Na hora de brincar, os educadores desafiam e os pais substituem-se às crianças
Como brincam os pais com os filhos? Como brincam os educadores de infância com os alunos? Há diferenças de género? Estudo mergulha no papel das brincadeiras e compara Portugal com a Alemanha. E mostra que os pais portugueses não estão habituados a brincar. (...)

Na hora de brincar, os educadores desafiam e os pais substituem-se às crianças
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Como brincam os pais com os filhos? Como brincam os educadores de infância com os alunos? Há diferenças de género? Estudo mergulha no papel das brincadeiras e compara Portugal com a Alemanha. E mostra que os pais portugueses não estão habituados a brincar.
TEXTO: Uma mala com objectos lá dentro, da caixa dos ovos à máquina de cola quente passando por um martelo, fios, tecidos, purpurinas, rolhas de cortiça, palhinhas, madeiras. O objectivo é, em 20 minutos, um adulto e uma criança fazerem uma actividade em conjunto. Um boneco, um quadro, uma maquete, o que se quiser. Quando os meninos, dos 3 aos 5 anos, realizam a tarefa com o seu educador de infância, este dá-lhes autonomia. Quando a actividade é feita com os pais, estes ajudam e chegam a substituir-se à criança. Marina Fuertes e Otília Sousa, da Escola Superior de Educação de Lisboa (ESELx), são as autoras de um estudo que foi publicado na revista científica Plos One, em meados de Novembro. O objectivo era perceber como é que os adultos lidam com as crianças em actividades colaborativas. Esta observação começou por ser feita por Holger Brandes, reitor da Evangelische Hochschüle, em Dresden, que propôs a Fuertes replicá-lo em Portugal, de maneira a haver termo de comparação. Na Alemanha, a ideia de Brandes era perceber se educadores do sexo feminino e masculino colaboram com as crianças de igual forma — “foi um estudo de género”, precisa Marina Fuertes, docente da ESELx e investigadora da Universidade do Porto. Por cá, como a percentagem de educadores homens é diminuta (não chega aos 2%), as investigadoras decidiram alargar a observação aos progenitores. Participaram 55 educadores (dez deles homens), 45 pais (23 mães e 22 pais), 47 rapazes e 48 raparigas, entre os 3 e os 5 anos. O desafio era, em 20 minutos, levar a cabo uma tarefa com a tal mala cheia de materiais. As diferenças entre a Alemanha e Portugal fizeram-se sentir logo no início da actividade. As crianças germânicas não podem tocar em nenhum material sem antes explicarem ao educador qual é o seu projecto. As portuguesas são incentivadas a explorar a mala. “O educador alemão ajuda a criança a exercitar-se do ponto de vista cognitivo e da sua organização mental. É pedido a uma criança de 3 anos que faça uma planificação prévia. Os nossos [as crianças portuguesas] mexem em tudo”, explica Fuertes. No entanto, “as crianças portuguesas tomam bastante a iniciativa”, salvaguarda Otília Sousa, docente da ESELx e investigadora do Instituto de Educação, acrescentando que exploram os materiais, os nomeiam e verbalizam o que podem fazer com eles. “A estratégia alemã é muito boa, mas a nossa é melhor em termos emocionais. É dado tempo à criança, as respostas são afectivas, há contacto ocular, não sentem que estão a fazer uma tarefa”, descreve Marina Fuertes. E a partir daqui a atitude dos adultos também varia. Se os educadores portugueses incentivam a criança a criar sozinha (aconteceu com 21 crianças, em 50), os pais ajudam-na (18 em 45), mas a maioria substitui-a (25 em 45) e faz o projecto por ela (apenas duas crianças o fizeram a solo). Segundo a mesma observação — todos os pares foram filmados, posteriormente o filme foi visto e classificado pelos investigadores segundo uma escala tendo em conta a empatia, cooperação, desafio, atenção e comunicação —, também houve educadores que fizeram as tarefas pelos seus alunos (12), mas não tanto como acontece com os pais (25). “O adulto não deve fazer [a tarefa] pela criança ou rejeitar as suas ideias, mas pode contribuir para elas. Apesar de tudo, os educadores trabalharam muito em parceria, alguns preferiram seguir a criança mas não ‘abandonaram na tarefa’. Nalguns casos, questionar e dar várias opções à criança também pode ajudá-la a reflectir, a planear, a tomar decisões”, defende Marina Fuertes. “O género de quem está com a criança também é importante”, informa Otília Sousa. Inicialmente, as investigadoras não encontraram diferenças entre pais e educadores na interacção com as crianças. Contudo, quando se separaram os pais e os educadores de infância homens para um lado e as mães e as educadoras para o outro, surgiram diferenças: os homens tendem a ser mais competitivos, liderando a actividade e promovendo projectos paralelos. As mulheres permitem que a criança participe e promovem um trabalho colaborativo. Mais: homens e mulheres agem de maneira diferente quando ao seu lado têm um rapaz ou uma rapariga. Com as meninas, os pais homens dão-lhes a oportunidade de trabalharem em conjunto; já com os meninos, os pais fazem a actividade enquanto eles observam. “Com as mães são os rapazes os autores e a mãe apoia. Com os pais, os rapazes são introduzidos numa hierarquia muito cedo: eles são liderados pelos pais e lideram as mães. Apreendem que podem ser líderes ou liderados. Com as meninas, a parceria é maior. As raparigas são introduzidas à colaboração”, diz Marina Fuertes. Desconhece-se se este comportamento terá impacto no futuro. “A forma como os adultos comunicam com as crianças também é muito interessante”, diz Otília Sousa. Enquanto os educadores dão sugestões, os pais dão indicações. “Quando o adulto manda, o interesse e a participação diminuem; quando sugere, a criança envolve-se e elabora”, acrescenta Marina Fuertes. O elogio é outra forma de manter os miúdos envolvidos. Não o elogio “a torto e a direito”, mas o “sofisticado”, como: “‘Ensina-me como se faz’; ‘isto é muito interessante, não sabia’; ‘podes ajudar a mãe?’. É a melhor forma de os elogiar”, acredita Marina Fuertes. O resultado final do projecto também varia de Portugal para a Alemanha, diz Otília Sousa: “Nós temos mais sujeitos animados [as crianças fazem bonecos que personificam as famílias ou animais], e eles [os alemães] fazem mais objectos. ”As investigadoras observaram ainda que os pais portugueses não estão habituados a brincar com os filhos. “Toda a atitude do adulto é de espanto porque não está à espera que a criança saiba fazer”, aponta Marina Fuertes. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O que era proposto neste estudo passava por construir algo: como se fosse um jogo de legos. E nem as crianças nem os pais têm o hábito de brincar assim. As crianças “são cada vez mais passivas”. “É-lhes dado espaço para brincar, mas não para fazer”, critica Fuertes. E a comparação volta à Alemanha. Por lá, nas salas do jardim-de-infância há uma mesa de carpintaria a sério, com materiais cortantes, como uma serra. Por cá, isso é impensável. Por lá, há campo para explorar, é comum haver um tanque de areia ou de lama; por cá, os tanques de areia foram retirados das escolas por falta de higiene. Por lá, os meninos podem subir às árvores; por cá nem por isso. “O lado da exploração, o lado mais físico não existe. Afastámo-nos da natureza e higienizámos a brincadeira”, nota Otília Sousa. “Até há 15 anos, no exterior havia árvores, pedras, terra; hoje temos tartan (quente no Verão e ensopado no Inverno). É preciso correr riscos e quanto mais a criança ganha essa noção, nos primeiros anos, mais dificilmente correrá riscos reais no futuro. Estamos a protegê-los tanto, que não estamos a protegê-los e já vemos crianças a correr em superfícies planas e a cair [porque a coordenação motora não está bem desenvolvida]”, lamenta Marina Fuertes. Em suma, as investigadoras concluem que é importante os pais e os filhos brincarem. Isso melhora a relação, além de que quer uns quer outros aprendem entre si. E também é importante a criança ter várias experiências: “Criar quando lhe dão espaço e regular emoções quando não têm esse espaço, por isso a complementaridade entre educadores e pais é importante”, conclui Marina Fuertes.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens escola campo educação ajuda criança sexo género estudo mulheres rapariga
As coisas boas que conhecemos em 2018
Um cruzeiro no Nilo, um roteiro vegan de Berlim, a descoberta de Brooklyn. Apanhar castanhas em Sernancelhe, ver Olhão com outros olhos ou caminhar até Santiago (com batota). Provar o Euskalduna, a comida de tacho dos cozinheiros de mão-cheia e brindar com o Noval Vintage 2016. Este foi o ano que passou, já estamos preparados para o próximo. Eis as escolhas da equipa da Fugas. (...)

As coisas boas que conhecemos em 2018
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.7
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um cruzeiro no Nilo, um roteiro vegan de Berlim, a descoberta de Brooklyn. Apanhar castanhas em Sernancelhe, ver Olhão com outros olhos ou caminhar até Santiago (com batota). Provar o Euskalduna, a comida de tacho dos cozinheiros de mão-cheia e brindar com o Noval Vintage 2016. Este foi o ano que passou, já estamos preparados para o próximo. Eis as escolhas da equipa da Fugas.
TEXTO: Há qualquer coisa de muito especial nesta guesthouse com cinco suítes e três quartos, a poucos quilómetros de Estremoz. Há a paisagem, com algo de lunar na forma como a piscina redonda surge entre as pedras de mármore, há a simpatia dos anfitriões, o francês Franck Laigneau e o português Vítor Borges, e há, sobretudo, uma relação única com o espaço interior, através da presença de uma colecção de arte de duas correntes do Norte da Europa, a Judendstil e o movimento antroposófico de Rudolf Steiner, que aqui se tornam parte da nossa estadia como confortáveis objectos do quotidiano. A. P. C. Sempre andaram por aí, pequenos frutos rodeando os cactos que nasciam selvagens nos campos. Agora, as figueiras-da-Índia e os seus frutos conhecem uma nova vida, com agricultores a apostarem na sua produção e comercialização. Fomos conhecer a plantação de José António e Patrícia, junto à Arruda dos Vinhos, no Ribatejo, para conhecer os figos-da-Índia a partir dos quais se fazem os doces e chutneys da marca Julieta – e encantámo-nos com os sumos, de intensas cores, vermelha ou laranja, conforme o tipo de figo, que se podem fazer com estes frutos tanto tempo injustamente ignorados. A. P. C. A cidade que não pára de se reinventar está rendida à alimentação vegan. Numa visita que começa pelo Cookies Cream, restaurante vegetariano que conquistou uma estrela Michelin, percorremos Berlim à procura da mais vibrante comida feita com vegetais. E não nos desiludimos: dos portuguesíssimos pastéis de nata vegan aos festivos restaurantes com comida do Médio Oriente (como o Neni), descobrimos também projectos e pessoas que lutam contra o desperdício e que apostam na sustentabilidade. Há muito a descobrir na Berlim verde – e existem até tours especializadas no tema para partir à descoberta. A. P. C. O estado de Goiás é uma pérola escondida no meio do Brasil. Longe das invasões do turismo de massas, é um espaço meio mágico, onde a poesia se cruza com a arte da doçaria (na cidade de Goiás, terra da poeta Cora Coralina, em cada porta há uma doceira, e muitas delas dizem, e fazem, poesia). E se nos aventurarmos pelas estradas de terra chegamos às fazendas onde os cowboys nos ensinam a fazer a rapadura a partir da cana do açúcar. Foi também em Goiás que encontrámos os alfenins, esses doces que em Portugal só sobrevivem na ilha Terceira, nos Açores, nos quais o açúcar se transforma em pássaros, flores e na pomba do Divino Espírito Santo. A. P. C. Olhão é Algarve mas é um Algarve muito próprio, construído ao longo dos tempos a partir de uma rivalidade histórica com Faro, que lhe foi dando uma personalidade muito própria. Muitos estrangeiros estão a descobri-la, a recuperar as casas dos bairros históricos e a animar a vida cultural local. Isso leva também os portugueses a redescobrir Olhão, voltando à renascida Sociedade Recreativa, explorando o mercado e os restaurantes em redor com a ajuda da Joana e do António da Eating Algarve Food Tours, entrando nas lojas e conhecendo os artistas locais, e instalando-se nas novas guesthouses abertas na casas de arquitectura muito particular daquela a que chamam a cidade cubista. A. P. C. No início de 2018 toda a gente falava do Euskalduna, o restaurante de Vasco Coelho Santos, no Porto. Os prémios chegavam de todo o lado, de tal forma que fomos ver o que tinha, afinal, o Euskalduna, para, com apenas um ano de vida, chamar tanto a atenção. E confirmou-se: este é um restaurante especial, um espaço pequeno, onde um jantar é quase um espectáculo de teatro (convém ficar sentado ao balcão), com um atendimento verdadeiramente personalizado e uma cozinha cheia de garra, de sabor e de identidade. A. P. C. Brooklyn é Brooklyn. Tem vida própria e cada vez mais gosta de se mostrar à vizinha Manhattan. Não apenas um skyline semeado nos últimos anos, mas uma marginal resplandescente, uma história de street art entranhada nas paredes e uma vizinhança que se cumprimenta no alpendre e que cada vez mais tem orgulho em viver do lado de cá do rio. Quem já explorou Manhattan devia experimentar perder-se em Brooklyn, neste bairro gigante onde o passo abranda e o sotaque se torna mais espesso. Há quem diga que Nova Iorque é aqui mais genuína e as pessoas menos estereotipadas, mais disponíveis para nos mostrarem a sua zona. Este é um momento interessante em que é possível ver a vida espalhar-se como sangue nas veias deste bairro gigante. L. O. C. “Os castanheiros levam cem anos a chegar ao estado adulto, cem anos a crescer, cem anos no seu ser e cem anos a morrer. " Já tínhamos estado nos fornos secretos de Sernancelhe onde, entre termos aquilinianos e lenha lançada no forno, crescem receitas de outros tempos, fálgaros, cavacas e queijadas de castanha. Voltámos este ano em pleno Outono, tempo frio e cores quentes, para vermos com os próprios olhos os frondosos soutos que abraçam a paisagem, os ouriços de três castanhas que fazem muito da cultura — e da gastronomia — popular de uma vila que não se rende às condições do interior. Sernancelhe merece estar no calendário. L. O. C. Confessamos: não bebíamos cerveja, nunca foi o nosso forte. A coisa mudou de figura quando percebemos que em Portugal a cerveja começa a ser tratada como o vinho, que há uma série de pessoas (enólogos, cervejeiros, cientistas, alguns loucos) cuja paixão é juntar ingredientes naturais, fechar tudo em barricas, provar e dar a conhecer as suas experiências, quando percebemos que a cerveja artesanal já tem uma pequena história e muitas marcas que ganham corpo. Esta é uma oportunidade de ouro para desenvolver um produto. Os pequenos produtores estão em todo o lado. E as grandes marcas já mostraram que estão atentas. L. O. C. No ano em que foram vistas estrelas Michelin longe da A1 — que o digam os irmãos Óscar e António Gonçalves que nos obrigaram a fazer um delicioso desvio até Bragança —, a Fugas decidiu invadir a cozinha e parte da vida de pessoas que não sonham ser chefs, que servem comida simples no tacho e que falam de comida como quem declama poesia ou canta ao desafio. No Porto, madrugámos ao ritmo de Luísa, a menina do Caraças, e de Miguel, que aprendeu os segredos do peixe em alto mar antes de os revelar no Rei dos Galos de Amarante. Partilhámos com eles a paixão que os move, a arte da busca dos ingredientes perfeitos, as técnicas simples que no prato fazem toda a diferença. Continuaremos a ser clientes da casa. L. O. C. É-nos difícil descrever o primeiro final de tarde a que assistimos desde o Nilo, a bordo de um dos muitos barcos-cruzeiros que o sulcam à vez com as eternas falucas – é feitiço, certamente, o sol afundando-se, o céu a tingir-se de laranja contra as margens desenhadas a palmeiras. Vamos como peregrinos, Nilo abaixo, entre Luxor e Assuão parando nos santuários de outrora para ver a história saltar dos livros e cristalizar-se no presente: todas as maravilhas e mistérios do Antigo Egipto mão a mão com o Egipto de hoje, caótico e esfuziante. E tudo numa orquestra diária bem montada: saídas do barco de madrugada, tardes lânguidas no convés, finais de dia nos mercados fervilhantes. Cinco dias inesquecíveis de cruzeiro no Nilo, que se complementam no Cairo, o grande bazar da civilização. A. M. P. Fomos a Istambul atrás dos gatos mas qualquer pretexto serve para conhecer Istambul – incluindo, nenhum. A cidade são várias cidades, dois continentes: entre eles a água, sempre a água, onde a luz não pára de brincar. Sultanahmet é o coração – da cidade e da história de Bizâncio, de Constantinopla, de Istambul – que depois bate a ritmos diferentes em Balat-Fenenr, Kadiköy, Örtakoy, Arnavutköy. . . sempre a partir da incontornável avenida Istiklal. Não perdemos uma oportunidade de tomar chá e café (turco) em cafés e esplanadas (vista sobre os míticos Bósforo e Corno Dourado), perdemo-nos a olhar o mar de Mármara vendo chegar e partir navios, deambulámos por livrarias, não esqueceremos os cheiros das ruas (flores, castanhas assadas, kebabs e dürüms) nem os sons (música sufi, tradicional, de intervenção, pop, electrónica). Recordaremos sempre as pessoas. E não nos cansaremos de regressar às ruas de Istambul, onde a Europa namora a Ásia numa história milenar que continua a surpreender os visitantes. A. M. P. Crescemos com eles, entre eles, e damo-los como adquiridos. Os que vêm de fora destacam-nos entre o que mais apreciam em Portugal e está na altura de os portugueses terem consciência da originalidade dos “seus” azulejos. Há cinco séculos que preenchem as nossas paredes, externas e internas, e servem de suporte às mais vanguardistas formas de arte. Artistas de todo o mundo escolhem as fábricas portuguesas como parceiras, há cidades (Ovar e Aveiro, por exemplo) que fazem roteiros à volta dos azulejos, e prepara-se candidatura a Património da Humanidade da UNESCO. Descobrimos que Portugal se vê ao espelho nos seus azulejos e passamos a olhá-los de forma diferente. A. M. P. Aldeias históricas e de montanha (umas e outras com abundância de história e estórias), paisagens alpinas e mediterrânicas, castelos, praias fluviais e neve. Bem no coração de Portugal, a serra da Estrela não se envergonha em nenhuma altura do ano: podem apreciar-se mais as cores de Outono ou da Primavera, o calor ou o frio, mas há qualquer coisa de único em qualquer altura do ano. No Verão, mergulhamos na água, tanta água, mas não desdenharíamos de uma lareira com vista para paisagens ora amenas ora vertiginosas. E sempre com uma mesa farta por perto: não faltarão queijo e enchidos e com isso já nos servimos. A. M. P. À primeira vez surpreendeu-nos, desta segunda conquistou-nos – e a nossa admiração. Varsóvia é uma sobrevivente nata e isso molda-lhe as feições e o carácter: não é óbvia como Cracóvia, mas se persistirmos as recompensas são imensas. Nós deixamo-nos guiar pela (turbulenta) história do século XX e não saímos incólumes: a cidade que se faz vanguarda no seu “lado B” (o bairro de Praga), assume a sua história negra (ocupação nazi) e areja complexos (comunismo). O resultado pode bem ser entranhável. A. M. P. Há cinco anos, a conversão de uma igreja em livraria desencadeou um sonho singular e inesperado: transformar uma vila histórica no coração da literatura em Portugal. Óbidos tem agora recantos de livros um pouco por todo o lado, incluindo museus, o antigo mercado de hortícolas, a escola primária sobre o monte ou nas traseiras da “loja do Américo”. Mas o projecto, que valeu a Óbidos a classificação como Cidade Criativa da UNESCO, expande-se a outros capítulos: festivais literários, residências artísticas ou tertúlias poéticas no Arco da Cadeia. E em ano de celebração dos 20 anos da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago, a vila ganhou um novo espaço dedicado ao autor. M. G. Desde meados de 2017 que o Caminho Português da Costa se encontra totalmente reabilitado, com nova sinalética ao longo de percurso, mas só este ano tivemos oportunidade de percorrê-lo – ou parte, quase sempre de carro e com alguma batota à mistura, admitimos. Ao contrário do Caminho Português Central, mais conhecido e tido como o mais antigo em território nacional, esta rota jacobina até Santiago de Compostela começa no Porto e sobe a Valença sempre com os olhos cheios de mar e de rio. Baseado em registos históricos, o trajecto assinalado atravessa serras e muitas povoações, aliando o património arquitectónico ao interesse paisagístico. Para percorrer por devoção religiosa, superação física ou simplesmente pelo passeio. M. G. Há mais de 30 anos que as plantações de linho desapareceram de Janeiro de Cima, mas a aldeia quer recuperar a tradição, do campo ao tear. Não para ressuscitar a dureza daqueles tempos, antes para adaptar a economia e os saberes locais ao turismo de experiências e às novas exigências do design. Este ano, lançaram o projecto-piloto “Laboratório da Terra – O Regresso do Linho”. Além de workshops de tecelagem e de tinturaria natural, estão a plantar as sementes de linho que recolheram junto da população local e a criar um Jardim de Tingir, com índigo e tintureiras autóctones. A ideia, a longo prazo, é criar condições para agarrar as gentes à terra. Porque sem a comunidade, nada persiste. M. G. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Apesar de ser feito com uvas de uma única vinha (plantada em pé franco já depois da filoxera), quando a tradição dos grandes vintages assenta no lote de vinhos de diferentes propriedades, o Quinta do Noval Nacional é "o" Vintage. Custa bastante mais do que qualquer outro, a sua produção é pequena e só sai em anos especialíssimos. O último, da colheita de 2016 (1230 euros na Garrafeira Nacional), é um daqueles vinhos que se percebe serem extraordinários sem sabermos explicar muito bem porquê. Têm qualquer coisa de único e distinto. São vinhos com uma dimensão sensorial fora do comum, um misto de potência, sobriedade, impetuosidade, elegância e sofisticação. P. GRodeadas de montanhas e de mar, as vinhas de Waterkloof, junto à cidade de Somerset West, a cerca de 50 quilómetros da Cidade do Cabo, são o sonho de qualquer produtor. Estão no meio de um cenário perfeito e os vinhos que ali se produzem, a partir de práticas agrícolas baseadas nos preceitos biodinâmicos e no respeito pela biodiversidade local, reflectem o prodígio da paisagem. É um lugar que se visita uma vez e que nunca mais se esquece. Os tintos, sobretudo os de Syrah, são belíssimos. Mas o vinho que melhor representa a beleza da propriedade e a frescura das montanhas e do mar é o extraordinário Waterkloof Sauvignon Blanc. P. G.
REFERÊNCIAS:
“Não me lembro da última vez que comi bacalhau"
Em casa de Antónia não há aquecedores: usam-se mantas. Ela nunca conseguiu dar aos filhos o que os pais lhe deram: férias de um mês no Algarve. E a filha mais nova contou-lhe que escolheu um curso socioprofissional para não terem de gastar dinheiro com livros. (...)

“Não me lembro da última vez que comi bacalhau"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: Em casa de Antónia não há aquecedores: usam-se mantas. Ela nunca conseguiu dar aos filhos o que os pais lhe deram: férias de um mês no Algarve. E a filha mais nova contou-lhe que escolheu um curso socioprofissional para não terem de gastar dinheiro com livros.
TEXTO: Esta é a quarta de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?“Antónia” não quer dar a cara nem o nome por causa dos filhos. Aos 44 anos, é mãe de duas raparigas — uma com 20 e outra com 16 — e de um rapaz de 23. Os mais velhos trabalham e pagam os seus estudos: a filha está numa cadeia de hambúrgueres e estuda Belas Artes; o filho trabalha em mecânica e estuda na mesma área. Ambos recebem mais ou menos o ordenado mínimo mas não contribuem para as despesas da casa porque os pais não deixam. O marido, “Filipe”, explica porquê: “Sinto que não há direito. É roubar-lhes recursos, recursos que eu nunca tive. ” Filipe, filho de trabalhadores rurais, teve de se tornar o sustento da casa onde vivia com os pais. “Quando nos casámos, no primeiro mês ele ainda entregou o dinheiro à mãe. E isso ficou sempre com ele: ‘Com os meus filhos não vai acontecer’”, comenta Antónia. Além dos três filhos, no apartamento de quatro assoalhadas, em Évora, também vive o namorado da filha. Estão de casamento marcado. Ele já é da família. Há ainda o cão, que começa por ficar desconfiado com quem chega, mas depois só quer brincar, “metendo-se” na conversa frequentemente. Antónia oferece-nos um café. A sala é pequena. Mas há lugar para um móvel em formato de bar, sofás, uma estante para televisão e alguns livros. É aqui que conta que está desempregada e que de vez em quando faz limpezas, passa a ferro, faz traduções, “o que apanhar”; ele trabalha numa churrascaria, a ganhar o salário mínimo — mostra o recibo, 537 euros líquidos, descontada a Segurança Social. Três dias por semana trabalha 14 horas por dia e, nos outros três dias, 12 horas. São seis dias por semana, sem direito a subsídios. Dizem que sabem que o patrão dele não está a cumprir a lei, mas “mais vale um passarinho na mão do que dois a voar”. Os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, relativos a 2017, mostram que há um perfil de famílias especialmente atingido pela pobreza: as que são constituídas por dois adultos e três ou mais dependentes. A percentagem das que vivem com rendimentos abaixo do limiar de pobreza é de 31, 6%. Para a população em geral, independentemente dos agregados, a taxa de risco de pobreza é de 17, 3%. Mesmo assim, foi neste grupo das chamadas “famílias numerosas” que a taxa de pobreza mais baixou em relação ao ano anterior (era de 41, 4% em 2016). A situação desta família acaba por ser uma variante que as estatísticas não apanham. Técnica de acção educativa do ensino especial, Antónia tem o 12. º ano e formação profissional na área, mas a sua carreira profissional foi feita em diversos empregos, sobretudo em Évora, entre fábricas e apoio a idosos. Há 20 anos trabalhava para uma fábrica de componentes electrónicos, quando engravidou da segunda filha — e foi despedida 15 dias antes de ela nascer. “Fui para tribunal e não consegui nada”, conta. Foi em vão gastar metade do ordenado a pagar ao advogado. A filha nasceu e ela arranjou emprego a tomar conta de um bebé recém-nascido, enquanto a sua menina de quatro meses ficava com uma ama. “Foi esquisito porque tinha de deixar a minha filha para ir tomar conta de outra. Isso causou-me muitos problemas de consciência. É das coisas que mais me arrependo na vida. Na altura não era tanto o precisar de dinheiro mas mais aquela ideia de ter de ganhar dinheiro. ”Quando engravidou pela terceira vez trabalhava noutra fábrica — onde ficou seis anos, sem nunca passar a efectiva. “A história repetiu-se, mas foi pior. Fui entregar os papéis para o parto e fui despedida. Aí pagaram indemnização, vim com algum dinheiro. Fiquei muito revoltada. ”Feitas as contas com o que teria de pagar para ter as filhas na ama e na creche, decidiu ficar em casa com elas. “Nessa altura fiz alguns erros — sabe que isto da pobreza às vezes também tem a ver com algumas asneiras pelo caminho. Estávamos para comprar casa mas como fiquei desempregada, fiquei com medo. Tinha um familiar que me disse: ‘Trabalho numa quinta, vocês vêm para aqui, o dono deixa-vos ocupar uma casa, fazem obras e ninguém vos manda embora. ’”Acabaram por gastar todas as economias nessa casa, mais a mão-de-obra do próprio marido, pedreiro. Viveram ali uns dez anos. Só que na altura das partilhas os filhos dos donos discordaram da opção dos pais e eles foram despejados. “Há oito anos, quando tivemos de começar a pagar renda, é que comecei a sentir as dificuldades. Nessa altura a minha vida começou a decair, bateu no fundo”, diz. Foram para um apartamento. Pagavam 450 euros de renda, estava ela desempregada e ele a trabalhar como pedreiro. Veio a crise, que tanto afectou a construção civil, e o marido começou a não ser pago pelo patrão. Ia fazendo biscates “aqui e ali”, e o dinheiro sem chegar a casa. “Num mês pagávamos a renda e noutro a água, luz e gás. Íamos gerindo assim. ”Quando um dia foi pedir o Rendimento Social de Inserção, uma prestação social destinada aos mais pobres, tinha o filho mais velho 12 anos. E a assistente disse-lhe: “Se não pode trabalhar, dê-os para adopção. ” Antónia teve um choque. Desistiu de pedir apoio. “Fiquei aterrorizada que me tirassem os filhos a qualquer altura. ”As dívidas iam-se acumulando. “Várias vezes, em desespero, ele [Filipe] começou a bater à porta dos vizinhos e a perguntar se queriam que fizesse alguma coisa. ”Quase sempre calado a ouvir a mulher — que hoje está habituada a falar em público como voluntária da Rede Europeia Anti-Pobreza —, Filipe conta que “as pessoas ajudavam”. “Fomos sempre vistos como a família que não cruza os braços. ”Entraram numa situação de conflito com o senhorio e o caso foi a tribunal. Durante um período, dormiam com o coração na boca à espera que lhes batessem à porta para os despejar. Antónia chegou a dizer aos filhos: “Tenham uma mochila preparada”, para o caso de ser preciso saírem de repente. E não pediam apoio? Fizeram candidatura para habitação social. Foi-lhes atribuída uma casa. “Mas não fui consultada para coisa nenhuma. Não me perguntaram se queria aquela casa, se reunia as condições que achava correctas para a minha família. Disseram: ‘Tem aqui a chave. ’” Quando foi ver a casa, não se conteve. “Desatei a chorar. O meu marido disse-me: ‘A gente não fica aqui. ’” Não ficaram. Foi uma sensação de humilhação e a partir daí Antónia “teve a certeza de que os serviços públicos” não a “iam ajudar em nada”: “As pessoas nos cargos mais baixinhos são os que mais nos humilham e maltratam. É o pequeno poder que afinal acaba por ser maior. ” Depois, analisa, a pessoa começa a pensar: “‘Sou pobre, não tenho direito a ir pintar as unhas, a ir ao cabeleireiro. ’ Acaba por ficar um bicho. E isso afecta a procura activa de emprego. Cheguei a um ponto que me senti tão humilhada que pensei: ‘A gente aluga uma cave ou uma garagem e reorganizamo-nos. ’”Não foi preciso chegar aí. Quando se mudaram para o apartamento onde hoje estão, precisaram de pagar uma caução, e entre amigos e a irmã conseguiram-na. “Foi muito sofrido. No dia em que fechámos a porta, os miúdos estavam deitados e perguntámos: ‘O que é que precisamos de fazer para não voltarmos aqui?’”Sentem que são uma família pobre? “Somos ricos em muita coisa, só não temos dinheiro. A pobreza é subjectiva, se me comparar com os meninos da Etiópia se calhar sou rica, tenho o que eles não têm. ”A falta de dinheiro ocupa uma grande parte das suas vidas: “Nunca estamos tranquilos. ” Por exemplo, esta entrevista ao PÚBLICO foi feita no dia 3 de Novembro e o ordenado de Filipe já tinha desaparecido: 400 euros foram para a renda, o que representa 74% do rendimento, quase o dobro daquilo que é estimado como desejável (os encargos com a habitação, e que incluem despesas com água, luz e electricidade, não devem exceder 40% do rendimento). “Recebe-se, paga-se as contas e fica-se sem dinheiro. Depois vou trabalhando para pôr o comer na mesa. E não há espaço para mais nada”, diz. As refeições gerem-se com algo que dê para almoço e jantar, agarra-se no que estiver em promoção. “Não me lembro da última vez que comi bacalhau. Peixe é raro porque é muito caro. Normalmente compro a tintureira, umas duas postas, e faço para dar para almoço e jantar. ” Quando o marido traz frango de sobra da churrascaria, comem-no quente e o resto é desfiado e usado em outros pratos, para render. “O que gosto de comprar quando há dinheiro? Fruta. Adoro morangos. Habituei-me a desistir de tanta coisa. ”Em casa não há aquecedor: quando está frio usam-se mantas ou então “vai-se para a cama”. Sente muita falta de fazer férias, algo que há doze anos não sabe o que é. Porque enquanto viveu em casa dos pais — ele polícia e ela cozinheira — teve “sempre um nível de vida médio”: “Íamos um mês de férias para o Algarve, uma coisa que nunca consegui dar aos meus filhos. ” A última vez que foi de férias com os filhos? Há 14 anos, quatro dias. “No ano passado fui um dia a Tróia. ”Não são caso isolado: em 2018, 41, 3% das pessoas em Portugal viviam em agregados sem capacidade para pagar uma semana de férias por ano fora de casa e 19, 4% das pessoas viviam em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida. Hoje, custa-lhe ter descido tanto na escada social. Conhece os seus direitos, mas por enquanto isso não é suficiente para sair da pobreza. Mas há luz ao fundo do túnel: têm um projecto de criação do seu próprio emprego. “Se correr tudo bem, pode ser o salto. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. À sala chega a filha mais nova para levar o cão que ladra. Antónia conta que no dia em que soube que ela tinha escolhido um curso socioprofissional para “não ter livros e não ter despesa com refeições” ficou comovida. “Magoou-me. Mas fez-me orgulho a menina que ela é, ter essa preocupação. Os meus filhos aprenderam a viver com as adversidades e a dar-lhes a volta. ”Já no final da conversa de duas horas, comenta sobre a opção de ser um caso de “pobreza escondida”. “As pessoas sabem das nossas dificuldades mas a gente não vai para rua dizer: ‘Sou pobre. ’ Porque as pessoas deixam de nos ver. Passamos a ser o coitadinho, o preguiçoso que não faz nada para mudar e que é pobre porque é indolente. ”As crianças e jovens até aos 18 anos continuam a ser o grupo etário mais vulnerável. O risco de pobreza ou de exclusão social é maior do que em qualquer outro grupo. A intensidade da pobreza também, afirma Amélia Bastos, especialista em pobreza infantil. “As crianças são o grupo que vive em agregados onde existe uma maior insuficiência de recursos. Isto tem consequências muito significativas no curto, no médio e no longo prazo, no investimento na sua escolaridade, no seu desenvolvimento físico e cognitivo. Compromete as suas expectativas em termos de futuro e alimenta o ciclo intergeracional da pobreza”, refere. Ainda assim, a situação melhorou de 2016 para 2017 e a taxa de pobreza entre os mais jovens aproximou-se da registada entre os adultos e os idosos, acrescenta. Passou de 20, 7% para 18, 9%. Globalmente, os progressos registados ao nível da pobreza e da pobreza infantil em particular não são alheios às medidas de política social levadas a cabo, nomeadamente em termos de Rendimento Social de Inserção (RSI), abono de família e subsídio de desemprego, elementos cruciais para o nível de recursos monetários das famílias. A análise da pobreza infantil faz-se através do rendimento do agregado familiar e não das próprias crianças, explica Amélia Bastos, e isso significa que não se concentra no “interesse exclusivo da criança”, em “indicadores que são específicos do seu bem-estar” como “as condições que tem para estudar, para dormir, a sua saúde ou a ocupação dos seus tempos livres”. Ou seja, a avaliação que se faz da situação da pobreza entre os menores de 18 devia ser melhorada, defende. Comparando com a União Europeia, Portugal é dos países que apresenta uma menor taxa de mobilidade social de pais para filhos e dos próprios indivíduos, prossegue Amélia Bastos. Isso tem como consequência uma maior desigualdade de oportunidades em Portugal. “A fraca mobilidade alimenta o ciclo de pobreza. ” Como é que se pode resolver? “Quebrando o ciclo, dotando os meios mais desfavorecidos de desigualdade de oportunidades no sentido positivo. ”De resto, não têm existido medidas estruturais de combate à pobreza, analisa, “o que há são pensos rápidos”. “Não se resolve de um ano para o outro. E em relação à pobreza infantil ela é auto-alimentada. Sem quebrar essa auto-alimentação é difícil promover uma redução consolidada do problema. Mas é uma questão de justiça social que a todos diz respeito. ”
REFERÊNCIAS:
O luxo de António é acordar às 9h no Inverno
O trabalho agrícola “dá uma sobrevivência". "Uma sobrevivência e mais nada", diz António. No campo, os rendimentos são incertos. O dinheiro é contado. (...)

O luxo de António é acordar às 9h no Inverno
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-16 | Jornal Público
SUMÁRIO: O trabalho agrícola “dá uma sobrevivência". "Uma sobrevivência e mais nada", diz António. No campo, os rendimentos são incertos. O dinheiro é contado.
TEXTO: Esta é a última de uma série de reportagens sobre pobreza. Todo o dossier pode ser consultado em: O que é ser pobre hoje em Portugal?António Cardoso está a cortar aveia com uma roçadeira a combustão. O ruído ouve-se ao longe. Está a cortá-la para dar ao gado. Tem oito ovelhas. Antes de Abril, há-de cortá-la outra vez. Depois, há-de lavrar este pedaço de terra com vista para o Douro. No mês de Abril, costuma semear milho. Este terreno não lhe pertence. Pertence a uma vizinha que já não o pode cuidar. “Ela faz-me o favor de mo emprestar e eu faço-lhe o favor de o manter limpo, cultivado”, diz o homem, de 58 anos. “Quando peguei nisto, estava cheio de mato. ”Mora em Castelo de Paiva, no distrito de Aveiro, sub-região do Tâmega. Isto é o Douro antes de começar a região demarcada, mas aqui também se produz vinho (verde). Dedica-se ao trabalho agrícola com a mulher. Não se põe a desfiar quanto ganha aqui e acolá. Diz que o trabalho agrícola “dá uma sobrevivência”. “Uma sobrevivência e mais nada. É para comer e beber e pagar as despesas. ”Começa a pensar na “velhice” que se aproxima. A pobreza, que afecta 17, 7% dos maiores de 65 anos, é um ponto de chegada de trajectórias de vida que tem menos a ver com escolhas do que com factores de natureza estrutural. António trabalha desde pequenino. “A minha infância foi sempre a trabalhar com os meus pais na agricultura. Trabalhei com eles na agricultura até à idade de ir para a tropa. Fiz a tropa e voltei. Estive sempre ligado a este lugar. ”Trabalhou na agricultura a vida toda, mas não só. Esteve oito anos numa padaria, aqui mesmo, em Castelo de Paiva. E 20 anos numa fábrica de calçado que pertencia à Rohde, uma multinacional alemã, em Santa Maria da Feira. A unidade era enorme. Chegou a empregar umas 1300 pessoas. Parecia que ia durar para sempre. António imaginava-se a trabalhar ali até estar mais perto da idade da reforma, altura em que, então sim, se dedicaria apenas à terra. Faria uma agricultura de subsistência, como vê fazer alguns. Há uns anos, a empresa entrou nas páginas dos jornais. Aquela fábrica acumulou prejuízos entre 2006 e 2008. Houve vários lay-offs. Em Setembro de 2009, a unidade foi declarada insolvente. Em Maio de 2010, fechou as portas. António veio para casa sem indemnização. Não foi uma excepção. Os 984 trabalhadores que restavam ficaram todos credores da Rohde. As instalações foram vendidas em 2016, mas o dinheiro foi canalizado para despesas relacionadas com o processo. Quando a fábrica fechou, António repensou a vida inteira. Só completara o 6. º ano. O que é que podia fazer com aquela escolaridade, aquela experiência, aquela idade? “Já não dava para andar por aí abaixo à procura de trabalho. Tinha 49 anos. Podia aguentar mais uns cinco anitos. . . ”Delineou um projecto e apresentou-o ao Instituto de Emprego e Formação Profissional. Recebeu o subsídio de desemprego por inteiro e investiu num tractor. Ao longo dos anos, tinha comprado algumas máquinas e utensílios. Podia prestar serviços agrícolas. “O dinheiro que ganhei lá em 20 anos foi gasto nestas coisas”, afiança, olhando para a roçadeira. Cobra 15 euros por hora pelo serviço de tractor. “Há poucos pedidos”, diz. “No tempo da sementeira, há um ou outro que me chama. ” Se não aliasse isso à criação de gado e ao cultivo da terra, dele e de outros, “não dava para sobreviver”. António e a mulher trabalham uns “dois hectares e meio”, uma parte deles, outra parte de outros, que lhes emprestam a terra. Produzem azeitona, milho, batata, feijão, tomate, couves e outros legumes. “Vamos equilibrando a vida. ” Durante uma boa parte do ano, não há dinheiro a entrar no orçamento da família. Agora mesmo está a roçar um pedaço de terra no lugar de Gondarém. Olha em volta e quase só vê abandono. “Há aí uma senhora que tem uma vinha. Para equilibrar a vida dela, ajuda um senhor idoso”, conta. Parece-lhe que a agricultura está bem é para quem trabalha em grande escala. Para os pequenos agricultores, como ele e a mulher, nem por isso. “O dinheiro não é certo”, explica. “Hoje ganha-se, amanhã não. ” Ora faz muito frio, ora faz muito calor, ora chove demasiado, ora não chove o suficiente. Acontece haver incêndios que tudo devoram, como no ano passado. Ajuda ter casa própria. “Foi uma coisa que consegui no tempo em que trabalhei lá em baixo”, diz. Mesmo assim, “não dá para poupar”. “A gente tem qualquer coisa de lado para um momento mais difícil, mas isso vem de trás. ”Olha para o ganho e não vê sobra. “Não dá para dizer: vou passar umas férias à Madeira. E não é que eu não quisesse ir à Madeira. ” O dinheiro está contado. Não dá para ir ao cinema, nem ao teatro, nem para jantar fora. Pensando bem, foi uma vez de férias: “Estive acampado dois ou três dias no Gerês. ” E ao domingo dá uma voltinha com a mulher. Ela é de Arouca. Ao fim-de-semana, gosta de ir ver a família dela. Pensando mais ainda, dá-se a um luxo: “Em vez de me levantar às 8h, levanto-me às 9h agora no Inverno. ”Do princípio de Abril ao fim de Setembro é um ver se te avias. É quando ele e a mulher amealham para o resto do ano. Levanta-se muitas vezes de madrugada. Aproveita tudo o que aparece. Andou, por exemplo, a carregar as uvas de Helena Matos, a tal que tem vinhas em Gondarém. “Essa está pior do que eu”, diz ele. No mundo rural, como no mundo urbano, a pobreza afecta mais as mulheres do que os homens. A 15 de Outubro foi divulgado um estudo realizado em 17 países, incluindo Portugal e Espanha, pela empresa Corteva Agriscience, que aponta para o lento progresso no reconhecimento do trabalho agrícola das mulheres. Para lá das diferenças salariais, menos de metade sente-se valorizada. Helena tem 70 anos e trabalhou a vida inteira. “Só fiz a quarta classe”, diz. “Naquele tempo era assim. Fiquei em casa, sempre. Agarrada à família, sempre. Depois, faleceu o meu pai, faleceu a minha mãe e lá fiquei. ” Trabalhou muito. “Eu trabalhava em casa. Eu fazia costura. Eu lavrava. Eu andava com máquinas às costas. Eu fazia tudo. Eu ainda faço a poda na vinha. Vou plantar videiras na quinta-feira. Vejo videiras secas e vou lá. ”Já não faz tudo sozinha. “O senhor Cardoso vai com o tractor quando é preciso fresar a terra”, conta, referindo-se à preparação da terra para o cultivo. “Este ano, acartou-me as uvas. ” Deu pouco. Demasiado calor em Agosto. Pelas suas contas, daí virão uns 1800 euros, mas não é tudo ganho. “Nas terras gasta-se um dinheirão. ” É preciso tratar a vinha e as uvas e chamar gente. “Ninguém vai de graça. ”Não tem luxos. “Não tenho carro. Não vou de férias. ” Mesmo assim, a vinha e a pensão, “a passar dos 400 euros”, não daria para tudo. “Se fosse só para mim, ia remediando, mas não é. ” Tem em casa um irmão, divorciado, doente, desempregado aos 62 anos. Há cinco anos, um vizinho, Orlando Faria Rodrigues, pediu-lhe que olhasse pela mulher, acamada. Entretanto ela morreu. E ele pediu-lhe que continuasse a trabalhar na casa dele. E ela ficou. “Dou uma ‘arrumadelita’ à casa, cuido da roupa, faço a comida. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não é só pelo “poucochinho” que ali ganha e que lhe permite ajudar o irmão, “também é pela amizade”. Fala de Orlando com grande entusiasmo. “Boa pessoa! Para ele está sempre tudo bem. ” Já vai nos 90 anos. “Ele ainda conduz. Ele tem uns terrenos à beira do rio. Ele ajuda-me e eu ajudo-o. ” Enquanto Helena conta isto, Orlando está na rua a serrar lenha, com uma pequena motosserra. Quando ele acaba, entra em casa, contente. Estão sempre a mexer. Produzem os seus próprios legumes. De uma janela avista-se uma parcela de terreno com couves, favas, batatas. E têm cuidado com o que levam à boca. “Ele não come salgado. Não abusa. Sopinha ao meio-dia e à noite por cima da outra comida. ” Se for preciso, têm centro de saúde a uns minutos e hospital a uma hora. “É ir vivendo. ”O número de pensionistas por velhice não pára de crescer, ultrapassado já os dois milhões. Em Outubro, 8, 19% recebiam o complemento solidário para idosos (CSI), medida pensada no tempo de José Sócrates para combater a pobreza. A pobreza em idade avançada será o resultado de um percurso de vida no qual se conjugam diversos factores. Num artigo sobre o tema, Alexandra Lopes, professora da Universidade do Porto especializada em envelhecimento, dá destaque ao estado de saúde, às redes sociais e às trajectórias laborais. O sistema da Segurança Social é financiado pelas contribuições dos trabalhadores. Quem desconta mais tem mais protecção. Há quem receba pensão sem nunca ter descontado ou, pelo menos, sem ter descontado tempo suficiente. Esse foi o modo encontrado pelo país para resolver o problema de quem já tinha muita idade quando o sistema foi criado e para ir amparando outros. As prestações sociais não contributivas — como o CSI — atenuam a desigualdade. De acordo com os últimos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, a pobreza aflige 17, 7% dos maiores de 65 anos. Há uma parcela muito significativa muito sensível a qualquer oscilação da linha de pobreza, nota Carlos Farinha Rodrigues, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. A linha é relativa. Representa 60% do rendimento mediano. Quando o empobrecimento é generalizado, baixa. “Durante a crise, dada a quebra de rendimentos, desceu e alguns ficaram um bocadinho acima: agora, com o aumento dos rendimentos, a linha de pobreza subiu e eles passaram a ficar abaixo. ”Veja-se o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Durante a crise, houve uma manutenção dos valores da generalidade das pensões e uma diminuição das prestações sociais não contributivas. Agora, está a acontecer o contrário — tanto umas como outras têm estado a aumentar. “Eventualmente, temos de actualizar algumas medidas de combate à pobreza, como o complemento solidário para idosos (CSI)”, avisa Farinha Rodrigues. O programa foi criado precisamente para puxar idosos para cima da linha da pobreza. No princípio, em 2006, destinava-se apenas a maiores de 80 anos. Depois, em 2007, abarcou os maiores de 70. Por fim, desde 2008, os maiores de 65. À medida que o CSI avançava, a taxa de pobreza entre idosos ia baixando. A taxa de risco de pobreza entre idosos caiu de 28% para 20%, entre 2005 e 2009. A tendência alterou-se com os três planos de ajustamento e uma intervenção externa. Em 2013, o valor de referência do CSI passou de 5022 euros para 4909 euros/ano, o que excluiu milhares de idosos da prestação e diminuiu o montante recebido por cada um. À medida que os processos foram sendo revistos, foi-se verificando uma subida da taxa de pobreza naquela faixa etária. Em 2015, o Governo aumentou o valor de referência do CSI. Fê-lo em 2016 e em 2017. No ano passado, porém, aquela prestação ainda estava 10% abaixo do limiar da pobreza, sublinha Farinha Rodrigues. Este ano, tornou a haver nova actualização do valor de referência do CSI para 5175, 82 euros. No próximo ano, o valor deverá voltar a ser actualizado. E o direito a esta prestação será alargado aos pensionistas por invalidez que vivam em situação de carência económica.
REFERÊNCIAS:
No encalço dos guerrilheiros antifranquistas
Projecto sobre resistência às ditaduras ibéricas e solidariedade na fronteira escavou casa bombardeada na aldeia de Cambedo, em Chaves, em 1946. Essas ruínas e pelo menos dois esconderijos de guerrilheiros farão parte de um novo percurso pedestre (...)

No encalço dos guerrilheiros antifranquistas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Projecto sobre resistência às ditaduras ibéricas e solidariedade na fronteira escavou casa bombardeada na aldeia de Cambedo, em Chaves, em 1946. Essas ruínas e pelo menos dois esconderijos de guerrilheiros farão parte de um novo percurso pedestre
TEXTO: Licínio Inocentes vai à frente. Salta como um cabrito, apesar dos seus 68 anos. Abre caminho entre arbustos – giesta, carqueja, tojo, urze. Subindo a encosta, filões de quartzo entre maciços de granito. Lá em cima, numa sobreposição de pedras, escondiam-se guerrilheiros antifranquistas. Os arqueólogos que o seguem marcam as coordenadas do esconderijo, que há-de fazer parte de uma rota pedestre com pontos relacionados com a guerrilha. Pelo menos um outro esconderijo terá igual destino, garantirá um dirigente da Associação Cultural de Vilarelho da Raia, Carlos Silva, sempre animado com a ideia de valorizar o passado recente. "Já tem financiamento aprovado", dirá. O ponto que estão a marcar corresponde ao Lugar das Chóias, na Serra do Mourico, na freguesia de Vilarelho da Raia, no concelho de Chaves, nos confins de Trás-os-Montes. Para um lado, fica a aldeia de Cambedo, Portugal. Para outro, a aldeia d’As Casas dos Montes, Espanha. “Vir com o senhor Licínio é ter outra forma de olhar para a paisagem”, elogia Rui Gomes Coelho, um dos directores do projecto de arqueologia sobre a resistência às ditaduras ibéricas e a solidariedade na fronteira entre a Galiza e Trás-os-Montes. “Ele reconhece os lugares, sabe o que estava aqui, o que estava ali, reconhece a fronteira. ”Por aqui, em meados do século XIX ainda não estava claro onde começava (ou acabava) Portugal ou Espanha. A linha invisível atravessava terrenos, ruas e casas nas aldeias de Soutelinho da Raia, Cambedo e Lamadarcos, os chamados “pobos promíscuos”. Diz-se que se podia entrar numa casa por uma porta que ficava em Espanha e sair por outra que ficava em Portugal. Só no dia 29 de Setembro de 1864 se fixaram as fronteiras vigentes. E isso não pôs fim ao vaivém. Persistiram as trocas, as romarias, os amores. “A maior parte das pessoas fazia a mesma vida”, encolhe-se Licínio Inocentes. Era quase como agora que não há fronteira e ele vai ao outro lado comprar presunto, só que isso seria contrabando. “Aquilo só apareceu no papel. A maior parte das pessoas nem sabia ler!”Manteve-se uma rede social pronta para ser activada em caso de necessidade. E isso viu-se quando eclodiu a guerra civil espanhola, em 1936. A aldeia, que se avista desta serra, tornou-se num ponto de apoio ou de passagem de um número indeterminado de “fuxidos”. Muitos só queriam embarcar para a América do Sul. Os que tinham menos meios, sobretudo os oriundos das aldeias fronteiriças, tendiam a abrigar-se perto. O fim da guerra civil – que opunha os republicanos, progressistas, aliados aos anarquistas e aos comunistas, e os nacionalistas, apoiados por grupos conservadores, incluindo os falangistas, liderados pelo general Francisco Franco – não foi o fim das perseguições, das torturas, dos fuzilamentos. E nos montes multiplicaram-se as “partidas”, isto é, os grupos que procuravam resistir. A explorar um dos seus velhos esconderijos encontra-se agora Rui Gomes Coelho, que está a fazer pós-doutoramento na Rutgers University, nos Estados Unidos. E Márcia Hattoori, que tem estudado a ditadura militar no Brasil. E Carlos Otero, especialista em métodos de detecção geofísica. Lá em baixo, na aldeia, ficou Xurxo Ayán Vila, arqueólogo galego que dirige o projecto de arqueologia comunitária do Castro de San Lorenzo, em Monforte de Lemos, em Lugo, Espanha. E o luso-espanhol Rodrigo Paulos, ainda a dar os primeiros passos no estudo das culturas e dos modos de vida de outrora. Chegaram no dia 12 de Agosto decididos a ficar até ao dia 19. “Está ali um murozito”, aponta Licínio Inocentes. “Era onde um homem do Cambedo lhes vinha fazer a barba. ” Conheceu-o bem. “Ele faleceu há dois anos. Dizia que lhe mandavam recado e que vinha por aí acima. ”Quando Licínio Inocentes nasceu já nem um guerrilheiro se via por aqui, mas toda a vida ouviu contar histórias. O avô era da Guarda Fiscal e trabalhava aqui. Encheu-se de curiosidade quando viu o grupo de arqueólogos a escavar uma das casas bombardeadas – a que nunca foi recuperada. Presidente da junta de freguesia duas vezes, sempre se interessou pela vida da comunidade. Meteu conversa. E voluntariou-se para lhes mostrar esconderijos. “São pessoas que têm capacidade para analisar a situação e capacidade para divulgar”, diz. Fala com entusiasmo dos mais célebres guerrilheiros que por aqui andaram: Demétrio Garcia Álvarez e Juan Salgado Ribero (ou Rivera). É como se fossem personagens de um filme de acção. Demétrio nasceu na aldeia de Chãs, a menos de meia dúzia de quilómetros daqui. E tinha uma irmã, Manuela, casada aqui (com Manuel Bárcea, conhecido como “Mestre”). Era agricultor e correu à pedrada um falangista que atacou homens que andavam com ele na poda. Na prisão, ganhou consciência política. Juan nasceu d’As Casas dos Montes. Tocador de cornetim, tantas vezes animou as festas do Cambedo e das povoações vizinhas. Reza a lenda que fazia suspirar muitas mulheres. Já a imprensa da época atribui-lhe especial crueldade e pontaria. Eram discretos, os guerrilheiros. Contavam com a solidariedade própria das sociedades tradicionais. Camponeses, mineiros, operários, pescadores, trabalhavam na agricultura, no contrabando e, nos anos da Segunda Guerra, na extracção de volfrâmio. De quando em quando, protagonizavam incursões em Espanha. Em 1946 cometeram o erro de actuar em território português. No dia 16 de Setembro, Demétrio, Juan e outros deslocaram-se à aldeia de Negrões, no concelho de Montalegre, e executaram um homem que teria entregado um médico “fuxido” à Guarda Civil espanhola. Nesta operação, foram também mortos um “criado” de um “aldeão”. Na sequência de tal vendetta, diversas pessoas foram presas. Apertou-se a vigilância nas fronteiras. Multiplicaram-se as notícias “plantadas” contra os guerrilheiros, retratados como “bandoleiros”, “malfeitores”. No dia 29 de Outubro, encenou-se até um assalto à carreira Braga-Chaves. A poucos dias do Natal, as autoridades portuguesas, consertadas com as espanholas, montaram uma mega operação de busca aos “rojos”. Na madrugada do dia 20 de Dezembro, 200 guardas avançaram para as aldeias de Nantes, Mosteiró de Cima, Sanfins de Castanheira, Sanjurge, Couto e Cambedo. Ainda hoje, o Cambedo é quase só uma rua ladeada por casas de granito. Naquela altura, era menos e albergava mais gente (umas 300 pessoas – sem água corrente, sem electricidade, a deslocar-se a pé, de burro ou a cavalo). Na alvorada, os guardas cercaram a aldeia. Tudo apontava para a casa do cunhado de Demétrio, o “Mestre”, para outras duas ligadas a essa, a da irmã dele, Adelaide Teixeira, e a de uma prima, Albertina Tiago. E para uma situada mesmo em frente, a da prima Clementina, casada com Silvino Espírito Santo. Os primeiros tiros ouviram-se um pouco abaixo, nas imediações da casa de dona Engrácia Gonçalves. Era Juan. Manuel Guerra tinha 12 anos e, numa conversa na rua, resumiu assim o que aconteceu: “De manhã, quando foi para sair, viu a GNR encostada às paredes. E então foi-se preparar. Pegou na arma, abriu a porta. Conforme a GNR estava encosta às paredes, mandou uma rajada. Atirou só para abrir caminho, para fugir. Saltou para um carreiro que havia ali. Meteu pelo carreiro até ao ribeiro. Meteu pelo ribeiro até fronteira. Quando se aproximou, estavam lá os guardas espanhóis, a Guardia Civil. Começaram a fazer fogo contra ele. Ele regressa. Conforme [a guarda] o viu vir, matou-o. ”Silvina Feijó, então com dez anos, estava a atirar migalhas de pão às galinhas e apanhou uma bala perdida. O marido, Elói, nem quer falar nisso. “Há 74 anos que isso foi! Já vieram 50 equipas!”, resmungou ao ser interpelado à porta de casa. “Porque não vieram mais cedo? Isso já é velho”, insurge-se, acusando cansaço. Há uma dúzia de anos, a mulher teve dois acidentes vasculares cerebrais. Por volta das 11h, os guardas desataram a revistar as casas. Os registos policiais indicam que dois foram mortos no pátio de dona Albertina Tiago, cuja casa, nunca reconstruída, está agora a ser escavada pelos arqueólogos. Terá sido Demétrio ou Bernardino Garcia, que haviam de resistir ainda mais um dia e meio. Começaram a chegar reforços. Primeiro, guardas que tinham ido para outras aldeias. Mais tarde, um destacamento da PSP do Porto. E uma secção de morteiros do Exército vinda de Chaves. “Eu tinha dois anos e meio e é uma coisa que me ficou gravada”, contou Aurinda Feijó. “Estava lá no cimo da aldeia. Havia uma casa de comércio. Eu estava amouchadinha e via chegar os guardas aos grupos com as armas às costas. As pessoas diziam: ‘Ai que vem mais pelo Lagar Velho abaixo e vão matar aqui a todos. ’ Nunca me esqueceu isso. Com dois anos e meio!”Queriam incendiar um palheiro situado atrás das três casas comunicantes. De lá zuniam tiros. Lá estariam escondidos os guerrilheiros. Ainda incendiaram algumas medas. Durante toda a noite, trocam-se tiros por ali. Já no dia 21, ordem para evacuar as casas perto do alvo. E disparos de morteiro. “A gente estava atemorizada”, admitiu Manuel Guerra, naquela conversa de fim de dia. “A gente estava com medo que queimassem as casas. ” Trataram muitos de salvar os animais. “Eu tinha uma égua e agarrei nela e fui lá para a última casa da aldeia. ”“O meu marido é mais velho e sentiu tudo na pele”, afirmou Aurinda Feijó, sentada nas escadas que dão para a Rua Central, de olhos postos nos arqueólogos que continuavam a trabalhar na ruína situada mesmo em frente. O marido, Arlindo Espírito Santo, mantém-se dentro de casa, sentado numa poltrona. Durante a guerra civil, o pai de Arlindo comandava a Guarda Fiscal e bem via passar por ali muita gente, mas fazia de conta que não. No dia do bombardeamento, estava ele já reformado, a sua casa foi uma das mais atingidas. Arlindo tinha 16 anos. Lembra-se de fugir pela aldeia abaixo. Primeiro, refugiou-se numa casa. Depois, nos lameiros. Por fim, na ponte de madeira. O pai foi preso, bem como a tia Albertina e um irmão. Mais tarde, a mãe, sob suspeita de auxiliarem os guerrilheiros. Já pouco fala nestas coisas, Arlindo. “Já estou cansado”, disse o homem de 89 anos, estirado na poltrona. Sempre quis esquecer aqueles dias. E nunca esqueceu. Muita gente quis esquecer. Naqueles dias, foram detidas 63 pessoas. Só ali, na aldeia, foram 18 sob suspeita de cumplicidade. Ninguém expiou pena maior do que Demétrio: 19 anos de reclusão, alguns dos quais no Tarrafal. Bernardo Garcia, que estava com ele, e mais quis suicidar-se do que entregar-se. A mesma lógica repressiva foi aplicada noutros pontos. E a guerrilha extinguiu-se. “A partir do momento em que não há uma base de apoio que a sustenta, ela deixa de existir”, resume Rui Gomes Coelho. As consequências perduraram. Sobre isso Licínio Inocentes pode falar na primeira pessoa. “Procuraram pôr estas pessoas dentro de um recipiente em que só cabiam comunistas. Eram vistos como gente esquisita, que convivia com assaltantes, com malfeitores, com isto, com aquilo. Então, houve um afastamento deste povo em relação aos portugueses. Convivíamos mais com os galegos. ”A esse propósito, ocorre-lhe uma história dos seus 19 anos. “Arranjei uma namorada em Feiões, uma aldeia que há do outro lado do rio, em frente a Chaves. Namorávamos para aí há um mês, ela fazia anos, eu fui buscá-la para lanchar. Uma senhora viu. Mais tarde vim a saber que lhe disse: ‘Com quem andas metida, rapariga, com esses vermelhos do Cambedo, essa gente é do diabo!’ Meteu-se de tal forma com a rapariga que ela nunca mais me apareceu!”Durante a ditadura salazarista, a história foi enterrada na memória da aldeia. Só no final dos anos 1980 tornou a emergir, com um artigo publicado pelo Jornal de Notícias. Num primeiro trabalho que desenvolveu, entre 1986 e 1987, a antropóloga Paula Godinho ouviu falar na história. Manuela, a irmã de Demétrio, perdeu um filho de um ano enquanto aguardava julgamento na prisão. Já em 1993, o Centro Cultural de Vilarelho da Raia, com a colaboração de universidades espanholas e portuguesas, organizou um congresso sobre a guerrilha antifranquista. Paula Godinho regressou ao terreno, vasculhou arquivos e produziu diversos trabalhos científicos, que atraíram cientistas, jornalistas e documentaristas. O Silêncio é o título do documentário realizado por António Loja Neves e por José Alves Pereira. “A nossa vinda tem que ver com essa tradição académica, mas também com o contexto actual”, explica Rui Gomes Coelho. “A arqueologia contemporânea é uma disciplina da arqueologia que procura ser um campo de intervenção política e social. Serve-se das ferramentas e das metodologias da arqueologia para revelar histórias que muitas vezes são incómodas, mas que enriquecem o ponto de vista social e político”, salienta. “Nós estamos convencidos de que este pode ser um exemplo fenomenal de ética da solidariedade e da hospitalidade. ”A casa de Ernestina Tiago colapsou e ali ficou, a servir de reservatório de lixo. Tiradas as diferentes camadas, arqueólogos encontraram, desde logo, alguma continuidade temporal. “Isto é como escavar uma cabana castreja, porque é uma arquitectura em granito, o solo está feito directamente na rocha”, diz Xurxo Ayán Vila. “Esta gente, em 1946, vivia igual ao que vivia numa cabana há dois mil anos. ”Está espantado. “Uma família morava nesta casa e a sua casa converteu-se de um dia para o outro num campo e batalha militar”, realça. “Militares colocam os morteiros e bombardeiam o centro de uma aldeia. Tens de ter muita pontaria para atingir um alvo concreto. Não lhes importava que houvesse pessoas inocentes. Isto é impressionante. É uma maneira de extermínio puro e duro!”Encontraram vestígios do incêndio no chão, estilhaços de granadas, um berlinde e uma tigela com decoração infantil. “É um testemunho pungente da brutalidade que ali aconteceu em 1946”, corrobora Rui Gomes Coelho. “Tocar estes objectos é uma forma muito perturbadora de testemunhar os eventos. ”As escavações abrem também uma brecha para a vida dos anos 1940: a família morava em cima e os animais em baixo. Resistem ossadas, ferraduras, parte de uma antiga balança romana usada para pesar porcos, malgas tradicionais (semelhantes às que se usavam há dois mil anos). E restos de uma cerâmica mais fina. Num desses pedaços ainda se percebe a imagem da Torre de Belém, “um dos símbolos da pátria”. E isso leva Rui Gomes Coelho a falar num “sentimento de autonomia que se mantém, sempre se transformando", e de uma pátria "que não é construída com a criação do Estado Nação – isso só vai acontecer a partir dos anos 1940 e isto é a materialidade deste processo”. Têm escavado uma casa em Repil, em Monforte de Lemos, no sul da província de Lugo, que foi bombardeada pela Guarda Civil espanhola. Começaram em 2016, como parte do projecto de arqueologia contemporânea que Xurxo desenvolve na sua terra natal. E agora várias escolas levam alunos a ver essa casa. Um descendente da família que vivia nessa casa colocou uma placa de homenagem aos guerrilheiros e uma bandeira republicana. Conta Rui Gomes Coelho que a placa já foi vandalizada várias vezes e que a bandeira republicava foi roubada. “É um lugar de memórias muito contestadas, mas o projecto assume a educação cívica como uma das suas premissas e é nesse sentido que se acolhem visitantes. As actividades passam por recriar o trajecto da fuga do único guerrilheiro sobrevivente, que é uma caminhada até à aldeia em que se fala da guerrilha e da resistência ao franquismo. ”Que acontecerá, agora, na aldeia de Cambedo? Os 50 anos dos bombardeamentos foram assinalados, por iniciativa de galegos, com uma placa: "Em lembranza do voso sufrimento. 1946-1996". Quem for à procura de vestígios, encontrá-los-á assinalados. E, em breve, um percurso pedestre com vários pontos de interesse, incluindo a casa bombardeada e pelo menos dois abrigos (os arqueólogos identificaram quatro, três dos quais com a ajuda de Licínio Inocentes, mas três são de difícil acesso). Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. No sábado à noite, dia 18 de Agosto, no Cambedo, e no domingo de manhã, 19, no centro de Vilarelho da Raia, a equipa apresentou os resultados dos trabalhos e perguntou aos presentes o que desejavam que fosse feito no futuro. Alguns manifestaram o desejo de ver mais trabalhos arqueológicos, de trabalhar os recursos culturais para atrair visitantes e gerar recursos. “Nós entendemos que a arqueologia só faz sentido se for feita com e para a comunidade”, comenta Rui Gomes Coelho. “No Cambedo, tal como em Repil, há valores na comunidade que se relacionam com a nossa maneira de estar na vida e de ver o mundo. É por isso que temos insistido na ideia de Cambedo e da atitude da comunidade em 1946 como um exemplo a seguir na sociedade contemporânea, e é nesse sentido que decidimos propor o nosso contributo. ”Vão voltar? “Ainda não sabemos”, responde. A intervenção está enquadrada num Projecto de Investigação Plurianual de Arqueologia aprovado pelo Ministério da Cultura. “Temos previsto voltar no próximo Verão, mas isso depende do financiamento. Gostaríamos de trazer uma equipa mais alargada, que incluísse estudantes de arqueologia, antropologia e artistas, para trabalhar com a comunidade. Neste momento, não há apoio garantido”, remata. Uma coisa é certa: vão “incluir o trabalho num volume especial da revista académica Historical Archeology sobre as guerrilhas na Europa no século XX”.
REFERÊNCIAS:
A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu. (...)

A conquista das palavras na Argentina pós-referendo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um dos rostos pela despenalização do aborto na Argentina, a escritora Claudia Piñeiro fala-nos da luta que entregou a palavra às pessoas. Aberto o espaço para conversas que finalmente se podem ter, a sociedade argentina não será a mesma depois da queda deste tabu.
TEXTO: Para a argentina Claudia Piñeiro, não apenas como escritora mas também no plano pessoal, este “foi um ano de pensar muitíssimo nas palavras que se usam, como se nomeiam as coisas e que palavras são escolhidas”. E uma causa, em particular, motivou essa reflexão da autora do romance Uma pequena sorte (D. Quixote): o debate sobre o aborto na Argentina, no qual Claudia Piñeiro participou activamente, tomando a palavra em discursos em ambas as câmaras do Congresso. E se, no plano político, a batalha foi perdida com o chumbo do Senado argentino, o debate na sociedade argentina ainda agora começou, já que uma barreira, talvez das mais importantes, foi deitada abaixo: “uma grande mudança, que foi muito importante, tem que ver com o segredo”, explica ao PÚBLICO a escritora, que esteve recentemente em Portugal a lançar o seu livro. Era algo que não se dizia, que não se nomeava. E se agora a palavra é dita sem tabu, no início da discussão ainda se falava com cuidado na “lei da interrupção voluntária da gravidez”. “Na minha família, temos uma tia-avó de 90 anos que nos contou que, há muitos anos, fez um aborto”, confidencia. Agora, já há conversas familiares “onde uma mãe, uma filha, uma tia dizem que fizeram um aborto”. Pode-se conversar sobre isso. No entanto, muitas destas mulheres viveram esta experiência numa profunda solidão. “Guardaram isto dentro de si, sem poder falar com ninguém, com medo de serem rejeitadas por tê-lo feito. Tudo isto foi muito reparador para a sociedade. ”Durante o seu percurso ao longo deste ano de luta, Claudia Piñeiro, 58 anos, leitora ávida e uma “recomendadora” generosa, leu “muitos livros, alguns relacionados com isto [sobre aborto], outros não”. Entre eles, destaca El salvaje, de Guillermo Arriaga, e República Luminosa, de Andrés Barba (editado em Portugal pela Elsinore), mas dedica mais recomendações a escritoras argentinas. Selva Almada, autora de Raparigas Mortas (ed. D. Quixote), que reflecte sobre a violência de género, ou Mariana Enriquez, autora de As Coisas Que Perdemos no Fogo (editora Quetzal), que escreve contos de terror “extraordinários, muito bons”. Não as nomeia porque têm “algum toque feminino” — apesar de “poder haver também terror no feminino, pode haver abismo, pode haver suspense, pode haver policial” —, mas porque essas vozes, afirma, “têm uma potência que lhes vem a partir da literatura”. Fala ainda de Samanta Schweblin, autora de Distância de Segurança ou Pássaros na Boca (editados pela Elsinore) e do seu olhar a partir do fantástico que é também “um mundo feminino”, com “um olhar sobre a não-maternidade”, ou Mariana Dimópulos, com o seu livro sobre uma mulher que não quer ser mãe. “Há mulheres que não querem ser mães, e a sociedade não lhes aceita essa decisão de não-maternidade”, lamenta. Também no seu romance, Uma Pequena Sorte, a protagonista é uma mãe que só mais tarde se pergunta porque é que foi mãe. “Porque também há muitas mulheres que chegam à maternidade sem que se lhes tenha sido perguntado se era o que queriam”, diz, “é um papel imposto pela sociedade”. Mais uma vez, regressamos às ideias que finalmente se podem nomear, como um véu que é retirado. “Era uma vergonha dizer que não queria ser mãe. ”Escritora consagrada — Claudia Piñeiro recebeu o Prémio Clarín Novel de 2005 pelo romance As Viúvas das Quintas-feiras (ed. Quidnovi), com elogios rasgados de José Saramago no júri —, a questão do aborto foi um tema que sempre a inquietou, e não ficou de fora dos livros. Foi também através da literatura que tentou tocar outras pessoas no último ano. “Por exemplo, quando fiz o discurso aos deputados, levei o livro de John Irving [As Regras da Casa da Sidra], porque achei que era mais fácil explicar com a literatura do que com um conceito fechado”. Conta que nunca pertenceu a nenhuma organização feminista. “As circunstâncias foram-me colocando nesse lugar [de protagonismo]”, explica, já que “nem todos queriam falar sobre isto”. Mas a reivindicação dos seus direitos enquanto mulher vem de longe. “Venho de uma geração que tem vindo a lutar por estes espaços há muito tempo. Sou economista, tive o melhor currículo da universidade, medalha de honra. Os homens que entraram comigo não eram melhores. Eram homens que eram bons contabilistas e economistas, mas às mulheres era-lhes exigido serem as melhores”, recorda. A sociedade argentina tem sentido outras mudanças nos últimos anos. Ainda antes de as actrizes norte-americanas tornarem visível a campanha Me Too, desde 2015 que as argentinas têm saído às ruas para gritar “Ni Una Menos”. “Às vezes a violência está enraizada e a aceitamo-la porque pensamos que é normal. É normal que te tratem mal, que te digam certas coisas, que te empurrem contra alguma coisa, que te toquem na rua. ” Mas mais do que o assédio, a reacção à violência de género na Argentina começou devido aos “muitos casos de mortes de mulheres por serem mulheres, que chamamos femicídios”. “Quando um país está a lutar para que não se matem mulheres, o MeToo, que é muito valioso e que é muito importante, deixa de ser tão importante, porque há uma urgência maior. E a realidade é que as mulheres europeias têm urgências muito diferentes das das mulheres da América Latina, de África, do Médio Oriente. ”Para Claudia Piñeiro, a luta feminista — que tem unido mulheres e homens — não se esgota na derrota no Senado. “Todo esse movimento é imparável, e é das jovens. Nós, mulheres mais velhas, acompanhamo-las com tudo o que podemos, mas não temos dúvidas de que será um movimento delas. E não acho que haja volta atrás. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Num ano de trabalho político intenso, Claudia Piñeiro escreveu vários artigos para a imprensa, incluindo para órgãos de informação estrangeiros que lhe pediam um olhar sobre o que se passava na Argentina. Mas, no campo literário, aproveitou para rever e reescrever uma série de contos — algo que lhe exigia menos do que escrever um novo romance —, uma colectânea que foi recentemente lançada na Argentina. “O novo romance já está na minha cabeça, mas ainda não tive tempo e a tranquilidade para iniciá-lo. Preciso de tranquilidade no arranque, algo que não me aconteceu neste último ano”. No novo livro de contos, Quién No (Penguin Random House), um dos textos é sobre um casal que está “a decidir se vai fazer ou não um aborto”. Mas como foi escrito há cerca de oito anos, a palavra não é mencionada uma única vez. “Quando escrevi este conto, essa palavra estava quase proscrita. Se o escrevesse hoje, teria usado a palavra aborto. Porque hoje já há um nome que se pode usar. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave aborto direitos homens filha lei violência campo mulher medo género mulheres feminista vergonha assédio
Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina. (...)

Um baile culinário para celebrar a batata-doce de Aljezur
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.175
DATA: 2018-12-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: Receitas da Índia e de África, música por uma orquestra em estreia e muita dança: Madalena Victorino e Giacomo Scalisi a Lavrar o Mar na costa vicentina.
TEXTO: “Gostaram mesmo? A sério?”. Ângela Rosa está incrédula, apesar de ter acabado de ver à sua frente dezenas de pessoas a dançar e a cantar, aos pulos, braços no ar, pernas imparáveis. A estreia da Orquestra Vicentina, na primeira noite do “baile culinário” Dancing, integrado no Festival da Batata Doce de Aljezur?, foi um sucesso. Por volta das sete da noite já muita gente se juntava à porta da sede do Rancho Folclórico do Rogil, tentando abrigar-se da chuva. À hora marcada, a porta abre-se e Madalena Victorino e Giacomo Scalisi, os directores artísticos do espectáculo (e de outros do projecto Lavrar o Mar, que faz parte do programa 365 Algarve), recebem-nos, convidando-nos a passar primeiro pela casa-de-banho para lavarmos as mãos e assim podermos comer os pratos de batata-doce que vão ser servidos (sem talheres) ao longo da noite. Atravessamos um estrado de madeira que, explicará depois Madalena Victorino, é o mesmo que o rancho folclórico usa para os seus ensaios – é sobre ele que iremos dançar. No salão principal, à meia-luz, há várias mesas postas com pratos e copos de diferentes proveniências e jarras improvisadas a partir de velhas garrafas de refrigerantes como a icónica e barriguda garrafa da Laranjina C. Partilhamos uma mesa para quatro com um casal da Arrifana, um pescador e a sua mulher, aos quais Giacomo e Madalena costumavam comprar peixe (o rascaço era o preferido, para a sopa de peixe, confidencia-nos o pescador) quando eles o vendiam no mercado local. O público junta portugueses e um número bastante considerável de estrangeiros que vivem na Costa Vicentina. Serão estes os primeiros a saltar para o estrado e a começar a dançar quando a orquestra se lança a tocar – e serão eles os que, ao fim da noite, pulam de pés descalços sobre as tábuas de madeira. Garantindo que todos entendem o que se vai passar, a actriz Lucília Raimundo, que será a anfitriã do espectáculo, fala em português e inglês para apresentar, ao longo da noite, as três cozinheiras – a indiana Shail Lall, a eritreia Nighist Kahsay e a moçambicana Ana Paula Henriques – que vão explicar os pratos feitos a partir de receitas tradicionais dos seus países mas integrando a famosa batata-doce de Aljezur?. Afinal, a batata-doce é a rainha da festa e o que se vai fazer durante as três horas e meia de espectáculo é, basicamente, comer e dançar. O grande mérito de Madalena e Giacomo (também responsáveis pelo Festival Todos – Caminhada de Culturas, que acontece anualmente em Lisboa no mês de Setembro) é saber reunir pessoas e dar-lhes espaço para que cada uma delas mostre o que sabe fazer melhor. Titi (Nighist Kahsay), a cozinheira da Eritreia, é precisamente alguém que eles conheceram durante o Todos e que convidaram para estar aqui. Outro cúmplice que no final lhes agradecia emocionado era Júnior (André Duarte, co-fundador dos Terrakota), o mentor da Orquestra Vicentina, que, tal como Ângela Rosa, mal parece acreditar que um grupo que conseguiu reunir em poucas semanas e que em apenas um mês e meio se preparou para este espectáculo (o que incluiu fazer arranjos para músicas compostas pelos próprios) estava a ter uma recepção tão entusiástica. Ângela, que vive em Tavira, é, juntamente com a caribenha Arantxa Joseph e com a israelita Daphna Givon, uma das três vocalistas do grupo, que integra ainda Hugo Fontainhas na bateria, Bruno Martins no baixo, António Mandala na percussão, Steve Nóbrega no teclado, Júnior na guitarra, Ricardo Pires nos arranjos e saxofone, Afonso Alves no saxofone e Luís Barbosa no trompete. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os bailarinos (Ana Root, Carolina Carloto, Marta Jardim, Miguel Nogueira, Laura Abel, Raquel Santos e Susana Vilar) serviam às mesas, trazendo as travessas com chamuças de batata-doce, ingera (pão etíope, semelhante a uma panqueca) e guisado de lentilhas e carne e ainda um caril moçambicano feito com amendoim, outro dos produtos de excelência da região de Aljezur?. O vinho era também local e quem quisesse mais do que o copo incluído na refeição podia comprar uma garrafa. Ao todo, o espectáculo Dancing fará quatro apresentações (termina no domingo), sendo as duas primeiras (aquela a que assistimos na quinta-feira e a desta sexta-feira) com a Orquestra Vicentina e as duas últimas (sábado e domingo) com os Fogo Fogo, que trazem os sons de Cabo Verde e prometem fazer justiça à descrição de “a banda mais quente do pedaço”. O programa 365 Algarve, que vai na sua terceira edição, decorre ao longo de oito meses, de Outubro até Maio, preenchendo com programação cultural a época baixa na região. Inclui, entre muitas outras iniciativas, passeios performativos no património, o ciclo Jazz nas Adegas (24 apresentações, com concerto e provas de vinho), visitas históricas encenadas, ou o Vídeo Lucem, uma iniciativa do Cineclube de Faro, que vai também na terceira edição e que desta vez apresenta filmes parcialmente perdidos ou inacabados, em locais especiais como o antigo armazém da Conserveira do Sul, em Olhão, e com músicos a acompanhá-los ao vivo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave mulher rainha carne
Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal. (...)

Quem é Lucia Berlin? Uma autora que não mente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Narrou a tragédia humana com sentido de dignidade, como se cada texto seguisse o real sem ligar à literatura. Lucia Berlin escreveu assim e morreu em 2004 sem sair da sombra. Foi uma nómada na América. O conjunto dos seus contos foi publicado no Verão de 2015 e está quase a chegar a Portugal.
TEXTO: Não há sentidos nem emoções em sossego quando se lê Lucia Berlin. A escritora Lydia Davis disse que a obra dessa mulher de olhos azuis, quase sempre de cigarro na mão, tem a capacidade de fazer o leitor “usar o cérebro” e pô-lo a sentir os “batimentos cardíacos”. Mesmo assim Lucia Berlin nunca saiu da sombra enquanto viveu. Nasceu a 12 de Novembro de 1936 e precisamente no mesmo dia, 68 anos depois, vítima de cancro no pulmão, junto dos seus filhos, em Marina del Rey, perto de Los Angeles, e depois de algum tempo a viver num parque de caravanas no Colorado. Foi professora de escrita criativa, mas antes também foi empregada de limpeza, recepcionista, assistente hospitalar. Escreveu contos sobre o que há de mais devastador, usando um humor desarmante, rindo com enorme delicadeza – e por vezes crueza – da tragédia que atravessou a sua vida. As suas histórias são povoadas por pessoas à margem, excluídos, gente na linha da sobrevivência social, económica, clínica, moral de afecto; dependentes de álcool e droga, excêntricos, frágeis. Histórias talvez demasiado pesadas para serem suportáveis não fosse o tom em que são contadas e que contrasta com a densidade do seu conteúdo. Não é tudo. Falta o mais inquietante. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papel. “Exagero muito e misturo a realidade com a ficção, mas, na verdade, nunca minto”, escreve a narradora de uma das suas histórias, Silêncio, sumário de uma existência que é autobiográfica, faltando apenas saber – e é parte do jogo da ficção – exactamente até que ponto. “Eu tentava esconder-me quando o Avô estava bêbado, porque ele apanhava-me e baloiçava-me. Estava a fazê-lo uma vez, na cadeira de baloiço grande, a agarrar-me com força, com a cadeira a levantar do chão a poucos centímetros do fogão em brasa, com a coisa dele a enfiar-se e a enfiar-se no meu rabo. Ele estava a cantar ‘Ol Tin Pan with a Hole in the Bottom. Alto. A arfar e a grunhir. Ali, a poucos metros, a Mamie estava sentada a ler a Bíblia quando eu gritei ‘Mamie! Ajuda-me!’ O Tio John apareceu, bêbado e empoeirado. Arrancou-me do Avô, levantou o velho pela camisa. Disse que o matava com as próprias mãos da próxima vez. Depois fechou a Bíblia da Mamie com força. ” Pouco antes desta descrição, o leitor fora avisado sobre a premissa da narradora, que se pressente ser também a da escritora: “Não me importo de contar coisas horríveis se conseguir torná-las engraçadas. ”Tudo é acção, tumulto, respiração a todos os ritmos na escrita desta mulher nómada que morreu demasiado longe do lugar onde merecia estar quando se fala de literatura. Publicou seis livros de contos entre a década de 70 e o final dos anos 90 e com isso conseguiu chamar a atenção de Lydia Davis e de Saul Bellow. Davis conheceu-a no inicio dos anos 80, trocou correspondência com ela, tentou convencer editores da costa Leste dos EUA a publicar essa mulher que viveu quase sempre do outro lado, mais perto do Pacífico. Em vão. Só em 2015, onze anos passados da da sua morte, Lucia Berlin conquistou a crítica depois da editora Farrar, Strauss and Giroux reunir os seus contos no volume A Manual For Cleaning Women, considerado um dos livros do ano por jornais de referência nos EUA e em Inglaterra. O livro terá edição portuguesa no dia 4 de Maio com o título Manual para Mulheres de Limpeza (Alfaguara) e é mais um sinal de que Berlin está finalmente a deixar de ser, como lhe chamou ainda no século XX o escritor Paul Metcalf, “um dos segredos mais bem guardados da literatura americana”. Lida a obra, quer-se saber da biografia e percebe-se que a principal matéria literária de Berlin foi a sua própria vida. Por vezes tão devastada quanto as que pôs no papelForçar a lendaComo apresentar Lucia Berlin? O tom tem sido o de quem conta um facto surpreendente. O desconhecimento aliado ao modo como o livro está a ser recebido têm ajudado a alimentar o mito, e a lenda parece tão mais apetecida quando mais perto da ficção estiver a realidade de Berlin. Ou seja, fazer o contrário do que ela fez na literatura: aproximar do real, não o distorcendo. Tem-se escrito, por exemplo, que morreu na garagem da casa de um dos seus filhos por não ter outro sítio onde morar. No início desta semana, na página de Facebook dedicada a Lucia Berlin, o seu filho David escreveu que a mãe não morreu numa garagem mas no seu apartamento de onde se via o Oceano. “Morreu na cama com um livro, mas não foi, como diz a lenda, o seu livro preferido”, acrescentou. A biografia oficial conta que nasceu em Juneau, a capital do Alasca, com o nome Lucia Brown, filha de um funcionário da indústria mineira. Num dos seu contos, ela alude a uma conversa onde um pai meio senil, em fim de vida, tenta que a filha se lembre desse território inicial. A filha não tem recordação alguma, mas diz-lhe que sim. O lugar onde Lucia nasceu foi só mais uma escala – a única sem memória – na grande itinerância que seria a sua vida. Passou os primeiros anos em cidades ou acampamentos mineiros de Idaho, Kentucky e Montana. Tinha cinco anos quando o pai foi chamado a combater na II Guerra e, com a mãe a a irmã mais nova, mudou-se para El Paso, Texas, onde foi viver para casa do avô, dentista alcoólico, que inspirou o conto que inaugura o livro. Lucia era mais próxima do pai; com a mãe, também dependente de álcool, a relação era turbulenta. A família mudou-se para Santiago do Chile quando a guerra acabou. Aí, Lucia Berlin conheceu outro mundo, aprendeu a falar e a escrever espanhol fluentemente, andava entre eventos sociais, estava entre as elites, um contraste com a vida na América. Nessa altura foi-lhe diagnosticada uma escoliose e seria muitas vezes obrigada a usar um suporte ortopédico de ferro para manter a coluna direita. Inscreveu-se na Universidade do México, em Albuquerque, foi aluna do escritor Ramon Sander, casou e teve dois filhos. O primeiro tinha ela 19 anos, o segundo nasceu já ela estava sozinha. O marido deixara-a durante a gravidez. Pouco depois, terminava o curso, conheceu o poeta Edward Dorn, o escritor Robert Creely e os músicos de jazz Race Newton e Buddy Berlin. Casou com Race Newton, começou a escrever, mudou-se para Nova Iorque, fica próxima dos nomes da Beat. O casamento acabou em 1960. Durou dois anos. Lucia viajou com Buddy Berlin para o México e os dois casam-se. Buddy tinha dinheiro mas Lucy não sabia que ele dependia de drogas. Tiveram dois filhos até se divorciarem em 1968. Aos 32 anos, tinha quatro filhos e três divórcios. Nunca mais casou. Foi viver para a Califórnia, um dos territórios mais presentes nos seus contos, entre Oakland e Berkeley. Deu aulas no liceu e teve muitas das ocupações que fazem parte da identidade das suas personagens, enquanto escrevia e começava a beber. Passou por vários processos de desintoxicação, até ir outra vez para o México em 1991. Viveu um ano a cuidar da irmã, em fase terminal de cancro. A mãe morrera pouco antes. Supostamente, por suicídio. Lucia volta a encontrar Edward Dorn que em 1994 a leva para a Universidade do Colorado ensinar escrita criativa. Em 2000 reforma-se. A escoliose perfurara-lhe um pulmão e tem dificuldade em respirar sem auxílio de oxigénio. Pouco depois, é-lhe diagnosticado um cancro. Em 2001 muoua-se para Los Angeles onde estão os filhos. Morreu em 2004. São os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Uma vastidão de gente anónimaSão os factos secos que ajudam a situar ou a entender os temas da escrita. Mas neles não está o desespero nem a dignidade com que conta a existência dos desesperados ou desamparo. A vida de Lucia é a sua grande fonte criativa, não tanto pelo modo como se narra a si mesma, mas pela voz narrativa que inclui a voz de todos os que se cruzaram com ela sem nunca os revelar por completo. Por isso, quando se indaga acerca das referências é preciso pensar numa vastidão de gente anónima a que se juntam alguns nomes reconhecidos. “A sua vida foi rica e cheia de acontecimentos, e o material que retirou dela para os seus contos foi colorido, dramático e muito variado”, escreve Lydia Davis no texto de apresentação do livro. E acrescenta: “Ela viveu em tantos lugares – passou por tanta coisa – que daria para encher várias vidas. Quase todos nós já vivemos parte daquilo por que ela passou: sarilhos em criança, ou abuso sexual na infância, ou um caso amoroso arrebatado, ou problemas de dependência, uma doença difícil ou incapacitante, um inesperado reatar de laços fraternais, um emprego entediante, colegas complicados, um chefe caprichoso, ou um amigo horrível, para não falar do êxtase perante o mundo natural – gado da raça Hereford com castilleja até aos joelhos, um campo de tremoceiros azuis, uma violeta-das-damas cor-de-rosa no beco atrás do hospital. Porque conhecemos uma parte disso, ou algo parecido com isso, é como se estivéssemos lá quando somos conduzidos por ela. ”As grandes pistas sobre quem foi, as escolhas que fez, o que perseguiu na escrita, o modo como lidou com a culpa ou o trauma, estão mais uma vez nos contos. “Imaginemos o conto de Tchékhov Saudade na primeira pessoa. Um velho a dizer-nos que o seu filho acabou de morrer. Sentir-nos-íamos sem jeito, desconfortáveis, até entediados, reagindo precisamente como os passageiros do coche do homem na história. Mas a voz imparcial de Tchékhov confere dignidade ao homem. Absorvemos a compaixão do autor por ele e sentimo-nos profundamente comovidos, se não pela morte do filho, pelo modo como o velho fala com o cavalo. ” O início do conto Ponto de Vista, um dos 77 que compõem o livro, é um manifesto sobre o estilo. Berlin nunca julga. As personagens e as relações que descreve são complexas, o modo como as expõe aparenta uma simplicidade desarmante. Não têm faltado comparações com Raymod Carver, Williams Carlos Williams, autoras menos mediáticas como Grace Paley ou Lorrie Moore. Ela falava sempre de Tchéhov. Num texto publicado na Paris Review com o título Fumando com Lucia Berlin, a escritora Elizabeth Geoghegan contava um encontro com Berlin, já com a escritora doente, sempre com uma botija de oxigénio a ajudar na respiração. As duas falaram à mesa da cozinha, um dos lugares preferidos de Lucia Berlin. Lê-la é ficarmos perdidos na sua voz. As suas histórias fazem-nos sentir como se estivéssemos coscuvilhar à mesa da sua cozinha. ” E naquela cozinha cabe a essência de um país por uma perspectiva invulgar, dos desesperados. Voltemos a Lydia Davis: “O leque das suas referências é tão vasto, e até tão exótico, que as telefonistas se encostam aos seus painéis como ordenhadoras se encostam às suas vacas; ou uma amiga vem à porta, com ‘o cabelo preto penteado para cima, em rolos metálicos, como um adorno de kabuki”. Há comédia na tragédia de Lucia Berlin e Lydia Davis sublinha isso com uma espécie de ressalva que não escreve mas deixa implícita. Não há em Berlin traço de ironia amarga. É outra coisa. Davis diz isso assim: “Como na vida, pode haver comédia no meio da tragédia. A irmã mais nova, a morrer de cancro, chora: 'Nunca mais voltarei a ver burros!', e ambas as irmãs acabam a rir sem parar, mas a exclamação pungente permanece connosco. A morte tornou-se tão imediata – acabam-se os burros, acaba-se tanta coisa. ”
REFERÊNCIAS:
Já viu um fanático com sentido de humor?
Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor. (...)

Já viu um fanático com sentido de humor?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.3
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Mesmo que politicamente zangado, amargo ou só, Amos Oz continua a lutar pela sua ideia de Israel e de civilização. Caros Fanáticos é uma carta endereçada a todos, porque esse é um gene universal e deve ser combatido com antídotos como a imaginação, a curiosidade ou humor.
TEXTO: O fanatismo, escreve Amos Oz, “é a essência perene da natureza humana, o ‘gene mau’. ” Atribuí-lo a uma civilização, a um povo, a uma religião é contribuir para propagar o gene e criar políticas de ódio identitário. Num momento em que se assiste ao exacerbar do fanatismo, o escritor israelita, várias vezes mencionado como um candidato ao Nobel, reflecte sobre fé, fanatismo e os desafios de viver em conjunto no século XXI num volume que reúne três ensaios breves e incisivos. Publicado em 2017 em Israel, Caros Fanáticos traz três reflexões. De 2002, 2014 e de 2015. Oz reviu e actualizou cada uma e o resultado é um acutilante olhar para o presente do mundo, com um foco nas questões judaicas e do Estado de Israel de que tem sido um crítico atento. Uma conversa com um homem de voz calma que começou por falar de Maio deste ano, um mês que não consta deste livro e que alterou equilíbrios políticos. Foi quando os EUA mudaram a sua embaixada para Jerusalém. É de Amos Oz a primeira frase desta conversa: “O problema não é se Jerusalém é ou não a capital da Israel. O problema é como é que a outra metade de Jerusalém pode ser a capital da Palestina no futuro. ”Escreve que o fanatismo é velho como a humanidade. Que fanatismo é o deste tempo?Em Israel, como em muitos, muitos outros países, o fundamentalismo e o fanatismo estão em ascensão. As pessoas estão a tornar-se mais nacionalistas, mais chauvinistas, mais egoístas e de visão estreita, e a destilar mais ódio em relação aos estranhos, os estrangeiros. Isto está a acontecer na Europa Ocidental, na Europa do leste, Estados Unidos, na Rússia, em Israel e em muitos outros países do Médio Oriente. Preocupa-me, porque acho que se nos afastarmos dos princípios fundamentais do humanismo estabelecidos depois da II Guerra Mundial, estaremos muito depressa a viver um inferno. Os problemas estão a tornar-se mais complicados e muitas pessoas procuram respostas muito simples; procuram respostas de uma frase, capazes de pôr tudo na ordem; frases que nos digam quem são os maus, quem são os inimigos, quem são os perigosos. Acham que se souberem isso o paraíso pode vir. É também por isso que fala de uma infantilização da sociedade?Sim, a infantilização tem que ver com o facto de muitos milhões de pessoas acreditarem que a vida deve ser um entretenimento e que a política é um jogo divertido e a essência da vida passa por fazer compras. Arrisca um antídoto: a necessidade de ser curioso e de ter imaginação. Porquê as duas características juntas?É preciso qualquer coisa no mundo que nos faça imaginar o outro e é só jogar esse pequeno jogo em que nos pomos esta pergunta: vamos supor que eu sou ele, ou ela ou eles. O que sentem? O que querem? De que têm medo? É um trabalho que parte da imaginação e da curiosidade. A curiosidade é o alimento da imaginação e a imaginação o alimento da curiosidade. As duas surgem quase sempre juntas. Acredito que se um ser humano for curioso, imaginativo e tiver algum sentido de humor, talvez seja imune ao fanatismo; talvez consiga desenvolver os antídotos contra o fanatismo. A literatura vive desses ingredientes. . . É absolutamente verdade. Tenho feito isso toda a minha vida. Levanto-me todas as manhãs muito cedo, faço uma caminhada de meia hora, chego a casa antes de o dia nascer, tomo uma chávena de café, sento-me à secretária e começo a perguntar-me: “E se eu fosse ele?” “E se eu fosse ela?” E essas perguntas tornaram-me imune ao tal fanatismo, porque o fanático não é curioso. Ele tem todas as respostas. Acredita que a literatura pode ajudar a combater extremismos?Pode ajudar a repelir o fanatismo. Se pudermos injectar, como se fosse uma vacina contra o fanatismo, umas gotas que estimulassem a curiosidade, a imaginação e o sentido de humor, talvez o inventor dessa vacina merecesse o Nobel de Medicina. Não é possível um fanático ter sentido de humor. . . Já viu um fanático com sentido de humor? Não conheço nenhum fanático com sentido de humor, nem nenhuma pessoa com sentido de humor capaz de se tornar fanática, a não ser que perca o sentido de humor. O humor é sinónimo de relativismo; o humor é a capacidade de ver o mesmo acontecimento a partir de mais do que uma perspectiva, e é ao mesmo tempo a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de nos vermos como outros nos podem ver. O fanático é alguém fechado sobre si mesmo, moralista, dono da verdade, cheio de pontos de exclamação, fechado sem janelas nem portas. Distingue entre sentido de humor e sarcasmo, tantas vezes confundidos. Qual a diferença essencial?O sarcasmo não pretende fazer-nos rir, pretende fazer com que desprezemos alguém. Muitas vezes tem a lógica paradoxal do sentido de humor, mas o objectivo é diferente. O sentido de humor abre mais janelas para a mesma paisagem. O sarcasmo quer semear ódio ou ressentimento em relação a alguém. É verdade que muitas vezes na literatura o escritor não pretende fazer todas as personagens meigas, ou doces. Muitas são sarcásticas, outras são tacanhas, outras são fanáticas. Num trabalho literário, o principal não é dar uma gradação moral às diferentes personagens. O principal é imaginarmo-nos na pele de cada uma delas. Autoria: Amos Oz (Trad. Lúcia Liba Mucznik) Dom Quixote Ler excertoRefere o seu livro Uma Pantera na Cave (Asa, 1998) como a sua experiência de infância na descoberta do outro, da diferença. Até que ponto a escrita o ajudou a entender a sua identidade?Muito e posso acrescentar Uma História de Amor e de Trevas (Asa, 2007) que significou convocar os meus mortos – os meus pais, os meus avós e toda a família – e convidá-los para casa, apresentá-los à minha mulher, aos meus filhos e netos que não conheceram e depois sentarmo-nos, bebermos café juntos e falar de coisas que nunca discutimos quando eles estavam vivos; coisas que eram censuradas ou reprimidas, quando eu era criança. Depois da conversa mandei os mortos embora, não os quero a viver na minha casa, mas de tempos a tempos são bem-vindos para uma conversa e uma chávena de café. Que coisas eram?Questões simples. Porque vieram para este país, o que esperavam encontrar aqui, o que encontraram, o que os desiludiu; o que queriam de mim quando puseram esperanças sobre mim; de que tinham medo; o que deixaram para trás no seu antigo país. Falemos de dor. Considera-a o sentimento humano mais universal. Enquanto escritor tem explorado o tema. O que se pode transmitir ao falar de dor?Sim, a dor é a experiência mais universal de todas. A dor unifica todos os seres humanos. Ricos, pobres, negros, brancos, homens, mulheres. Seculares e religiosos. Todos somos sensíveis à dor. E os animais também, e talvez as plantas, não sabemos. É a experiência mais universal da vida na Terra. Acho que as fundações da moralidade universal – e não de uma moralidade relativa – podem apoiar-se na ideia de que a dor é universal. Toda a gente sabe o que é a dor e por isso toda a gente sabe que quando está a infligir dor está a fazer qualquer coisa de mau. Quando uma pessoa grita de dor, a outra sabe o que isso quer dizer, ainda que as duas não falem a mesma língua. Lembra um episódio de A Vida de Bryan, dos Monty Python, parábola acerca do seguidismo ou da individualidade. “Brian exorta o público: ‘Todos vocês são indivíduos!’ A multidão responde num grito único, atroador: ‘Sim! Todos somos indivíduos!’ ‘Todos vocês são diferentes!’ ‘Sim! Somos todos diferentes!’ Só um tipo pequeno no meio daquela multidão geme numa voz fina: ‘Eu não!’” Essa cena pareceu-me a adequada para descrever a falsidade da sociedade actual – pelo menos a maioria dos países ocidentais; uma sociedade que pretende ser completamente individualista e pluralista, mas que no fundo é uma das sociedades mais conformistas na história da humanidade. Muitas vezes tentar não ser especial é ser especial. Quando alguém diz que não é diferente dos outros, esse alguém é o individualista. Muitas vezes o não conformismo é uma forma muito comum de conformismo. E alerta para uma palavra: auto-sacrifício. É um sinal de fanatismo, porque demonstra desinteresse pela vida e não é um sacrifício privado. É cem por cento público. É muito fácil ao fanático sacrificar a sua vida, morrer pela causa. Seja a religião, a revolução, o Messias, a redenção. . . Ele está disposto a morrer e, por estar tão disponível para morrer, também mata facilmente, a vida não significa grande coisa para ele. E mata muitas vezes pelo que chama o “nosso próprio bem”. No segundo ensaio parte de um livro que escreveu em 2014 com a sua filha, Fania Oz-Salzberger, Judeus e Palavras, para reflectir sobre o que significa ser judeu. A ideia do livro é olhar o judaísmo não apenas como religião, nacionalidade, mas sobretudo, e antes de mais, como civilização. Uma civilização que põe no centro textos, livros, debate, discussão, interpretações, diversidade, discordância. Esta é uma tradição que está com o povo judeu há mais de três mil anos. E continua. Os judeus continuam a ser gente muito argumentativa e que não obedece facilmente sem considerar a razão que está por detrás. Como se define enquanto judeu?Ser judeu é, antes de tudo, a língua. A língua hebraica e tudo o que se lhe refere, o que significa centenas de milhares de livros, antigos e novos. Significa um sentido de humor específico, um sentido crítico e uma tradição de dúvida e argumentação, e mesmo de desafio às opiniões prevalentes. Não vou à sinagoga, não sou ortodoxo; o lado religioso do judaísmo interessa-me muito, mas não o pratico. Estudo, mas não pratico a religião. Para mim ser judeu é lidar com a esfera da língua hebraica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O seu modo de ser judeu está em perigo?Claro, porque nada na história é garantido e cada ideia, cada atitude, cada abordagem é frequentemente desafiada e substituída por uma ideia diferente. Sei que as minhas ideias não são feitas de aço ou de granito. São as minhas ideias e as minhas perspectivas acerca do judaísmo e há muitos, muitos judeus que discordam de mim. A minha ideia de judaísmo não está garantida, mas luto por ela. Estes ensaios mostram um homem pessimista acerca do futuro. Não sou de todo pessimista. Sou um optimista sem calendário para o meu optimismo. Não posso dizer-lhe o que vai ser posto em prática nos próximos seis meses ou um ano, mas posso dizer-lhe que a grande maioria das pessoas no Médio Oriente perceberam que Israel está aqui para ficar. E muitos judeus israelitas percebem agora que os palestinos estão aqui e também não vão a lado nenhum. As conclusões podem levar tempo, a aplicação de medidas pode demorar. Não sei. Mas acho que a maioria de ambos os lados sabe dessa realidade agora, e isso é um bom indicador. Escreve: “Eu amo Israel mesmo quando não o suporto. ” Que amor é esse?Não gosto sempre de Israel, porque tem um lado agressivo, extremista e presunçoso. Isso desagrada-me imensamente, mas continuo a achar que se o meu destino for cair no meio da rua, será melhor que seja numa rua de uma vila ou cidade de Israel do que em Paris, Nova Iorque, Londres ou Roma. As pessoas irão ajudar-me a levantar-me. Quando eu estiver de pé, tentarão levar-me ao chão outra vez, mas há alguma coisa no pulsar deste país e desta civilização que está muito perto do meu coração, mesmo quando politicamente estou zangado, amargo e só.
REFERÊNCIAS:
No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido. (...)

No Douro anda-se em comboios de Espanha apinhados de turistas
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-09-20 | Jornal Público
SUMÁRIO: A Linha do Douro tem cada vez mais passageiros. As ligações fluviais entre o Porto e Barca de Alva, Pocinho, Pinhão ou Peso da Régua levam a que a automotora alugada a Espanha se encha com frequência, numa viagem em que o ar condicionado nem sempre está garantido.
TEXTO: Esta é a segunda de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios. A estação do Pocinho, concelho de Vila Nova de Foz Côa, recebe os passageiros com o mercúrio a passar dos 35 graus e o ruído da automotora alugada a Espanha a inundar o cais de desembarque. A viagem de regional entre Porto e Pocinho faz-se em cerca de três horas e 20 minutos. Ou em três e 40, dependendo do comboio que se apanha. Ou um pouco mais, conforme a pontualidade. Os primeiros quilómetros da Linha do Douro oferecem como paisagem a periferia urbana do Porto e são mais pacatos. Pelo menos no dia e hora em que o PÚBLICO fez a viagem, ao início da tarde do feriado do meio de Agosto. E, dizem-nos os passageiros mais ou menos habituais, costuma ser assim. Em paragens como Régua e Pinhão o cenário altera-se, tanto no interior como no exterior da automotora a diesel. A partir de determinado ponto, os carris acompanham o rio, com o serpenteado de vinhas escalado em socalcos à vista, o que explica a grande procura turística pelo percurso. À chegada à Régua, a primeira multidão. A maioria dos passageiros que tinha entrado na estação de Campanhã já se tinha dispersado pelas paragens anteriores e os que agora entram são maioritariamente turistas, que se vão amontoando na plataforma e enchem de seguida a composição. Mais à frente, já no cais do Pocinho, avisam-nos que o percurso de volta “é mais complicado”, principalmente depois do Pinhão. Os operadores fluviais do Douro vendem muitas vezes pacotes em que a viagem se faz num sentido de barco e no outro de comboio. Acompanhando a tendência nacional, a procura turística tem subido na região classificada como património mundial pela UNESCO em 2001, o que aumenta a utilização daquela linha ferroviária. Se, por um lado, isso faz com que haja mais passageiros a ajudar à viabilidade financeira da linha, também levanta problemas, como a sobrelotação de alguns comboios. Lurdes Moura acompanha grupos de turistas rio acima e rio abaixo. Neste dia, o grupo de cerca de 20 pessoas navegou o troço entre Peso da Régua e Barca de Alva, já na fronteira com Espanha. Como a ferrovia entre Barca de Alva e o Pocinho foi encerrada há perto de três décadas, essa ligação faz-se de autocarro. A parte restante no regresso costuma ser feita de comboio, conta a guia. Mas há dias em que não há essa hipótese. “Tem acontecido chegarmos ao Pocinho e o comboio — com capacidade para cerca de 200 pessoas — já estar cheio”, relata. O comboio que apanhamos de regresso ao Porto sai às 17h21. O último regional, que sai às 19h07 do Pocinho, é “mais crítico”, informa-nos Lurdes Moura, que anda nestas lides há 14 anos. Ao passar pelo Pinhão, a automotora enche-se, até ao ponto em que se torna espinhosa a tarefa de entrar, mesmo que apenas para viajar de pé. Saído da cabine, o revisor olha para a multidão e chega à conclusão que ali não vai conseguir circular. “Já não passas. Esquece”, diz-lhe a guia, que já o conhece por conta das inúmeras viagens na linha. Depois confidencia-nos: “Estes homens sofrem aqui que nem uns desgraçados. ”“É boa a viagem. Demorada, mas faz-se”, começa por dizer Maria Ludovina Afonso, que viaja com o marido, de nome José Luís e com o mesmo apelido. São de Mêda, no distrito da Guarda, e deslocam-se de dois em dois meses ao Porto para visitar filho e netos. Estão de regresso a casa com o aglomerado de malas e o pequeno cão Max. As principais queixas são sobre a casa de banho: “Têm pouca água. Pôr mais papel não encareceria, penso eu. ” Ela com 71 anos, ele com 74, também lamentam que a ligação aos autocarros no Pocinho não seja a melhor. Dizem que “durante o ano é calmo” e que é no Verão “que há mais turistas”. Todavia, há cerca de um ano, no sentido Pocinho-Porto, “nem à casa de banho se conseguia ir”, recorda Maria Ludovina. Mas não é preciso recuar um ano para encontrar episódios do género. O presidente da Comissão de Utentes da Linha do Douro, António Pereira, repete ao telefone com o PÚBLICO as críticas aos lavabos das carruagens, que diz estarem “constantemente avariadas”. Mas não se fica aí: “Muitas vezes o ar condicionado não funciona, por vezes ou está muito quente ou muito frio. É uma miséria. ” Menciona também as situações de sobrelotação em que, “muitas vezes, as pessoas vão de pé, sem condições nenhumas para viajar”. Estes comboios “alugados a Espanha são péssimo material”, resume. E o problema está identificado, tanto pela CP como pelos utentes: falta de material circulante. É essa a mesma conclusão da guia Lurdes Moura, que diz que a CP “precisava era de comboios novos e com capacidade”. Lembra as antigas máquinas portuguesas que ali circulavam, que permitiam “ao menos abrir a janela quando estava calor”. E prossegue: “Estes são uma vergonha. As casas de banho são uma vergonha e tem dias em que o ar condicionado não funciona”, sem que haja possibilidade de correr as vidraças. Refere-se à falta de material da CP como a base da maioria dos problemas na Linha do Douro. “Trabalho aqui há 24 anos e ouço isso [há cerca de metade]”, confirma o revisor. Lurdes Moura lembra que, se a assiduidade do serviço se manteve, a verdade é que há cada vez mais turistas. E para isso “ninguém está preparado”. A “frequência está óptima, mas devia ter mais composições”, aponta. Se no dia 15 de Agosto todos os compartimentos da composição tinham ar condicionado, “nem sempre é assim”, explica. No mesmo sentido, António Pereira refere que, “mais material a CP tivesse, muito mais procura teria”. O presidente da CP, Carlos Nogueira, avançou já esta semana que a empresa estatal poderá gastar até 3, 5 milhões de euros com o aluguer de mais seis a dez comboios à congénere espanhola Renfe. Este negócio viria acrescer aos sete milhões anuais que a CP já paga por 20 composições. Numa visita às oficinas de Campolide, o responsável referiu ainda que a CP “vai entrar na fila” das encomendas a fabricantes, operação que trará para Portugal comboios novos “daqui a três ou mais anos”. Até lá, “importa reforçar o aluguer”, que terá de ser feito a Espanha, uma vez que tem máquinas a diesel e de bitola ibérica. É perceptível o esforço do motor da automotora ao escalar os planos mais inclinados, que se traduz no aumento do ruído pontuado por um ranger cadenciado. Na linha do Douro, a velocidade oscila entre os 80 e os dez quilómetros por hora, explica-nos Rui Resende, maquinista da CP há 24 anos. Os dez quilómetros horários justificam-se nas zonas da linha onde há “pequenas derrocadas” de pedras. Se reconhece que há problemas no serviço, sublinha também “que não é tão mau como dizem” e que, em matérias de alteração de horários da CP, o Douro manteve a escala. “No Minho, sim, as pessoas ficaram mal servidas, como é o meu caso, que moro lá”, exemplifica. Nota que o volume de passageiros “tem aumentado de há uns anos para cá”. Entre 2014 e 2017, a Linha do Douro passou de 737 mil passageiros para 915 mil. A ferroviária do Estado tem procurado dar alguma resposta ao aumento, com a introdução de comboios especiais, mas já reconheceu as limitações. Em Agosto 2016, três empresas de transporte fluvial decidiram trocar o comboio pelo transporte rodoviário, como protesto perante o “mau serviço” da CP, referindo que os clientes tinham de viajar de pé, em carruagens cheias e com climatização deficiente. Meses depois, já no início de 2017, as mesmas empresas — a Barcadouro, a Rota do Douro e a Tomaz do Douro — assinaram um protocolo com a CP para a criação de um serviço exclusivo para transporte de turistas entre Porto e Régua que circula entre os meses de Maio e Outubro. A assessora da administração da Douro Acima, Elisabete Loureiro, refere que a oferta da CP antes da criação dos comboios especiais “não dava minimamente para as necessidades, mesmo em situações em que a afluência de turistas não era significativa. Depois, “os horários normais ficaram mais aliviados para responder ao público em geral e a uma ou outra empresa que não tenha necessidade de tantos lugares, como é o caso da Douro Acima”. A operadora que representa, explica, trabalha com barcos rabelos, pelo que transporta um menor número de pessoas em cada viagem. Entende que, neste momento, o serviço da CP “está a dar para aquilo de que há necessidade”. Para fazer o trajecto entre Porto São Bento e Régua, mas também mais direccionado para o turismo, a CP tem igualmente o comboio MiraDouro, que circula anualmente entre 13 de Julho e 30 de Setembro, com carruagens fabricadas na década de 1940. O comboio histórico do Douro percorre a distância entre as estações de Régua e Tua, mas só aos fins-de-semana. Os problemas na Linha do Douro não se resumem à grande afluência turística. A novela da electrificação do troço entre Caíde (concelho de Lousada) e Marco de Canaveses, que começou em 2015, teve recentemente mais um episódio, com a empreitada a ser lançada novamente. A Infra-estruturas de Portugal prevê que, por isso, esta parte de 16 quilómetros da linha seja encerrada nos meses de Novembro, Dezembro e Janeiro, quando a procura é menor, com o transbordo a ser feito de autocarro. “É uma forma de minimizar o tempo de espera [em Caíde]”, considera António Pereira, mostrando-se compreensivo em relação às obras. A linha está electrificada do Porto até Caíde, mas não daí para a frente. Isso significa que, para apanhar a ligação com os comboios urbanos em Caíde, quem vem de Marco de regional, segundo as tabelas da CP, pode ter de esperar entre cinco a 20 minutos. “Os utentes preferiram essa solução a outra, que fosse mais penalizante para eles. ” O presidente da associação de utentes diz que, por isso, as pessoas de Marco de Canaveses vão de carro até Caíde, Penafiel e Paredes apanhar os comboios para o Porto. “Quando chegar a electrificação ao Marco, esse problema acaba”, acrescenta. E o facto de chegar ao Marco é mais um passo para que possa ir até Peso da Régua, refere o presidente desta câmara municipal, José Manuel Gonçalves. A expectativa é nesse sentido, mas as declarações ao PÚBLICO revelam um plano mais ambicioso de fazer a ligação a Espanha. “Era fundamental para o Douro e para o país”, classifica. O autarca social-democrata entende que, no horizonte de financiamento comunitário de 2030, a ligação ao país vizinho “é daqueles investimentos que devem ser considerados prioritários para o país”, “a nível turístico, mas também de transporte de mercadorias”. Dos munícipes chegam-lhe as queixas sobre o actual estado do serviço. Mas sublinha que “a sobrelotação é a prova de que a linha é procurada e tem mercado”. Diz ter tido a informação de que também haveria redução da oferta com a alteração dos horários de Agosto da CP, mas esta acabou por se manter, depois de um protesto de autarcas da região. “Era contraditório estarmos a criar condições para as pessoas virem cá e, por outro lado, estarmos a delapidar o meio de transporte com peso significativo no fluxo turístico que nos liga ao Porto”, faz notar. Quando tomou conhecimento de eventual alteração de horários, a Junta de Freguesia do Pinhão, no concelho de Alijó, emitiu um comunicado em que dava conta a redução de 40% da oferta entre o Peso da Régua e o Pocinho. Contactada pela agência Lusa em Julho, a CP respondia que estavam a ser feitas actualizações à base de dados e que o que se verificou tinha sido “um erro de pesquisa”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ao PÚBLICO a presidente da junta de Pinhão, Sandra Moutinho, diz que os comboios “estão a andar normalmente”. Ressalva, no entanto, que estão a ser vendidos demasiados bilhetes para a capacidade das carruagens e que a ligação ao alfa pendular que segue para sul em Porto Campanhã faz-se com uma margem de cinco minutos — o que pode não ser suficiente, conforme os atrasos. Voltando ao comboio que faz a viagem entre Campanhã e Pocinho, encontramos Maria Sousa e Bernardina Ferreira, de 77 e 73 anos respectivamente, que entraram na automotora em Paredes. Não é um ritual com um calendário rígido, mas fazem-no duas ou três vezes por ano: chegando ao fim da linha, lancham na cafetaria da estação e, ao fim dos 44 minutos, as duas mulheres voltam com a mesma máquina, que faz o caminho inverso. Falam sobre outros destinos que costumavam visitar, também para aqueles lados, onde o comboio já não chega. Até ao final dos anos 1980, a linha ia até Barca de Alva, já perto da raia luso-espanhola. “Foi uma pena” terem acabado com a ligação, afirmam. Maria Ludovina Afonso também recorda a extinção do percurso. Já lá vão perto de três décadas. “Cada vez há menos gente cá para cima, é o deserto do interior”, lamenta.
REFERÊNCIAS: