noite dentro ficava toda a gente pendurada a enfeitar o pinheiro”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Na noite de 24, para a ceia, havia canja, peru assado, mousse de noz, souflé de pimpinela. Ia-se à Missa do Galo e, no regresso, a casa de Sandra enchia-se de amigos — “mais de cem pessoas” — para a troca de presentes e a ceia. “A festa acabava às quatro ou cinco da manhã, mas no dia seguinte, religiosamente, à hora do almoço, estava a família nuclear presente para almoçar. E então, sim, chegava à mesa a célebre carne vinha e alhos. A partir daí, era só continuar a festa até à passagem do ano, andar pelas igrejas para ver os diferentes presépios, visitar familiares e amigos e provar todos os licores. “Há arranjos de flores por todo o lado, música de Natal nas ruas e toda a gente deseja Bom Natal aos outros. É uma coisa lindíssima. ” E, no meio desta azáfama, quando a fome aperta, é só ir ao pote de barro e tirar mais um pouco da carne vinha e alhos para ganhar forças e voltar à festa.
REFERÊNCIAS:
A serra toda cabe numa azeitoneira
Um projecto que junta artesãos e designers faz por recuperar o artesanato da serra e do barrocal algarvios. Chama-se TASA e quer mostrar que os saberes e os ofícios de antigamente podem ser renovados sem esquecer o território e, sobretudo, as pessoas. (...)

A serra toda cabe numa azeitoneira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.2
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um projecto que junta artesãos e designers faz por recuperar o artesanato da serra e do barrocal algarvios. Chama-se TASA e quer mostrar que os saberes e os ofícios de antigamente podem ser renovados sem esquecer o território e, sobretudo, as pessoas.
TEXTO: A nossa memória de pessoas e lugares está muitas vezes ligada a objectos e a cheiros, a sabores e a sensações. No Natal tudo isso vem ao de cima com maior clareza. O bolo que a mãe aprendeu a fazer com a avó e que a torna presente, mesmo quando ela já não está à mesa, o casaco de lã que a tia fez para a sobrinha e que hoje usa a neta, a boneca que se recebeu do pai ao nascer que agora se oferece à filha. Alguns desses objectos são artesanais, vêm de casas antigas ou resultaram de férias de Verão passadas na praia ou na serra. Na casa de Cremilde Lourenço, uma artesã de 74 anos que ainda vive no monte onde nasceu, essas memórias passarão também por uma arte antiga que ela só aprendeu quando tinha 45 anos, depois de muito bordar e costurar — a da empreita, um entrançado feito a partir de folhas de palmeira em forma de leque. No quintal cheira a alecrim e a sua sala de trabalho tem a porta aberta, com o sol sobre a máquina de costura e o banco onde se senta muitas vezes a trabalhar. Cremilde Lourenço é uma dos 22 artesãos envolvidos no TASA — Técnicas Ancestrais, Soluções Actuais, um projecto que nasceu em 2010, concebido pela dupla de designers The Home Project com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, e hoje a cargo da empresa de ecoturismo Proactivetur. A ideia, explica João Ministro, o engenheiro do Ambiente que a dirige, é recuperar estes ofícios antigos, reabilitando os artefactos que produziam e criando outros com base nas mesmas técnicas, associando-lhe designers contemporâneos e criando para eles um mercado. “O que queremos é garantir que estes ofícios que já foram muito importantes para a região não morrem, transformando a actividade destas pessoas, e com ela o seu modo de vida, em algo que é comercialmente viável, sustentável”, continua Ministro, falando na extensa rede de artesãos do TASA, que vai de Messines, perto de Silves, a Castro Marim, já quase em Espanha. Este engenheiro que já trabalhou para o Instituto de Conservação da Natureza e que está habituado a projectos de desenvolvimento local fundou a Proactivetur, que hoje coordena o TASA, também em 2010 e começou a trabalhar em ecoturismo, promovendo programas de caminhada pelo interior do Algarve, um território a que se refere como um “mundo abandonado com um património riquíssimo por descobrir”, “autêntico” e “preservado”. Recuperar ofícios antigos faz do TASA aquilo a que chama um “braço do design social”, mas sem ilusões. A olaria tem vindo a conseguir adaptar-se, diz, mas outras artes ficaram para trás e dificilmente serão recuperáveis, por falta de procura ou por não haver quem queira aprender. Entre elas a dos caldeireiros (faziam alambiques e reservatórios de metal para o azeite), latoeiros (vários tipos de peças em latão), ferreiros (sobretudo ferramentas e ferraduras) e albardeiros (albardas para os animais que trabalhavam no campo). “Mesmo a arte do barro esteve muito tremida. Loulé tinha 15 olarias, hoje tem uma. Na aldeia de Martinlongo havia 12, hoje não há nenhuma. ”Combinar um projecto de revitalização da rede de produção artesanal com o turismo é o que faz hoje em dia. Esta sinergia não quer dizer, garante, que veja o turismo como uma bóia de salvação para estes ofícios, pelo contrário. “É importante que as pessoas se interessem, mas isso não significa que o TASA deva produzir objectos puramente decorativos, para cativar. Tudo o que se faz deve ter uma função. Era assim no original e é assim que deve continuar. Eu não quero ter coisas feitas para o turista — quero que o turista venha ver a paisagem e entre na cultura, quero que perceba para que é que serviam os cestos que vai comprar e, se possível, que experimente para ver como é difícil fazer empreita ou trabalhar o esparto [outra planta que, entrançada, é usada pelos cesteiros]. ”Joana Cabrita Martins, 31 anos, esteve ligada ao projecto entre Junho de 2013 e Maio de 2015, participando agora no concurso que o TASA lançou para encontrar um designer que conceba cinco produtos para renovar o catálogo. Quinze das quase 30 peças que desenhou para o projecto, muitas em parceria com Ana Rita Aguiar, Joana Regojo ou Salomé Afonso, estão à venda, outras foram abandonadas porque a sua produção era demasiado dispendiosa, porque não encontraram mercado ou simplesmente porque o resultado estético não foi o que a autora previra. “Às vezes o desenho não se consegue adaptar às técnicas do artesão, outras é o material que não se adequa ao que se projectou e a peça não resulta”, reconhece. “É muito importante ouvir o artesão. ”Para se conhecer António Luz, é preciso parar em S. Romão, pequena localidade de S. Brás de Alportel, numa oficina à beira da estrada. O cenário parece caótico — ferramentas misturadas com troncos e pedaços de aglomerado de cortiça, fios eléctricos por toda a parte e muitos caixotes com restos de madeira, aparas e peças de barro à espera da sua vez — mas este artesão ligado ao TASA desde o início parece saber exactamente onde está o que procura. Quarenta e seis dos seus 63 anos foram passados a trabalhar em cortiça e madeira, depois de ter começado como aprendiz de carpinteiro quando tinha 11 anos. “O meu mestre, António da Avó, andava de porta em porta a fazer móveis por medida, na casa dos ricos”, lembra. Aprendeu a trabalhar a madeira no Sítio das Mealhas, não muito longe do lugar onde hoje vive, mas a manejar a cortiça ninguém o ensinou. “Fiz tudo sozinho porque me entusiasmei. E no princípio não foi fácil. ” Quem olha para a cortiça, explica, pensa que é um material fácil de trabalhar, macio, maleável, mas é precisamente o contrário: “A cortiça parte-se muito, não é regular como a madeira, agarra, prende e põe as ferramentas em brasa. Para a cortar, as serras têm de ser muito potentes. E quando o aglomerado [cortiça prensada] vem mal preparado é um cabo dos trabalhos. Às vezes para fazer um candeeiro parto dois ou três”, diz, referindo-se a duas das peças do catálogo do TASA que passam pelas suas mãos — o candeeiro da dupla The Home Project (Álbio Nascimento e Kathi Stertzig), só em cortiça, e o Pião, que junta também madeira e que foi desenhado por Joana Martins e Ana Rita Aguiar. Para António Luz, o domínio dos materiais vem primeiro do que tudo, ou não fosse ele um artesão. É por desconhecerem a forma como o material se comporta que às vezes os designers chegam com “ideias que não vão a lado nenhum”. “Muito franco e muito torto” — assim o descreve a sua mulher — António Luz chega a ter longas discussões com os autores do projectos. O processo que conduz a uma peça do TASA, reconhece, já lhe ensinou muita coisa, mas só quando designer e artesão estão dispostos a aprender e a perder muitas horas. António Luz é hoje artesão a tempo inteiro e é por isso que diz que, se tem favas na horta, é porque elas não precisam de muita atenção. A oficina toma-lhe dez a 12 horas por dia, umas vezes a fazer peças do projecto que Sara Fernandes coordena, outras gastas em candeeiros, animais e galheteiros de sua autoria que vende pelas feiras da região. Ao seu lado está sempre o cão, Faísca, que partilha com ele o gosto pela caça, mas que às vezes destrói uns candeeiros. Proteger a actividade de homens como António Luz passa por proteger o seu território. O barrocal é a faixa central do Algarve, entre o litoral e a serra, uma zona agrícola por excelência, que hoje está muito desertificada. Na serra, onde domina a cortiça e a floresta, o cenário repete-se com muitas aldeias abandonadas ou que o serão dentro de menos de dez anos. Boiça ou Cabaça, perto de Barranco do Velho, que já teve mais de 100 moradores e uma destilaria concorrida, são exemplos deste êxodo para um litoral cada vez mais povoado e descaracterizado. “O TASA tem de ser visto como um projecto global porque só se protege o que se valoriza. Para preservar este artesanato, é preciso preservar o modo de vida das pessoas que o fazem, é preciso proteger, por exemplo, o sobreiro. E isso não podemos fazer com vedações. ” João Ministro sabe que só transmitindo este saber aos mais jovens estas artes e técnicas poderão sobreviver. Para isso está prevista a criação de uma escola em Loulé, em colaboração com a câmara municipal, e de um programa de formação mais personalizado, capaz de recuperar a velha relação mestre-aprendiz. “A melhor maneira de aprender é ter o aluno na casa do mestre ou ali muito perto, na mesma aldeia, no mesmo monte, com a formação a ser feita de um para um. ” É o querem fazer, por exemplo, com António Gomes, o artesão do monte das Furnazinhas que produz os cestos que o projecto exporta para o Japão. Promover o crescimento do TASA, defende Ministro, passa precisamente por explorar as exportações. Mas, para isso, é preciso montar uma rede de lojas que o representem no exterior e, antes, criar condições para aumentar a produção, que por vezes não chega para responder às encomendas nacionais. A questão da “encomenda”, lembra Álbio Nascimento, um dos criadores do projecto, é desde o início um dos motores do TASA. Porque fazer destas artes ancestrais um modo de vida sustentável passa por criar procura. Hoje muito crítico em relação ao facto de o projecto ter afastado da sua esfera os investigadores que estavam ligados a universidades, museus e outras instituições locais, o designer de 37 anos, um algarvio nascido em Faro com um avô agricultor e outro pescador, defende que é preciso alargar a rede de artesãos, de os envolver mais no processo de criação de cada objecto, e de formar novos, mas sem recorrer a um “esquema formal tipo escola, que esteja sempre a tirar as pessoas do lugar onde se sentem bem”. “No início, depois de feito um levantamento dos artesãos, dos ofícios e, sobretudo, das necessidades, andámos literalmente à caça de encomendas — os produtos não eram um fim em si mesmo, mas o motor do projecto, a maneira de atingir um objectivo maior que era o de devolver o artesanato ao mercado local”, lembra Nascimento. João Ministro admite que há hoje a ambição de ultrapassar as fronteiras locais — o TASA tem uma loja online, exporta cestos também para a Alemanha, peças em cortiça para Inglaterra, e a sua equipa está a estudar possíveis representantes em França e na Holanda — mas garante que o envolvimento dos artesãos é uma constante e que os clientes regionais continuam a ser muito importantes, dando-lhes a possibilidade de “personalizar” alguns dos produtos do catálogo. Entre eles, estão, por exemplo, hotéis como o Ozadi, em Tavira, o Vila Monte, em Moncarapacho, e o Vila Joya, um dos destinos de quem faz férias de luxo em Albufeira. Alguns dos artesãos com que o TASA trabalha nunca fizeram outra coisa, mas outros chegaram ao ofício depois de terem trabalhado na agricultura ou na construção. É o caso de Fernando Martins, homem de poucas palavras, que começou a fazer cabides e colheres para o projecto — assim como muitas outras peças decorativas e mobiliário que vende em feiras — quando a crise se instalou e deixou de ter trabalho a fazer portas e cozinhas para os empreendimentos do litoral. Começou a trabalhar a madeira quando era adolescente, em Benafim, ganhando 50 escudos por dia como aprendiz, e nunca mais se quis afastar dela. Hoje, com 53 anos, o seu mundo profissional é a pequena oficina que tem instalada ao lado da sua casa, num quintal onde neste início de Dezembro cheira a laranjas. E é na serra à volta de Alte, onde vive, que caminha muito à procura de galhos de oliveira caídos — é com eles que faz os cabides, depois de muito bem polidos — e de medronheiro. “As colheres têm de ser de medronheiro ou de urze porque não agarra a comida e deixa um gosto bom. Se fosse pinho, não dava paladar nenhum”, explica. Em Alte “moram” também outras três artesãs do projecto — Ana, Silvina e Arliete são as mulheres da oficina Da Torre, que funciona numa antiga escola primária e onde constroem brinquedos em madeira, para além das tampas do saleiro e pimenteiro do TASA e dos delicados cabides em forma de animais que a The Home Project desenhou. “A nossa aposta é sempre na qualidade da execução e isso traz-nos, claro, custos”, diz João Ministro, que espera ter em 2016 um “projecto sustentável”. Por agora, manter o TASA sem se pagar a si próprio — a empresa suporta o investimento, à excepção do site institucional, cuja criação foi paga pela CCDR Algarve — implica desviar receitas das actividades de ecoturismo para aplicar no artesanato. Algo que para este engenheiro do Ambiente faz todo o sentido, já que as diversas actividades da empresa partilham objectivos e público-alvo. “As pessoas que vêm fazer dezenas de quilómetros pela via algarviana [rota pedestre que liga Alcoutim ao cabo de S. Vicente, com uma extensão de 300km, a maioria dos quais pela serra] são as pessoas que se interessam por culturas tradicionais”, explica. Caminhar por aquele território é entrar no TASA, defende Ministro, apontando para o esparto e para a palmeira anã de onde nascem cestos e alcofas de empreita. “Gosto de pensar que uma peça nossa tem lá dentro a pessoa que a desenhou e a que a fez, mas tem também esta cultura, esta maneira de viver com a terra, um certo ritmo de fazer as coisas, que às vezes nos desespera, mas que é muito natural. É como se uma azeitoneira ou um apito de cana tivesse a serra lá dentro. ”Uma serra de sobreiros, alfarrobeiras, aroeiras e figueiras, mas também de tomilho, alecrim e rosmaninho, que na Primavera se enche de narcisos e orquídeas. Uma serra que também fala de Mediterrâneo na luz que se reflecte nas casas que se caiam todos os anos e nas cores dos ladrilhos de argila que a empresa de Júlio Faustino produz em Tavira. Desde que nasceu, o TASA já teve várias vidas (está agora e desde Março de 2012 na terceira fase, com a Proactivetur) e produziu mais de 50 peças, embora algumas não tenham chegado a passar da fase de protótipo. Álbio Nascimento e Kathi Stertzig conceberam o TASA depois de uma temporada na Catalunha, onde se cruzaram com uma dinâmica semelhante, explica à Revista 2 este designer que já viveu em Antuérpia e Berlim, hoje a morar em Lisboa, mas que parece continuar a sentir o Algarve como um território seu. Foi aí que perceberam que, para funcionar, precisavam de uma base social forte, de um levantamento exaustivo dos problemas e das necessidades. “Era preciso envolver as pessoas e as instituições, mas com naturalidade, sem pretensiosismos e sem pressão para a inovação. Era uma coisa feita de acordo com as necessidades locais, para pôr os artesãos a trabalhar uns com os outros. Queríamos mostrar-lhes que o que faziam podia encontrar um comprador, não queríamos sentar um designer ao pé de um cesteiro para fazer um cesto ‘diferente’. ”Para explicar os objectivos aos potenciais clientes e mesmo aos artesãos, Álbio Nascimento costumava dizer: “Vamos fazer de conta que agora fecharam as fronteiras do Algarve e nós temos de viver com o que aqui temos — cortiça, alfarroba, barro… Vamos viver com o que vem de dentro. ”Quando se afastaram do projecto, em 2011, os dois designers que estudaram juntos no Politécnico de Milão, deixaram 26 produtos feitos (entre os três e os cem euros), um livro e um relatório exaustivo que respondia à pergunta “Como continuar?” “Quisemos mostrar que este, como qualquer projecto com a mesma ambição noutro lugar, tem de estar atento à realidade do território. Não se pode pensar só em renovar os artesãos, em trabalhar os mesmos materiais e técnicas, em dar uma cara contemporânea aos produtos. Não é chapa 5, não há fórmulas. É preciso, primeiro, conversar com quem faz, ver o que lhes falta. ”Em muitas das peças que conceberam para o TASA, diz, o design praticamente desaparecia, funcionava apenas como “facilitador” do processo de produção. “O melhor elogio que me podiam fazer ali era confundir uma peça minha com uma velha, com uma coisa que pudesse estar num museu etnográfico depois de ter servido muitos anos na cozinha de alguém. ”Continua a ser assim no trabalho que estão a desenvolver no litoral alentejano, com quatro comunidades piscatórias do concelho de Odemira. “Agora trabalhamos também como consultores, algo que nunca pensámos fazer quando o TASA começou — o que queríamos era falar com aquelas pessoas, aprender com elas, provar aguardente nova”, diz, ilustrando a proximidade que sempre promoveram. A proximidade entre designers e artesãos, garante Ministro, continua a ser um dos ingredientes do TASA. Assim como a combinação de saberes numa peça só e que permite juntar Fernando Martins ao oleiro Francisco Eugénio para fazer colheres de servir, e Cremilde Lourenço a Pedro Piedade, dono da única olaria de Loulé, para produzir potes de barro. Piedade, 43 anos, é o mais novo dos artesão do projecto (a média de idades ronda os 60 e Cremilde Lourenço é a mais velha). A olaria é um negócio de família, a que começou a dedicar-se quando deixou de estudar, aos 16 anos, e muito por causa da morte do pai e do irmão, que foram seus mestres. “Eu não queria fazer isto, mas também não queria que acabasse. Tive de me decidir. ” Hoje não se arrepende, mas garante que não obrigará a única filha, Inês, a seguir-lhe as pisadas. As peças que produz para o TASA — potes, candeeiros, reservatórios de vinho e os recipientes incorporados nas tábuas de cozinha — são feitas à mão, mas tem na olaria uma máquina para as peças abertas (pratos, travessas…) que produz em série, e o forno chega a cozer mais de mil peças por mês, que depois são vendidas na loja da família em Quarteira. Tomou o gosto ao barro quando começou a trabalhar na roda. “No tempo do meu pai, havia uma olaria em cada canto da cidade”, diz. Pedro Piedade não tem paciência para ensinar, mas gosta de experimentar e é por isso que já passaram pela sua olaria designers da Eslováquia e até do Cazaquistão. Sentado à roda, com a cana, a faca, a espátula e o fio de pesca à mão, este oleiro está sempre pronto para desafios. Cremilde Lourenço tem idade para ser mãe dele, mas partilha o mesmo espírito de inovação. Falar com esta mulher de energia inesgotável implica abrir o dicionário (isto para quem nasceu e cresceu em Lisboa, claro). Ela explica com calma o que é uma capacha (tapete) ou uma cedoura (base para tachos), mostra como se faz a empreita, arte que até já chegou a ensinar a um casal de japoneses que João Ministro levou a sua casa num workshop do TASA, e fala do seu dia-a-dia com simplicidade. A rotina é marcada pela vida de casa e do campo — é casada há 54 anos, tem três filhos, quatro netos e um bisneto —, com alvorada às sete e o trabalho artesanal interrompido sempre que é preciso apanhar azeitona ou alfarroba. Muito perfeita na execução — “tenho vaidade de fazer bem”, diz —, faz para o TASA tampas de potes e delicadas malas de caminhada com folha de palma entrançada. Já ganhou vários prémios do Instituto de Formação Profissional — foi num dos seus cursos que aprendeu a arte — e está sempre a experimentar. “Gosto que venham cá [os designers] porque explicam muito bem, com muito cuidado. E mesmo para mim, que tenho a quarta classe feita há 64 anos. Têm de vir pessoas de fora porque numa terra em que os outros sabem o mesmo ou até menos do que a gente não se evolui, não se aprende. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Começar na empreita não foi fácil — “quando nós não sabemos, as nossas mãos também não sabem e mesmo que o cérebro pense como se faz, elas não se ajustam” —, levou tempo. “Só se pode começar velha, como eu comecei. Também experimentei o esparto, mas até chorava. Era muito duro. ”Tudo o que Cremilde Lourenço leva às feiras, assegura João Ministro, desaparece em segundos, de tão cuidadas são as peças. Esta artesã, que passa quase todos os tempos livres na sua salinha de costura, ainda tem tempo para “inventar árvores” para a festa da espiga, como aquela amendoeira que hoje tem na sala, com 500 flores em papel de seda. “Os filhos e os netos querem outras coisas, mas eu quero isto. Quando estou a trabalhar, não sinto passar o tempo, não tenho vagar. ”
REFERÊNCIAS:
Rua da Madeira, Porto: Subindo a muralha
Subi-la é uma canseira mas em chegando ao topo está-se na Praça da Batalha. A antiga Calçada de Santa Teresa, agora Rua da Madeira, acompanha a antiga muralha da cidade. (...)

Rua da Madeira, Porto: Subindo a muralha
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Subi-la é uma canseira mas em chegando ao topo está-se na Praça da Batalha. A antiga Calçada de Santa Teresa, agora Rua da Madeira, acompanha a antiga muralha da cidade.
TEXTO: Vista do largo da Estação de S. Bento, a Rua da Madeira cria um estranho efeito de óptica. Parece pequena, parece estreita, parece que não vai ter saída e que, se a começarmos a percorrer, mais cedo ou mais tarde teremos de voltar para trás. Não é verdade, como qualquer incauto descobrirá se se meter por ela fora num dia de particular calor. Porque a rua, que parece um beco com uns cafés e restaurantes alinhados, alarga-se de repente, ganha corpo numa curva ampla que sobe, decidida, até se encontrar com uma pequena escadaria que termina em mais uma subida. É uma canseira, a Rua da Madeira, bem mais traiçoeira que a sua vizinha e rectilínea 31 de Janeiro, que não engana ninguém e mostra logo ao que vai, sempre a subir até Santa Catarina. Pela Madeira, chegamos à Praça da Batalha sem saber que era ali que íamos dar e a pensar como é que nunca reparámos naquela rua encaixada entre um hotel e um café com a esplanada carregada de turistas. A verdade é que devíamos ter sido mais prevenidos. Sabíamos que a rua seguia o percurso da antiga muralha da cidade e, se ali há uma ligação entre a zona baixa e a zona alta, era certo que só podíamos ter de subir e subir. Antes de mudar o nome para Rua da Madeira, na primeira década do século XX, a artéria era a Calçada da Teresa, nome cuja origem ainda permanece um mistério, embora se admita que pudesse existir alguma moradora com esse nome. Antes, também, a Calçada da Teresa não fazia fronteira com uma estação ferroviária, não era local de onde se podiam ver os comboios, mas sim a via que corria ao lado do Mosteiro de S. Bento de Avé-Maria, que existia antes de ser demolido para que a modernidade feita locomotiva chegasse ao centro da cidade. O primeiro comboio chegou à estação em 1896 e, por essa altura, já o Café Brasil, no início da rua, se tinha transformado num dos pontos de encontro do Porto. Aberto em 1859, lá continua, ao lado de outros locais bem conhecidos dos portuenses, como os restaurantes O Rápido (memória do nome que se dava ao comboio que ligava o Porto a Lisboa, saindo de São Bento) ou Viseu no Porto, que são exemplos de resistência. Porque a Rua da Madeira foi, durante anos e anos, um dos locais esquecidos da cidade. Encaixada entre a lateral da estação, com os seus armazéns, e as traseiras dos prédios da Rua 31 de Janeiro, com alguns restaurantes e tascas, estrategicamente instalados antes de se começar a subir a sério, não era local que atraísse portuenses e turistas, apesar de estar mesmo no centro. A excepção era o domingo de manhã, quando a Feira dos Passarinhos animava a rua, enchendo-se de aves e tudo o mais que os vendedores levavam. Nunca foi legalizada, mas era tolerada, e há quem ainda lamente a sua partida, há mais de dez anos, para as imediações da Cadeia da Relação. Depois disso, a rua parece ter-se fechado sobre si própria. De dia, quase não se dava por ela. À noite, era procurada por sem-abrigo e prostitutas. À Câmara do Porto, iam, amiúde, donos dos restaurantes locais pedir que, pelo menos, não se esquecessem de ir lá limpar a artéria, de vez em quando, já que o negócio se ressentia do abandono e do mau cheiro que a sujidade trazia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este ano, uma nova Locomotiva está a ver se dá a volta à rua. O programa de animação cultural tem levado diversas actividades à Rua da Madeira, e o que era antes um local de estacionamento, junto aos armazéns da Refer, na estação, é hoje uma área de acesso controlado, com sofás protegidos do sol. E, lá ao cimo, junto às escadas, o edifício da antiga Fábrica de Máquinas Agostinho Ricon Peres parece agora estar disfarçado de zebra, depois de uma intervenção da dupla italiana de artistas de rua Sten & Lex. Os serviços da câmara parecem ter incluído definitivamente a Madeira no seu roteiro de limpeza e os turistas aventuram-se nos restaurantes típicos que acompanham a antiga subida da muralha. Ainda é cedo para dizer que a Rua da Madeira tem uma nova vida. Que a mudança terá um impacto tão grande como quando uma outra locomotiva, de ferro e a fazer esvoaçar fumaça em todas as direcções, estacionou ali ao pé. Mas é bom que não seja preciso tapar o nariz quando se sobe, de S. Bento até à Batalha. Quando se pára, a meio da subida, para apreciar a vista da boca dos túneis de onde surgem dos comboios e as locomotivas estacionadas na estação. Ou quando nos voltamos, já nas escadas, para apreciar a vista da cidade, com a Torre dos Clérigos a parecer, dali, particularmente alta e destacada do cenário. Só por isso (e pelos filetes de polvo que comemos num dos restaurantes da rua) já valeu o esforço.
REFERÊNCIAS:
Um planeta chamado infância
A Laura, a Margarida, a Marta, o Martim, a Matilde e o Pedro fizeram os seus auto-retratos, com fotografia, desenhos, palavras. Falaram do brincar, dos sonhos, das pessoas importantes da sua vida, dos lugares para onde dirigem a atenção. Mostraram-se crianças como as outras, pessoas como as outras. Ou seja, todas diferentes entre si. 1 de Junho é Dia da Criança. (...)

Um planeta chamado infância
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-09-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Laura, a Margarida, a Marta, o Martim, a Matilde e o Pedro fizeram os seus auto-retratos, com fotografia, desenhos, palavras. Falaram do brincar, dos sonhos, das pessoas importantes da sua vida, dos lugares para onde dirigem a atenção. Mostraram-se crianças como as outras, pessoas como as outras. Ou seja, todas diferentes entre si. 1 de Junho é Dia da Criança.
TEXTO: Chamo-me Martim, fiz dez anos em Janeiro. Vivo com o meu pai e a minha mãe, o Ricardo e Sónia. Os meus irmãos chamam-se Manel, Madalena e Mateus. Tenho um cão, o Mojito. Acho que sou um menino feliz. Porque tenho tudo o que é preciso para ser feliz. Tenho pais, irmãos, avós, tios. Tenho uma casa. Não queria mudar nada na minha família. O dia mais feliz da minha vida foi quando a minha irmã nasceu. Eu queria um irmão mais novo. Eu queria ser o irmão mais velho. Ao princípio, tive ciúmes. Depois, sorriu para mim e comecei a gostar dela. As pessoas mais importantes para mim são os meus irmãos e os meus pais. Com o Manel, gosto de brincar. De vez em quando andamos à pancada porque gozo com ele e ele fica demasiado irritado. Digo-lhe: “Não jogas nada de futebol!” O Manel tem 13, vai fazer 14. Dividimos o quarto. Partilhamos as coisas. Prefiro assim. A Madalena pede-me muitas coisas. Por exemplo, para desenhar com ela. Tem cinco anos. Às vezes vou buscá-la à escola de trotinete, e ela queixa-se: “Não me trouxeste a minha trotinete!” Nunca fui buscá-la sozinho, mas às vezes vou à mercearia sozinho. A primeira vez que andei sozinho tinha quase nove anos. Fui comprar batatas e outras coisas para uma festa cá em casa. Gosto da responsabilidade, apesar do medo de perder o dinheiro ou de me esquecer do recado. O Mateus tem seis meses. Estou sempre a brincar com ele. A fazer com que se ria. A relação com o pai e a mãe é diferente. Com o pai, gosto, quando ele não está à espera, de lhe tocar no ombro e fugir. Outras vezes, brinca comigo a torcer os dedos, aos encontrões. Com a mãe: gosto de fazer piadas que a façam rir. É um tipo de brincadeira que não sei explicar. A mãe é mais meiguinha. Quer abraçar-me muito e eu deixo-me abraçar, mais ou menos. Como é que imagino que vai ser a minha vida? Ocupada. Gostava de ser tenista profissional. Sendo tenista, tendo dois ou três filhos, uma mulher desempregada ou com emprego, acho que teria o mesmo dinheiro que os meus pais têm agora. Quando tinha seis anos, recebi uma nota de 50 euros. Dos meus avós. Os meus pais também me deram uma nota de 50. Fiquei louco, louco! Comecei a gostar de ter dinheiro — para poupar. Tenho 400 euros ou mais. Gasto algum dinheiro, cinco, dez euros. Para gelados, nas férias. Agora ganho num mês, pelo menos, 20 euros. Os meus pais fizeram uma coisa: nos testes, se tirarmos negativa, temos de lhes dar dinheiro. Satisfaz: damos-lhes cinco euros. Bom: dão-nos 12 euros. Muito bom: é 24. Eu andava a tirar “satisfaz” a mais e o Manel a ter negativas. Se não fosse o dinheiro, trabalhava na mesma, mas assim é como ter uma profissão: trabalho para ganhar dinheiro. No dia a dia, não penso muito no preço das coisas. Não sei quanto custam as coisas no supermercado. Com este dinheiro, se oferecesse um presente, dava aos meus pais uma viagem ao Brasil. Aos meus avós, depende. Os avós maternos: estão separados. Para a avó, uma ida à Madeira. Para o avô, uma prova de vinhos. Para o avô paterno, uma ida ao teatro. Para a avó materna, um curso de cozinha. Destes presentes todos, a prova de vinhos está excluída. Já provei vinho. Não gostei do sabor. De cerveja, gosto. Gosto mas não bebo. Se o ténis não correr bem, posso ser negociador. Negociador de várias coisas. Tenho talento para convencer as pessoas. [longa pausa] Há uma coisa que quero saber: o que é ser adulto?Eu sou a Marta. Tenho oito anos. A minha vida está a correr bem. Não está a correr nada mal. Tenho três irmãos, uma irmã e dois irmãos. Sou a segunda. Primeiro foram as meninas e depois os rapazes. Agora partilho o quarto com a minha irmã. Temos um beliche. Durmo na parte de baixo, mas vamos trocando. Acordo às sete da manhã. Primeiro visto-me e depois tomo o pequeno-almoço. Uma torrada e leite. Depois vou de carro para a escola. Demora meia hora. Vivo em Oeiras e a escola é no Cacém. Andamos os três mais velhos nesta escola. O mais pequenino, não, anda na pré. Os pais vão buscar-nos à escola às três da tarde, à terça e à quarta. No resto da semana, é uma amiga. De manhã, são os pais que nos levam. Esta amiga deixa os filhos no nosso carro, e eles vão connosco. Costumo brincar à apanhada. Nos intervalos vamos ao parque. Temos um parque ao pé da escola. Gosto de ver as plantas. Há umas que se pode chupar. É assim: a planta tem uma parte que se chupa e sai um suco docinho. Não sei o nome da planta. Tenho muitas flores preferidas, mas aquela de que gosto muito é a tulipa. No parque não há tulipas, mas o nosso vizinho tem flores, e costumo ver as tulipas dele. Nós temos plantas, em casa. Manjericão plantado. Está na varanda e os pombos vão lá. Em casa ajudo a mãe a cozinhar. Não gosto de polvo, lulas, cogumelos, camarão. O cogumelo não tem sabor, mas a textura. . . Do polvo e da lula, também é da textura que não gosto. De lula grelhada é que não gosto mesmo nada! Às vezes tenho de comer, outras vezes, não. Gosto de lasanha, bife, do peixe que a minha mãe faz. E gosto muito de limpar!, de ver tudo organizado. O meu pai é pastor evangélico. Penso todos os dias em Deus. Fazemos o culto doméstico no final do dia, ao domingo fazemos o culto na igreja. Depois da refeição, vamos buscar as bíblias e o meu pai lê. Depois dizemos versículos de cor. Depois eu e os meus irmãos lemos alguns versículos. Depois a minha mãe conta histórias da Bíblia. Depois cantamos alguma coisa. Depois vamos para a cama. Gosto muito do culto de domingo. A minha parte preferida é quando cantamos. Deitamo-nos às oito ou nove. Quase não vemos televisão. Ao domingo, temos o culto, de manhã. Durante a semana também não dá. Ao sábado, vemos um bocadinho. O que gosto mais é Os Cinco em Acção. Não penso no futuro. Simplesmente faço o que acontece. Não penso se vou casar ou ter filhos. Mas gostava de ser cantora. Gosto muito da Marisa Monte. O meu pai também é músico. Não conheço as canções todas, que ele tem muitas!Gosto muito da minha família, dos meus amigos. A minha melhor amiga é a Fabiana, que conheci no acampamento das crianças de Água de Madeiros, no ano passado. (Água de Madeiros é muito longe!) Tenho outra melhor amiga, que vive ao pé de mim, a Inês. Não costumo estar muito sossegada. Mas sou um bocadinho tímida. Às vezes sou distraída, outras vezes sou atenta. Sou parecida com a minha mãe, de cara. Apesar de não ter caracóis. Tinha, quando era pequenina. Mas perdi-os. Os desenhos: agora já não faço tudo à pressa. Faço devagar, para sair bem. Mas quem desenha mesmo bem é a minha irmã, que tem 11 anos. Somos amigas. Como ela está no quinto ano e eu no segundo, ajuda-me com os trabalhos. Gosta mesmo muito de ler. Emprestaram-lhe a colecção Uma Aventura e está a ler aquilo tudo. Eu também gosto de ler. Nós os três gostamos de Português e não gostamos de Matemática. Eu estou bem na Matemática, mas não gosto das matérias. Quero fazer-te uma pergunta: quantos anos tens?De manhã acordo, como toda a gente. Acordo às 6h45. Não acordo sozinha porque ainda tenho preguiça. Já sou bastante autónoma. Gosto de me aventurar. Aventura é descobrir coisas novas. Correr riscos. (Correr o risco de não saber qual é a página do TPC, não o fazer, e ver o que acontece. O que é que a professora vai fazer?, os pais vão-me pôr de castigo ou não?)As pessoas fundamentais da minha vida são a minha mãe e o meu pai. A minha mãe é uma pessoa muito simpática, com grande carácter e sempre alegre. Está sempre lá para nos ajudar. Tem cara de advogada, mas não é advogada. O meu pai é uma pessoa com características muito fortes, que se diverte muito e é muito divertido. Tem cara de pessoa que faz filmes de animação. Gosto muito dele. Foi em quem me inspirei mais. Somos muito parecidos. Fazemos piadas. Tem aquelas frases que nos fazem ser uma pessoa melhor. Por exemplo: “Pai, ajuda-me com os trabalhos de casa. ” “Não, Margarida. Porque quando fores maior, não vais ter ninguém que te ajude. Tens de aprender a fazer as coisas sozinha. ”Outras pessoas importantes: a Jô. É a senhora que limpa a casa e trata de nós. Está lá em casa desde que nasci. Foi como uma segunda mãe para mim. O meu irmão Francisco tem menos dois anos do que eu. Zangamo-nos muito, como é normal. Temos muito em comum, brincamos, ajudo-os nos trabalhos. Há uma coisa em que somos completamente diferentes: ele é muito meiguinho e eu sou um bocadinho mais bruta. Não é para ofender as pessoas, mas digo mesmo o que penso, e isso nunca me ajuda muito. É um defeito que tenho. Também pode ajudar as pessoas a mudar. O meu irmão António: é como se eu me preparasse para ter um filho. Sou cinco anos mais velha. Nunca lhe mudei a fralda. Aos sábados, dou-lhe banho. Em casa, se a minha mãe está doente e o meu pai está fora, dou-lhe o jantar. É uma questão de paciência. Alguém tem de o fazer. A minha avó Sheila é muito importante. Ela ensina-me a criatividade e a abstracção. É muito solta. Tem umas folhas grandes onde podemos pintar. É uma avó mais para o lado divertido. A minha avó Margui, que não se chama Margui, mas é o que lhe chamamos, também brinca muito comigo. Ensina-me a jogar jogos de cartas. Preocupa-se com as notas e a escola. “Margarida, faz os trabalhos. Se não fizeres agora, fazes logo, mas tens de fazer. ” É mais calma. No almoço de domingo, estou com ela, os meus primos, os meus tios. Aos sábados, também costumo estar. A minha mãe fala comigo em inglês. Tenho sangue de lá. O inglês ajuda-me. Fico preparada para correr o mundo inteiro. Índia, Nova Iorque, México. Falo inglês com a minha avó Sheila. Naturalmente. Se não sei alguma palavra, paro e digo em português. Gostava de ter uma boa vida, no futuro. Viver bem. Ser bom no que se faz. Ter orgulho em quem se é. Gostava de ter dois filhos. Um, não. Posso mimá-lo demasiado. Pode ser uma menina e um rapaz. Assim, posso estar concentrada nos dois. Mais fácil do que três. Estou a trabalhar na escola para ter boas notas, entrar numa universidade e ter o meu trabalho de sonho. O que quero mesmo muito, muito é ser cozinheira. Chef de cozinha. Gosto de ajudar o meu pai na cozinha. A minha tia entrou no Master Chef e isso empolgou ainda mais o meu gosto pela cozinha. Empolgou: estas palavras aprendo na leitura. Leio livros de aventura, de magia. Agora estou a ler o Harry Potter, em português. Música, ah, pois. O meu avô está muito ligado à música, a minha mãe, também. Fui para uma escola de música quando tinha cinco anos. Sempre gostei da flauta transversal e da lira, que é o símbolo da Academia de Música de Santa Cecília. Só que não pude ir para a lira. A lira é muito cara e há pouca gente que a toque. É uma harpa pequenina. Antigamente é que se tocava. Não gosto muito de cantar porque tenho nódulos nas cordas vocais. Adoro, adoro, adoro dançar. Gostava de aprender breakdance e dança contemporânea, tenho aulas de hip hop. Samba, vou aprendendo, com a Jô, que é brasileira. Uma coisa que me esqueci de mencionar: adoro ler. Gosto de acabar livros e saber o fim da história. Também gosto de ver jogos de futebol com o meu pai. Vamos ao estádio do Sporting. E gosto de viajar. Já fui a Paris, à Disneylândia, a Londres, a Nova Iorque, a Espanha, Alemanha. O meu nome é Pedro, nasci no dia 23 de Setembro de 2006. As minhas festas de anos normalmente não são temáticas, mas a última foi sobre culinária e fizemos pizzas. A cozinha lá de casa era pequenina para seis meninos. Tenho uma família boa. A família principal é constituída por: avô, avó, outro avô e outra avó, pai e mãe e a minha irmã. Se for a família maior, acrescento os meus primos, os meus tios, os tios-avós, os tios-avôs. A minha rotina também é boa. Acordo às oito. Tenho oito anos mas continuo a gostar de comer Nestum. Depois vou lavar os dentes. Depois dispo o pijama e visto a roupa. Depois pomos os lanches na mochila e vamos para a escola. Vamos a pé. Vivo perto da escola, nos Anjos. É uma escola pública. Quando acaba a escola, o pai, a mãe ou a avó vêm buscar-me. Nunca é às cinco e meia. Há uma coisa que é o Centro de Apoio à Família para pais que chegam mais tarde. Às terças e quintas, faço ginástica. Estou uma semana com o pai e uma semana com a mãe. Na semana da mãe, às terças-feiras ficamos com o pai, e na semana do pai às segundas-feiras ficamos com a mãe. Estou habituado a isto. Estão separados desde a pré-primária. As minhas amigas meninas são mais do que os amigos rapazes. Porque eu não costumo jogar à bola. Fora da escola, até jogo. Mas na escola fazem batota. E quando uma equipa ganha, começam à bulha. Nunca andei à bulha com ninguém. O assunto de que gosto de falar é animais. Rapazes e raparigas não costumam prestar atenção. Estão mais interessados em brincar. Eu também brinco. Brincamos aos pais e às mães. Brincar aos pais e às mães é assim: existe um pai, existe uma mãe. Às vezes existe apenas uma mãe. Os outros são os filhos. Existe o mais velho, o mais novo. Às vezes até existe um bebé. De vez em quando existe um animal de estimação. É mais ou menos brincar ao faz-de-conta. O pai ou a mãe mudam a fralda e dizem: “Vão pôr a mesa. ” Há cenas mais dramáticas, uma filha foge de casa. A família toda vai procurar essa filha. Eu gosto mais de fazer de filho ou de animal de estimação. Recebo a atenção dos outros. Tenho um vocabulário bom. Aprendo lendo muitos livros, ouvindo os pais a falar. Os meus livros preferidos são os do Harry Potter. Conheço a história da Menina do Mar e da Fada Oriana porque a minha mãe leu à noite, a mim e à minha irmã. O meu pai está a ler o Dom Quixote para nós. É um livro mais para adultos. Ainda não chegámos a essa parte, mas já ouvi falar do Sancho Pança. A minha irmã tem uma camisola que a minha mãe trouxe de um país que já não me lembro qual é, e que tem o Dom Quixote e o Sancho Pança. Ser adulto é ter a responsabilidade de cuidar de mim mesmo, das minhas coisas. É ter a responsabilidade de ganhar dinheiro para me alimentar e alimentar a minha família. Ser criança não é o melhor do mundo, mas ser adulto também não é o pior do mundo. O meu animal preferido é o flamingo. A minha cor preferida é violeta, mas não há nenhum animal violeta. A segunda cor é rosa. E o flamingo é cor-de-rosa. No futuro gostava de ter filhos. Dois ou um. Uma casa arrumada. Um bom emprego. Um bom emprego é um emprego em que uma pessoa trabalha bem e recebe bem. Quero ser zoólogo, veterinário e poeta. Não faço poesia, mas gostava de ser poeta. Um poeta escreve poemas que são versos bonitos; podem não ser bonitos, mas acho que deviam ser bonitos. Servem para as pessoas lerem e sentirem-se felizes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Entre os nus de Mapplethorpe e o parafuso: a distância de Serralves à Pasteleira
Na Pasteleira, as polémicas notícias de Serralves passam. Mas não entram. Está a vida no bairro forçosamente apartada da arte de um museu? As opiniões e queixas dos vizinhos de Serralves. E a história de um parafuso que se fez metáfora (...)

Entre os nus de Mapplethorpe e o parafuso: a distância de Serralves à Pasteleira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-03-14 | Jornal Público
SUMÁRIO: Na Pasteleira, as polémicas notícias de Serralves passam. Mas não entram. Está a vida no bairro forçosamente apartada da arte de um museu? As opiniões e queixas dos vizinhos de Serralves. E a história de um parafuso que se fez metáfora
TEXTO: — Sabes porque é que o bairro não vai a Serralves? Porque nós somos pobres e Serralves é para os ricos. Conceição Soares ajeita-se na cadeira de plástico como quem acomoda os pensamentos. À porta da Associação de Moradores do Bairro Antigo da Pasteleira, compõe o avental rosa vivo. Abana a cabeça e prossegue a argumentação, entre o facto consumado e o lamento das coisas que não têm remédio: “Alguma vez o bairro é para ali chamado?!”Pasteleira e Serralves são quase siamesas no mapa da cidade. Das janelas de algumas casas do bairro vêem-se os jardins do museu. Mas a rua que separa os edifícios amarelo pálido e o muro de pedra a circundar os jardins do museu fez-se fosso profundo entre dois mundos. A polémica exposição de Robert Mapplethorpe e a demissão do director do museu bateram à porta do bairro? “Isso não é connosco”, conforma-se Jorge Cunha, sob o aceno dos dois vizinhos do lado. As opiniões atropelam-se perante o desafio inesperado. Aos cinco moradores que desfiavam conversa à porta da associação, bloco 13 do bairro com mais de 1500 moradores, vai-se juntando mais gente. Palpite de um lado, provocação do outro, gargalhada geral. E Jorge Vidal, o presidente, a pôr ordem na agenda: “O que aconteceu foi a demissão do director”, comunica. E logo Rosa, anexada à conversa há poucos segundos, se lembra do que ouviu na televisão por estes dias: “É por causa dos nus!”Vidal despega-se da galhofa para deixar uma opinião organizada. “Pode escrever”, apela: “Se a exposição traduz o sexo tem de ter um letreiro. Acho bem que exista, mas as crianças não podem ver. ” Camisola vermelha, grave semblante, calças de ganga a prender um molho de chaves: “Se a administração interferiu está mal. Eu também me demitia. ” Palavra de presidente. Debate-se o “benefício zero” da condição de vizinho de Serralves quando, ao fundo da rua, entalada entre dois blocos do bairro, se avista “Cocas”. José Silva no Cartão de Cidadão. “Oh Cocas, tem calma que o Benfica ganha para a semana”, brinca uma moradora, a aludir ao empate da equipa da Luz em terras transmontanas na noite anterior: “Queres um pastel de Chaves?”. Risada faustosa de um lado, um aviso a enterrar o tema do outro: “Sou do Benfica até morrer”. José “Cocas” é figura emblemática do bairro. E jornalistas não são novidade para ele: pai do “Siga”, o “rei da Pasteleira”, que há uns anos se fez notícia pelas suas fugas à policia, Silva deu na altura várias entrevistas a jornais. Foi à televisão. E só lamenta que isso não lhe tenha valido uns trocos extra. Em Serralves, entrou uma única vez. Nada que o impeça de formular teorias sobre as fotografias da discórdia no Museu de Arte Contemporânea. — A professora não ensina o nu nas escolas? Então não pode estar numa exposição porquê?— Então achas bem pornografia?! É verdade que a canalha agora já nasce ensinada. . . Mas aquilo era uma quinta antes. Não acho jeito nenhum aquela exposição. José “Cocas” encolhe os ombros — “esta é revolucionária”, segreda perante o confronto de Rosa, para logo deixar soar alto: “Vê lá se queres voltar aos anos 70!” E a vizinha de resposta pronta: “Nos anos 70 a gente namorava no R/C e aparecia grávida no primeiro andar. ” José “Cocas” desiste do debate. Leva um parafuso na mão e anuncia estar apenas de passagem para a drogaria mais próxima: o trabalho avolumou-se por estes dias e precisa de comprar mais peças. Mas a urgência não é coisa que vença quem passa no bloco 13. “É o conforto de passagem”, comenta, baixinho, o presidente da associação. “Cocas” pede um copo, deixa-se ficar mais um pouco. No bairro, as notícias de Serralves passam, mas não entram. Não há visitantes habituais do museu no grupo ali formado. Aventuram-se no território vizinho no Serralves em Festa, na celebração de Outono deste fim-de-semana. Eventos de portas abertas, sem bilhete pago. Pouco mais do que isso. Regalias de proximidade, garantem, não existem: nessa matéria, Serralves está tão longe deles como de Campanhã. Um divórcio sem brigas, apenas um divórcio: “Nunca negociámos nada com Serralves. Nem nós fomos lá, nem eles cá”, admite Jorge Vidal, morador há nove anos, presidente há quatro, antigo trabalhador da Singer e ex-guardião da igreja da Lapa. “Claro que um bairro também pode ir a um museu”, responde, assertivo, quando questionado pelos porquês do afastamento: “Mas há uma distância tão grande entre aquilo e isto”, aponta a aceitar uma espécie de destino traçado: “Talvez não seja para nós. . . mas quem sabe um dia a gente fale. ”No Café Carlos, noutro bloco do bairro, esmiúçam-se memórias de cenários inverosímeis para os mais pequenos. “Isto era a Quinta de Riba d’Ave”, aponta Manuel Nogueira, 47 anos de vida e de bairro, logo corrigido por Marta Ferreira, a proprietária do café: “A Quinta do Conde, era assim que eu lhe chamava”. Manuel sorri como se ainda fosse miúdo na Pasteleira e deixa-se levar pelas lembranças pueris: “Entrava por um portãozinho de metal que ainda hoje existe e ia lá buscar couves. A caminho da [escola] Leonardo Coimbra apanhávamos laranjas, sempre de olho nos cães para não nos apanharem. ”Arquitectada para residência privada pelo segundo Conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral, a casa e parque de Serralves ergueram-se entre 1925 e 1944. Mas a família não ficou ali por muitos anos. Em 1955 a propriedade era vendida a Delfim Ferreira, Conde de Riba d’Ave, sob o compromisso de manter o espaço tal e qual como era. E três anos depois, os primeiros moradores da Pasteleira ocupavam o bloco 1 do bairro ali ao lado. Margarida Cunha, ao balcão do café, ouve a conversa e acrescenta uns pozinhos. Não se alonga sobre a controvérsia dos quadros de Mapplethorpe — “ouvir falar ouvi, mas entra a 100 e sai a 200, a gente aqui tem mais em que pensar” —, mas deixa-se ficar se o desafio é falar sobre a Pasteleira e “Serralves antigo”: “Ia lá buscar o leite à lavradeira”, recorda, “a minha filha vai fazer 40 anos, veja há quanto tempo foi. ” Margarida traz letras tatuadas no braço esquerdo: P D P R: “São os nomes dos meus netos: Pedro, Diogo, Paulo e Rafael. ” É com eles — e os três filhos — que ocupa o pensamento. Por eles, jura agarrar-se bem às muletas este fim-de-semana e esquecer as dores para passear na Festa do Outono de Serralves. “Nesses dias a gente vai. Agora o resto. . . não nos diz respeito. ”A cidade passa ao lado da Pasteleira. Há dias, dezenas de pessoas manifestaram-se pela alegada “censura” a João Ribas. A poucos metros dali e tão distante. De manhã e ao fim da tarde, carros de alta cilindrada passam para apanhar as crianças no Colégio Francês. A poucos metros e milhares de quilómetros. Um casal de turistas pedala por ali, alheio a rótulos de zona perigosa. Na Pasteleira sem saberem. Museu e bairro partilham uma geografia, mas são universos apartados. Não se olham, não se vêem, nunca se tocam. Será que “nascer numa viela inclinada de Lordelo”, como questionava em 1994 Luís Fernandes, no prefácio da obra Pasteleira City, do morador Raul Simões Pinto, “traça a sina a um homem”? Será a vida no bairro forçosamente apartada da arte de um museu? “Ninguém quer saber de nós, a menos que haja roubos, aí já falam do bairro”, queixa-se Jorge Cunha. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quadros em paredes brancas de assinatura Pritzker não amansam o quotidiano, às vezes bravo, de quem ali mora. Mas engane-se quem vê no bairro apenas um caldo de tristezas. Naquele, plantado em zona nobre da cidade, criou-se e ganhou a sua primeira alcunha (“Carlos Tarado Musical”) o letrista Carlos Tê. Por ali, passou Aurélia Monteiro (a “Lela” ou “Ceguinha dos 9”), musa da escultura da Menina Nua que milhares fotografam, ainda hoje, na Avenida dos Aliados. “Aqui Serralves passa ao lado”, concede Marta Ferreira como se desse a sentença alheia a dilemas da elite. Serralves está tão longe da Pasteleira que nem o sonho de Serralves, de cultura e saber, parece caber ali. Mas não ir a exposições é apenas uma linha na definição deles. O bairro é um manifesto colectivo: gente nas ruas, nomes decorados, alcunhas para quase todos, gargalhadas sem aviso prévio, paradigmas de lealdade talvez alheios a museus. Jorge Vidal acaba de mostrar os troféus que enchem a associação de orgulho e José “Cocas” ainda ali está, sentado numa cadeira no “corredor do conforto”. Não foi à drogaria comprar os parafusos, mas “Xerife” pôs-se no carro e foi lá por ele. “Cocas” estende a mão já recheada dos objectos metálicos e mostra a cultura que ali verdadeiramente importa: “Quem tem amigos não morre na cadeia. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave trabalhador filha escola cultura homem sexo espécie cães divórcio
O maior desastre nuclear chega aos ecrãs com Chernobyl, 33 anos depois
Protagonizada por Jared Harris, Stellan Skarsgård e Emily Watson, a minissérie é um recuar no tempo ao momento zero do desastre nuclear — e à forma como a catástrofe foi gerida pela comunidade soviética. (...)

O maior desastre nuclear chega aos ecrãs com Chernobyl, 33 anos depois
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2019-07-10 | Jornal Público
SUMÁRIO: Protagonizada por Jared Harris, Stellan Skarsgård e Emily Watson, a minissérie é um recuar no tempo ao momento zero do desastre nuclear — e à forma como a catástrofe foi gerida pela comunidade soviética.
TEXTO: Passaram 33 anos desde o desastre em Tchernobil, o maior acidente nuclear da História. O que aconteceu, afinal? Quem foram as pessoas que tentaram evitar a catástrofe? A minissérie da HBO, Chernobyl, tenta dar resposta a estas questões. A série estreia-se em Portugal no dia 7 de Maio e só estará disponível no serviço de streaming HBO Portugal (que chegou em Fevereiro a solo nacional). Para já, só está prevista uma temporada com cinco episódios. O primeiro episódio tem o nome “1:23:45”, a hora a que foi accionado o botão de emergência no reactor nuclear número 4 da central de Tchernobil pelo supervisor nocturno Alexander Akimov (interpretado por Sam Throughton) — foi o momento zero daquela que viria a ser uma das maiores catástrofes da humanidade. Tudo aconteceu na noite de 25 para 26 de Abril de 1986. O criador da série é o norte-americano Craig Mazin, cujo currículo não faria adivinhar uma viragem para um registo mais sério e documental: Mazin foi um dos argumentistas por detrás dos filmes Scary Movie 3 e Scary Movie 4, assim como A Ressaca — Parte II e Super-Herói: O Filme. O trailer da minissérie deixa claro que o tom é bem diferente e mais sombrio, como seria de esperar de um tema como Tchernobil. A primeira frase que se ouve no trailer mostra-o: “Não houve nada são em relação a Tchernobil. ” Os cinco episódios, grande parte deles filmados na Lituânia, são realizados por Johan Renck, que também trabalhou em The Walking Dead e Bates Motel. “Tchernobil está a arder e cada átomo de urânio é como uma bala que penetra tudo no seu encalço: o metal, o cimento, a carne humana. Tchernobil tem mais de três biliões destas balas. E algumas delas não pararão de ser disparadas ao longo de 50 mil anos”, assevera a personagem do químico Valery Legasov (interpretada por Jared Harris) no trailer divulgado no final de Março. Legasov foi o cientista chamado pelo regime soviético depois do acidente nuclear e, enquanto as autoridades tentavam minimizar o impacto do desastre, foi um dos primeiros a aperceber-se das verdadeiras consequências da radioactividade na saúde humana. Dois anos depois do desastre, Legasov suicidou-se. Na sua extensa carreira de representação, esta não é a primeira vez que Harris interpreta um papel de alguém que parece condenado: fê-lo no papel de rei Jorge VI na série The Crown ou com Lane Pryce, em Mad Men. Também interpretou Andy Warhol (Um Tiro para Andy Warhol, 1996) e o arqui-inimigo de Sherlock Holmes, James Moriarty (Sherlock Holmes: Jogo de Sombras, 2011). “Estamos a lidar com algo que nunca aconteceu antes neste planeta”, ouve-se no trailer, em inglês — o idioma da minissérie, ainda que a acção se desenrole na União Soviética e conte com uma mão-cheia de actores que não são anglo-saxónicos. A série começa com um vislumbre dos momentos que se seguiram ao acidente nuclear: a evacuação da zona, a incerteza quanto aos mecanismos de segurança a serem tomados, os animais a sofrerem os danos, os homens e mulheres outrora saudáveis que morreram numa questão de semanas, dias até. A dois quilómetros da central, os 50 mil habitantes da cidade de Pripiat (agora fantasma) ficaram durante 36 horas a serem contaminados, sem o saberem, com os materiais radioactivos que foram lançados com a explosão do reactor. Depois, as autoridades soviéticas chegaram e levaram-nos em autocarros — o mundo ainda não sabia do perigo à espreita. Foi ainda preciso lutar durante 12 dias contra um incêndio da grafite, um material presente no núcleo deste tipo de reactores; muitos dos bombeiros não tinham protecção adequada e acabaram por sentir na pele os efeitos da radioactividade. Hoje, nos quatro mil quilómetros quadrados da zona de exclusão criada na Ucrânia e na Bielorrússia, a vida foi voltando através dos animais e das plantas que brotaram do solo radioactivo. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O enredo tenta explorar o motivo por trás da catástrofe, mas a série vai além do relato do desastre. A HBO diz que esta é a “verdadeira história que não foi contada”. Segue a história das pessoas que tentaram salvar vidas e que tentaram controlar a propagação da catástrofe: além de Valery Legasov, há a física Ulana Khomiuk (Emily Watson, duas vezes nomeada para Óscar de Melhor Actriz) e o então vice-primeiro-ministro soviético Boris Scherbina (interpretado pelo sueco Stellan Skarsgård, que entrou em O Bom Rebelde, Ninfomaníaca, Piratas das Caraíbas e Os Vingadores). Estes dois últimos já tinham contracenado no filme de 1996 de Lars von Trier, Ondas de Paixão. O site especializado IndieWire adianta que, a acompanhar a série semanal, existirá um podcast “de companhia”: chama-se “The Chernobyl Podcast” e será apresentado pelo criador da série, Craig Mazin (que também participa num para argumentistas, chamado “Scriptnotes”) e pelo actor e apresentador do podcast Wait Wait, Don’t Tell Me, Peter Sagal. A missão do programa áudio é dar um olhar mais aprofundado às histórias reais que serviram de base à narrativa da série, explicando a forma como “moldaram as cenas, as personagens e os temas representados”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens exclusão carne mulheres
Petição anti-eutanásia vai mesmo a plenário
Desde 2015, deram entrada 512 petições , 364 foram concluídas, há 97 em apreciação, 23 aguardam deliberação sobre admissibilidade. Foram propostas para apreciação em plenário 28. (...)

Petição anti-eutanásia vai mesmo a plenário
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Desde 2015, deram entrada 512 petições , 364 foram concluídas, há 97 em apreciação, 23 aguardam deliberação sobre admissibilidade. Foram propostas para apreciação em plenário 28.
TEXTO: A Federação Portuguesa pela Vida, promotora da petição Toda a vida tem dignidade, com 14. 196 assinaturas, quer mesmo que a sua iniciativa seja discutida no plenário da Assembleia da República, apesar de os projectos de lei que previam a despenalização da morte assistida terem sido todos rejeitados no final de Maio. A garantia foi dada ao PÚBLICO por António Pinheiro Torres, dirigente da federação. “Claro que queremos que a nossa petição seja apreciada; era essa a intenção dos milhares de pessoas que a assinaram. As questões que colocamos, as nossas opções e estratégias [pela dignidade da vida] merecem ser debatidas publicamente num espaço como o Parlamento”, afirmou. A questão colocou-se há duas semanas, quando a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias analisou o parecer da deputada Vânia Dias da Silva sobre a petição e o grupo de trabalho que lhe deu origem. Houve deputados que consideraram que já não faria sentido seguir com a petição para plenário e decidiu-se questionar a federação – que diz, no entanto, que os serviços ainda não a contactaram. Em Fevereiro de 2017, a petição Despenalização da morte assistida, subscrita por 8428 pessoas e da responsabilidade do movimento cívico Direito a Morrer com Dignidade foi também discutida em plenário e na altura houve partidos que anunciaram a intenção de legislar a eutanásia. Entre o mais de meio milhar de petições encontram-se os mais variados temas e solicitações. Há quem peça obras em estradas, ferrovias, aeroportos, hospitais e escolas, melhoria dos serviços públicos, abolição de portagens, protecção do património ou legislação nas áreas fiscais, laborais (como a progressão na carreira, concursos de admissão ou direitos do trabalhador), sociais ou da deficiência e da vida autónoma. Mas também pela revisão dos currículos dos vários graus de ensino, pela protecção ambiental e animal (contra e a favor da caça, de circos e outras formas de interacção com os animais), criação de dias nacionais, pela investigação judicial (como o caso das adopções da IURD). E há até duas petições pela legalização da prostituição em Portugal – cada uma com apenas um subscritor. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Entradas – 512Concluídas – 364Aguarda deliberação sobre admissibilidade – 23Em apreciação – 97Propostas para apreciação em plenário – 28Anos anteriores:Entre 2011 e 2015 – 552Entre 2009 e 2011 – 181Entre 2005 e 2009 – 592Entre 2002 e 2005 – 113Entre 1999 e 2002 – 83Entre 1995 e 1999 – 185Entre 1991 e 1995 – 339
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos morte trabalhador lei prostituição animal eutanásia
E agora algo divertido para a mente com Superorganism
Foram uma das mais gratas surpresas do Primavera Sound do Porto. Os multinacionais Superorganism deixaram um rasto de sorrisos à sua volta, graças às canções pop contagiantes do seu homónimo álbum de estreia. (...)

E agora algo divertido para a mente com Superorganism
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.3
DATA: 2018-06-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Foram uma das mais gratas surpresas do Primavera Sound do Porto. Os multinacionais Superorganism deixaram um rasto de sorrisos à sua volta, graças às canções pop contagiantes do seu homónimo álbum de estreia.
TEXTO: Foram uma das mais gratas surpresas do último Primavera Sound do Porto. Já se sabia que o seu homónimo álbum de estreia era um documento revestido por canções pop imaginativas, mas existiam algumas reticências em relação à forma como poderiam ser expressas em palco. Cinco minutos depois do início do concerto não restavam dúvidas: as canções dos Superorganism ao vivo resultam ainda mais contagiantes. Autoria: Superorganism Domino, distri. PopStockEnquanto no festival existia quem se dedicasse a experienciar unicamente concertos rock, ou de hip-hop, ou sessões de música de dança, numa comprovação, apesar de tudo surpreendente para os tempos que se vivem, de que as diferentes afirmações identitárias ainda estão conectadas com géneros de música e formas específicas de expor esses mesmos sons ao vivo, em palco os Superorganism misturavam tudo da única forma possível: com a descontracção insolente de quem não percebe que, estando hoje tudo baralhado na horizontal, ainda existe quem procure guiar-se por hierarquizações artificiais, dividindo, em vez de assimilar. Existe quem lhes chame pós-modernos, típica afirmação esvaziada de conteúdo, que não entende que os Superorganism não querem afirmar nada, ao contrário do que acontecia nos anos 1980 com essas correntes. Eles não querem parecer. Eles são. Pertencem a um agregado de pessoas – chamar-lhe geração talvez seja excessivo – com afinidades globais, que já digeriu um vasto leque de referências na era da internet. Não procuram a mistura fragmentada de alusões. Simplesmente fazem parte do que são. E isso tanto está presente na música, aparente amalgamento de elementos – dinâmicas electrónicas, técnicas e motivos resgatados ao hip-hop, ou modelo de canção pop envolvido em balanço funk – como na forma como o colectivo se apresenta em palco, mistura de modelos rock, linguagem audiovisual e performance dançante. Em palco as atenções concentram-se numa pequena vocalista de ar oriental que de vez em quando também toca teclados, enquanto à sua volta se movimentam três performers-bailarinos-cantores (duas raparigas e um rapaz) que não param por um momento quietos e três músicos, em bateria, guitarra e teclados. A atribuir sentido ao todo um cenário imparável de imagens e luzes coloridas, onde tanto a natureza é hiperbolizada como a vida nas urbes. Mas, afinal, quem são os Superorganism? Quando a sua primeira canção, Something for your M. I. N. D. , começou a circular na internet, no final do ano passado, não era fácil encontrar informações sobre eles. E não era estratégia. Simplesmente o colectivo não esperava que tivesse impacto, com aquele ritmo desengonçado, linhas de baixo redondas e vozes em colisão psicadélica, a produzirem novos sentidos para uma pop arco-íris. Mas o boca-a-boca virtual foi funcionando e alguns nomes, como Frank Ocean, Ezra Koenig (Vampire Weekend), ou David Byrne, como constatámos em entrevista recente, foram-se deixando conquistar. Chegou a especular-se que poderiam ser um projecto paralelo de Kevin Parker dos australianos Tame Impala, mas nada disso. Quando finalmente, no decorrer deste ano, surgiram as primeiras entrevistas, o mistério aclarou-se. O grupo decorria de um outro, os neozelandeses The Eversons, que com essa designação nunca conseguiram grande projecção. Mas tinham, pelo menos, uma admiradora: Orono Noguchi, uma japonesa de, na altura, 17 anos, que estava a estudar nos Estados Unidos, e que os contactou pelas redes sociais, para lhes declarar devoção, tendo depois assistido a um concerto do grupo, tornando-se amiga e próxima deles. Na altura compunham temas instrumentais, recorrendo aos mais diversos fragmentos de sons – de caixas registradoras a gravações de filmes ou pássaros a cantar – mas faltava-lhes uma voz convincente. Foi aí que decidiram enviar a Orono Noguchi o instrumental de Something for your M. I. N. D. para que ela criasse uma letra e cantasse por cima da estrutura instrumental o que acabou por acontecer com celeridade. Quando ela reenviou o resultado tinham nascido verdadeiramente os Superorganism. Depois de algumas conversações, os membros do colectivo, que haviam decidido rumar a Londres, no âmbito de uma residência artística, acolheram também a japonesa, tendo deste então aí permanecido todos juntos. Entre neozelandeses, australianos e japoneses, acabaram por juntar-se também ingleses, e agora são oito. O resto é mais ou menos conhecido. A editora Domino (Arctic Monkeys, Franz Ferdinand) interessou-se por eles e em Abril deste ano lançaram o álbum de estreia, tendo vindo a conquistar paulatinamente cada vez mais público. O curioso é que o álbum foi gravado integralmente antes de qualquer concerto. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que é desarmante é a maneira simples, mas extremamente eficaz e inventiva, como as canções resultam, alternando entre o deslumbramento e a melancolia, o divertido e o aborrecido, com a voz e atitude de Orono Noguchi parecendo ausente, para logo de seguida nos ligar à terra de uma forma irónica. Os diversos elementos que constituem a música coordenam-se, sustentam um corpo pop nada previsível, sem comprometerem a exaltante frescura que transpira da maioria das canções. No Porto deu para perceber que a sua música estapafúrdia, por vezes povoada pelo imaginário dos videojogos, resulta mesmo aliciante ao vivo, parecendo fazer eco de bandas excêntricas de outras décadas (como os B-52’s ou Talking Heads) ou do presente (como os The Avalanches), embora o resultado final respire singularidade por todos os poros, como é audível em canções que auguram o Verão como Everybody wants to be famous, Nobody cares ou Reflections on the screen. No dia em qua actuaram no Porto, o céu estava cinzento, parecia que a qualquer momento se abateria uma tempestade no local. Mas não. Em palco envergavam-se impermeáveis coloridos, as imagens eram tecnicolor e a música emanava total diversão, contagiando todos os que assistiam, como se suspendesse a realidade. A chuva só chegaria no dia seguinte.
REFERÊNCIAS:
Partidos BE
Centro de Inclusão Social de sete milhões na Madeira quer ser referência nacional
Infra-estrutura abre as portas em Janeiro e apresenta um leque alargado de respostas às pessoas com necessidades especiais. Associação Portuguesa de Deficientes discorda da opção. (...)

Centro de Inclusão Social de sete milhões na Madeira quer ser referência nacional
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DATA: 2018-12-25 | Jornal Público
SUMÁRIO: Infra-estrutura abre as portas em Janeiro e apresenta um leque alargado de respostas às pessoas com necessidades especiais. Associação Portuguesa de Deficientes discorda da opção.
TEXTO: O Centro de Inclusão Social da Madeira (CISM), que será inaugurado em Janeiro próximo no Funchal, é apresentado pelo executivo madeirense como uma infra-estrutura de “referência” para o país, mas a Associação Portuguesa de Deficientes (APD) preferia que os quase sete milhões de euros que vai custar fossem investidos em medidas de inclusão. O edifício, com uma área a rondar os 10 mil metros quadrados, apresenta um leque alargado de valências, entre as quais um apartamento para treino de vida diária e uma área complementar para formação e treino de autonomia. “Responde às necessidades actuais da região e também perspectiva as necessidades futuras”, resumiu aos jornalistas a secretária regional da Inclusão e dos Assuntos Sociais, Rita Andrade, numa visita recente ao futuro centro, que está em fase de conclusão. Será, acrescentou, uma infra-estrutura de referência para Portugal, e mesmo dentro do espaço ibérico. Rita Andrade sustenta o discurso no conjunto de serviços e de respostas que o CISM vai dar. Área terapêutica com ginásio de psicomotricidade e fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional e da fala, música, sala de snoezelen para estímulos sensoriais, cozinha, sala de trabalhos manuais, sala de têxteis, sala de cerâmica e pintura, horta pedagógica e um canil. O centro tem também um lar de internamento para 51 pessoas. É principalmente em relação ao lar que a APD é mais crítica. “Julgamos que os milhões de euros investidos poderiam ter sido aplicados em assegurar uma educação inclusiva de qualidade, formação profissional inclusiva de qualidade e na acessibilidade”, diz ao PÚBLICO a presidente da APD, Ana Sezudo, argumentando que estas, sim, são medidas que visam a inclusão das pessoas com deficiência na comunidade e não o seu isolamento e segregação. “Retrocesso civilizacional”A APD fala mesmo em “retrocesso civilizacional” quando olha para o CISM, considerando que a “institucionalização de pessoas com deficiência”, mesmo em “equipamentos dotados de serviços bem apetrechados”, mais não é que a “segregação de seres humanos”. O governo madeirense rejeita esta leitura. O Instituto de Segurança Social da Madeira (ISSM) lembra ao PÚBLICO que a “estrutura de lar residencial sempre existiu quer a nível regional, quer a nível nacional”, e que os utentes que irão ocupar este espaço já se encontram em regime de internamento, noutras instalações com menos condições. “Só são institucionalizados os utentes cujos pais não têm condições ou possibilidades de transportar diariamente os seus familiares. A decisão de institucionalizar cabe sempre aos familiares”, indica o ISSM, sublinhando que a única preocupação é “providenciar as melhores condições de vida possíveis” a pessoas com necessidades especiais, promovendo o acompanhamento das respectivas famílias. Para o CISM, além do lar residencial, transitam serviços e valências dos vários centros de actividades ocupacionais (CAO) do Funchal. Os restantes, dispersos pela ilha, vão continuar a funcionar, mas também vão beneficiar das ofertas disponibilizadas na nova infra-estrutura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A APD carrega nas críticas. O Estado português, lembra Ana Sezudo, ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, reconhecendo a igualdade de direitos que todos têm de viver em comunidade. “[Portugal] comprometeu-se a tomar as medidas eficazes e apropriadas para a sua total inclusão e participação na comunidade”, diz, considerando que a “concentração e isolamento” de pessoas com deficiência numa instituição constitui uma “violação clara” destes compromissos. “A Comissão sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nas observações finais sobre a implementação da convenção recomendou ao Estado português que eliminasse os locais de trabalho segregados, incluindo a revisão da legislação que regula os CAO, o que não foi feito até à data”, alerta a responsável pela APD. O CISM, ressalva o executivo madeirense, não é única resposta da Madeira às pessoas com necessidades especiais. Existe, garante o gabinete de Rita Andrade, um conjunto de programas que promovem a inclusão, tanto ao nível do ensino como do emprego, que vão desde a majoração de subsídios a bolsas de formação e incentivos à contratação.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos humanos concentração educação comunidade social violação igualdade canil