“Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra”
Uma antologia com inéditos: foi assim que Aldina Duarte pensou o seu novo espectáculo na Culturgest. Para ouvir fado a fado, palavra a palavra. Esta sexta-feira, às 21h30. (...)

“Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-06-27 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma antologia com inéditos: foi assim que Aldina Duarte pensou o seu novo espectáculo na Culturgest. Para ouvir fado a fado, palavra a palavra. Esta sexta-feira, às 21h30.
TEXTO: No ano da anunciada despedida de Miguel Lobo Antunes como programador da Culturgest (cargo que antes exercera no CCB), Aldina Duarte respondeu sem hesitar ao convite para voltar a actuar naquele palco. Pensou, e agora di-lo em voz alta: “Tenho de fazer um concerto especialíssimo, de tributo a esta sala e dedicado ao Miguel, que acreditou em mim desde o primeiro dia. Acho que ninguém gosta mais do meu fado do que ele; tanto, talvez haja alguns, mais é impossível. ” Foi no Grande Auditório da Culturgest que Aldina fez o primeiro concerto da sua vida. “Estava bastante relutante, até porque não tinha como objectivo levar o meu fado para concertos e muito menos para salas grandes, mas o Miguel achou que a sala era perfeita para pôr o meu fado em concertos, e isso foi feito com a ajuda do Jorge Silva Melo, outra das pessoas que gosta tanto de me ouvir como o Miguel. ” A partir daí, todos os seus discos tiveram estreia naquele palco. “Exceptuando Romance(s) que foi estreado no CCB, porque eu já não tinha como dizer-lhes que não. ”Aldina chamou ao seu novo espectáculo Fado: a Música e as Palavras. E explica porquê. “É uma espécie de antologia, mas com inéditos, feita sobretudo com fados dos três letristas com quem tenho trabalhado sempre: a Manuela de Freitas, o João Monge e Maria do Rosário Pedreira. ” Os dois últimos escreveram na íntegra álbuns para ela e agora assinam dois dos inéditos que ouviremos na Culturgest: A estação dos amantes, de João Monge; e Sem cal nem lei, de Maria do Rosário Pedreira, ambos com música de Armando Machado (1899-1974), o primeiro no Fado Santa Luzia, o segundo no Fado Súplica. Mas é de Manuela de Freitas o inédito mais antigo que Aldina cantará neste concerto, e chama-se Sorte com sentido: “Foi a primeira letra que alguém escreveu para mim, ainda antes mesmo do meu primeiro disco. Não coube em nenhum dos discos que gravei e a única vez que ficou registado foi num programa televisivo. Mas é um tema fabuloso e tem uma letra maravilhosa, que fala da minha relação com o fado. Tem mais ou menos estes versos: ‘Se é certo que fado é sina/ Com meus sonhos de menina/ Joguei meu fado na sorte/ Arrisquei muita cartada/ Fiz muita vaza cortada/ E apostei sempre mais forte. ’ Depois, com uma repetição, muda: ‘Arrisquei muita cartada/ E subi tanto a parada/ Que fui parceira da morte. ’” Manuela de Freitas tinha escrito esta letra inicialmente para Camané. “Mas ele não se sentiu confortável com a letra, e então ela transformou-a para uma mulher e deu-ma a mim”, diz Aldina. “Criei três blocos essenciais, com Apenas o Amor, Crua, Mulheres ao Espelho, Contos de Fados e Romance(s): esta é a antologia. Mas na abertura do concerto e entre cada bloco estão fados que eu nunca gravei e que são doutros, nunca ninguém mos ouviu cantar a não ser na casa de fados. E são fados musicados, não são fados tradicionais. Ou seja: eu fui repescar o tal inédito da Manuela de Freitas, um fado da Lucília do Carmo que cantei no mesmo programa de TV onde cantei esse mas que nunca mais cantei, Não me conformo; canto o Não vou, que é também é da Lucília do Carmo mas que gravei no Mulheres ao Espelho; canto um fado da Fernanda Maria, o Loucura, loucura; e canto ainda um fado que é um tributo à Maria da Fé, a Porta maldita. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O espectáculo abre com outro inédito, Auto-retrato, que João Ferreira-Rosa primorosamente escreveu para Aldina, que ela nunca gravou mas já cantou em palco duas vezes: no São Luiz, na celebração dos seus 20 anos de carreira, em Março de 2014; e na Culturgest, a encerrar o concerto de 3 de Outubro de 2015. Ou seja: no antecessor deste. Começa assim o actual concerto no exacto ponto onde o anterior tinha acabado, o que é uma boa forma de retomar o fio do tempo. “O mais arriscado é que vou estrear os fados do João e da Rosário em palco, coisa que nunca fiz. Estreio-os sempre na casa de fados ou então no estúdio, que sempre dá para voltar atrás. Não sei como resultará, mas acho que devia fazê-lo na Culturgest. Porque sempre arrisquei tudo nesta sala. ”A par desta caminhada pelos fados, haverá um “bloco com a banda”, que corresponde ao “lado B” de Romance(s): “Vou cantar um tema desse disco com o João Cardoso, com o Pedro Vidal na guitarra eléctrica e com o Pedro Gonçalves na guitarra e na viola-baixo. ” Isto liga com o bloco dos Romance(s) à guitarra e à viola, aqui com Paulo Parreira e Rogério Ferreira, respectivamente. “E daí parte-se para o final, que são os hits de cada disco. ”Não haverá efeitos cénicos especiais. “Tal como na casa de fados, vou centrar tudo na música e na palavra. A única coisa que haverá em palco é uma mesa com uma cadeira, símbolo do intimismo da casa. Quero este que seja o meu espectáculo mais nu, cenicamente, e onde tudo está pensado para nos focarmos fado a fado e com toda a concentração, não só no sentido mas também na musicalidade de cada palavra. ”
REFERÊNCIAS:
Beatriz Batarda: “Escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia”
Uma conversa sobre actrizes, egos, choro e mamas. Aos 25 anos de carreira, na sua primeira incursão na televisão portuguesa, a actriz Beatriz Batarda é a actriz Sara na série de Marco Martins que se estreia domingo na RTP2. Fê-la rir de si mesma, fê-la desconstruir clichés. (...)

Beatriz Batarda: “Escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-22 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma conversa sobre actrizes, egos, choro e mamas. Aos 25 anos de carreira, na sua primeira incursão na televisão portuguesa, a actriz Beatriz Batarda é a actriz Sara na série de Marco Martins que se estreia domingo na RTP2. Fê-la rir de si mesma, fê-la desconstruir clichés.
TEXTO: Sara é uma actriz dita séria que lida com o olhar sobranceiro sobre a novela e os actores que se “vendem à TV”, como a certa altura um fã lhe atira. E é uma série que sobrevoa tanto a imagem do cinema português quanto as modas do abacate e do açaí. Sara é um papel que só podia ser de Beatriz Batarda. E Sara é uma nova série portuguesa que conta a história da actriz dramática que deixa de conseguir chorar. Vai ver como vive a outra metade, nas novelas e no Facebook. Estreia-se dia 7 às 22h15 na RTP2, e não no primeiro canal que tem albergado todas as novas séries nacionais da estação pública. Chega aos 25 anos de carreira de Beatriz como uma série especial. É audiovisual sobre audiovisual. Faz o malabarismo da homenagem aos mestres do cinema e da imagem colorida das novelas, entre o riso genuíno e a solidão. Os primeiros episódios passaram, com sucesso, no festival IndieLisboa. É a estreia de Marco Martins e de Beatriz Batarda na televisão portuguesa e no humor, fruto de uma ideia original (e depois argumento) de Bruno Nogueira após um desafio de Nuno Artur Silva durante o seu principado na RTP. São dois homens que escreveram para e filmaram com uma mulher e uma actriz que conhecem bem: Batarda fez Alice, Como Desenhar um Círculo Perfeito ou São Jorge com Marco Martins, realizador que já foi encenado por ela, juntamente com o marido Bruno Nogueira, na peça Como Queiram, por exemplo. Filha do pintor Eduardo Batarda, também conhecida como Beatriz Moreno, interpreta Sara Moreno. Mas a actriz de A Caixa e Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, nega os paralelos fáceis que se poderão estabelecer com a personagem, que é filha de um conceituado escritor ficcional e que vocifera contra um pretensioso realizador “armado em Tarkovsky, foda-se!”. A série está iminente, mas Batarda está já em palco no D. Maria II com Teatro, de Pascal Rambert, em que também faz o papel de actriz. A conversa decorreu perto do teatro nacional, na Veneziana, com turistas e a Baixa de Lisboa em fundo. A comida estava na ordem do dia, e o gelado em cima da mesa. Na série, a Sara cozinha todas as noites para um pai emocionalmente distante. São pratos bem reconhecíveis. . . Comida tradicional portuguesa. Fui eu que escolhi. Exacto: iscas, carne de porco à alentejana, jaquinzinhos – porque é que era importante que ela cozinhasse sempre comida portuguesa para o pai viúvo?É a minha interpretação do pai, da relação com um pai de um tempo antigo. Construí isso no meu imaginário: é alguém a quem é um bocadinho difícil agradar. E com comida mais antiga, naquele esforço de agradar ao pai, ia buscar receitas que imaginaria que a minha avó faria para ele. Uma ideia de alimento de conforto. Não ia fazer bulgur. Estava à procura de o encantar, de o agarrar pela memória afectiva da cozinha da mãe. Mas sempre a falhar. É comum perguntar aos actores como se relacionam com as personagens, se as levam para casa – no caso da Sara, que partiu da biografia da actriz que lhe dá corpo, como é que isso modula a resposta?Não, da minha biografia não tem nada. Sara Moreno, Beatriz Moreno… Há bastantes detalhes. São as brincadeiras. Eu também propus Sara não só pela Sarah Bernhardt, porque esta [Sara] também é uma grande fiteira, mas também é o nome do deserto. E ela está a perder a capacidade de chorar, está seca, está árida. A minha vida não tem nada a ver com a dela, não sou filha de escritor paraplégico, a minha mãe está bem graças a deus, sou casada com três filhas. A minha vida não é um deserto, é tudo menos árida. E ainda consegue chorar?Ainda choro bastante, gosto muito de chorar, choro pelas coisas mais imbecis – género America’s Got Talent. E o Masterchef Austrália. Portanto de biográfico não tem nada, a única coisa é a coincidência que é a série ser sobre uma actriz e eu efectivamente sou actriz [risos]. E não é uma actriz que se sente conotada, ou convocada, sobretudo para papéis dramáticos?Se quisermos encontrar pontos em comum, que não têm nada a ver com a biografia pessoal, sim, do ponto de vista profissional há uma caricatura daquilo que represento e tira-se partido dessa caricatura. Divirto-me muito a fazer essa caricatura do que represento e da imagem que algumas pessoas — porque não sou uma figura tão conhecida como isso — foram construindo. Uma ideia de uma imagem de uma pessoa arrogante ou intolerante… Tudo o que é extremado, o cliché da actriz esgotada. Não interferi em nada da escrita, fizeram-me [só] uma entrevista sobre rotinas. São pessoas com quem trabalho há muitos anos, sobretudo o Marco, e conhecem a minha maneira de trabalhar mais do que traços de personalidade — não estão interessados em perfis freudianos. Tiraram partido da maneira como trabalho as personagens, de eu as fazer sempre a pôr muitas contradições, mesmo que não estejam lá — comportamentos, reacções e pontos de vista contraditórios - dentro da mesma pessoa. Não gosto de lógica nas personagens e estou sempre a contrariar isso, porque isso da lógica é uma coisa da ficção. E a vida não tem nada de lógica. Nós mulheres somos sujeitas a pressões de muitas ordens diferentes e esse sobrecarregar vai fazendo com que o nosso estado no mesmo dia possa variar imensas vezes. Gosto dessas arestas, dessas facetas, desses buracos meio misteriosos nos perfis femininos e tiro partido disso na construção das personagens. Eles, ao escreverem a série, escrevem a pensar em mim, mas estão a pensar na actriz que sou. Sobre essas pressões, no primeiro episódio há uma explosão da Sara na rodagem de um filme pretensioso com um mau guião: ela grita sobre como só a chamam para chorar ou mostrar as mamas. Há uma responsabilidade ou uma carga sobre uma actriz protagonista de um filme, série ou novela, diferente daquela que tem um actor?Essa cena… não é para levar literalmente. É muito comum um actor, quando não consegue criar foco suficiente para se evadir do aqui e agora e para ir para o outro lugar da fantasia, o lugar ficcional, de outro tempo e geografia que é o que o plano da câmara verá naquele filme, criar bodes expiatórios. De repente tudo é culpado menos a sua própria dificuldade em focar. Sim, a concentração é um exercício difícil, exige muita determinação e energia física e emocional, um lado muito atlético intelectualmente. Pede-se às pessoas que sejam sensíveis a esse esforço e que não criem distracções, que não se mexam, não estejam ao telemóvel na linha do olhar do actor, que não façam barulho. E as equipas nem sempre respeitam isso. Eu já filmei — e não fiz uma cena nessa ocasião, mas é uma história verídica na qual se falou quando estavam a escrever o guião — uma cena em que entrava às 5h da manhã no quarto da minha filha que não tinha vindo dormir à noite e com quem estava muito preocupada. O quarto “vazio” não só tinha uma equipa inteira lá dentro quanto um electricista a ver SMS deitado na cama aos pés da qual eu me sentava. É realmente pedir muito de um actor. De repente a consciência da situação é tão absurda que dá vontade de rir e perde-se o foco. Essa cena é sobre isso: ela não consegue resolver e começa a apontar dedos. Agora, o que ela diz é um cliché — chorar ou mostrar as mamas. Não fui muito uma actriz que tivesse construído uma carreira em cima do corpo porque nunca tive um corpo escultórico espectacular, mas mostrei as maminhas umas quantas vezes. Mais vezes do que os meus colegas mostraram os rabos. Mas percebo que umas maminhas bonitas dão mais vontade de ver do que rabos peludos. Acho que essa questão da mulher tornada objecto não se pode generalizar. Porquê?Fiz formação de artes, de História da Arte. O estudo da beleza, da estética na nossa história da arte ocidental, e o corpo feminino enquanto corpo simbólico do belo, de fertilização, de vida, de milagre, não é uma coisa que me choca nessa celebração. Choca-me mais que deus, neste país, seja um homem. Para mim deus não será nunca um homem, será uma coisa — o nosso planeta Terra —, e se for uma pessoa é uma mulher. A adoração do corpo da mulher não me choca. O que me choca é a confusão entre a troca mercantil e o belo. Quando deixa de ser um gesto de beleza, de adoração…De liberdade?E de liberdade, e passa a ser a utilização do corpo enquanto troca, aí entramos noutra discussão. Uma vez foi-me proposto, para fazer um filme, fazer implantes para ter o peito como a figura que ia representar, porque era uma biografia de uma figura da nossa praça — não vou dizer quem é. Eu estava a propor um duplo para as cenas de nu. A proposta que me fizeram foi fazer uma operação plástica, ao que respondi “não, agradeço imenso, a nossa conversa acabou aqui”. Neste registo, a questão que se põe é como é que te posicionas em relação a isso. E que liberdade e margem que se tem para um determinado posicionamento, porque há situações de maior fragilidade, e pressão…A mulher tem poder de escolha. Não aguento discursos de enfraquecimento da mulher. Não aguento isso. Não me considero fraca. A mulher tem força. Tudo tem consequências — se eu disser “não compactuo com isso, estou fora” tem consequências, mas vou dormir melhor, não vou estar escravizada em nome dos números e dos likes e das visualizações e das revistas, destas novas normas de estética. É uma moda, isto passa e já está a passar, as senhoras usam cabelo branco a partir dos 40, 50. A Sara é uma paródia, uma reflexão, uma revolta, um piscar de olho?Eles apresentam-na como uma sátira. Eu não vejo como uma sátira mas aceito. Recebi a série do ponto de vista da Sara, que é tudo menos sátira. É a crise existencial, dos 40, de uma mulher que se dedicou cegamente à sua arte, àquilo em que acreditava e sacrificou toda a sua vida pessoal em nome disso. E que por ser tão exigente se consumiu a ela própria. Por ser tão crítica, isolou-se cada vez mais. Não acho que a série critique o resto do mundo, o que o torna hilariante é que ela está numa frequência diferente. O choque é que torna tudo muito absurdo. A reflexão não está fechada no meio. É uma reflexão sobre conteúdo e imagem. O que é que aconteceu na nossa sociedade, onde a construção da identidade passou a ser uma coisa menor e a construção da imagem, da realidade virtual, através das redes sociais, passou a ser a prioridade. Os sumos, postar um guião, as plásticas, essa reflexão é importante e é geral. Esta é uma série “meta”. Uma actriz a interpretar uma actriz, um realizador a fazer experiências com géneros. Quão interessante é partilhar alguma técnica com o público televisivo?Quando se começa a entrar no "meta", o actor pode-se permitir abordar-se de outra maneira. Sim, está ao serviço de uma coisa maior, a ficção, mas a parte divertida é que começa a olhar para si e para o seu corpo como uma espécie de objecto artístico ele próprio. Quando tentamos alhear-nos da nossa realidade para abraçar a realidade da personagem dentro da ficção há uma negação da consciência, do olhar crítico, da reflexão no momento. Quando se entra neste tipo de registo fica muito divertido para o actor porque é um saltar permanente de um ponto de vista para o outro: o da personagem e o do actor que está a interpretar a personagem. Um alimenta o outro. É como se se multiplicasse o potencial da ficção, multiplicam-se as realidades. Dentro da cabeça do actor essa multiplicação é muito real. Real e concreto: a figura do Agente, interpretado pelo Albano Jerónimo, é espectral. É o chamado grilo falante. Está impregnado no nosso ADN. Ele diz coisas desconcertantes à Sara — “És um corvo sem asas”; está “quase a conseguir ser uma estrela do prime time”. Ouvem-se muitas coisas assim, como actriz?Ouve-se certamente, as pessoas que dão mais espaço a isso ouvirão mais com certeza. Eu não ouço muito, não sei que imagem construí… [risos] Às vezes umas amigas da minha mãe dizem coisas do género “Não devias ser fotografada sem maquilhagem”; “já não tens idade”. Mas não me chega muita coisa. E quando estamos há tantos anos nisto… São 25 anos… Os tempos mudaram muito, com o aparecimento do Facebook e das caixas dos comentários nos jornais. Não há espaço dentro do nosso afecto para guardar essas coisas. Que normalmente reflectem sim a pessoa que está a escrever. Os actores rapidamente perseguem isso. Mas percebi isso muito cedo, mesmo na altura em que havia crítica de teatro - que já não existe — criei muito rapidamente um filtro. Porque esta viagem de um actor, de um artista — pode-se ser actor sem ser artista — é muito solitária. Procuras o que precisas, procuras satisfazer a tua patologia. Procuras o actor que queres ser. Podes ser um artista, podes ser prestador de serviços. Um não é melhor do que o outro, é uma identidade, não é julgável. Não escolhi ser prestadora de serviços, escolhi o meu caminho, o que sacia a minha patologia. Não é em função dos outros, da imagem. Os comentários, as opiniões — não é isso que vai alterar aquilo de que preciso. Quando Sara entra no mundo da novela não só sente e pressente as críticas, como recebe as mesmas críticas de quem faz novelas e a vê como outsider. Ela decide abraçar uma nova identidade, como se fosse uma personagem nova. É uma experiência humilhante ou de humildade?Nem uma coisa nem outra. É uma experiência mercenária. Ela encara aquilo como invenção de uma personagem. Quando percebe que é tudo uma questão de imagem, percebe que é uma persona, não é uma pessoa e vai beber o que as pessoas lhe estão a dizer para construir uma nova personagem. É como se estivesse a brincar com ela própria porque não tem mais nada para fazer, porque a vida dela está enguiçada. É muito triste. Que solidão. E tenta, e tenta. Já fez três séries britânicas, mas é a primeira vez que faz TV em Portugal. Porquê só agora?É agora porque os afectos são uma coisa muito forte, a confiança artística também, e porque se criou tempo para isso. Não sou uma peça numa engrenagem, sinto-me parte da construção do projecto. A ideia do Bruno, a convite da RTP, nasce de mim, não me posso sentir mais parte. E depois foi crescendo, o Marco juntou-se e é meu também. Há uns anos dizia que se fizesse novela ia ser difícil recuperar a sua imagem. Esta acabou por ser uma forma de molhar o pé nessas águas, sem danificar a imagem da Beatriz Batarda “actriz séria”?Isso já foi há muitos anos. E a coisa de espalhar semente pelos vários formatos é coisa masculina, não tenho isso. Mas tenho algum prazer em desconstruir clichés, ideias feitas. Gosto muito de aprender e tenho aprendido muito ao longo destes 25 anos. Acho que só me senti, numa altura da minha vida, a patinar na mesma coisa mas tive a sorte de ter tido sempre propostas estimulantes. Mesmo quando não era hiper-estimulante conseguia usar cada experiência como um passo dentro de uma viagem muito pessoal, dentro de um gesto artístico. Nunca voltei atrás no que estava à procura só para servir um projecto. É sempre uma coisa de casamento, e portanto de verdade, porque nunca forcei servir-me de um espectáculo e de um filme, ou servir tanto que abdicaria completamente de mim. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não vejo a ingressão da Sara pela novela como uma humilhação ou como uma lição de humildade. Vejo sempre como uma coisa mercenária. Não sei se é o meu egocentrismo que não me deixa sentir esse tipo de coisas. Nessa sua viagem de actriz, que papel desempenha a Sara?A Sara permitiu-me duas coisas importantes. A primeira foi rir de mim própria. O que me traz muita saúde, muita alegria, numa zona do meu viver que é muito séria, que é a única séria. Na minha vida não sou muito séria, mas no meu trabalho sou muito séria. Acho-me demasiado séria, às vezes levo-me demasiado a sério e fico angustiada e isso prejudica o resultado e a relação com o trabalho. Poder rir-me disso abre-me uma elasticidade que é interessante manter para o futuro. Depois, foi muito útil continuar a trabalhar um certo atletismo do pensamento que tenho vindo a desenvolver em teatro. Tem a ver com o espectro onde me movimento. Durante muito tempo esse espectro estava mais na zona emocional e das perturbações, das patologias, das contradições movidas pela emoção. E agora estou mais interessada em abrir essa latitude na articulação do pensamento. A construção da ideia, do ponto de vista e o diálogo crítico dentro de nós próprios como gerador de movimento para a frente, para o pensamento. A Sara tem isso tudo, porque tem estes músculos todos muito bem trabalhados na emoção, na velocidade de pensamento, na velocidade das verdades, porque o ponto de vista muda muito rapidamente, o que lhe dá uma humanidade e um espaço para erro que considero comoventes. É algo bonito, porque está muito fora de moda.
REFERÊNCIAS:
“Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo”
Era uma vez o cinema… inventado junto dos krahô, povo indígena do Brasil. João Salaviza e Renée Nader Messora foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, que ele realizou e em que ela foi assistente, foi para eles o estertor. Fugiram. Encontraram. (...)

“Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: Era uma vez o cinema… inventado junto dos krahô, povo indígena do Brasil. João Salaviza e Renée Nader Messora foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, que ele realizou e em que ela foi assistente, foi para eles o estertor. Fugiram. Encontraram.
TEXTO: Talvez se entre para Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos com medo do que se vai encontrar. Como se uma parte de nós estivesse em perda com a ruptura que João Salaviza – "sequestrado" por Renée Nader Messora – fez com o cinema e a vida que antes quis e conheceu. Este filme, que os dois apresentam esta quarta-feira na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, foi o resultado de anos de vida com os krahô, povo indígena do Brasil, no estado de Tocantins, que Renée conhece há dez anos e ao qual expôs João na ressaca da produção de Montanha, a anterior longa do realizador. João e Renéé viveram com eles, assistiram à chegada da luz eléctrica à aldeia. Foram tirando a câmara de filmar de dentro da caixa. Foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, filme que ele realizou e em que ela foi assistente, para eles foi um estertor. Salaviza fala do esgotamento da experiência com uma "parafernália" – equipas, luz, actores, produção. Falou até da sensação de fim do seu percurso temático pela adolescência: Montanha teria sido a súmula de luz e escuridão do percurso de Arena (2009), Rafa (2012), Cerro Negro (2012). O que iríamos encontrar, em terrenos em que não raras vezes o cinema cede lugar à antropologia – e nem é o maior dos riscos –, era uma incógnita. As curtas Alta Cidades das Ossadas (2017) e Russa (2018) pareciam filmes incertos, sem encontrar um lugar. Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos é, por isso, uma surpresa. Salaviza reencontra uma potência a céu aberto, a aldeia da Pedra Branca com as suas pessoas, os elementos, os animais (e efeitos especiais), onde fabricou o mundo. Foi assim este "era uma vez o cinema": ". . . pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara-espírito porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar. . . "O filme da fuga impossível do jovem índio Ihjãc, personagem perseguida e atordoada pela "realidade" e pelos "fantasmas" (como antes os jovens de Arena, Rafa ou Cerro Negro nas suas deambulações pela luz e pelas trevas), é o filme da fuga impossível de João Salaviza. Que foi incitado a mudar para, de alguma forma, o essencial ficar na mesma. Fugiu do cinema, encontrou o cinema. E nós encontrámos um dos mais bonitos filmes de CannesA surpresa, João, é reencontrá-lo no mesmo ponto de fulgor clássico em que o deixámos na anterior longa-metragem e a personagem principal ser de novo um adolescente entre a luz e as sombras, como em Montanha ou Rafa (2012). João Salaviza — O filme está indissociável de uma mudança radical na minha vida, o encontro com a Renée, e com este sequestro que ela me fez de me levar a conhecer os krahô. A Renée há vários anos que ia lá. Na rodagem do Montanha, as coisas que ela me ia contando sobre a vida dos krahô era um contraponto absurdo à forma como o filme estava a ser feito – obviamente que estava a ser feito como eu queria, com estrutura grande, equipa, luz, maquinaria, steadycams, toda a parafernália que hoje se calhar não me interessa. Montanha é um filme melancólico, nostálgico. Há um peso dramático que estava ligado às coisas que eu vivia na altura e a uma sensação de esgotamento. Coincidência ou não, fomos ao Brasil, quase para me libertar. E foi nessa altura que começámos a pensar em mudarmo-nos para a aldeia e com o cinema pelo meio. O trabalho que a Renée tem feito com os krahô, mesmo sem ser de ficção e sem sair do indigenismo, tentava trabalhar as questões da imagem, as implicações políticas, sociais e estéticas da imagem. O cinema tem esta coisa incrível que é podermos ir para um lugar sem as coisas ficarem envenenadas pela condição de turista, porque temos um ofício – como uma companhia de circo que pode conhecer o mundo porque tem algo para fazer. O facto de termos filmado com o Ihjãc pode parecer relacionado com Montanha, mas isso nunca nos passou pela cabeça. A Renée conhecia-o desde pequeno e houve um período de dois anos em que olhávamos para ele e pensámos. . . Renée Nader Messora — . . . será?Desde cedo ele estava na vossa mira?R. N. M. — Na verdade tínhamo-nos apaixonado por outro menino da aldeia, mas era difícil aproximarmo-nos. E o Ihjãc estava ali. Quando se chega à aldeia, passamos a fazer parte de uma família que nos acolhe, e o Ihjãc era do meu núcleo. Ele estava sempre ali, e chamava a atenção porque tinha 12 anos e tinha uma namorada sempre com ele: curioso a rondar a minha câmara, os trabalhos e as oficinas que fazíamos. Quando começámos a imaginar Chuva. . . , começámos a prestar atenção nele, ele foi crescendo e deu certo. J. S. — A história do filme é inspirada na história real de um outro miúdo durante uma primeira visita que fizemos. Começou a sentir-se fraco, doente. Há todo um sistema de diálogo entre os pajés [feiticeiro e intermediário espiritual] que enfeitiçam, mas também podem proteger; é uma narrativa quotidiana da aldeia, as disputas, hierarquias e segredos. Aquele miúdo começou a sentir-se mal e um pajé descobriu que tinha sido enfeitiçado por outro pajé. Era um miúdo deslumbrado, curioso pelo menos pelo mundo dos brancos, da tecnologia, e acabou por fugir para uma cidade a 30 quilómetros. Nessa tentativa de fuga começou a sentir a impossibilidade de diálogo entre a medicina dos krahô, que é holística, e a dos brancos, e foi um desencontro de mundos, ontológico, filosófico. Como a dinâmica de fuga era assumida, pensaríamos que a exuberância da ficção abrandaria. O filme aliás é anunciado como documentário. Mas há um deslumbramento enorme, a aldeia e as pessoas são como um estúdio a céu aberto onde se fabrica um mundo. Numa conversa anterior, contou que havia dias em que nem pegavam na câmara; o mais importante era viver. Como é que o cinema aconteceu assim?R. N. M. — O João ficou obcecado com aquela crença na feitiçaria, com aquele miúdo que fugiu, que se matriculou na escola e que passou por todo o mundo institucional brasileiro. Começámos a imaginar caminhos dentro daquele universo, fomos juntando peças. J. S. — O guião foi um mapa que permitia que não nos perdêssemos e que fôssemos filmando seguindo os nossos desejos. Há muitas coisas que são pura fruição lúdica dos gestos, das pessoas, de estarmos com elas. As cenas em que os miúdos brincam com o fogo, à noite: pegámos na câmara e fomos filmar, sem som. Ou a cena em que a rapariga pinta as unhas dos pés, sinal de elementos exteriores a invadir a comunidadeR. N. M. — Foi uma reorganização de coisas que fomos vendo e vivendo, eu ao longo de dez anos, o João ao longo de quatro. . . Como uma longa repérage ainda sem o objectivo declarado de fazer um filme. . . R. N. M. — Exactamente. Aquele momento em que o Ihjãc está no carro dos serviços de saúde e pergunta o que é “hipocondríaco” – foi uma pergunta que um dia o miúdo me fez. Eu expliquei que ele não estava doente, ele dizia que sim. . . Foi uma conversa impossível que transitou desta forma para o filme. Para os krahô, o que era isso de terem pessoas entre eles com uma câmara, diálogos, o “acção” e “corta”?J. S. — Com o Ihjãc foi preciso algum tempo para explicar que era uma história, que queríamos filmá-lo durante bastante tempo. Ele quis estar no filme, mas quando tinha de ir para a roça ceifar ou buscar um parente doente, durante três dias não havia rodagem. Percebemos que havia um lado lúdico. Divertiam-se. Ao terceiro mês de rodagem, ouvimos uma conversa e percebemos que eles se referiam ao acto de filmar como “a brincadeira”. R. N. M. — O filme não era importante, importante era a brincadeira. Cortavam o cabelo, pintavam o cabelo. . . J. S. — O que nos causava problemas de raccord. Um dia que os calções do Ihjãc desapareceram, tivemos que comprar outros e guardá-los – ao fim de três dias, nada é de ninguém, há um sistema que faz com que os objectos circulem. R. N. M. — A certa altura, o Ihjãc estava assustado por mexer com o universo da feitiçaria, de forma lúdica, e achámos que tínhamos de ter uma reunião com um pajé que todos respeitavam. E ele disse: “Não se preocupem. ” Tínhamos explicado a história e o que queríamos, mas só entenderam o que propúnhamos quando chegaram as primeiras imagens do laboratório. Quando pedíamos para eles repetirem um gesto, uma acção, eles não percebiam porquê. Quando viram a montagem, perceberam. . . J. S. — Às tantas o Ihjãc começou ele próprio a dizer “corta” a meio das cenas, quando se enganava. R. N. M. — Antes de começarmos a filmar mostrámos-lhes A Cidade de Deus [Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002] e o making of. Eles não tinham ideia dos dois universos, realidade e ficção. Ficaram chocados, não percebiam como é que aquelas crianças do filme estavam vivas porque viram o sangue. Lateja no filme a enorme fragilidade de um mundo, gente ameaçada de todos os lados, por aquilo a que chamamos "real" e por aquilo a que chamamos "espíritos". J. S. — Nunca tínhamos explicitado isso dessa forma, mas a resposta é: totalmente. Os povos indígenas vivem um cerco que está a estrangulá-los cada vez mais. R. N. M. — Há um conflito, uma impossibilidade de circular, está muito presente. Há muitos preconceitos em relação aos índios naqueles povoados. J. S. — Há uma coisa transversal a todos os regimes desde a chegada dos portugueses, monarquia, ditadura militar, nova democracia: transformar o índio em cidadão brasileiro, logo, em pobre brasileiro. R. N. M. — Essa necessidade é só a face maquilhada do esbulho das terras. À medida que se transforma o índio em brasileiro, ele já não precisa de ver os seus direitos indígenas cumpridos. Mas o índio não se reconhece como brasileiro. Nem como índio. Vê-se como membro da sua etnia – e no Brasil há 280. Essa sensação de fragilidade, de ameaça, é táctil, como na sequência do reflexo de Ihjãc na água. J. S. — Há uma palavra: mecarõ. É o duplo. A imagem na água, a sombra, o espírito. . . R. N. M. — . . . a fotografia, o cinema, o reflexo no espelho. . . Isso tudo é uma imagem, isso é mecarõ. Quando vêem um filme, eles dizem que viram um mecarõ, tal como se se referissem a um espírito. J. S. — Como são animistas, o mundo dos animais, das pessoas, dos espíritos são universos paralelos dispostos horizontalmente. A divisão entre os mundos físico e metafísico não existe, é uma multiplicidade de existências no mesmo patamar. Interpretar uma personagem, repetir gestos, é o quê?R. N. M. — Todos os rituais dos krahô são encenação. Parece aleatório quando vemos pessoas a chorar. Mas é um rito supercoreografado. Há milhões de festas com personagens, pessoas que adquirem papéis. J. S. — Começámos a perceber que o gesto de filmar passou a ser um ritual. O nosso ritual era colocar a câmara no tripé, esperar pela luz e pedir que repetissem coisas quando elas não estavam bem. De que é que fugiram? Que outra vida é esta?R. N. M. — Esta relação tão próxima que tivemos com a vida, estarmos ali com uma câmara e não haver ninguém a dizer-nos nada. . . Tudo tem a ver com o tempo. Numa rodagem normal, tudo é feito para cumprir um plano. O que tira o prazer de estar com uma câmara apontada a uma presença que se quer capturar, porque é preciso tempo para que aconteça e para digerir o que aconteceu. Conseguimos desapegar-nos da parafernália de uma rodagem comum. Há um filósofo krahô que diz que o branco perdeu a paciência do mundo. Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo. Mas a experiência não é replicável. Ou é?J. S. — Vão ser precisos ajustes. Acabámos a rodagem à beira da exaustão. Houve problemas de saúde. Foi duro andar duas horas pelo mato com aquele calor, os nossos corpinhos branquinhos não estão preparados. Não sei se vamos continuar a querer filmar com cobras a aparecer. Uma das cenas mais bonitas é aquela, no fim, em que estão todos a cantar numa casa, a câmara a andar da esquerda para a direita. Na noite em que ia acontecer essa festa, que esperávamos há meses, adoeci, 40 graus de febre. A cantoria ia começar, a Renée foi ter comigo a dizer que não ia dar. Disse-lhe, “vai filmar”. “Ok, não morras aqui”. Fiquei a ouvir cantorias ao longe, estava já em delírio, só me lembro que horas depois a Renée voltou, não sabia o que tinha feito, tinha andado com a câmara para a direita e para a esquerda, não sabia se fazia sentido algum, porque estava sozinha. Quando vimos as imagens, é o momento mais incrível. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não há sequência em que se sinta o trabalho formal abandonado ou ultrapassado pelas circunstâncias. R. N. M. — Isso tem a ver com a nossa conexão com tudo aquilo. . . J. S. — . . . com o facto de estarmos inebriados. Houve cenas filmadas contra tudo o que fazia sentido. E todas as mais pensadas ficaram fora do filme. Ainda pensámos afirmar mais a nossa presença, com câmara à mão, sujar o filme. Filmámos várias coisas assim, mas não resultou justo. Há a sensação de trabalhar com as limitações no máximo e perceber a essência: pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara espírito, porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar. . . Isso é quase studio system, Hollywood. . . R. N. M. — [risos] E tivemos efeitos especiais krahô, fumaças e tudo.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave direitos escola negro adolescente medo rapariga circo
Cultura e economia influenciam a decisão sobre quem morre num acidente
Investigação analisou 40 milhões de decisões para tentar perceber quem é que o mundo prefere salvar em caso de acidente com carros autónomos. (...)

Cultura e economia influenciam a decisão sobre quem morre num acidente
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Investigação analisou 40 milhões de decisões para tentar perceber quem é que o mundo prefere salvar em caso de acidente com carros autónomos.
TEXTO: Em caso de acidente, devem os mais velhos ser atropelados para salvar a vida de crianças? A profissão ou estatuto social devem ser tidos em conta? A vida de uma mulher grávida é mais importante do que a de um sem-abrigo? Os carros autónomos não terão apenas de saber andar por estradas com outros carros, peões e obstáculos. Também terão de se orientar pelos labirintos da ética quando tiverem de decidir que vidas poupar num acidente e que pessoas (ou animais) arriscar matar. São decisões que têm sido tomadas exclusivamente por humanos e que nem sempre são fáceis de explicar – muito menos de transformar em regras para serem executadas por máquinas. A Experiência da Máquina Moral é um estudo de enorme dimensão que tenta responder a algumas destas questões. Analisou quase 40 milhões de decisões tomadas numa plataforma online por pessoas de 233 países e territórios, que foram confrontadas com cenários de acidentes. O resultado, publicado agora na revista Nature, procura traçar um esboço dos padrões morais que regem o funcionamento das sociedades em várias partes do planeta. A investigação revelou três preferências mais pronunciadas: poupar vidas humanas em detrimento dos animais; poupar o maior número vidas possível; e privilegiar os mais novos. De forma menos acentuada, quase todos os países mostraram também uma tendência para poupar a vida de mulheres em vez da dos homens. Mas uma análise mais fina revelou diferenças nas decisões tomadas nos vários países, com opções sobre quem morre e quem vive que parecem seguir as linhas da desigualdade económica, do funcionamento das instituições e das tradições culturais – e que mostram que há divisões que tornam difícil a criação de regras globais. “Nunca na história da humanidade permitimos que uma máquina decidisse autonomamente quem deve viver e quem deve morrer, numa fracção de segundo, sem supervisão em tempo real. Vamos atravessar essa fronteira a qualquer momento, e não vai acontecer num cenário distante de operações militares”, escreveram os oito académicos autores do artigo, que são investigadores do MIT e da Universidade de Harvard, nos EUA, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e da Universidade de Toulouse Capitole, em França. “Precisamos de ter uma conversa global para transmitirmos as nossas preferências às empresas que vão conceber algoritmos morais e aos legisladores que os vão regular”, argumentaram. Os dados foram recolhidos através da Moral Machine, um site criado pelo MIT em 2016. De acesso livre, mostra aos utilizadores cenários de acidentes, com diferentes tipos de pessoas e diferentes desfechos. O utilizador tem de indicar qual a opção que prefere: por exemplo, deixar seguir o carro em frente e matar um peão, ou desviar o carro para uma barreira e matar os três ocupantes. O teste completo mostra aos utilizadores 13 cenários de decisão. No final, são pedidas informações como o género, idade, ideologia política e religião (perto de meio milhão responderam a este inquérito). A plataforma teve nestes dois anos grande atenção mediática, ajudando os investigadores a conseguirem os 40 milhões de respostas. Já tinham sido divulgadas análises preliminares dos dados e alguns dos investigadores que assinam o artigo também já tinham publicado outro estudo sobre o dilema ético dos acidentes. O site, no entanto, não abarca a complexidade dos acidentes reais, reconhecem os investigadores: os cenários mostrados na Moral Machine têm sempre desfechos de vida ou de morte certa (não há feridos, nem é indicada uma probabilidade morte) e também não estão contempladas questões como a relação entre os indivíduos (por exemplo, se são casados). A equipa ressalva ainda que as preferências morais das pessoas não têm necessariamente de se transformar em leis. Como o artigo refere, a ideia de proteger as crianças é contrária ao que foi decidido na Alemanha, um país com uma forte indústria automóvel e que já estabeleceu regras para o comportamento ético de carros autónomos. A Alemanha determinou que não pode haver discriminação das vítimas com base em qualquer tipo de factor, como o género ou idade. Pelo contrário, na Moral Machine, os tipos de pessoas com mais probabilidade de serem salvos (quando comparados com a probabilidade de um adulto) foram, por esta ordem, os bebés, raparigas, rapazes e mulheres grávidas. É uma lista de preferências em que médicos, atletas e executivos (de ambos os géneros) são privilegiados, onde os mais velhos são remetidos quase para o fim, e na qual os cães aparecem antes dos criminosos. O estudo detectou diferenças de decisão tanto entre países, como entre grupos de países (foram analisados 130, dos quais tinha havido, pelo menos, 100 pessoas a fazer o teste online). A América Latina mostrou uma preferência maior por poupar mulheres e pessoas saudáveis, e uma menor tendência para diferenciar pessoas e animais. Já no Oriente – um grupo onde os investigadores integraram a China, Japão e países islâmicos, como a Indonésia e a Arábia Saudita – a opção de poupar os mais novos é muito menos frequente. Uma análise país a país revelou, por seu lado, diferenças “altamente correlacionadas com as variações culturais e económicas”. Os países mais pobres e onde as instituições funcionam pior tendem a ser mais complacentes com os peões que atravessam fora das passadeiras. É algo que os investigadores sugerem poder estar relacionado com uma maior tolerância face ao incumprimento de regras. Já as sociedades com maior desigualdade económica mostraram uma preferência por diferenciar as potenciais vítimas com base no estatuto social. E a inclinação para poupar mulheres, embora observada em quase todos os países, foi mais forte naqueles em que as mulheres estão mais bem posicionadas em indicadores de saúde e sobrevivência. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Portugal – que neste mês fez testes com carros autónomos em estradas – surge alinhado com a média global em oito dos nove indicadores estudados. A diferença surge na maior preferência por poupar as pessoas cumpridoras da lei. Os dados revelam também uma proximidade ibérica no que diz respeito às opções éticas: Espanha é o país com decisões mais semelhantes às dos indivíduos em Portugal. O país mais distante de Portugal é Angola, que se destaca da média por uma muito menor tendência para salvar peões e uma muito maior preferência por poupar a vida de pessoas com estatuto social elevado. As diferenças observadas “sugerem que os fabricantes e os legisladores devem, se não dar-lhes resposta, pelo menos serem conhecedores das preferências morais dos países nos quais concebem políticas e sistemas de inteligência artificial”, concluem os investigadores. “Mesmo que as preferências éticas do público não devam ser necessariamente o principal decisor de políticas sobre ética, a disposição das pessoas para compraram veículos autónomos e tolerá-los nas estradas vai depender da aceitação das regras éticas que forem adoptadas. ”Para perceber o estado actual das competências digitais dos cidadãos a nível europeu, a rede europeia REISearch lançou o jogo iNerd. Com a pergunta “quão nerd é a Europa”, o objectivo é ajudar os participantes a perceber o conhecimento que têm em áreas como a inteligência artificial. Faz parte da terceira campanha do projecto lançado pelo Atomium – Instituto Europeu para a Ciência, Media e Democracia.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Esta casa de papel nasceu antes da República e resiste para contá-lo
De Saramago a Luandino Vieira, pela Tipografia Lousanense já passaram páginas de perder a conta em 133 anos. Hoje, a empresa já não vive só de livros. (...)

Esta casa de papel nasceu antes da República e resiste para contá-lo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-05 | Jornal Público
SUMÁRIO: De Saramago a Luandino Vieira, pela Tipografia Lousanense já passaram páginas de perder a conta em 133 anos. Hoje, a empresa já não vive só de livros.
TEXTO: O Commercio da Louzã ia no seu segundo ano de vida. O país fervilhava com a implantação da República e, no dia 14 de Novembro de 1910, a primeira página do jornal traz uma peculiar explicação aos seus leitores: “Não se tem este semanário publicado ha 5 semanas, quando o assumpto mais tem abundado por todo o paiz, depois da jornada de 4 para 5 d’outubro; não foi portanto a falta de assumpto nem a nossa má vontade que ocasionou tal interrupção, mas sim a falta duma machina onde está sendo impresso agora, que deviamos receber no fim de Setembro, vinda da Allemanha, e que pelo facto da revolução esteve detida 15 dias naquele paiz sendo só agora recebida”. O curioso relato é um entre os muitos episódios da vida de 133 anos da Tipografia Lousanense. A famosa máquina alemã já não mora na empresa centenária, mas outras há, não desse tempo, mas também antigas, nas instalações da gráfica, no centro da Lousã. É uma verdadeira “casa dos livros” tantos que ali passaram no prelo, recorda Ana Maria Ribeiro dos Santos, herdeira da tipografia, enquanto percorre um dos corredores da fábrica onde nas prateleiras se acumulam edições antigas e se vê ficção, cadernos escolares, livros técnicos. A tipografia nasceu em 1885 e está desde 1898 (há 120 anos) sob a liderança da família Ribeiro dos Santos. Atravessou todas as transformações tecnológicas da indústria gráfica – dos tipos em madeira e chumbo à impressão digital, passando pelas máquinas offset. E resiste, na Lousã, apesar das dificuldades dos últimos anos e da crise do mercado livreiro. Os rostos da empresa, hoje, são três. Ana Maria, de 64 anos, é a administradora, e ao seu lado tem as filhas Filipa (directora de produção, de 39 anos) e Ana Torres (directora comercial, de 29). É um tempo de passagem do testemunho, como já foi no passado. E tempo de mudança: a tipografia já não é apenas a casa dos livros onde foram impressos José Saramago, Álvaro Cunhal, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Daniel Sampaio, Freitas do Amaral, Adriano Moreira ou Marcelo Rebelo de Sousa. É uma casa de papel, que já não se dedica apenas à ficção e à não-ficção, mas a toda uma indústria gráfica que está para além disso – e esse é o segredo da sobrevivência. Bater à porta das editorasTudo começou em Maio de 1885 numa brasonada casa da Lousã, o Palácio dos Salazares, quando o bibliógrafo Aníbal Fernandes Tomás funda um semanário de ideais liberais e republicanos, o Jornal da Louzan, antecessor do Commercio da Louzã e de outros títulos. Bernardino Lopes Padilha, homem da terra, compra a tipografia e mais tarde vende-a ao bisavô de Ana Maria, Júlio Ribeiro dos Santos. É a partir dessa altura que se constrói toda uma história de cinco gerações. Primeiro, chegou a hora de o avô da actual proprietária assumir as rédeas do negócio. Hortênsio trabalhava na Medicina Legal em Coimbra e foi aí, pelos contactos angariados na universidade, que começou a levar as obras de professores para a Lousã. Lucília, a mulher, estava na fábrica e assim os dois a comandaram durante mais de 50 anos. Vem dessa altura a aposta no livro. Júlio, o pai de Ana Maria, assume a empresa depois da morte da mãe em 1983. Ana tinha estudado economia em Coimbra e do sector gráfico “sabia muito pouco”. Mas chegara o tempo de se dedicar à empresa, acompanhando o pai. Decide apostar no crescimento da empresa do livro, o que exigia “uma especialização dentro do sector da tipografia, por ser preciso máquinas especializadas em coser, cortar, vincar e dobrar as páginas”. Foi preciso ir para Lisboa bater à porta das editoras. Ana Maria decide tentar a Caminho, por mais que o pai a avisasse: “Não temos capacidade para isso”. Mas a filha toma a decisão e marca uma reunião. Fato novo e lá foi, acompanhada da cunhada, falar com “o mestre Joaquim Correia”. Acabaram por trabalhar juntos durante décadas. E com outras tantas editoras: a Edições 70, a Almedina, a Plátano, a Didáctica. “A tipografia tem uma história de mulheres: a minha bisavó e a minha avó estiveram à frente da empresa. Mas quando comecei, ainda era a única mulher nas reuniões”, recorda a administradora. Ana Maria conheceu muitos autores e editores: indo às suas casas, outros na Lousã. A gráfica Peres, entretanto encerrada, fazia as grandes tiragens da Caminho e a Lousanense assegurava as mais baixas, de 30 ou dez mil exemplares. Quando José Saramago ganhou o Nobel em Outubro de 1998, Ana Maria tinha em mãos vários títulos do escritor. “Tivemos de garantir 200 mil livros num mês e pouco. Assim que fazíamos três ou quatro mil exemplares de um, mandávamos distribuir; ficavam prontos mais cinco ou seis mil de outro, seguiam. Os distribuidores chegaram a estar à porta à espera”. Coordenou toda essa operação – e um dia Saramago ligou a agradecer. Foi um “privilégio”. Como fora o telefonema de Álvaro Cunhal em 1994, convidando-a a assistir à apresentação de A Estrela de Seis Pontas (Edições Avante!). E Ana Maria lá estava no 14 de Dezembro, no Hotel Altis em Lisboa, a ouvir Cunhal confirmar que Manuel Tiago era o seu pseudónimo. Um “segredo de polichinelo de toda a gente conhecido”, como escreveria Torcato Sepúlveda no PÚBLICO alguns dias depois. Dar a volta e continuarDos anos 1980 até à viragem do século, a tipografia conseguiu crescer em volume de facturação. Depois vieram os anos de chumbo. As empresas à volta encerravam. Na Lousã, os stocks de papel acumulavam-se no armazém, os clientes de sempre não garantiam a cadência das máquinas. O maior desafio surgiu quando o grupo Leya deixou de imprimir na tipografia. “Trabalhávamos com 60-70-80% da produção da Caminho, da Oficina do Livro e da Editorial de Notícias [actual Casa das Letras] e de um momento para o outro ficámos sem editoras”, conta Ana Torres, hoje directora comercial. Foi preciso reposicionar a empresa, fazer certificação da produção, renegociar com os bancos, encontrar um caminho. Ana lembra-se bem desses dias difíceis. “Nunca deixámos de pagar um ordenado, mas tivemos muita dificuldade em pagá-los. Muita. E tivemos de fazer um plano de pagamentos dos subsídios”. A empresa tinha 65 trabalhadores. Uns aceitaram sair, outros aposentaram-se. Hoje são 29 na empresa, onde também o filho mais novo de Ana Maria Ribeiro dos Santos, de 19 anos, já tem tarefas na área digital. Antes da saída da Leya, o livro representava cerca de 80% do portefólio da tipografia, o que obrigou a diversificar a produção, passando a apostar mais em catálogos, materiais de embalagem, manuais de instruções para equipamentos. “Tudo o que não fazíamos passámos a fazer”, conta Ana Torres. Agora há três empresas âncora nesse segmento: uma de fabrico de luvas, uma de componentes eléctricos e uma empresa de licor. Filipa, a filha mais velha, estudou gestão, e Ana fez marketing. E com elas a direcção da empresa foi-se adaptando aos tempos. Resume a mãe: “É uma empresa antiga com um espírito jovem. Os meus filhos criaram uma dinâmica como se a tipografia tivesse meia dúzia de anos”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A gráfica continua a imprimir livros – os livros da Fundação Calouste Gulbenkian, as chancelas da editora 20-20 (Cavalo de Ferro, Vogais, Nascente e Elsinore) e muitos manuais escolares de editoras portuguesas que trabalham com Timor-Leste, Moçambique e Angola. Depois do período crítico, a tipografia voltou a crescer no livro, com outra dimensão. Se antigamente quem lá trabalhava se habituara a comprar camiões de papel, agora, o comum é encomendar uma palete de cada vez, à medida da produção. “Em vez das grandes quantidades, temos um novo desafio – produzir uma unidade pelo menor custo possível”, sintetiza Ana Torres. A empresa factura por ano cerca de um milhão de euros. Metade do volume de negócios vem do mercado livreiro e a outra metade das restantes áreas de negócios. Nos momentos mais difíceis, Ana Maria lembrava-se de como a empresa conseguiu sempre resistir, de como o avô tivera dívidas e o pai resolvera a situação, investindo e crescendo. “São ciclos de vida. É preciso ter a resiliência de dizer: ‘Nós vamos conseguir’”. Com esse espírito faz a passagem da empresa aos três filhos: “É mais fácil desistir do que continuar. Continuar é uma luta de todos os dias”.
REFERÊNCIAS:
Claude Barras encontra a Disney no orfanato
Nomeações para o Óscar, selecção para Cannes, uma aclamação sem paralelo para uma animação artesanal sobre um órfão que refaz a sua vida. A Minha Vida de Courgette, diz o seu realizador, está entre Ken Loach, Walt Disney e Wallace & Gromit. Como diz? (...)

Claude Barras encontra a Disney no orfanato
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-10-23 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181023181420/https://www.publico.pt/n1771374
SUMÁRIO: Nomeações para o Óscar, selecção para Cannes, uma aclamação sem paralelo para uma animação artesanal sobre um órfão que refaz a sua vida. A Minha Vida de Courgette, diz o seu realizador, está entre Ken Loach, Walt Disney e Wallace & Gromit. Como diz?
TEXTO: “Estou a viver numa redoma, como se não fizesse realmente parte da realidade e tivesse de lá voltar daqui a uns tempos. . . ” Não é para menos: há dois anos, o suíço Claude Barras (n. 1973) era mais um dos devotos da técnica do stop-motion (animação de marionetas fotograma a fotograma) que trabalhava por militância, por amor à arte. Hoje, quando o encontramos no Museu da Marioneta, em Lisboa, por ocasião do festival de cinema de animação Monstra (onde vencerá o Grande Prémio dias mais tarde), Barras traz na mochila – para além de duas caixas de madeira das quais falaremos mais à frente – a nomeação para o Óscar de melhor longa-metragem de animação e para o Prémio Lux do Parlamento Europeu, e o triunfo na categoria de animação nos Césares e nos Prémios do Cinema Europeu. Tudo isto depois da estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes em 2016 ter lançado A Minha Vida de Courgette, a sua primeira longa-metragem, esta semana nas nossas salas, para um reconhecimento global que muito poucas animações (europeias mas não só) conseguem atingir. Ao longo de 20 minutos de conversa, Barras, afável e descontraído, não deixará de se referir aos “pequenos milagres” que parecem ter acompanhado todo o desenvolvimento de A Minha Vida de Courgette, adaptação de um livro do escritor francês Gilles Paris na qual trabalha desde 2009. Tem consciência que este tipo de percurso é – a palavra repete-se - “um milagre”: “Tenho a impressão de ter verdadeiramente encontrado as pessoas certas no momento certo, desde os meus produtores à Sophie Hunger, que escreveu a banda-sonora, passando pela Céline Sciamma [realizadora de Bando de Raparigas], que trabalhou na versão final do argumento e que às tantas me parecia conhecer-me há anos e escrever só para mim, ” sorri. “E tive também a sorte do filme ter estreado numa altura em que as pessoas precisavam de ter uma visão do mundo que fosse optimista. ”O que não era evidente: A Minha Vida de Courgette acompanha o percurso de um órfão – Icare de seu nome, Courgette como prefere ser conhecido - enquanto se habitua à vida numa casa de acolhimento, ao lado de outros miúdos sem pais ou vindos de famílias que não podem tratar deles. Mas o “milagre” - para citar o mote que o próprio realizador reitera – é a delicadeza com que o filme fala de coisas sérias, à altura do público mais jovem, sem escamotear questões difíceis nem delas fazer um bicho de sete cabeças. Barras anui, usando a Disney dos “velhos tempos” como exemplo, quando histórias como Bambi ou Dumbo não hesitavam em confrontar as crianças com medos ou tragédias. “Queria que o meu filme fosse como esses filmes, que se iam ver em família ao cinema e que todos podiam apreciar. Hoje em dia, quando se faz um filme de animação, obrigam-nos quase a fazê-lo só para crianças, tem de fazer parte de categorias específicas, 'dos 6 aos 12 anos'… Tudo está demasiado formatado e é muito difícil financiar um filme fora dessas categorias. ”Ora, Barras sempre pensou A Minha Vida de Courgette para “ser visto em família” - “um filme que fosse para miúdos mas suficientemente 'à parte' para que os adultos também o apreciassem. E é uma história que fala da família, do que é a família, a família de sangue e a família do coração. É um tema que tem muito a ver com a nossa sociedade cujos valores estão em mudança. ” Como ultrapassar os problemas de financiamento, então? “É preciso preparar tudo muito bem com o produtor, ” diz o animador. “Quanto mais dinheiro se tem, menos liberdade se tem. É preciso encontrar um ponto onde as expectativas dos financiadores, das televisões, não intervenham na formatação do filme. Até porque tenho uma abordagem minimalista da encenação, e esta não é uma história de acção, é um filme de emoções. ”Em parte, isso deve-se ao próprio método de rodagem, com o realizador a invocar o nome do britânico Ken Loach (Eu, Daniel Blake) como “modelo”. “Gravámos as vozes à maneira de Loach, com actores não profissionais muito próximos das personagens, a quem fizemos descobrir a história cena a cena. Acabámos com 30 horas de gravações que em seguida montámos ao longo de seis semanas – e é aqui que um produtor compreensivo é importante, porque vai perceber que perdendo aqui um pouco mais de tempo vamos ganhá-lo pelo fim da rodagem. Gravámos muito mais diálogos do que usámos, fui retirando tudo aquilo que era desnecessário, e montámos toda a estrutura da voz antes mesmo de ter feito o primeiro desenho, o primeiro storyboard. O «esqueleto» do filme são as vozes. ” (Parêntesis para explicar que, em Portugal, A Minha Vida de Courgette estreia maioritariamente dobrado em português, com a versão original a ser exibida apenas em algumas salas. )A gravação das vozes foi realizada em 2013, numa altura em que Barras já trabalhava no projecto há vários anos. “Em 2009 realizei uma curta que serviu como 'maqueta' do projecto, em 2011 tive a primeira conversa com os produtores e em 2012 começámos a montagem financeira”, explica. “A partir daí, A Minha Vida de Courgette implicou três anos de produção: um ano para fabricar os bonecos e os cenários, um ano de rodagem e um ano de pós-produção. ” Ao todo, a produção ocupou cerca de 50 animadores em 15 plateaux diferentes em simultâneo, e o papel do realizador é muito fluido: “Faço sobretudo direcção artística ao nível da concepção das personagens, dou indicações em termos de emoções, de intenções, mas a supervisora de animação ou o director de fotografia contribuem com o seu próprio savoir-faire. É preciso ir em frente e tomar decisões muito rapidamente, responder às pessoas. Procuro nunca duvidar do que estou a fazer, e quando tenho dúvidas não as partilho, resolvo-as sozinho; é um trabalho de equipa, e é preciso termos um clima criativo e positivo. ”Nomeado para o Óscar de melhor animação, a estreia do suíço Claude Barras com A Minha Vida de Courgette nunca condescende com miúdos nem graúdos. A animação em stop-motion é, já o sabíamos, delicada e paciente – uma escolha que Barras define como “militante”. “É um espaço de liberdade, de artesanato, ” defende. “Vivemos numa época demasiado rápida. Venderam-nos o progresso como algo que nos ia libertar, mas aconteceu exactamente o contrário. Quanto mais trabalhamos com computadores para ganhar tempo mais enchemos o tempo que ganhamos com trabalho. . . O stop-motion está fora disso tudo, é um espaço manual, de criação, como uma escultura que se vai revelando aos poucos. ” A referência a Ken Loach começa a fazer sentido. . . “Sim, sinto-me mais próximo da tradição do cinema social europeu, admiro imenso Loach, ou os irmãos Dardenne. Mas vi Loach dizer numa master class para não fazermos filmes pesados como ele, para fazermos as pessoas rir porque hoje é importante fazer rir. É por isso que admiro imenso os animadores da Aardman [o estúdio inglês por trás de Wallace e Gromit ou A Fuga das Galinhas]. Conhece a série de televisão que eles fizeram, Creature Comforts, onde foram para a rua gravar depoimentos de transeuntes e depois os colocaram na boca de animais? Adoro esse desfasamento entre o realismo e a fantasia. ”Que, de certa maneira, é exactamente aquilo que A Minha Vida de Courgette consegue ter, com as suas marionetas artesanais profundamente expressivas – e cuja verdadeira dimensão é revelada nas tais caixas de madeira que Barras trouxe consigo à Monstra, que contêm o “herói” Courgette e vários dos elementos que lhe dão vida. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Os bonecos respondem a uma combinação de questões artísticas e de produção: “Levei em conta o dinheiro que tínhamos ao conceber as personagens, porque era preciso manter o orçamento razoável, mas ao mesmo tempo procurei virar as exigências do avesso, criando bonecos simples e fáceis de animar mas que fossem muito expressivos. As cabeças grandes em que reparou permitem-me fazer uma coisa pouco habitual na animação, que é focar o rosto das personagens, fazer grandes planos – dá-lhes uma materialidade, uma dimensão táctil que nos permite aproximar-nos delas e compreendê-las melhor. ”Tudo para chegar ao “final feliz” desta volta ao mundo que A Minha Vida de Courgette anda a fazer há um ano. “Uma ocasião única”, diz Barras, “de conhecer espectadores, realizadores, crianças… Conheci muita gente, falei muito sobre o filme e à volta do filme, e isso é importante, porque este é um filme feito para que se fale dele e à volta dele. Mas um filme é também a história da sua rodagem. E todos nós, que trabalhámos nele, vivemos nesta casa com estas personagens durante muito tempo numa amizade, numa colaboração, numa entre-ajuda. Agora, é preciso continuar a viver. . . ”
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Palavras-chave ajuda social
Benfica desloca-se a Guimarães nos "quartos"
Sorteio ditou deslocações dos três "grandes". FC Porto visita Leixões, Feirense acolhe Sporting e Benfica irá a Guimarães. (...)

Benfica desloca-se a Guimarães nos "quartos"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sorteio ditou deslocações dos três "grandes". FC Porto visita Leixões, Feirense acolhe Sporting e Benfica irá a Guimarães.
TEXTO: Realizou-se, esta sexta-feira, o sorteio dos quartos-de-final da Taça de Portugal. O jogo grande será realizado no Estádio D. Afonso Henriques, onde o Vitória de Guimarães receberá o Benfica. O Sporting vai deslocar-se a Santa Maria da Feira, enfrentando o Feirense. Nas meias-finais, os vencedores destas duas eliminatórias defrontar-se-ão pelo ingresso para o Jamor. Já o FC Porto não irá percorrer muitos quilómetros para o jogo dos "quartos": os portistas visitarão os vizinhos do Leixões no Estádio do Mar. A formação leixonense é a única sobrevivente da II Liga. Já o Desportivo das Aves, actual detentor da Taça, recebe o Sporting de Braga. O vencedor deste jogo vai defrontar o vencedor do encontro entre Leixões e FC Porto. O sorteio desta sexta-feira marcou a primeira época desde 2007-08 com os três "grandes" simultaneamente presentes nos quartos-de-final da prova rainha do futebol nacional. Jogo 1: V. Guimarães-Benfica Jogo 2: Feirense-SportingJogo 3: Desp. Aves-Sp. BragaJogo 4: Leixões-FC PortoSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. V. Guimarães / Benfica - Feirense/ SportingLeixões / FC Porto - Desp. Aves / Sp. Braga
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Palavras-chave rainha aves
Sorolla, um pintor optimista para descobrir no Museu de Arte Antiga
Primeira monográfica em Portugal deste pintor espanhol que viveu num mundo em transição e que não tinha medo da luz forte do Mediterrâneo. Mais conhecido pelas cenas à beira-mar, é Terra adentro que agora nos leva. Até 31 de Março. (...)

Sorolla, um pintor optimista para descobrir no Museu de Arte Antiga
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Primeira monográfica em Portugal deste pintor espanhol que viveu num mundo em transição e que não tinha medo da luz forte do Mediterrâneo. Mais conhecido pelas cenas à beira-mar, é Terra adentro que agora nos leva. Até 31 de Março.
TEXTO: Gostava de trabalhar ao ar livre porque lhe fazia falta o contacto directo com a natureza, os barulhos, os cheiros. Mesmo quando as telas eram de grandes dimensões, preferia estar num campo aberto a olhar para as montanhas, ou numa praia qualquer do seu Mediterrâneo, do que no estúdio. E isso deve-se, em boa parte, ao seu amor pela vida. “Sorolla teve duas grandes paixões — a mulher, Clotilde, e a pintura. E tudo o que lhe importa pintar é a vida, a realidade como ele a vê, com um optimismo que os intelectuais do seu tempo não lhe perdoam, mas que passa para tudo o que ele faz”, diz Consuelo Luca de Tena, directora do Museu Sorolla de Madrid, que está em Lisboa para inaugurar a exposição que abre esta sexta-feira no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Terra adentro: A Espanha de Joaquín Sorolla reúne 118 pinturas de Joaquín Sorolla y Bastida (1863-1923), um pintor espanhol que foi muito popular no seu país e fora dele, que está representado em grandes colecções europeias e norte-americanas, públicas e privadas, mas que em Portugal é ainda pouco conhecido. Oriundas sobretudo da sua casa-museu madrilena (só três pertencem a colecções privadas, uma delas à sua bisneta), legada ao Estado espanhol recheada de obras e objectos pessoais pela sua viúva, Clotilde García del Castillo, as obras expostas no MNAA dão uma perspectiva geral da carreira deste artista nascido em Valência, que fez parte da sua formação em Roma e que nunca chegou a pintar em Portugal, como planeara. Esta primeira monográfica de Sorolla em Portugal, composta por nove núcleos, marca também o regresso do pintor ao MNAA, que já lhe reservara uma sala na exposição que em 2015-2016 fez em torno da Colecção Masaveu. Importada do Museu Sorolla, Terra adentro concentra atenções na pintura de paisagem que o artista, celebrizado pelas suas cenas luminosas à beira-mar com pescadores, mulheres e crianças, regista nas suas incursões pelo interior, quando, no âmbito de um movimento regenerador que se estende a várias áreas, está apostado em contribuir para a criação de uma nova imagem de Espanha. Em Lisboa, no entanto, a exposição tem o dobro das obras para que possa tocar, também, outros aspectos da obra deste espanhol que costuma ser “arrumado” entre os impressionistas, mas cuja catalogação não é fácil. Olhar para Sorolla e mostrar a sua obra, escrevem no catálogo o director e o subdirector do MNAA, António Filipe Pimentel e José Alberto Seabra Carvalho, permite compreender melhor a pintura do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, “sem obediência às narrativas oficiais e académicas que, por assim dizer, passam do impressionismo e do pós-impressionismo para o cubismo ou o modernismo, como se entre ambos mais não tivesse havido do que um deserto”. As obras “acrescentadas” a Terra adentro concentram-se nas últimas salas, onde estão arrumadas as cenas de praia que o tornaram popular, como as luminosas Meninas no Mar (1909) e Mar e rochas de San Estebán (1903), e os estudos de grandes dimensões que fez para a maior encomenda que recebeu em toda a sua carreira, a do ciclo para a biblioteca da Hispanic Society of America, em Nova Iorque, fundada pelo filantropo Archer M. Huntington. Neles se podem ver vários tipos tradicionais, mostrando a riqueza de costumes e actividades das diversas regiões de Espanha, em cidades como Segóvia, Ávila e Salamanca. “Nestes estudos de tipos, que nas pinturas finais parecem ganhar vida, como no cinema, ele regista todo um folclore que está a desaparecer dentro do novo movimento nacionalista, que quer dar a Espanha uma imagem nova, uma identidade nova”, diz Carmen Pena, a comissária da exposição. Foi no âmbito desta encomenda para a Hispanic Society que Sorolla, explica ao PÚBLICO o subdirector do MNAA, planeou uma vinda a Portugal: “Ele não vem por causa da agitação do sidonismo, mas tencionava vir. A perspectiva da encomenda da Hispanic Society vai no sentido de registar as regiões da Ibéria, da Hispânia, e, nesse caso, trata Portugal como se fosse mais uma. ”Portugal surge apenas uma vez nestas obras etnográficas em que Sorolla parece querer “salvar a memória da Espanha antiga, salvá-la do esquecimento que a industrialização quer impor”. É numa pintura em que se vê, na outra margem do Guadiana, a silhueta da vila raiana de Castro Marim, com homens e mulheres em trajes tradicionais do Algarve e, inusitadamente, do Minho. O desconhecimento que Portugal tem da obra de Joaquín Sorolla não é fácil de explicar, já que a sua popularidade em vida foi grande, tanto em Espanha como nos Estados Unidos. Lembra a directora do Museu Sorolla que o pintor atraiu multidões nas suas primeiras exposições norte-americanas, em 1909. Cidades como Buffalo, Boston, Chicago e St. Louis tiveram filas à porta dos museus e em Nova Iorque bateu recordes de visitantes. “Mais de 200 mil pessoas foram a esta exposição em Nova Iorque, que durou um mês. Foi um êxito delirante que lhe valeu encomendas para muitos retratos, incluindo o do Presidente americano William Howard Taft. ”Segundo o diário El Español, Sorolla levou para essa digressão americana um número impressionante de pinturas – cerca de 350, das quais vendeu 200. “As que trouxe de volta foi as que não quis vender”, diz Consuelo Luca de Tena, reforçando a ambição do artista valenciano: “Este périplo americano foi muito importante para Sorolla, que, apesar de ter pintado sobretudo Espanha e de ter procurado construir-lhe uma nova identidade a partir da paisagem e dos elementos tradicionais que representou de uma forma muito moderna, sempre quis ser um pintor internacional. ”Em Portugal, a crítica e a História de Arte praticamente não o referem. “Não sabemos porquê. Também não há referências a pintores portugueses nas suas cartas”, diz Seabra Carvalho, para quem Sorolla está longe de ser um pintor de ruptura e é, antes de mais, um artista que, sem renunciar à ordem do academismo, é nele “profundamente moderno”. A retrospectiva que a National Gallery de Londres lhe vai dedicar entre Março e Julho do próximo ano, e que viaja depois para a Irlanda, está a ser promovida como a “primeira exposição britânica” dedicada a um “mestre da luz”, do impressionismo, e parece decorrer, em parte, do “redescobrimento” internacional de que o pintor tem vindo a ser alvo nos últimos 20 anos na Europa e nos EUA (à sua programação também não deverá ser alheio o facto de o director da National Gallery ser desde 2015 Gabriele Finaldi, grande conhecedor da pintura espanhola que foi o n. º 2 do Museu do Prado, onde houve uma grande monográfica de Sorolla em 2009). “Sorolla é muitas vezes apresentado como um pintor impressionista mas, para mim, sendo uma consequência do impressionismo, ele é já um pós-impressionista”, defende Consuelo Luca de Tena, lembrando que o artista valenciano se define como “naturalista” e tem um domínio total da luz que em parte vem da fotografia (no começo da sua carreira coloria fotografias no estúdio do seu futuro sogro). “Ele usa uma pincelada larga, ao contrário da maioria dos impressionistas. Há que pintar depressa, diz, porque a luz muda depressa. Esta consciência faz parte do seu domínio das técnicas da fotografia”, explica ao PÚBLICO a directora do Museu Sorolla. Numa das pinturas do primeiro núcleo da exposição, um delicado e algo inesperado Estudo para uma vela (1894), vê-se bem essa ligação à fotografia, acrescenta por sua vez a comissária, Carmen Pena: “Ele domina a composição e os efeitos luminosos a partir da sua experiência fotográfica. ”E domina a luz mesmo quando ela é muito difícil, garante Luca de Tena. “Por norma os impressionistas que pintam praias preferem as do Norte, as da Normandia, porque a sua luz é mais suave. Uma luz intensa, dura, branca, como a das praias do Mediterrâneo, é muito mais difícil de pintar… Mas Sorolla, que usa as maneiras de iluminar novas dos impressionistas, não tem medo dela. ” Nas suas pinturas, explica, os primeiros planos são geralmente mais escuros do que os segundos para que pareça que a luz vem de dentro. Atravessando um período em que Espanha procura reinventar-se política e socialmente apostando na educação, que urge reformar para que não continue a promover as glórias de um passado em que muitos intelectuais não se revêem, Sorolla vai apoiar um dos mais arrojados projectos pedagógicos que surgiu em 1876, com o país já mergulhado num clima de depressão, acentuado 20 anos depois com a perda das últimas colónias ultramarinas. A Institución Libre de Enseñanza, fundada por uma série de intelectuais que defendiam, como o próprio nome indica, a liberdade de ensino, rejeitava a pintura historicista que durante décadas animara os salões e defendia o regresso à paisagem pura, sem narrativa, um programa feito à medida de Sorolla. E de um Sorolla mais introspectivo, como o de Terra adentro. “As suas paisagens puras do interior não têm figuras, não têm símbolos. Mas o que ele quer, o que o apaixona, seja no interior seja à beira-mar, é transformar a realidade em pintura. ” E isso vê-se nas obras que agora estão no MNAA e que vão das praias do País Basco, com os contrastes fortes de que o artista tanto gostava, à Andaluzia dos ambientes dourados de cores garridas, quentes. “A sua outra paixão era a mulher, Clotilde, por quem era verdadeiramente obcecado”, diz Carmen Pena. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Musa e amante, Clotilde García del Castillo é também a companheira com quem Sorolla discute o seu trabalho e a mãe dos seus três filhos. E a família, na intimidade da casa ou nas horas de lazer no Levante espanhol, é um dos temas recorrentes da sua pintura. “Sorolla desenha e pinta Clotilde vezes sem conta ao longo de toda a sua carreira”, diz a comissária, chamando a atenção para o retrato que abre a exposição, uma obra de meados da década de 1880 que passa quase despercebida nessa primeira sala em que se faz, no sentido literal, uma cronologia da vida e da obra do artista. “A relação entre os dois é muito apaixonada, mas tem também um lado muito cerebral. Sorolla conta muito com a opinião de Clotilde, o que não é comum nos artistas da época. ”Chegam a escrever-se duas vezes por dia quando o pintor está longe e essa correspondência publicada nos volumes de Epistolarios de Joaquín Sorolla – mensagens onde o amor e o desejo convivem com o pragmatismo da vida quotidiana – mostra quão cúmplice é a relação entre os dois. “Ando coxo, faltam-me as tuas opiniões serenas e os teus beijos apaixonados”, escreve o pintor à mulher em Fevereiro de 1908. “Pintar e amar-te é tudo. Parece-te pouco?”
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Partidos LIVRE
A cozinha mais descontraída de Tiago Bonito ocupa um Canto Redondo
O novo restaurante na Casa da Calçada, em Amarante, não tem a formalidade do Largo do Paço. Quer ser uma alternativa para os hóspedes do hotel e atrair os amarantinos. (...)

A cozinha mais descontraída de Tiago Bonito ocupa um Canto Redondo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: O novo restaurante na Casa da Calçada, em Amarante, não tem a formalidade do Largo do Paço. Quer ser uma alternativa para os hóspedes do hotel e atrair os amarantinos.
TEXTO: Quem se hospedava no Hotel Casa da Calçada, em Amarante, só tinha uma opção para almoçar e jantar sem sair dos portões da propriedade — o Largo do Paço, com uma estrela Michelin. “E quem prova um menu de degustação numa noite, não vai repetir a experiência na noite seguinte. ” Palavras do chef executivo do Largo do Paço, o jovem Tiago Bonito, em jeito de introdução sobre o novo restaurante na sua alçada, o Canto Redondo. Numa antiga sala de apoio ao bar do hotel, com mobiliário clássico, sofás confortáveis e mesas baixas — sem condições para acolher almoços e jantares —, abriu agora um restaurante mais descontraído. A carta criada pelo chef é bem mais descontraída do que a do vizinho Largo do Paço, mas “mantém a identidade” que Tiago Bonito faz questão de incluir em todos os pratos que confecciona. O Canto Redondo, continua, “é uma alternativa dentro da Casa da Calçada, uma segunda opção para o cliente e para Amarante”. “Abrimos este espaço a pensar também na cidade, para atrair as pessoas que não estão no hotel, mas querem conhecer a nossa cozinha. ”Aberto diariamente para almoços, o menu do Canto Redondo “é mais consensual, baseado em sabores portugueses, uma comida de conforto”. “É uma cozinha menos elaborada, sim, mas não quer dizer que seja mais relaxada”, sublinha Tiago Bonito. Nas entradas há carpaccio de bacalhau meia cura com pimentos assados e ovo de codorniz, amêijoas à Bulhão Pato e camarão frito com pimentos padrón ou presunto serrano com cogumelos frescos e queijo São Jorge. O robalo com arroz malandrinho de sapateira e uma açorda de lavagante com aguardente velha e coentros são as opções de peixe, duas, tal como as de carne: bife de novilho com batata-doce e salsa e chuleton maturado grelhado. Há ainda uma opção de pasta e um risotto. Nas sobremesas, destaque para o pastel de nata de comer à colher e o cheesecake de ananás dos Açores, com gelado de chá verde e lima. “Esta cozinha tem muito sabor e um bom produto. Os nossos clientes, quando nos visitam, não estão à procura de sushi”, brinca Tiago Bonito, que assim tem mais tempo — bem como a sua equipa — para se dedicar ao Largo do Paço. Este último pode assim encerrar aos almoços e duas vezes por semana (domingo e segunda-feira), para que todos se foquem nos menus de degustação já premiados. O Canto Redondo está aberto ao jantar apenas ao domingo e à segunda-feira e, nos restantes dias, entre as 15h e as 23h, tem uma carta ligeira (salada César, prego em bolo do caco, risotto). Hotel Casa da Calçada Largo do Paço, 6 4600-017 Amarante Tel. : 255 410 830 Horário: todos os dias, 12h30-15h; domingo e segunda, 19h30-22h30Tiago Bonito, nascido perto de Coimbra há 31 anos, mudou-se para Amarante há um ano e meio para ocupar a posição de chef executivo do restaurante da icónica Casa da Calçada. Pouco tempo depois, recebia a notícia de que tinha conseguido manter a estrela Michelin do Largo do Paço, numa estreia que o empurrou (ainda mais) para a ribalta. Ainda não teve tempo para criar raízes na cidade banhada pelo Tâmega, confessa, mas tem conhecido a região, explorado as opções de fornecedores locais. Faz questão de conhecer pessoalmente os homens e as mulheres a quem compra legumes, queijos, carne, peixe. Mostra-lhes como uma batata ou uma cenoura pode ser “mais do que batata ou uma cenoura vendida em sacos de uma tonelada”. “Gosto de mostrar aos fornecedores o que faço, dou-lhes a provar o que cozinho com o produto que eles vendem, convido a família”, conta. Isto para mostrar que uma estrela Michelin não se conquista apenas entre as quatro paredes da cozinha do Largo do Paço, na qual trabalham 15 pessoas. Sempre que pode, Tiago Bonito pega no carro e vai até ao mercado municipal de Matosinhos e de Angeiras escolher e comprar o marisco e o peixe que preenchem a carta do Largo do Paço — e, desde Junho, também do Canto Redondo. “Aqui em Amarante, a tradição é o fumeiro, o pouco peixe que há é de rio”, justifica. E isto, para um amante da pesca e do mar como Tiago, é motivo para deixar algumas saudades dos anos em que trabalhou no Algarve e em Tróia. Sempre que consegue, contudo, junta-se aos amigos, mais a Sul, para dias de pescaria em alto-mar. “Gosto muito do mar, dos mariscos, da frescura e das texturas do peixe”, vai repetindo ao longo da conversa. E este gosto passa depois para a concepção das receitas, “pratos com sabores fortes, a maresia, a sal”. “Tenho até, na carta do Largo do Paço, um cherne ao sal que é um prato que eu faço muitas vezes para os amigos, estão sempre a pedir-me. ”A primeira edição do Chef d’Oeuvre não tinha contornos de competição. Mas, se tivesse, o resultado teria sido um empate, daqueles a pedir desforra. À cozinha e ao staff de Tiago Bonito no Largo do Paço (com uma estrela Michelin), em Amarante, juntou-se o chef Óscar Velasco, do restaurante Santceloni (duas estrelas Michelin), em Madrid. O objectivo? A preparação, a quatro mãos, de um menu de degustação a ser servido no restaurante do Hotel Casa da Calçada com o carimbo Chef d’Oeuvre — que é o mesmo que dizer “obra-prima de um artista”. A ideia dos dois chefs foi uma “junção ibérica” do trabalho de cada um: Óscar Velasco trouxe de Madrid um “frango do campo” e alguns caldos que levam vários dias a preparar, Tiago Bonito apostou nos peixes portugueses. A abertura do jantar esteve a cargo do chef a jogar em casa: a uma delicada caixa de caviar, Tiago Bonito acrescentou atum, rábano picante, ovo, cebolinho e couve-flor. A entrada é uma saudação ao cliente que chega ao Largo do Paço, servida a quem peça um dos dois menus de degustação do restaurante (Caminhos e Identidade). Seguiu-se uma tosta de trigo com frango e molho agridoce “tipicamente espanhol”, explicou Óscar Velasco durante a preparação do mesmo, e um lírio dos Açores com maçã e maracujá. “Este é um dos pratos que fala sobre mim”, confidenciou Tiago Bonito. “O lírio é um peixe mais gordo, que faz a rota migratória nos Açores, e sirvo com maracujá para incluir a parte tropical. ” Mas Óscar Velasco não quis ficar atrás nos sabores do mar e optou por um lagostim sobre folha de alface e sabores do Oriente. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Nos pratos principais, o chef português escolheu aquele que é o seu “peixe preferido”, o pregado, com carabineiro, plâncton e espargos. “O carabineiro diz-me muito sobre o Algarve e os anos que lá passei, traz à mesa a maresia. ” A costela de cabrito cozinhada pelo chef espanhol foi acompanhada por avelã, alho negro e puré de abóbora assada. Para terminar, Óscar Velasco deu a ribalta a Montse Abellán, a chef de pastelaria do Santceloni, que levou à Casa da Calçada um granizado de cenoura, lima, endro, aveia e gengibre. Pistácio, café gelado, framboesa e mascarpone, com assinatura portuguesa, fechou o jantar. O Chef d’Oeuvre, garante Álvaro Aragão, director da Casa da Calçada, é para repetir “duas a três vezes por ano”, sempre com chefs de outros hotéis da Relais & Chateaux.
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Vimioso, uma porta escancarada para a nossa natureza
Num só dia é possível passear com burros mirandeses junto ao rio, refrescar as ideias numas termas, conhecer o artesanato local, caminhar pela história de Portugal e gozar de um repasto transmontano. Aqui não é preciso escolher. (...)

Vimioso, uma porta escancarada para a nossa natureza
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.05
DATA: 2018-12-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Num só dia é possível passear com burros mirandeses junto ao rio, refrescar as ideias numas termas, conhecer o artesanato local, caminhar pela história de Portugal e gozar de um repasto transmontano. Aqui não é preciso escolher.
TEXTO: Alfredo, Garbanzo e Aragão estão a postos. Ajeitam-se as albardas e os alforges coloridos, guardam-se as garrafas de água, preparam-se os caminhantes para o que aí vem: um passeio, (muito bem) acompanhado pelos três burros mirandeses, ao longo do rio Angueira, um dos cursos que atravessam Vimioso, em pleno Nordeste Transmontano. Entretanto, junto à água, uma figura aproxima-se, vinda da outra margem. Pé ante pé, de pedra em pedra, tem uma vara na mão e gestos precisos. Ocupa-se de uma minuciosa tarefa como se fosse dele, e de mais ninguém. O que faz, descobrimos à sua chegada até nós. Guarda-fiscal reformado, António Pires pastoreia por ali as suas cinco vacas — já teve mais, agora é só “para passar o tempo”. Deixou-as por momentos e, enquanto atravessa o rio, aproveita para limpar as folhas secas que se acumulam entre as pedras da passagem. “Para a corrente passar e para não cheirar mal”, explica, finda a missão, vara na mão e sorriso no ar. Sem saber, sumariza-nos assim a orgulhosa relação que os vimiosenses têm com a sua natureza, com o seu território, com as suas tradições. E que se revela a par e passo, passo a passo. Assim começa o percurso pedestre, que se for feito por inteiro leva o visitante pelas aldeias de São Joanico, Serapicos e Angueira, sempre com o rio por perto, ao longo de 22 quilómetros (não há que temer, o grau de dificuldade é fácil). Descobre-se o esplendor do verde do bosque, vêem-se pontes medievais e moinhos de água, cheiram-se rosas-de-lobo e medronheiros, com sorte até se distinguem lontras e guarda-rios, corços e libélulas. Não há que enganar: estamos no recém-inaugurado PINTA – Parque Ibérico de Natureza, Turismo e Aventura, um anfitrião por excelência da biodiversidade de um concelho que tem mais de 40% do território na Rede Natura 2000. E aqui Alfredo, Garbanzo e Aragão surgem como os mais charmosos e meigos mestres de cerimónia. Carolina Martins, uma das monitoras da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) que acompanha o percurso, vai-nos dando conta da suas manhas. O primeiro, nota-se à distância, é o mais enérgico, ao contrário do último, o maior, mas também o mais pacífico. Já o Garbanzo é o mais influenciável: ou imita o Alfredo ou copia o Aragão. Hoje está sereno, já sabemos o que escolheu. “Para mim, a melhor coisa dos burros é que, apesar de estarmos diariamente com eles, apesar de estarem habituados à presença humana, a personalidade deles mantém-se bem vincada”, diz a jovem de 27 anos, preparando-se para desfiar outras características do animal. A saber: pesam em média 300 quilos, mas o ideal é que suportem até um terço do próprio peso; não gostam de água, banho é só mesmo quando tem de ser; vêem mal para baixo, tampas de saneamento ou passadeiras fazem-lhes muita confusão. E sim, como ajuíza o ditado, são teimosos: se, por exemplo, encontram uma poça de água e não conseguem distinguir o fundo, dificilmente arriscam. “Se não quiser andar, senta-se ou anda para trás”, evidencia. “A teimosia é sinal de inteligência. ”Passear na companhia destes animais é uma das muitas coisas que se podem fazer no parque, onde a AEPGA dirige o Centro de Actividades Lúdico-Pedagógicas do Burro de Miranda (aos três peregrinos juntam-se ainda Ipiranga e Hortelão, que tanto podem ser companheiros de caminhada, como protagonistas de sessões terapêuticas e didácticas). Mas a oferta do PINTA não se fica por aqui. Quem quiser, pode sair para o terreno para caçar, identificar (e devolver) borboletas, fazer um piquenique num lameiro com um cesto recheado de produtos regionais, vinho e até uma manta ou, quem sabe, aprender tradições. E que tal começar a fazer escrinhos?Desta feita, encontramos Rosa e Aníbal Delgado com uma pequena plateia de aprendizes de olhos pregados nas mãos dela. Daquela trabalhosa dança a dez dedos está sair aos poucos um cesto. Estamos a ver nascer um escrinho. Feitos com palha de centeio e casca de silva, estes cestos únicos, originais da aldeia de Vilar Seco, eram utilizados no passado para guardar cereais, sementes, farinha. Com o tempo, o saber foi-se perdendo, até que, há 12 anos, Aníbal candidatou-se à junta de freguesia da sua terra, determinado em não deixar a arte morrer. “Quase fiquei pela promessa”, confessa. Promoveram-se cursos, poucos quiseram aprender; ficou a sua esposa, “talvez por teimosia” dele, que assim se fez artesã há cerca de seis anos, para “não deixar perder a tradição”. É a única formadora; mais sabem fazê-los, mas não “têm vagar”, produzem “só em casa”. “Isto é só uma brincadeira, só me dá prejuízo”, diz ele, alisando vigorosamente uma silva na perna com uma navalha. Por causa da artrite reumatóide, os dedos fogem-lhe, não pode fazê-la serpentear pela palha, deixa-o para Rosa. “Dá muito trabalho, ninguém quer aprender”, admite a sexagenária, que, por sua vez, à custa do labor, já sofreu uma tendinite no ombro. Hoje, já não se fazem tanto os verdadeiros escrinhos, mas aplica-se a mesma técnica para peças mais pequenas, como fruteiras, cestas, até máscaras e crucifixos. “Olha”, graceja Aníbal, apontando para o aprendiz João Rodrigues, “este já te tira a profissão”. E é vê-lo, a princípio incerto, depois mais confiante, a embrenhar as mãos naquele rodopio de palha e silvas. Veterinário, de 35 anos, veio a esta oficina gratuita para “matar uma curiosidade antiga”. Durante oito anos, viveu em Vilar Seco, onde chegou a experimentar fazer um escrinho; treze anos depois, viu neste encontro uma nova oportunidade para voltar a tentar. “Agora”, auspicia, “o próximo passo é criar peças de design, fazer coisas contemporâneas a partir da tradição, acompanhar os tempos”. Não ele, que não tem tempo. Outros. Talvez assim, com outros cestos, Vilar Seco chegue finalmente ao espaço. Conta Aníbal que reza a lenda que os habitantes, conhecidos como escrinheiros, tentaram chegar à Lua (ou a um queijo?) antes dos americanos, amontoando escrinhos numa torre até ao céu. Quando lhes faltava apenas um para atingir a meta, aperceberam-se de que não havia mais. Até que o cabo de polícia, “homem de muita sabedoria”, teve uma “ideia genial”: retirar-se-ia um escrinho da base, colocar-se-ia no cimo. Dito e feito, ruína (e risada) geral. “Ficaram a seco: nem queijo, nem Lua. ”Depois de um processo de dez anos, o PINTA foi finalmente inaugurado em Maio e é como uma “jóia da coroa” de Vimioso. Não é fácil ser um concelho do interior (“mas como se pode falar de interior num país que dista 200 quilómetros de largura?”, questiona, retórico, o presidente da câmara Jorge Fidalgo). As debilidades são várias. Pertencente ao distrito de Bragança, é um município essencialmente rural e isolado. “Chegar cá é o maior problema”, lamenta o autarca, que aguarda com expectativa a luz verde para a ansiada estrada de ligação à A4, que vai para Bragança. O ensino secundário não existe, o que obriga as famílias a sair, e outros serviços públicos foram deslocados. Nos últimos anos, a autarquia tem assim apostado em três grandes frentes. Por um lado, tenta promover a qualidade de vida dos residentes: entre outras coisas, há incentivos à natalidade, infantários gratuitos, aulas de karaté, danças de salão e zumba para toda a população grátis e um programa de aquisição de terrenos a um cêntimo o metro quadrado com moradias com projecto aprovado para fixar jovens casais — em 30 lotes, apenas um não está ocupado. Por outro lado, tenta atrair o investimento, também através da venda de terrenos a um cêntimo na zona industrial — a unidade de transformação da carne mirandesa, por exemplo, está aqui. “A ideia é fixar, fixar os jovens e, se possível, poder atrair algum investimento para criar postos de trabalho”, explica o autarca, natural da aldeia de Algoso. O turismo surge como a derradeira cabeça da tríade, o que motivou a criação da marca Vales de Vimioso, cuja menina dos olhos é o PINTA. E que vales são estes? Os dos rios Maçãs, Sabor e também o Angueira, que ziguezagueiam pelo território de 482 quilómetros quadrados. Aqueles que se adivinham, bucólicos, do topo do Castelo de Algoso, construído algures no século XII numa posição privilegiada para vigiar Leão. Mal se percebe onde começa a montanha e acaba a fortaleza, rodeada de águias e abutres. “Portugal”, repete Jorge Fidalgo, “nasceu por aqui”. É um dos ex-líbris do património do concelho e, também, do coração dos locais: muitos, dizem-nos, namoraram entre estas ruínas, outros colhiam cravos selvagens. Aconselha-se é precaução na subida, sobretudo a quem sofrer de vertigens. O programa de actividades do PINTA é extenso e inclui propostas para quase todos os gostos, algumas delas gratuitas durante o primeiro ano de funcionamento. Recomenda-se uma visita ao site do projecto Vales de Vimioso para mais informações sobre as ofertas permanentes e à página de Facebook para os eventos pontuais. Depois de uma vista de cortar a respiração, que tal mudar de ares? Ter a cabeça em água, até à última gota? As Termas do Vimioso estão cá para nos tratarem da saúde. Responsabilidade das águas sulfurosas da Terronha, localizadas junto à margem direita do rio Angueira, cujas propriedades terapêuticas a nível de doenças respiratórias, reumáticas e músculo-esqueléticas são reconhecidas (falta concluir o estudo dermatológico). “Esta água”, conta o responsável Francisco Brucó, “tem três mil anos”. A época termal dura de 1 de Maio a 30 de Novembro, mas a área de bem-estar está aberta todo o ano. “Queremos ser as termas de referência de Trás-os-Montes”, ambiciona o ex-comandante dos bombeiros. “Mas não queremos torná-las VIP. Queremos que sirvam as pessoas da terra e também para vem quem do Porto e Lisboa e tem a cabeça do tamanho de um melão com tanto stress. ” Nada que um duche massagem tipo Vichy e umas boas massagens não resolvam. O tecido de Vimioso também se faz de pequenas associações de jovens que se têm estabelecido no concelho. Entidades que, na opinião de Jorge Fidalgo, têm “feito um trabalho extraordinário na atracção de turistas e na divulgação do que de melhor o concelho tem em termos ambientais e paisagísticos”. “Acarinhámo-las muito, dando-lhes as condições para trabalharem aqui”, conclui o autarca. A AEPGA é uma delas, mas não está sozinha. A Palombar está por perto, instalou o seu Centro de Interpretação dos Pombais Tradicionais na antiga escola primária de Uva — é nesta aldeia, aliás, que tem início um percurso pedestre até ao Castelo de Algoso (há ainda no concelho um terceiro trilho que percorre as ladeiras do rio Sabor). A oferta de alojamento em Vimioso ainda é reduzida. Existem algumas casas de turismo rural, algumas albergarias e dois hotéis. A Fugas pernoitou no hotel de duas estrelas A Vileira, mesmo à entrada da vila, que voltou agora a abrir pela mão de Luís Garcia (que tem boas histórias para contar). O quarto duplo custa 60 euros, o individual 40. O Hotel Rural Senhora das Pereiras, de três estrelas, também é uma possibilidade, com quartos a partir dos 60 euros. Ambos os hotéis têm restaurantes com uma carta repleta de especialidades locais, como a posta mirandesa, a costeleta, o cordeiro e queijo e enchidos a preceito, em doses muito generosas. Palombar significa pombal, em mirandês. O que já dá uma pista para a missão desta associação, criada há 18 anos: conservar o património rural e construído, nomeadamente os pombais tradicionais, estruturas que se dedica a recuperar e revitalizar. Ali, na aldeia, a paisagem denuncia a sua passagem. Há pequenas manchas brancas com telhado em forma de ferradura a pintar as encostas um pouco por todo o lado e, por vezes, em contraste, um ou outro edifício semelhante em ruínas. Até agora, já foram reabilitados 37 pombais em Uva, devem faltar ainda uns dez. Mas “não é fácil”, explica Américo Guedes. Quase todos são privados, é preciso haver um acordo com o proprietário, sendo que a associação só recupera e explora os pombais. E começa a ser cada vez mais difícil encontrar quem trabalhe a pedra de forma tradicional. Ainda que a sua actividade seja cada vez mais alargada, a Palombar actua sobretudo no Nordeste Transmontano, onde, estima, existem três mil pombais; 500 já terão sido recuperados. Porquê fazê-lo? Porque são uma “forma de conservação da natureza”, já que atraem espécies que se alimentam de pombos, como a águia-de-Bonelli, ameaçada em Portugal, ou a coruja-das-torres. Porque constituem um “património arquitectónico e cultural” riquíssimo. Os pombais surgiram, no passado, para ajudar na alimentação (os “borrachos” sempre eram uma proteína extra em comunidades marcadamente pobres) e na fertilização dos campos (o “pombinho”, o estrume das aves, servia de adubo). A sua preservação ajuda assim a contar a história. Divulgar o património também é o que move a associação Aldeia, sediada em Vimioso, mas com um Centro de Educação, Interpretação e Formação Ambiental na antiga escola primária de Vila Chã da Ribeira que agora visitamos. Aldeia é, na verdade, um acrónimo para Acção, Liberdade, Desenvolvimento, Educação, Investigação e Ambiente, e é isso que eles gostam de fazer. Apresenta o presidente João Nunes: “É um grupo de amigos que desenvolve actividades para promover conhecimentos e tradições. ” Sejam saídas de campo para ver borboletas, como para acompanhar pastores. Sejam workshops de cogumelos e plantas comestíveis ou acções de sensibilização sobre a relação entre as pessoas e o lobo. “É uma nova perspectiva de viver as tradições no século XX”, diz o responsável pela associação, criada há 15 anos. Um dos últimos grandes projectos foi, por exemplo, um levantamento de toda a etnobotânica da Terra Fria Transmontana, bem como dos seus processos tradicionais. O resultado está num livro e nas várias peças, e sementes, que se apresentam pela sala. E, claro, Vimioso, como orgulhoso município transmontano, é sinónimo de boa comida. Já o dissemos: a carne mirandesa sai daqui, por isso experimentar a típica posta é quase obrigatório, bem como tomar o gosto do cordeiro e, claro, de 1001 fumeiros. Edite Domingues nasceu com mão para a cozinha. Aprendeu a cozinhar como outras tantas netas: a olhar para a avó. “Mal acordava, a primeira coisa que fazia era aquecer o pote”, diz a mirandesa, a viver em Vimioso desde que se casou. Hoje, o galo feito naquele pesado pote de ferro continua a ser um dos seus pratos preferidos — sabe-lhe à avó. Outras iguarias saem-lhe das mãos com o mesmo conforto familiar: a robusta sopa da segada (com calda de fumeiro, orelha, pernil, chouriço, pão, massa e grão-de-bico), os rojões, os cogumelos frescos, os peixes de rio. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Não é o que costuma servir no café-pizzaria Pires, o estabelecimento que explora no centro da vila. Mas por lá tente experimentar o pastel de amêndoa, um segredo de família guardado a sete chaves pelo menos desde 1918, e que agora começa a dar os primeiros passos fora do livro de receitas. Já agora, uma curiosidade. Ali ao lado está a majestosa Igreja Matriz de Vimioso, construída em finais do século XVI, inícios do século XVII por iniciativa de uma família abastada local que a financiou com uma condição: tinham de conseguir assistir à missa sem saírem de casa, da varanda. Assim foi. A igreja foi feita com um sui generis declive, com a porta voltada para o solar dos mecenas, até hoje. Para terminar, fica ainda um aviso. Não espere que, em todas estas andanças, lhe perguntem o nome quando der de caras com uma porta. Manias de bom, e hospitaleiro, anfitrião. “Aqui”, assegura Jorge Fidalgo, “quando se bate à porta não se pergunta quem é. Diz-se logo entre!”. Faça o teste. A Fugas viajou a convite do projecto Vales de Vimioso
REFERÊNCIAS: