Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas. (...)

Descobertas mais de 200 valas comuns de vítimas do Daesh no Iraque
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.5
DATA: 2018-12-29 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181229194123/https://www.publico.pt/1850125
SUMÁRIO: Um relatório da ONU diz que as escavações são dificultadas pela falta de segurança e de equipamento, mas é crucial que o material forense seja preservado no local para identificar as vítimas.
TEXTO: Mais de 200 valas comuns com 6000 a 12 mil corpos foram encontradas em áreas controladas pelo Daesh no Iraque entre 2014 e 2017, avança um relatório da ONU, publicado esta terça-feira. A missão das Nações Unidas de assistência ao Iraque (UNAMI) e o gabinete dos direitos Humanos da ONU apontam para a existência de 202 valas comuns nas províncias de Nínive (95), Kirkuk (37) e Salaheddine (36), – no Norte do Iraque -, bem como em al-Anbar (24), - no Oeste do país -, admitindo que “podem existir muitas mais”. “Embora seja difícil determinar o número total de cadáveres nas valas, o menor local, no Oeste de Mossul, tinha oito corpos. O maior fica em Khasfa, no sul de Mossul, e pode conter milhares”, diz o comunicado à imprensa do relatório. Entre as vítimas estão mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiências, autoridades iraquianas e estrangeiros. O relatório avança que até à data apenas 28 valas comuns foram investigadas - quatro em Diyala, uma em Nínive e 23 em Salaheddine -, e 1258 corpos foram exumados. Entre Junho de 2014 e Dezembro de 2017, o Estado Islâmico levou a cabo o seu “reino de terror” nos territórios iraquianos, onde perseguiram e assassinaram membros de minorias étnicas e religiosas, como a comunidade curda yazidi, “actos que podem constituir crimes de guerra, crimes contra a humanidade e um possível genocídio”, disse a ONU. Depois de nove meses de uma sangrenta ofensiva militar das autoridades iraquianas, com o apoio dos EUA, Mossul, considerada a capital do “califado” - o Estado islâmico, governado por um sucessor e guardião dos ensinamentos do profeta, o califa -, foi libertada, em 2017. Contudo, a presença do Estado Islâmico ainda é visível em Nínive, Salaheddine e al-Anbar, pelo que “talvez não será possível investigar alguns locais”, diz o relatório. “As valas comuns documentadas no nosso relatório são testemunho da terrível perda humana, profundo sofrimento, e crueldade chocante. Determinar as circunstâncias da perda significativa de vida humana será um passo importante no processo de luto para as famílias e no seu percurso para assegurar os seus direitos à verdade e justiça”, disse o relator especial da ONU no Iraque, Ján Kubiš. O documento alerta para o facto de que podem haver engenhos explosivos escondidos nas valas, e que o local do crime está sujeito a mudanças pela passagem do tempo, quer devido às condições atmosféricas, quer por interferência de animais ou pessoas. Nesse sentido, sublinha que o material forense nos locais será “central para assegurar investigações credíveis, acusações e condenações conforme as normas de devido processo internacionais” e pede que a integridade das valas comuns seja respeitada durante as exumações, de modo a garantir “o direito à verdade, justiça e indemnizações às famílias dos mortos e desaparecidos, e para as comunidades afectadas”. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Segundo a ONU, o processo de denúncia de um desaparecimento “sobrecarga o processo de luto”, já que envolve mais de cinco entidades estatais e vários formulários, entre outros procedimentos. É “demoroso e frustrante para as famílias”, traumatizadas pela perda. “Os crimes horríveis do Daesh no Iraque já não fazem manchetes de jornal, mas o trauma das famílias das vítimas persiste, já que milhares de mulheres, homens e crianças continuam desaparecidos. As suas famílias têm o direito de saber o que aconteceu aos seus familiares”, afirmou a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet. O relatório, que visa “apoiar o Governo do Iraque na escavação e protecção” das valas comuns encontradas, recomenda o apoio de especialistas nas escavações, bem como uma abordagem centrada no direito das vítimas de saberem a verdade, obterem justiça e serem indemnizadas. A ONU apela também para que comunidade internacional forneça “recursos e apoio técnico” à exumação e identificação dos corpos.
REFERÊNCIAS:
Entidades ONU EUA
O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá. (...)

O I-Danha Food Lab voltou para cultivar o “Silicon Valley do campo”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-21 | Jornal Público
SUMÁRIO: O I-Danha Food Lab decorreu de 9 a 11 de Novembro, em Monsanto. Mais de 200 investigadores, empreendedores e investidores reuniram-se na aldeia histórica para discutir a digitalização da agricultura e a produção biológica. O P3 esteve lá.
TEXTO: Há cinco anos, o último lugar onde Lourens Boot imaginaria estar era Monsanto, mais precisamente no I-Danha Food Lab. A empresa a que preside, a Sponsh, acabou de vencer o concurso de startups do evento que distingue as melhores tecnologias associadas à agricultura sustentável. A vitória surpreendeu o alemão de 43 anos que não consegue conter um enorme sorriso no rosto. “É fantástico, não estávamos à espera de ganhar”, revela ao P3, quando finalmente conseguiu ter uns minutos livres. É que desde que foi anunciado o veredicto do júri toda a gente o quer congratular. Engenheiro de formação, trabalhou na indústria petrolífera de 2004 a 2014. Na Schlumberger e na Shell coordenou operações de extracção de petróleo na China, Estados Unidos e em África. Era bem pago e tinha uma vida estável. Há quatro anos, com a mulher e o filho de um ano, fez uma longa viagem de autocaravana pela costa portuguesa e espanhola. Foi aí que percebeu que precisava de mudar de vida. Demitiu-se do emprego — o que deixou o pai deveras aborrecido — e ficou sem saber o que iria fazer a seguir. Acabou por coordenar um dos maiores projectos de limpeza do oceano Pacífico e depois foi viver para a Ericeira, por onde tinha passado na viagem. Aí, reparando na elevada humidade do local, decidiu investigar estratégias de aproveitamento de água e encontrou um trabalho de Catarina Esteves, em que a professora portuguesa da Universidade de Eindhoven projectava um novo material para absorver água do ar. Entrou em contacto com a investigadora e juntos decidiram passar da teoria para a prática. Foi assim que criaram, no início de 2018, a Sponsh, uma camada têxtil que, quando colocada ao redor das árvores, funciona como uma espécie de esponja. “É um esquema de polímeros feito com material reciclado”, explica o alemão, para quem o produto pode ser fundamental para evitar o abate de árvores e assegurar que a água chega a locais atingidos pela seca. À equipa, juntaram-se entretanto Ela Zohrevandi e Doris Kraljic, uma iraniana de 28 anos e uma croata de 23, que não se conheciam até então, mas que aterraram em Portugal por razões semelhantes. A primeira veio realizar um estágio de curta duração e a segunda chegou para fazer Erasmus. Ambas decidiram ficar a viver em Portugal e acompanharam Lourens no I-Danha Food Lab. "O prémio não era possível sem elas", confessa o chefe, provocando gargalhadas envergonhadas do outro lado. Com o primeiro lugar no concurso, que contou com a participação de outras nove startups, chegam dez mil euros. “Vamos usar o dinheiro para produzir o primeiro protótipo e iniciar os testes com agricultores. ”Mais atrás está João Noéme, de 40 anos. A sua empresa, a TerraPro, ficou em segundo lugar e recebeu cinco mil euros. “Fazemos a ponte entre a tecnologia e o produtor, simplificando o processo”, explica-nos o CEO da startup que se dedica a instalar sensores nas áreas agrícolas para recolher um vasto conjunto de informações. Estes dados são depois transformados em relatórios práticos sobre a quantidade exacta de água que a terra necessita. Estas foram apenas duas das startups que fizeram parte do programa que de 9 a 11 de Novembro tornou Idanha-a-Nova na capital da agricultura sustentável. E graças a isso a aldeia histórica de Monsanto, anunciada como a “mais portuguesa de Portugal”, viu no último fim-de-semana as suas ruelas de pedra milenar repletas de empreendedores, investidores e investigadores da área. Quase todos os 237 participantes do evento vieram de Lisboa, de comboio, na viagem que assinalava o início da maratona sustentável. Nas duas carruagens reservadas pela organização, o networking — que é como quem diz as conversas de negócio — era audível. O presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, Armindo Jacinto, percorreu os lugares a proclamar o orgulho por o concelho ter recebido, na véspera, uma menção honrosa nos City Nation Place Awards, em que competia ao lado de cidades como Barcelona e Eindhoven. “Queremos fazer de Idanha um Silicon Valley do campo”, garantiu. O município é duas vezes maior do que Madrid em extensão, mas tem tanta população quanto o número de visitantes diário do Museu Rainha Sofia — cerca de oito mil pessoas. Para contrariar a tendência de despovoamento que assola o interior do país, Idanha quer afirmar-se como a capital da agricultura biológica. Para isso, por exemplo, todas as cantinas das escolas e instituições particulares de segurança social vão passar a ter produtos biológicos e locais. Também neste sentido, nasceu, há três anos, o I-Danha Food Lab, como forma de captar investimento. “Queremos chamar gente jovem e contrariar a ideia absurda que estes territórios da ruralidade não são inovadores”, revela o autarca. A tarefa — hercúlea, diga-se — foi incumbida à Building Global Innovations (BGI), uma aceleradora de empresas resultante de uma parceria entre o Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Três anos depois e com mais de 240 empreendedores envolvidos, Gonçalo Amorim, o director executivo da BGI, diz que “apesar dos receios iniciais, tudo valeu a pena”. Sentimento partilhado por João Sobrinho Teixeira, secretário de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que confessou ao P3 estar “absolutamente fascinado com o evento”. “É importante para Idanha, mas é importante para o país, porque pode ser replicado em outros territórios”, revelou, especificando que “a economia verde precisa de conhecimento a nível de tecnologia” e que os “jovens vão ser fundamentais para a fixação de populações” em territórios com poucos habitantes. Em três dias de evento, contabilizaram-se mais de 20 iniciativas. Os trabalhos desdobraram-se entre as três salas do posto de turismo e o espaço multiusos, que, até ao final de Outubro, era um parque de estacionamento. Foi por aqui que Begoña Perez-Villarreal, a directora do EIT Food (organismo do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia da Comissão Europeia) para os países do Sul da Europa, falou do importante papel que a tecnologia pode ter na agricultura para combater a escassez de água na Europa. Já a sete minutos a pé dali, no posto de turismo, Henrique Gomes e Vítor Crespo promoviam um workshop sobre “o que os investidores portugueses procuram em empresas de agricultura”. E deixaram um conselho para os empreendedores: durante a primeira fase do negócio, apostar apenas numa área. "Foco, foco, foco, não se deslumbrem nem comecem a dispersar", avisou Vítor, enquanto a audiência tomava notas freneticamente. Também houve espaço para as startups falarem dos seus problemas — o i-Dare Challenge era, na verdade, um dos momentos mais esperados da agenda. Se a Nature Fields, que comercializa carne biológica, não consegue encontrar uma embalagem em vácuo eco-friendly, a BluePanoply, que produz mirtilos, tem dificuldade em encontrar mão-de-obra temporária na altura da apanha do fruto. Apresentados os problemas, mudou-se a configuração da sala e grupos de dez pessoas discutiram possíveis soluções. As propostas foram diversas. E que tal apostar em embalagens feitas de fibras de banana, algas marinhas ou cannabis? E porque não criar campos de férias de turismo biológico?Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O programa incluiu ainda visitas guiadas à fábrica da Sementes Vivas, que comercializa sementes biológicas de frutos, flores, ervas e produtos hortícolas, e outra ao Centro Documental Raiano, que tem mais de 11 mil arquivos, de 600 temáticas diferentes, todos relacionados com a ecologia, saúde natural e agricultura biológica. O mau tempo, infelizmente, foi uma constante durante todo o fim-de-semana. Ups, corrija-se: "Mau tempo no seu tempo é bom tempo", ouvia-se sempre que alguém se queixava da chuva que, ainda assim, obrigou a algumas mudanças de planos. Não se visitaram, como previsto, plantações e projectos de anos anteriores. Fica para a quarta edição, em 2019, que, promete Gonçalo Amorim, "vai ser brutal". Winegrid: Um software para digitalizar a produção de vinho. Através de sensores, recolhe informações acerca da densidade, cor, temperatura e nível em tempo real. SenseFinity: Também são sensores, destinados a recolher informações de alimentos. Verificam a temperatura e o estado — desde da produção, ao transporte e à entrega final. Heaboo: Um dispositivo que é instalado nas casas de banho para que a água esteja quente logo na abertura das fontes. Face aos equipamentos com o mesmo objectivo disponíveis no mercado, esta ferramenta reduz substancialmente o consumo de energia. Aquaponics: Ao sistema de aquaponia, introduziram mudanças para evitar o desperdício de água e torná-lo mais sustentável. Disponibilizam o equipamento para qualquer cliente. Nature Fields: Carne de vaca e de borrego inteiramente biológica. Os produtores são todos de Idanha, onde as vacas pastam ao ar livre. Alpha-Roba: Um molho vegan, 100% vegetal, com apenas produtos portugueses feito a partir de alfarroba. Black Block: São caixas de refrigeração destinadas a promover a secagem de alimentos agrícolas. Foram criadas a pensar em países subdesenvolvidos com temperaturas muito elevadas. Funcionam a energia solar e têm um software próprio para controlar a temperatura. Ecoxperience: Transformam óleo usado nos mais variados detergentes: para o chão, para a loiça, para os vidros e até para a roupa. Life in a Bag: Criam plantas, flores e ervas, que são vendidas em sacos e caixas com instruções. Para que qualquer pessoa tenha uma mini-horta em casa. O P3 viajou a convite do I-Danha Food Lab
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia. (...)

Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-17 | Jornal Público
SUMÁRIO: Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia.
TEXTO: Vamos supor que estamos a sobrevoar o deserto do Namibe, que se estende entre a Namíbia e Angola. Por largos quilómetros, é possível ver círculos desenhados com vegetação em volta e um vazio no centro. O autor destas formas no deserto tem sido um mistério ao longo dos anos. É tão indefinido que estes círculos são conhecidos por “círculos de fadas”, como se tivessem sido feitos por este seres imaginários das tradições populares europeias. Agora, os suspeitos são outros. Nesta quinta-feira, surgiu na revista Nature mais um suspeito. Um estudo coordenado por Corina Tarnita, da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, conclui que a formação destes círculos se deve a mecanismos ecológicos com uma auto-organização, como ecossistemas no subsolo e a competição entre as plantas. Os círculos de fadas são autênticos oásis no deserto. São hexagonais e bem largos. O seu diâmetro pode ir dos dois aos 35 metros, e nalguns casos alcançar mesmo os 40 metros. Os maiores encontram-se em Angola, mas também podem existem em desertos na Namíbia, na África do Sul, na Austrália ou até mesmo no Brasil. Mas centremo-nos nos círculos no deserto do Namibe; são esses que têm sido alvo dos principais estudos. Neste deserto com cerca de 30 mil quilómetros quadrados, os círculos de fadas podem espalhar-se por cerca de 1500 quilómetros quadrados. Caso não haja períodos intensos de seca, onde há elevada mortalidade da vegetação no deserto, estes círculos podem viver centenas de anos ou mesmo chegar aos mil anos. Mas falta responder a uma questão primordial: como se formam?É aqui que o mistério se intensifica e ao longo dos tempos as desconfianças têm-se voltado para os mais variados suspeitos. Os himba, um grupo étnico da Namíbia, já respondeu a esta questão com lendas, que tem passado de geração em geração. Para os himba, há duas hipóteses: ou são pegadas dos deuses ou são dragões debaixo da crosta da Terra, que, ao lançarem bolhas flamejantes para a superfície, queimam a vegetação e criam estes círculos. Nem só os himba se têm preocupado com a formação destes círculos. Olhares mais ocidentais têm tentado resolver este autêntico quebra-cabeças. Se se chamam “círculos de fadas”, tudo se deve a tradições populares nos países europeus. De acordo com Francisco Vaz da Silva, investigador no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, essas tradições são representadas com mulheres vestidas de branco em locais como encruzilhadas, que dançam em círculos ao meio-dia ou à meia-noite. Seria a partir destas danças que este mundo e o outro comunicavam. Durante o século XIX, existia em Inglaterra, nos países célticos e na Escandinávia, a crença de que círculos que apareciam nas florestas eram criados por fadas e elfos que dançavam em círculo em noites enluaradas. Já na Escócia, havia a lenda de que os círculos nas florestas, formados por cogumelos, serviam de mesa para as festas das fadas. E no País de Gales, pensava-se que estes cogumelos eram usados pelas fadas como guarda-chuvas. Se formos para a Alemanha, as fadas passam a ser bruxas e as celebrações em círculo comemoravam a chegada da Primavera. Em França, eram obra das feiticeiras. Em Portugal, estas tradições populares também existem. Nas campanhas da Inquisição, as fadas foram demonizadas e começaram a ser designadas “bruxas”. Às suas danças chamava-se “encruzilhada das bruxas”. “Conheci na minha juventude histórias de homens que supostamente encontraram tais assembleias de fadas ao voltarem a casa a altas horas”, conta-nos Francisco Vaz da Silva. “Tipicamente, o caminheiro, por ter dito ou feito algo inconveniente ao encontrar as fadas, sentiu uma estalada gélida na face, que o jogou sem sentidos para o regueiro onde viria a acordar na manhã seguinte. ” Mas o investigador salienta: “É difícil resistir à suspeita de que o nível de álcool no sangue destes viandantes nocturnos era elevado. . . ”Estas tradições populares são referidas na publicação Tradições Populares de Portugal, de José Leite de Vasconcellos, de 1882: “No mar também andam bruxas vestidas de branco, a bater palmas e a dançar sobre as ondas. ”Voltemos aos círculos de fadas com vegetação. Foi a partir dos anos 70 que a ciência começou a tentar desmitificar o mistério destes círculos. E nos últimos anos têm surgido mais estudos. Em 2013, o ecologista Norbert Juergens, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), publicou um estudo na revista Science que revelava que eram as térmitas a formar os círculos de fadas no deserto do Namibe. Norbert Juergens estudou círculos de fadas ao longo de 2000 quilómetros, desde Angola até África do Sul, passando pela Namíbia, e concluiu que as térmitas de areia (Psammotermes allocerus) eram as responsáveis pela criação dos círculos. No deserto, a água da chuva não sofre o processo de evaporação, ficando retida no subsolo. As térmitas acabam por “beber” esta água, principalmente nos períodos de maior seca, o que faz com que as plantas cresçam apenas nas margens do círculo. “Devido à rápida filtração e falta de evapotranspiração, a água é retida à volta dos círculos”, lê-se no artigo científico. Ao longo do seu estudo, o ecologista encontrou térmitas de areia em Angola, na Namíbia e na África do Sul. Estas térmitas foram encontradas tanto em regiões com círculos de fadas e noutras sem círculos. “A Psammotermes allocerus estende-se ao longo do diâmetro do círculo”, refere o artigo. Contudo, não foram estas as térmitas encontradas no estudo de 2013. Foram novas espécies, que ainda não estão descritas cientificamente, refere ao PÚBLICO Norbert Juergens. “Encontrámos estas novas espécies com métodos genéticos. E podem ser distinguidas pela sua morfologia. Mas ainda não as descrevemos, nem sequer têm um nome científico. ”Mas esta hipótese tem sido contestada. O ecologista Stephan Getzin, do Centro Helmholtz para a Investigação Ambiental, na Alemanha, defende que os círculos de fadas se formam por auto-organização do ecossistema. Investiga os círculos de fadas desde os seus tempos de estudante na Universidade da Namíbia, em 1999, e escreveu o seu primeiro artigo científico sobre o tema em 2000. Para Stephan Getzin, os círculos são formados devido à competição pela escassa quantidade de água no solo do deserto. Não há água suficiente para preencher todo o círculo de vegetação e fica um espaço no seu interior. Num estudo de 2016, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, centrado nos círculos de fadas na Austrália e na Namíbia, a equipa de Stephan Getzin concluiu que a gestão de água no subsolo pela biomassa é a responsável pelos círculos. “Estamos convictos de que é isto que acontece [a hipótese da auto-organização] na Namíbia e na Austrália. Com isto quero dizer que as térmitas não são um pré-requisito para a formação de círculos de fadas”, explica Stephan Getzin ao PÚBLICO. “As escavações da nossa equipa no solo, assim como as de colegas e especialistas em insectos, também confirmaram a ausência de térmitas nos círculos de fadas. ” Portanto, Stephan Getzin considera que a hipótese de que são as térmitas que fazem os círculos de fadas não é suficientemente forte. No artigo agora publicado na Nature, dá-se uma nova explicação para este fenómeno no deserto do Namibe. A equipa de Corina Tarnita concilia duas hipóteses. A primeira refere que os círculos de fadas se formam da seguinte maneira: as plantas cooperam com as plantas vizinhas e competem com as que estão mais distantes. Isso origina padrões regulares de círculos, ou seja, formam-se por auto-organização. Por outro lado, a competição entre os ecossistemas subterrâneos de térmitas, formigas e roedores também contribui para a criação destes círculos. “Aqui providenciamos de um sistema teórico para uma auto-organização de colónias sociais de insectos, validados pelo uso de dados de quatro continentes [onde há círculos de fadas], que demonstram uma competição dentro da mesma espécie entre os animais, que pode gerar estes padrões hexagonais em larga escala”, lê-se no artigo científico. A equipa usou o deserto do Namibe como caso de estudo. Para tal, desenvolveu um modelo espacial computacional, com dados de satélite e análises estatísticas, para caracterizar a população de insectos e perceber como se geram padrões hexagonais no solo. Depois, explorou-se a interacção entre as colónias de animais e os efeitos dos processos de auto-organização da vegetação. Observou-se então que as colónias maiores eliminavam as mais pequenas. Porque os recursos alimentares são limitados. Neste modelo, verificou-se ainda que as térmitas aumentavam mortalidade da vegetação e destruíam a vegetação nos círculos de fadas logo quando ela começa a crescer. “Fazemos uma descrição mais alargada do sistema – incluindo como os círculos de fadas nascem e morrem, assim como o seu tempo de vida e as propriedades da vegetação, nunca considerados antes”, explica-nos por sua vez Juan Bonachela, da Universidade de Strathclyde, em Glasglow (Escócia), e outro dos autores deste último estudo. “Os nossos resultados apontam para a importância das térmitas no funcionamento dos sistemas semiáridos, neste caso dos círculos de fadas na Namíbia. ” As térmitas referidas pela equipa são as mesmas do estudo de Norbert Juergens: “A existência destas térmitas no deserto do Namibe foi referida em várias ocasiões, como no trabalho de Juergens. Aprendemos muito com o seu trabalho”, frisa Juan Bonachela. O último estudo não se aplica apenas aos círculos de fadas no deserto do Namibe, mas também a outros sistemas semelhantes. Mas o que dizem agora os autores dos estudos de 2013 e 2016 sobre último trabalho na Nature? Norbert Juergens continua sem dúvidas de que são as térmitas que permitem a formação dos círculos de fadas e sente reconhecido por este novo estudo simular o modelo com colónias de insectos, que ele também já incluiu em modelos que publicou em artigos seus mais recentes. Para Norbert Juergens, modelo da equipa de Corina Tarnita aborda padrões e dinâmicas fundamentais na ecologia. Mas, por outro lado, diz que o modelo precisa de ser fortalecido: “Esta hipótese baseia-se muito em modelos teóricos, não foi baseada em provas obtidas no terreno e pode haver uma contradição entre leis básicas da ecologia e da física”, comenta ao PÚBLICO. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Norbert Juergens considera que é necessário confirmar que ocorre uma mortalidade elevada da vegetação num diâmetro tão extenso como num círculo de fadas de 30 metros. Mesmo assim, afirma que o novo estudo mostra correctamente como surge a vegetação nos círculos de fadas. “Mas isto, por si só, não causa os círculos de fadas. ”Quanto a Stephan Getzin, o último estudo tem duas grandes fragilidades. “O modelo não mostra como os insectos são capazes de se reproduzir regularmente nos círculos de fadas”, afirma. Depois, há um desfasamento entre o modelo teórico sobre os insectos e as observações no local. “As térmitas não estão presentes no desenvolvimento do círculo de fadas”, refere. “Precisamos de centrar o trabalho no desenvolvimento dos círculos de fadas sem a presença de térmitas. Só assim teremos um retrato claro dos processos subjacentes à formação dos círculos sem a sobreposição dos efeitos das térmitas. ”Bem, parece que a discussão científica à volta destes círculos vai continuar e que ainda muito ainda será publicado. De uma coisa se tem a certeza, não foram as fadas as responsáveis (nem sequer são as principais suspeitas) por estes misteriosos círculos em pleno deserto.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave homens estudo espécie mulheres
“Onde os outros vêem o acaso, eu procuro a ordem”
Há 30 anos, o geneticista António Lima de Faria publicou um livro que contraria a célebre teoria de Charles Darwin. Ali defendeu que a evolução acontece sem selecção. É por isso, insiste aos 96 anos, que a sua mulher não gerou um rato nem um elefante. (...)

“Onde os outros vêem o acaso, eu procuro a ordem”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-07-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: Há 30 anos, o geneticista António Lima de Faria publicou um livro que contraria a célebre teoria de Charles Darwin. Ali defendeu que a evolução acontece sem selecção. É por isso, insiste aos 96 anos, que a sua mulher não gerou um rato nem um elefante.
TEXTO: Se tivéssemos cumprido o desejo de António Lima de Faria o título deste texto seria: “Os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes. ” É assim que o cientista vê a sua obra e vida quando faltam poucos dias para completar 97 anos. Arriscamos dizer que é uma visão modesta para quem deu tanto à ciência e não só. Se o mundo tem afluentes, rios e mares, Lima de Faria será, pelo menos, um grande rio nesta metáfora da vida. O cientista, que nasceu em Portugal e cedo emigrou para a Suécia onde se naturalizou e vive até hoje, esteve no Porto e em Cantanhede numa viagem de trabalho. “Business. Sempre business”, esclarece. É professor emérito de citogenética molecular na Universidade de Lund, na Suécia, onde ainda ocupa um gabinete de trabalho, é também doutor honoris causa pela Universidade do Porto e considerado um dos mais importantes cientistas portugueses. Entre outras honras e distinções é cavaleiro condecorado pelo rei sueco e grande-oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada por Portugal, pela sua contribuição para a biologia molecular. É membro de cinco academias de ciência. A cátedra de citogenética na Universidade de Lund foi criada propositadamente para António Lima de Faria e acabou quando se reformou, uma prerrogativa que só alguns dos maiores cientistas do mundo mereceram, como Albert Einstein e Max Planck. Nos dias que esteve em Portugal, António Lima de Faria participou em conferências, deu palestras, agendou almoços e jantares de trabalho, viu o nascer do Sol da janela do quarto de hotel do costume (sempre o mesmo) no Buçaco e, no meio de uma preenchida agenda, gastou duas horas a falar com o PÚBLICO. Falou só do que quis e como quis. “Sempre decidi ao pequeno-almoço o que vou fazer nesse dia. ”Entre os nove livros que escreveu está Evolution without Selection – Form and Function by Autoevolution, publicado em 1988. É neste livro que o cientista apresenta um novo conceito – por favor, não lhe chamem teoria – sobre a evolução dos organismos que acredita estar assente na ordem, simplicidade e economia e que contraria o (aparentemente) o sólido edifício que Darwin ergueu baseado no acaso e na sobrevivência do mais forte ou mais apto. Hoje, muito do que António Lima de Faria defendeu há 30 anos no livro sobre a evolução sem selecção “foi confirmado pelos resultados da física experimental e da bioquímica”. O cientista, que sempre considerou que a teoria de Charles Darwin é valiosa, tinha razão. António Lima de Faria constata que é impossível prever neste momento o que, em termos de evolução das espécies, virá depois do homem, do pardal ou do lírio. “Fala-se na teoria da evolução… Se fosse uma teoria, podia dizer-se concretamente o que iria acontecer: que a seguir ao homem vem esta ou aquela espécie. Não há teoria nenhuma da evolução que permita fazer isso. De forma que não há teoria da evolução, como já escrevia no meu livro Evolution without Selection. ”Neste livro, o cientista ultrapassa a visão de Darwin, contrapondo um novo conceito no qual a evolução biológica surge como uma consequência de três evoluções anteriores: a evolução das partículas elementares, dos átomos e dos minerais. O conceito que propõe não é, definitivamente, uma nova teoria da evolução. “Nunca propus teoria nenhuma da evolução. Não há conhecimento suficiente. O que propus é uma interpretação diferente. Uma maneira diferente de investigar e que escrevi preto no banco. O darwinismo é um obstáculo ao conhecimento físico-químico da evolução. Porque o mecanismo nunca pode ser a selecção, a selecção é uma maneira de sortear, de separar, e isso não pode ser. O mecanismo só pode ser físico-químico. E isso mantenho-o hoje. ”Mas, António Lima de Faria não perde tempo a explicar o que já sabe e escreveu. “Aquilo que sei as pessoas podem ler nos livros. Está lá nos livros. Só falo do que não sei: do que não sabemos e temos de investigar”, justifica. E o que é que não se sabe? “Dou-lhe um exemplo. Comecei a conferência no Porto com a pergunta: por que é que a minha mulher não gerou um rato ou um bebé elefante? Não há prova nenhuma genética que garanta que a minha mulher não pudesse ter produzido um ratinho. Porquê? Nos anos 80 pensava-se que a diferença entre um humano e um rato era de um máximo de 50%. Havia 50 % de genes que deviam ser diferentes para o rato poder ser diferente do ser humano. Agora não. Agora, os humanos e o gorila? Têm 99% de similaridade dos genes. O ser humano e o rato? 93%. Pior ainda, veja-se o anfioxo, que é o animal mais simples, que ainda vem antes das lampreias. Fez-se a análise genética e comparou-se os genes do anfioxo – são 550 milhões de anos de diferença – com os do ser humano e a semelhança é de 90%. Então, por que é que a minha mulher não teve um anfioxo?”Porque há uma ordem, arriscamos interromper. “E onde é que está essa ordem? Essa ordem tem de estar determinada muito cedo, logo na fecundação. Agora estamos a começar a perceber que os pequenos ARN, pequenas moléculas, micro-ARN, é que dirigem o desenvolvimento. ”Entrevista a António Lima de Faria from Público on Vimeo. António Lima de Faria reconhece que o seu livro sobre a autoevolução a que alguns acharam antidarwinista não teve o impacto que merecia, apesar de ter sido traduzido para russo, japonês e italiano. A maioria das pessoas nunca terá ouvido falar nem do livro nem do seu autor. É de Darwin e da sua evolução com selecção que ainda continuamos a falar e a ouvir falar. Mas há uma explicação para isto. Aliás, há várias. Primeiro, diz, a versão de Darwin é a versão que convém às multinacionais que continuam a ser a “ideologia dominante num período de vácuo ideológico”. Segundo, a sua perspectiva foi propositadamente ignorada. “Este meu livro foi abafado. Não é citado. Acaba de ser publicada uma enciclopédia da evolução que não o cita. O mesmo acontece a colegas meus que fizeram experiências muito valiosas que mostram que não é a selecção que faz a evolução. Não são citados. ” Em jeito de desabafo, conclui: “A maior mentira não é o que se escreve. É aquilo que não se menciona. É assim que se dirige a opinião pública. Pela ausência de informação. O filtrar permanente da informação. ”E será que, um dia, o sólido edifício do acaso e da selecção erguido por Darwin vai acabar por cair? “Não, não se trata de cair. Toda esta atitude é sempre valiosa na ciência, leva a muitos trabalhos, a muita informação que se acumulou. Essa informação não se vai deitar fora. Fica. É muito bem estabelecida. Simplesmente, vai ser ultrapassada. Na ciência ultrapassa-se”, diz. Daqui a 20 anos poderemos até dar razão a Lima de Faria, mas vamos continuar a falar de Charles Darwin. “Sem dúvida, porque a contribuição dele é altamente valiosa e histórica. Tal como se fala de Newton e já se sabe que as suas leis são aproximadas. Há sempre uma aproximação. Darwin era muito inteligente e disse logo que a selecção não podia explicar tudo. ”Apesar da resistência, António Lima de Faria vai falando do seu trabalho. Confirma, por exemplo, que deu um contributo importante para o estudo dos cromossomas. “Nunca tive o Prémio Nobel. Nos anos 70 estive próximo disso quando fiz um trabalho considerado clássico sobre os cromossomas. ” Foi em 1980 que lançou o desafio nesta área ao escrever o artigo "How to produce a human with 3 chromosomes and 1000 primary genes" e em 1983 publicou um novo livro sobre a evolução molecular e a organização do cromossoma. Um ano depois, participou no filme The fusion of human with plant cells, uma co-produção da televisão portuguesa e sueca. “Fui o primeiro cientista a realizar a fusão de células humanas com células vegetais”, assinala. O seu mais recente livro apresenta-nos uma nova era da biologia atómica no formato de uma tabela periódica. Periodic Tables Unifying Living Organisms at the Molecular Level propõe a organização sistemática dos organismos vivos numa lógica baseada no nível atómico ou outras características físico-químicas, tal como os elementos nas tabelas periódicas. “O melhor é escrever, escrever”, sugeria António Lima de Faria no início da nossa conversa, olhando com desprezo para o gravador ligado perto de si. Telemóveis, computadores e outros dispositivos do género não passam de “distracções” e, por isso, não lhe servem. Anuncia que a agenda desta visita a Portugal – anotada à mão num papel A4 – “é só business, ciência”. “Toda a minha vida foi sempre assim, senão nunca tinha feito nada de sério. Sempre trabalhei 14 horas por dia, sábados e domingos, e nunca tive férias. Escreva: sábados e domingos. Nunca ouvi falar de feriados. ” Uma dedicação assente na convicção de que “nunca se pode fazer nada na ciência senão numa continuidade permanente de concentração”. Temos algumas perguntas… “Sim, mas isso vem depois. Primeiro vamos localizar. ” O relato começa no Porto, numa conferência no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) que fez a convite do investigador Helder Maiato, para estudantes e investigadores. Já sabemos que nesta sessão aberta, organizada no âmbito do GABBA (Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada), falou de biologia molecular, a área a que dedicou a vida. “Life is basically simple” foi a frase escolhida para o princípio e fim da palestra. Foi aqui que disse – como agora repete – que não há muito tempo, nos anos 80, pensava-se que a semelhança entre os genomas do rato e dos humanos era de 50% e hoje sabemos que é de 90%. O guião da conversa leva-nos do Porto para o Buçaco. No Palace Hotel Buçaco não descansou, garante. Alojou-se no quarto número 15, como sempre faz. “É o que dá para as traseiras. Quando acordo às seis da manhã, tenho o sol a começar a tocar no topo daquela floresta que é uma tapeçaria viva, de todos os tons de verde. ” Devagar, conseguimos aqui e ali seduzi-lo com um desvio aos planos que fez para esta sessão de trabalho. Mas há um ponto na sua agenda que não é negociável. O professor abre a capa pousada nas pernas e mostra duas páginas com a lista das doações que fez até hoje. Aqui estão, entre outras dádivas, os mapas antigos de Portugal (desde 1561 até 2015) que foi adquirindo e que ofereceu agora ao agrupamento de escolas António Lima de Faria, em Cantanhede. A lista também refere a doação de cinco mil euros “enviados directamente” a Manuela Granzina, professora na Universidade de Coimbra, para que se crie “um fundo de dez bolsas/prémios, de 450 euros cada, a distribuir uma por ano, a jovens inovadores de ciência”. Estas são algumas das forças que fazem o afluente de que Lima de Faria falava. De Cantanhede recebeu a boa notícia sobre a intenção de duplicar este prémio. É o afluente a ganhar mais força. “Sempre tive muito pouco dinheiro. Quando decidi ficar na Suécia, não tinha um tostão no bolso. ” Os tostões que, entretanto, juntou são usados para comprar “o que mais ninguém quer” e umas boas pechinchas. Que depois, generosamente, oferece. “Se quiser um título para esta entrevista tenho um: os grandes rios são criados pelos pequenos afluentes”, dita pausadamente, exigindo ver a frase escrita. Mais tarde, desabafa que “comparado com Gulbenkian ou Champalimaud” a sua contribuição “é uma migalha”. Mas não é. Entre as coisas onde gastou os seus tostões está um velho moinho em ruinas para os lados de Ponte da Barca, que comprou em 1991 para recuperar. “Eu transformo as ruínas em pérolas. Na ciência, no laboratório, é a mesma coisa. Uma equação que define uma relação é muito mais valiosa do que uma pérola. Porque permite prever. Isso é que é ciência. É a capacidade de prever. ”Lima de Faria impõe condições em tudo o que faz. “Sou violento”, avisa. Quando lhe disseram, por exemplo, que queriam dar o seu nome ao agrupamento de escolas de Cantanhede impôs três condições. Queria que os meninos fossem um dia assistir ao nascer do sol, que tivessem um outro dia dedicado apenas a apanhar minhocas e andar na natureza e que fosse reservado um outro dia ainda para distribuir rebuçados aos alunos. Infelizmente, constata, os pedidos acabaram por nunca ser acatados. “Há sempre uma desculpa. ”Quando lhe disseram que queriam dar o seu nome a uma rua de Cantanhede recusou a homenagem que lhe pareceu uma “coisa altamente estéril” e fez uma contraposta. Preferia que fosse criado um prémio para os melhores alunos do 12ºano. Ficou estipulado que o prémio seria de 750 euros e, mais uma vez, António Lima de Faria tinha condições. Desta vez era só uma: “Um prémio para dar ao melhor aluno no fim do ensino secundário, para rapazes e raparigas, e que fosse dado sem obrigação. Fizessem o que quisessem ao dinheiro, isso era obrigatório. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Recentemente, fez mais doações ao agrupamento de escolas, entre as quais está uma enciclopédia “colossal”, publicada pelo célebre ornitólogo catalão Josep Del Hoyo. “Cada volume tem mais de 800 páginas e 50 pranchas a cores. São 17 volumes ao todo, que descrevem no máximo detalhe as mais de nove mil espécies de aves que existem em todo o mundo. ” António Lima de Faria espera que os alunos procurem as aves de Portugal nos milhares de páginas desta enciclopédia. Depois é preciso que tirem fotocópias, recortem as gravuras e façam um caderno de todas as espécies de Portugal. Sem Internet, à moda antiga. Além dos mapas e livros, deixou uma mensagem aos alunos de Cantanhede: “Sê autêntico. O importante é fazer um trabalho sério. Só o trabalho sério é que perdura. ”As ligações e relações nunca se quebraram, mas António Lima de Faria não quis nem quer trabalhar no país onde nasceu. “Só volto para um sítio onde posso trabalhar. Não existem os livros, as bibliotecas e os laboratórios que eu preciso para trabalhar em Portugal. ” E Lima de Faria, como bem se vê, ainda trabalha. “Nunca me reformei. Oficialmente, estou reformado só há 32 anos”, diz a sorrir. “Tudo aquilo que fiz resume-se a uma procura da ordem. Uma procura da ordem a todos os níveis. Tem sido uma procura da ordem nos cromossomas, na célula e na evolução dos organismos. Onde os outros vêem o acaso nas mutações e na selecção, eu procuro a ordem”, resume. Um dia pediram-lhe para resumir o seu trabalho. Depois de alguma hesitação, escreveu 15 páginas com o título “Order is everywhere but it’s not total”. Garante que nunca andou na vida “nem para ser catedrático nem para ser prémio Nobel”. Nem para ficar com o nome na história. “Não. Never. Isso era uma traição. Isso era uma porcaria. ” Por fim, aposta que a maior parte das coisas que hoje diz e escreve vão acabar por se confirmar só daqui a 30 ou 50 anos. E, por isso, marca um novo encontro de trabalho: “Quando nos encontrarmos daqui a 20 anos, vamos ver se o que estou a dizer agora está certo ou não está certo. ”
REFERÊNCIAS:
Lavar a alma a seco nos Arcos de Valdevez
Fazendo da Quinta Lamosa a base, passámos um fim-de-semana a descobrir as muitas razões pelas quais devemos vencer a inércia e sair de casa. Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, aprendemos como se faz uma broa de milho autêntica e conhecemos Sistelo, a aldeia pendurada na serra que atrai cada vez mais forasteiros. (...)

Lavar a alma a seco nos Arcos de Valdevez
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.06
DATA: 2018-12-19 | Jornal Público
SUMÁRIO: Fazendo da Quinta Lamosa a base, passámos um fim-de-semana a descobrir as muitas razões pelas quais devemos vencer a inércia e sair de casa. Em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, aprendemos como se faz uma broa de milho autêntica e conhecemos Sistelo, a aldeia pendurada na serra que atrai cada vez mais forasteiros.
TEXTO: Com GPS ou sem ele, o problema não é encontrar a Quinta Lamosa, no lugar da Zebra, freguesia de Gondoriz, concelho de Arcos de Valdevez. O problema somos nós e os nossos impedimentos, reais ou fictícios, que nos separam de experiências acessíveis de um tempo que recordaremos como tendo valido a pena. A “pena”, neste caso, é a nossa inércia, que se pode traduzir em ideias de tempo demasiado quente, demasiado frio, demasiado chuvoso, demasiado qualquer coisa, para conseguirmos sair de casa e participar em mundos novos que nem sabíamos que estavam, ali, tão próximos, para nós. Aceitemos o facto: já não dependemos de carros de bois sem suspensão para percorrer caminhos de montanha em terra e cascalho solto e pedregulhos pontiagudos tendo por iluminação candeias de azeite. Agora podemos chegar a qualquer lado com todo o conforto que nos dá a tecnologia moderna do nosso carro — ou, ainda melhor, do vosso carro — incluindo lados pensados para serem um ponto de acolhimento à nossa espera. Assim é a Quinta Lamosa. Partindo de terrenos incultos, João Pedro e Carla Serôdio conceberam um lugar de descanso em forma de um quintal relvado e arborizado em socalcos onde encaixaram quatro casas (há projecto para mais uma) com uma disposição tão feliz que a privacidade dos ocupantes de cada uma das construções é sabiamente defendida da dos restantes. A casa maior (a Casa da Árvore) até tem uma ponte de acesso que, embora não seja levadiça, acrescenta uma sensação de independência e de defesa contra ataques de imaginários alanos, vândalos ou visigodos e dos seus descendentes mais directos ou por via colateral. Sabendo que uma das casas (Casa da Corte) estaria ocupada por hóspedes estrangeiros, ficámos curiosos de saber até que ponto notaríamos a sua presença, mas, tirando a entrada ou saída ocasional de um carro, nada. Talvez fossem monges tibetanos em recolhimento que não tocassem trombetas curtas e muito menos das longas, mas que apenas se entretivessem a fazer contas de cabeça, em estado de levitação, sobre o fascinante Orçamento do Estado português. Por isso era preciso submeter a tranquilidade da quinta a um exame mais sério: convidemos três casais com uma composição de 50% de jornalistas e um não-casal com 100% de jornalistas e vejamos se é possível resistir à recriação automática de um ambiente caótico de uma redacção média. Acreditem ou não, a prova foi feita e a tranquilidade prevaleceu. E mesmo considerando o peso de um representante da Fugas para manter a paz e fomentar a concórdia, o facto de a Quinta Lamosa ter resistido, funcional e pacífica, diz muito sobre a sua concepção e a sua gerência. Agora imaginem como poderá ser o ambiente com pessoas normais. . . Assegurado o descanso, que inclui uma piscina exterior de água salgada (o que dispensa produtos químicos desinfectantes), a quinta é uma base para se ir mais além, acrescentando diversão, conhecimento, experimentação, deslumbramento à medida, até chegar à lavagem de almas a seco. A lavagem de alma que o nosso manual de instruções recomenda que façamos de tempos a tempos, para assegurar “a durabilidade do produto” (nós). Se se quiser, há muito para fazer sem se ter a sensação de se estar a fazer alguma coisa. O apoio de João Pedro no acesso ao que nos interessa e as informações que nos pode dar sobre o que dantes não sabíamos que nos viria a interessar tanto são fundamentais. Desdobrando-se em guia que nos conduz com perícia na sua carrinha de nove lugares aos sítios que ele conhece e que nós queremos conhecer, sabe tudo sobre a região, os lugares, as distâncias, sabe guiar-nos para a boa comida (Restaurante O Barriguinhas, freguesia de Parada), para actividades aquáticas no rio Vez, que passa ali, a 200 metros da quinta, com alguém próximo e de confiança (Ricardo Teixeira, do Centro Aventura), ou hípicas, para a ecovia que se pode percorrer a pé ou de bicicleta (na quinta há bicicletas para alugar), para o Parque Nacional da Peneda-Gerês, a aldeia de Sistelo, a serra do Soajo, o Corno de Bico. Perguntem, que ele sabe. E o mais provável é que vos possa levar lá. E nós vamos. A Porta do Mezio é uma das cinco entradas no Parque Nacional da Peneda-Gerês, uma por cada município que lhe dá território. É a entrada do concelho de Arcos de Valdevez, com um conjunto de edifícios e infra-estruturas de apoio ao visitante devidamente tripulados por técnicos formados em várias áreas, com especial incidência na simpatia e na hospitalidade (também pode ser do ar da serra). Ali há várias mãos responsáveis pela administração e pela dotação de meios, devendo destacar-se a câmara municipal e a ARDAL – Associação Regional de Desenvolvimento de Arcos de Valdevez. Atrás do edifício de recepção e orientação dos visitantes há um terreno adjacente à antiga casa do guarda-florestal onde havia um viveiro para reflorestação daquela área do parque. Atrás da casa, recuperada, há um centro de promoção dos produtos regionais onde até se pode almoçar, por marcação. Ali perto, um conjunto de casas em miniatura, em granito, representam a arquitectura tradicional regional, mais acima uma jaula com dois cães representativos de uma raça a que chamam aqui cão-sabujo-da-serra-do-soajo e, finalmente, a cozinha rural com forno de lenha que nos chamou aqui. O nosso mestre é Joaquim Dantas, de 50 anos, natural da freguesia de Rio Frio. Não é apenas “o homem que foi lá fazer uma broa” para nós vermos. É o homem que se meteu, há uns anos, na aventura de, tendo o gosto de fazer broa em casa como a viu fazer à sua avó, investigar a receita que fosse a mais representativa do tradicional, do antigo, do genuíno. A broa faz-se de farinha de milho e de centeio, mas em que proporções? Onde encontrar as farinhas moídas em moinhos artesanais? E a levedura? E os tempos (de levedura, de cozedura)? E o tipo de lenha para aquecer o forno? Fez inquéritos nas zonas rurais circunvizinhas entre os mais velhos praticantes da arte, estudou e sistematizou as respostas, comprou uma escola primária desactivada e começou a fazer esse pão respeitador dos métodos imemoriais, que veio a ser reconhecido pelo movimento internacional Slow Food e a ser conhecido por “a broa de Rio Frio”. Foi esse saber que este estudioso entusiasta trouxe para a Porta do Mezio, incluído no projecto Sabores do Parque, para esclarecer vagas contínuas de ignorantes interessados e para dar exemplo de como interesses como estes podem ajudar a fixar população, tornando viáveis negócios de plantação e colheita, de moagem ou de criação de gado e de aves de capoeira autóctones, pagando-lhes um “preço justo” e preservando os produtos locais, tais como a carne de raça cachena, o feijão-tarrestre (deveria ser terrestre, mas um erro numa candidatura fixou esta forma, que me pede sais de frutos para a escrever), a laranja-do-ermelo, a galinha-preta, a galinha-amarela, a galinha-pedrês (para o famoso “pica no chão”). Por qualquer razão, há sempre menos entusiastas em meter a mão na massa do que em a comer, de qualquer modo que seja. Mas a atenção geral estava presa às explicações de Joaquim Dantas e à sua demonstração da produção caseira de uma broa de milho com preocupações de genuinidade e de preservação (prefiro dizer salvação) de processos, receitas e resultados que até há pouco foram tradicionais, nossos, mas em risco recente de perda. Lugar da Zebra, Gondoriz Arcos de Valdevez Tel. : 914509049 Site Preço: entre 60 e 140€Os circunstantes são industriados na arte de amassar, na arte de levedar, de conservar o forno à temperatura óptima, de não deixar o ponto da massa ficar aquém (que não dá broa) ou além (que dá broa azeda) e na proporção tradicional de farinha de milho e de centeio (três partes de milho para uma de centeio). Mas em tudo isto a chave é a prática, a experiência, o olho: as fissuras da massa dão o ponto, a cor do interior do forno dá a temperatura, etc. Enquanto esperamos que a broa coza, passamos às instalações do centro de promoção de artigos locais da Porta do Mezio para apreciar uns petiscos que a amabilidade pôs sobre a mesa, com a co-responsabilidade de Joaquim Dantas e de sua mulher, Maria do Sameiro Dantas, funcionária camarária, de 54 anos, que acrescentou o carinho da transformação de carne de raça cachena em pedacinhos grelhados ou em alheira, o bacalhau em pataniscas, e – e aqui é preciso fazer um parêntesis encomiástico de um lambareiro – arroz em arroz-doce apaixonante, de que muitos restaurantes deveriam seguir a receita, para salvação deles e regalo nosso. Em todos estes processos, é preciso mencionar a coadjuvação dada pela técnica Cristina Rodrigues, de 37 anos, da ARDAL, desdobrando-se na sua função de recepção, orientação e apoio aos visitantes da Porta do Mezio. Da voz do presidente da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, João Manuel Esteves, ouvimos descrições dos pontos de interesse do seu concelho e informações sobre os vários projectos em que o município está envolvido nas áreas mais directamente ligadas ao turismo, seja na manutenção e desenvolvimento da ecovia, do apoio à Porta do Mezio, da instalação de antenas para fornecer wi-fi em plena serra, onde não há rede de telemóveis, e outros de execução programada, como a construção do parque biológico com animais autóctones selvagens (cavalos-garranos, cabras-montesas) e de quinta. Também num futuro próximo, com a ligação da ecovia dos Arcos à ecovia de Ponte de Lima, espera que seja possível ir do mar (Viana do Castelo) à montanha (Sistelo) a pé, acompanhando o rio, num percurso de cerca de 70 quilómetros. Entretanto, existem percursos pedestres para todo o ano, com o programa 12 Meses, 12 Trilhos. Há uma aldeia pendurada na serra que merece a nossa atenção e a de cada vez mais forasteiros. João Pedro leva-nos lá, tal como faz aos seus hóspedes, que pode levar ainda mais acima, a Porto Cova, para que desçam de lá até Sistelo de bicicleta e depois apanhem ali a ecovia com passadiços que vai até Arcos de Valdevez. Em Sistelo, passeamos pelas ruas, visitamos o cruzeiro, o fontanário, os palheiros comunitários com o lavadouro por trás, a antiga escola primária, espreitamos as vistas para os socalcos talhados na serra. E reparamos na adaptação dos moradores a um trânsito de veículos e de pessoas que é crescente, de modo a poderem recebê-los em número. O Café Ti’Amélia tem moedas equilibradas nas proeminências do granito de uma das paredes. Os donos lembraram-se de lá pôr umas moedas antigas, os visitantes quiseram imitá-los e foram deixando moedas modernas. É de manhã, tomam-se cafés, um chá preto, uma água com gás, experimenta-se um quadrado de bolo de cenoura, por sinal, bom. Rapidamente se enche o recinto, rapidamente se sai, está bem organizado, tudo roda sem sobressaltos, tirando uma água sem gás, de um outro grupo, que ficou por pagar. Uma rapariga é enviada lá fora, para ver se localiza o esquecido. Nada feito. Mas, felizmente, o tempo está de Verão, em meados de Outubro. Não resolve o problema do calote, mas traz mais clientes para diluírem o prejuízo da água. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem quer almoçar precisa de conhecer o restaurante que abriu em Maio deste ano, por iniciativa de uma família de Sistelo emigrada em França que voltou às suas origens para abrir a Pastelaria Pérola dos Arcos, na vila, e depois decidiu ir matar a fome aos visitantes da sua aldeia, Sistelo, tal como no-lo disse Ana Rodrigues, de 44 anos. É na parte de baixo da residência paroquial que funciona a sala de jantar, com desdobramento em esplanada, assim o tempo o permita, com vistas de abrir o apetite sobre a serra e os socalcos que os braços lhe foram conquistando em séculos. É o Cantinho do Abade. Com vários pratos e “carne da cachena às 7 maravilhas”, ao fim-de-semana. E uma inovação na doçaria: pastéis de feijão. . . feijão. . . feijão-tarrestre (raios!. . . ). Alguém quer ir-se embora? E o “embora” é de volta à quinta. Ora experimentem. . . A Fugas esteve alojada a convite da Quinta Lamosa
REFERÊNCIAS:
LU.CA é o novo teatro para crianças e jovens e abre na sexta-feira
O programa do novo teatro da Calçada da Ajuda será gratuito até ao final de Julho, mediante o levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos. A sala recuperada data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V. (...)

LU.CA é o novo teatro para crianças e jovens e abre na sexta-feira
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.118
DATA: 2018-12-18 | Jornal Público
SUMÁRIO: O programa do novo teatro da Calçada da Ajuda será gratuito até ao final de Julho, mediante o levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos. A sala recuperada data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V.
TEXTO: Um novo teatro para crianças e jovens, o LU. CA - Teatro Luís de Camões, em Belém, abre na sexta-feira, em Lisboa, com um programa que se prolonga por três dias como uma "festa popular em grande". O anúncio foi feito por Catarina Vaz Pinto, vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, e por Susana Menezes, directora artística do teatro, numa visita à imprensa destinada a divulgar o programa da inauguração e o resultado das obras de restauro iniciadas pela autarquia há mais de dois anos. "Um programa intenso" para assinalar a devolução, à população mais jovem do concelho de Lisboa, da sala que data do século XVIII (1737), quando foi a Casa da Ópera do Rei D. João V. A abertura do LU. CA coincide com o Dia Mundial da Criança, como explicaram à imprensa Catarina Vaz Pinto e Susana Menezes. E o seu nome surge do jogo lúdico e educativo com as primeiras sílabas do nome de Luís de Camões - por LU. CA ser também um local de aprendizagem para crianças, e porque era necessário distingui-lo, ao nível da comunicação, do Teatro Camões, no Parque das Nações. "Dias de Inauguração!" - assim se chama o programa que começa nesta sexta-feira e se prolonga por sábado e domingo, das 15h às 20h. Para o Dia Mundial da Criança está já confirmada a presença de 80 alunos de uma escola das imediações, informou a directora artística. Um concerto pela Orquestra Juvenil Metropolitana, com narração de fábulas de La Fontaine por sete mulheres, "Biblioteca do Público -- Livros espectaculares (Mesmo!)", iniciativa de livros escolhidos, com curadoria de Sara Amado, autora de um blogue, uma oficina de fotografia (que permitirá às crianças serem fotografadas no teatro a preto-e-branco e depois colorirem as suas fotos) contam-se entre as iniciativas dos "Dias de inauguração!", anunciou Sara Menezes. Uma performance de rua intitulada "Girafas", uma exposição com projectos dos alunos do 1. º ano de design de ambientes da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha são outras das propostas para os três "Dias de Inauguração!", explicou também a vereadora Catarina Vaz Pinto. "Espreitar uma sala com uns binóculos" é outra das propostas para esses três dias, durante os quais as crianças poderão observar os camarotes e as salas do renovado teatro, assim como os frescos que enfeitam o tecto, pintados por Columbano Bordallo Pinheiro sobre tela, e descobertos durante a intervenção agora realizada pela autarquia local, como informou a directora artística, Susana Menezes, que vem do Teatro Municipal Maria Matos. O programa da inauguração, assim como o das iniciativas previstas até final de Julho, será gratuito, mediante levantamento de ingressos na hora anterior ao início dos espectáculos, referiu Susana Menezes. Mas na nova temporada, que começará em Setembro, os ingressos para o teatro já serão pagos, como salientou a vereadora. Apesar de ainda não estar definido o custo dos bilhetes, estes terão preços diferenciados, nomeadamente, para crianças, adultos, escolas e escolas carenciadas, acrescentou Vaz Pinto. Após a inauguração, o LU. CA estará encerrado no fim-de-semana de 9 e 10 de Junho, reabrindo a 16, com o programa "Visita ao teatro". Trata-se de uma iniciativa em que se convida a cidade a conhecer o interior deste teatro do século XVII, agora totalmente recuperado, um projecto do arquitecto Manuel Graça Dias e no qual a autarquia despendeu cerca de 1, 2 milhões de euros, segundo a vereadora da Cultura da Câmara de Lisboa. O palco, o subpalco, os camarins, a teia e os escritórios serão mostrados durante quatro visitas de 60 minutos (às 11h, 15h, 16h30 e 18h). Em Julho, haverá oficinas de teatro para crianças com mais de 12 anos, orientadas por Cláudia Gaiolas, e com mais de 14 anos, por Tânia Alves. Em Agosto, o LU. CA encerrará, reabrindo em Setembro, com um espectáculo encomendado ao actor e dramaturgo Alex Cassals, no qual se irá mostrar às crianças as máquinas de cena do teatro, disse Susana Menezes. "Este teatro, embora pequeno, tem tudo o que tem um teatro para crescidos", acrescentou, citando, a título de exemplo, as quarteladas que saem do chão do palco ou as bambolinas que o ladeiam e que fazem o contorno da caixa cénica, ou das que são utilizadas para impedir que as luzes e outros equipamentos de palco sejam visíveis à plateia. Com este teatro - o primeiro municipal exclusivamente vocacionado para crianças e jovens, com uma capacidade de 81 lugares de plateia e 50 de camarotes -, a autarquia pretende diversificar a oferta cultural, promover cruzamentos com outras expressões artísticas, criar sinergias com estruturas locais, como bibliotecas, escolas, juntas de freguesia ou outras instituições, e criar uma oferta cultural mais variada, como disse a vereadora da Cultura. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. "No fundo, o que se pretende é mostrar que a arte está em todo o lado", acrescentou, frisando que a abertura deste teatro permite, igualmente, "aumentar e diversificar bastante aquilo que era a oferta do Maria Matos" para este público-alvo. Cem mil euros era o custo estimado da programação anual para crianças e jovens do Teatro Maria Matos, um valor que triplica agora para o LU. CA, segundo a vereadora da Cultura e a directora artística do Teatro Luís de Camões. "Garantir e proporcionar uma diversidade de ofertas, ter ofertas de grande público, mais acessíveis, e programações mais de nicho, porque a cidade vive disso" foram, segundo Catarina Vaz Pinto, factores que estiveram na base do projeto de reorganização dos teatros de Lisboa. "Aquilo que nos compete fazer, enquanto poder público, é promover essa oferta diversificada e dar as ferramentas a cada um, para ir escolhendo", disse a vereadora, sublinhando que, no caso do novo teatro para os mais novos, o que importa é "proporcionar às crianças uma educação artística o mais variada possível, para que elas tenham capacidade de escolha e de reflexão sobre as coisas e o mundo em que vivem", acrescentou. Só assim se obtém uma cidade "mais rica e mais culta", e cidadãos "mais bem preparados" no futuro, concluiu. O novo teatro já tem uma página de Internet própria, estando, igualmente, disponível uma página na rede social Facebook.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola cultura educação rainha social criança mulheres
Fado de um azul Celestial
91 anos e uma vida como já não há. Podia não ter sido artista de variedades, não podia não cantar. Canta desde sempre. Desde que a mãe, que tinha a voz mais bonita do mundo, lhe cantava o folclore da Beira. (Para se ter uma ideia da voz da mãe, pense-se na voz de Amália.) É uma criatura luminosa, delicada. O nome, de que não gosta, vai bem com ela. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro. (...)

Fado de um azul Celestial
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-08-07 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20180807050534/https://www.publico.pt/n1668515
SUMÁRIO: 91 anos e uma vida como já não há. Podia não ter sido artista de variedades, não podia não cantar. Canta desde sempre. Desde que a mãe, que tinha a voz mais bonita do mundo, lhe cantava o folclore da Beira. (Para se ter uma ideia da voz da mãe, pense-se na voz de Amália.) É uma criatura luminosa, delicada. O nome, de que não gosta, vai bem com ela. Entrevista de Anabela Mota Ribeiro.
TEXTO: Final da entrevista. Descemos as escadas do Museu do Fado. Uma senhora olhou-a, olhou-a de novo, dubitativa: “É tão parecida com a Amália. ” Respondeu: “Sou irmã. ” São, de facto, de uma parecença espantosa. Cara portuguesa, boca larga, nariz pronunciado, um certo olhar a que se pode chamar profundo. A voz não é a mesma. Mas, sobretudo, a maneira de interpretar de Celeste não é a mesma, e o castiço do fado, a veia popular que foi a sua, também não. Teve cabeça (diz algures) para não imitar a irmã, para seguir o seu caminho. Fiquei a pensar na injustiça que é quando olham para Celeste Rodrigues, apenas, como a irmã de Amália, em encontros como aquele que tivemos e com os quais aprendeu a viver desde o começo. No espaço que teve de conquistar para ela. Celeste é uma fadista maravilhosa (ouçam a Lenda das Algas na versão original e sintam a frescura triste daquela voz), uma referência para a nova geração. Quando fez 90 anos, o cineasta Bruno de Almeida fez-lhe um vídeo de presente e chamou alguns dos seus admiradores para assistir. Aldina Duarte, Camané, Carminho ou Gisela João estavam lá. Mantém-se no activo. Esta entrevista aconteceu num domingo à tarde e foi filmada pelo neto, o realizador Diogo Varela Silva; o filho deste e bisneto de Celeste, Sebastião, fez de assistente de realização. Têm uma relação amorosa e cúmplice a que comove assistir. No final, comentávamos como vai ser daqui a 20 anos, quando os seus bisnetos a virem contar uma vida, a partir desta gravação. Foi por isso que se filmou Celeste sob uma luz de Verão. A pensar naqueles que um dia vão saber como a felicidade lhe ficava bem. Começamos, muito lá atrás, pelas canções que cantava quando descascava ervilhas?Cantava canções da Beira que a minha mãe me ensinava, Milho Grosso. E tudo o que ouvia aos ceguinhos na rua. Que tipo de coisas cantavam os ceguinhos?Fado. Foi aí que ouvi fado pela primeira vez. Com alguém a tocar acordeão ou guitarra ou concertina. Tinha sete ou oito anos. E ouvia nas grafonolas. Antigamente, havia a coisa dos piqueniques. Em vez de jantarmos em casa, armávamos tudo e íamos para o campo. Estava sempre alguém com grafonola. Nós não tínhamos. Isso ainda no Fundão ou já em Lisboa?Cá, em Lisboa. Vim com cinco anos. Ainda se lembra de episódios do Fundão? Só me lembro de quando fui numa procissão vestida de anjo. Eu achava o vestido lindo!, branco com asas. Contava a minha mãe que a cada pessoa que eu encontrava dizia: “Olha aqui o meu vestido tão lindo!” E na igreja, tinha amêndoas no colo, levantei-me e as amêndoas caíram por ali abaixo. É uma imagem feliz, a que associa ao Fundão. Muito feliz. Outra imagem: a de o meu pai a tocar na banda, a dar a volta à cidade. E, numa noite de calor, a minha mãe pegou nos filhos e fomos dormir para o alpendre da igreja. Uma aventura. Eram sete na altura. Conte-me a história da família, que não a sei. Morreram crianças? A minha mãe teve cinco rapazes e depois cinco raparigas. Um rapaz morreu à nascença, outro morreu com 18 meses e outro com dois anos e meio. E morreu uma rapariga aos seis anos e outra aos 16. Portanto, ficámos cinco. Era um tempo de alta mortalidade infantil. E sem saber porquê. “O teu irmão morreu com ataques. ” Sei lá que é isso de ataques. Como é que isso era vivido na família? Era menos traumático, apesar de tudo, do que é hoje?Não. Era muito. Eu deixei de ser religiosa por causa da morte da minha irmã. Ela tinha seis, eu tinha nove. Estava a pedir por ela, na igreja, quando o meu irmão veio ter comigo e me disse que ela tinha morrido. Nunca mais acreditei em nada. Deus, Pai Natal, acabou aí. Tenho impressão de que era mais violento do que agora, porque éramos mais unidos. Também não tínhamos mais nada — a não ser uns aos outros. Como é que se chamava essa sua irmã?Maria dos Anjos. Nome horroroso. A minha mãe pôs nomes feios às filhas. Maria Odete, Amália, Celeste, Ana e Maria Rosário. Ah, não era Maria dos Anjos, era Maria do Rosário. É um lapso bonito. Fazendo dela um anjo. Os rapazes tinham nomes bonitos. A Ana morreu com 16 anos. Era poetisa, escrevia. É impressionante imaginar uma menina de nove anos que tem essa revolta contra Deus quando sabe da morte da irmã. É. Nós gostávamos muito uns dos outros. Devemos isso à minha mãe e ao meu pai. Como é que era a sua mãe?Uma pessoa fantástica. Tinha uma filosofia muito engraçada. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã. ” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se. ” A família era pobre. Quão pobre?Tínhamos carinho. A pobreza: nem dávamos por isso. A minha mãe ia ao campo, buscar qualquer coisa para fazer uma refeição, espargos, míscaros. Aquela fome, fome, fome, nunca passámos. Podíamos não ter os bifes, essas coisas de que as pessoas precisam, também. Mas não dávamos por essa necessidade. Só havia uma coisa com que a minha mãe sofria: como tínhamos uma casa pequena [no Fundão], quando nascia um bebé, um de nós tinha de ir para casa de um familiar. Como era a casa?Era sobreloja, primeiro andar e sótão. Deitaram-na abaixo, infelizmente. Cada vez que ia ao Fundão, ia ver a minha casinha! [Riso] Foi onde nasci. “Se me sair a sorte grande, compro esta casa. ” Até que idade sonhou com essa casa?Até agora, que fui lá há pouco tempo. Tive um desgosto. Estava habituada a ver a minha casinha, tão linda. Nunca mais entrou nela?Não. Via-a por fora e já era muito bom. De certeza que nunca teve oportunidade, estes anos todos, de comprar a casa?Não! Nem para comprar uma caixa de fósforos, quase. Não sou como o Tio Patinhas. Nunca liguei ao dinheiro: tenho, gasto. E nunca fui de me preocupar com o dia de amanhã. Como sou muito positiva, penso que amanhã tenho um contrato. Hoje não tenho, amanhã tenho — a minha vida foi sempre assim. Quis verdadeiramente comprar a casa ou bastava-lhe o sonho da casa?Quis. Era como voltar à minha infância. A sua infância foi feliz por causa do amor que sentiu?Acho que sim. Veja a letra que a minha irmã [Amália] fez: “Não temos fome, mãe, já não sabemos sonhar, já andamos a enganar o desejo de morrer. ” Doeu na carne [a privação]? Doeu nada. Dá mais poesia. A pessoa cresce mais depressa. Foi uma infância sem medos? A nossa sociedade está muito marcada pelo medo. Nós brincávamos na rua. Sem medo que nos roubassem os filhos. Tem-se mais sonho quando há dificuldades. “Vou juntar para isto. ”Os sonhos eram?Coisas que a gente gostava de fazer. Viajar. Trabalhávamos no Cais da Rocha e víamos os paquetes, com os passageiros todos. Está a falar do que o dinheiro podia comprar. Agora, aos 91 anos, sonha com quê?Oh, tanta coisa! Estou muito agarrada à vida. Mas não me amargura não fazer [tudo o que tenho vontade de fazer]. Já tenho tanta coisa boa. . . Abrir os olhos e ver esta beleza. Essa infância maravilhosa teve sempre a música. O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza. A voz da sua mãe, como é que era?Um bocado como a da minha irmã, mais forte. Tinha uns agudos maravilhosos, uns graves sensacionais. Havia na sua mãe o desejo de ser cantora?Não. Tinha tanto filho. . . Pertencia a um rancho e cantava. Chamavam-lhe o “rouxinol da Beira”! Tinha uma voz que se ouvia a dois quilómetros. Nem nós. Nunca sonhámos ser artistas. Nem eu nem a Amália. A gente cantava porque gostava de cantar. Cantávamos nas [festas] dos vizinhos, nos baptizados, nos casamentos da vizinhança. Isto surgiu, primeiro com a minha irmã, porque se enamorou de um guitarrista. E eu porque andava com ela, acompanhava-a. Ainda hoje gosto de cantar. Ando sempre lalalala, por casa. Que canções estava a cantar hoje de manhã em casa?Estava a cantar um fado. O fado da andorinha. [Canta] “A manhã é uma andorinha que se esqueceu da viagem. . . ” Canta para si?Canto para mim e às vezes para a vizinhança, que diz: “Continue, continue. ” É bom cantar, é bom. Canta fados antigos?Sim. Fados que criei. [Lenda das] Algas, Saudade Vai-te Embora, Gaivota Perdida. Para recordar a letra. Como é que era um Natal na vossa casa?Ah. Tudo sentado no chão, que éramos muitos e não havia cadeiras nem bancos. Se cantávamos? Claro! Sempre as coisas da Beira. Os martírios — como é que lhe hei-de explicar o que são os martírios? É uma coisa que se canta na Semana Santa. Eu cantei, como se fosse uma oração, para um filme de pescadores bacalhoeiros da National Geographic. Faz arrepiar quando as pessoas cantam bem. Começou em 1945, no Casablanca. Ainda nesse ano fez uma temporada no Brasil com a sua irmã, que já fazia muito sucesso. E já tinha ido a Madrid. E à Madeira. Como é que começou a cantar a sério, profissionalmente?Seis anos depois da Amália. Ela começou em 1939. Eu andava sempre com ela. Porquê? Era uma espécie de dama de companhia? A minha mãe dizia que éramos o roque e a amiga. Andávamos sempre, sempre juntas. Conheci a Amália quando tinha cinco anos e ela oito. Ela estava cá em casa dos meus avós e nós no Fundão. Como é que foi quando a viu?Eu conhecia-a de fotografia. Ela achou-me muita graça porque eu falava à moda do Fundão. Dizia: “Quero meia rate de açúcar e uma onça de chá. ” Fui com ela à mercearia fazer um recado. Também não sabe o que é? Era uma medida que havia naquela altura. Sempre foram muito parecidas. Muito. Confundiam-nos na rua. Eu não podia ir a um cinema. Havia as apostas: “É/ não é?” A pessoa sente-se mal. Ainda por cima não era eu. Já viu que diferença, entre a sua infância e a dos netos ou bisnetos? O Gaspar, aos dez anos. . . Aprendeu a tocar [guitarra] de propósito para me acompanhar — disse ele. E acompanha bem. Já viu que fica com cara de guitarrista quando toca?Fica com uma cara muito séria. Que declaração de amor, aprender a tocar para acompanhar a bisavó. Faz-me uma ternura. Fiquei comovida. O que eu queria dizer: se lhes contar aquelas coisas por que passou, têm dificuldade em imaginar. Eu conto. As dificuldades e as alegrias. Adoram ouvir. Acham espantoso?Espantoso? Naquela altura, vivia quase toda a gente assim. Duas guerras. . . Guerra de Espanha. Era preciso racionamento. E depois a [II] Grande Guerra. Tinham muita informação sobre as guerras?Não. Não tínhamos televisão. Rádio, não havia tempo para ouvir. Trabalhava. No cinema, passavam boletins? Ia ao cinema. Ia. Com um bilhete de dez tostões, para as primeiras filas. Ficava com uma dor no pescoço. Apanhávamos desenhos animados. Quem eram os galãs de cinema com quem sonhava?Tinha uma paixoneta pelo Spencer Tracy no Não há Rapazes Maus. Era tão lindo e representava tão bem! E o Gary Cooper, lindo e alto?Não era o meu tipo. Gosto da expressão, do olhar. Impressiona-me mais do que a beleza do homem alto. O meu marido não era bonito. Era interessante, mas não era bonito. O meu primeiro namorado também não era bonito. Uma expressão melancólica, sonhadora, impetuosa?Sei lá. Era uma maneira de olhar profunda. Sei lá. Você também. . . [riso]Como é que era a expressão do toureiro, o seu primeiro namorado?Era tão engraçado. Era irmão da Casimira, Mirita Casimiro. Com aquele mesmo nariz. Era parecido com ela, portanto não era bonito. Sim, mas só com a palavra “toureiro” já se imagina um homem fogoso. [Riso] Não sabia o que era isso. Tinha 17 anos quando o conheci. Prendeu-me mais pela conversa. A personalidade. Era uma sociedade muito puritana, o código social era restrito para as mulheres. A minha mãe é que dizia, não era a sociedade. Não deixava ir ao cinema com um namorado, sozinha. Nem a mim nem à Amália. Tínhamos de levar o meu irmão connosco. Quanto tempo esteve com o toureiro?Namorei três e depois estive dez anos. Não chegou a casar-se com ele. Zanguei-me antes de casar. Também não vou dizer porquê. Está mesmo à espera que conte porquê. Como foi recebido pela sua mãe, que punha essas regras todas, o facto de ir viver com ele sem se casar? A minha mãe adorava-o. Aceitou. Mais do que o meu pai. O meu pai não nos falava, ao princípio. As minhas irmãs adoravam-no também. Porque é que não se quis casar?Já lhe disse que não digo a razão. [Riso] Ainda não estava na altura de ele casar, e eu também não, que era muito nova. Não sabia cozinhar. Nunca liguei ao casamento. Não queria ter filhos. Achava que não os saberia educar. (Depois tive a primeira e tive logo a segunda. Ahhh, coisa mais maravilhosa é ter um filho. ) Porque é que não me conta? É porque não quer que os seus netos saibam?Não. A culpa foi minha. Aquele complexo da menina de Alcântara. Entendi mal uma coisa que ele não fez e devia ter feito. Achei que era porque eu era de outro meio [social]. Eu achei que ele não queria que as pessoas soubessem que íamos casar. Pronto. [Anos depois] esteve doente e fui vê-lo. Já estava separada do meu marido. Ele beijou-me [a mão]. “Sabia que você vinha. ” Chamou os médicos: “O grande amor da minha vida está aqui. ” Foi chocante. Saber que não me tinha esquecido depois de tantos anos. Sabia tudo o que eu fazia, escrevia-me todos os dias uma carta sem a mandar. Não casou. Eu casei. Que bela história de amor. É íntimo. Porque é que o público está interessado na minha história de amor?Penso que conhecemos muito as pessoas nas suas histórias de amor. Não só com um homem ou mulher, mas no amor de pais e filhos. Normalmente, o melhor das pessoas está nessas histórias. Tenho uma família linda. Todos me adoram e eu adoro-os. Recuemos a 1945. Reza a história que foi à Adega Mesquita, cantou e foi contratada para cantar no Casablanca. Era o empresário da minha irmã, que tinha o Casablanca. É onde é hoje o ABC. Fiquei medrosa. Eu ia lá todos os sábados. Cantava a minha irmã, a Maria Teresa de Noronha, o José António Sabrosa, o Vicente da Câmara, a Lucília do Carmo. A minha irmã dizia: “A minha irmã canta muito bem. ” Um dia tive coragem e cantei uma quadra. O Zé Miguel, que estava lá a almoçar, contratou-me logo. Marcou-me ensaios, tratou-me da carteira profissional, anunciaram-me. Quando ouvi o meu nome, não queria entrar no palco. O locutor empurrou-me e lá fui eu. A minha irmã foi minha madrinha, pôs-me o xaile nos ombros. Ela puxava muito por si, no sentido de a incentivar a fazer?Não. Só naquela altura. Nunca se meteu na minha carreira artística, felizmente. Senão, eu tinha desistido. Canto à minha maneira, canto as minhas cantiguinhas. Como eu sinto. Nunca a imitei. Tentei fugir à maneira de ela cantar. Amália era três anos mais velha, cantava há mais tempo e era já reconhecida. Era inibidor para si, com o sucesso dela, começar a cantar?Não. Nunca pensei nisso. Porquê? Há tantos alfaiates. Eu não tinha de ser como ela. Então, todas as pessoas que cantavam deixavam de cantar. Sempre achou que ela era. . . Ah, o máximo! Achei e continuo a achar, que nunca mais aparece [uma como ela]. São casos. Como a minha mãe: se tivesse sido artista, não apareceria outra igual. Nunca ouvi uma voz tão bonita como a da minha mãe. No caso da sua irmã, era a voz. . . Era tudo. Era também a maneira como ela se entregava? As pessoas entregam-se, também. Não é isso. Era tímida e crescia no palco. Tímida e humilde e ficava uma rainha. Tinha bom gosto a cantar. A Celeste era muito tímida?Ainda sou. No palco, fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara. Quando a vemos cantar, parece muito enfiada em si. Como se o mundo cá fora não existisse. Não existe. Fechar os olhos é realmente uma maneira de estar connosco. Como é que foi o Brasil? Imagino o deslumbramento. Eu não era para trabalhar no teatro. Ia para acompanhar a minha irmã. O empresário: “A sua irmã está aqui, canta, porque é que não entra também nas revistas?” Aquilo para mim era uma paródia. O nosso empresário tinha cinco cinemas com sessões contínuas. Corria os cinemas. Chegava atrasada ao teatro. Não sabia representar. E tem de se representar bem. O jeitinho não dá. Tenho uma admiração enorme pelos actores. O que é que fez?Uma comédia e uma opereta. Fazia o papel que a minha irmã e que a Hermínia [Silva] fizeram cá n’ A Rosa Cantadeira. Esteve um ano no Brasil. Mudou-a muito ter estado tanto tempo fora?Não. Olhe, as duas. Começámos a lembrar-nos do bacalhau, a ter saudades do bacalhau. Ela tinha um contrato sensacional, 200 contos por mês. E eu, 30. Viemos embora. Considero-me uma pedra de Lisboa. Ela também. O que é que fez a esse dinheiro todo que nem deu para a casinha do Fundão?Comprei um casaco de peles, de lontra! [Gargalhada] Bem giro. Era o que todas as raparigas naquela altura sonhavam ter. Ainda o tem? Há pessoas que guardam tudo a vida toda?Não! Havia de estar cheio de traças. Comprei outras coisas, roupa. Uma vez fui cantar a África, a Cape Town, Cidade do Cabo, não é? Comprei tanta roupa. Ganhei bem. Em 1950, 20 contos por espectáculo. Fiz uma data deles. Comprava presentes à sua mãe?Lá fora, não. O meu irmão, sim. Ele jogava boxe e a minha mãe pedia-lhe para deixar. “Vais jogar?”, “Não, não. ” Trazia sempre um mimo à minha mãe quando chegava a casa. Uma vez não encontrou mais nada, nem flores, nem bolos, e comprou carapaus! Que idade tinha quando a sua mãe morreu?Não me lembro. Não me lembro. Há 50 anos? Há 40? [O neto, que está a filmar, intervém: “Ela morreu com 95 anos. Nem há 30 anos. ”]Nem a minha irmã, não sei a data em que morreu. Não fixo datas. Nem nomes. Dizia-se “artista”, “fadista” ou “cantadeira”?Sou artista de variedades. O meu cartão profissional é de artista de variedades. Antigamente era assim. Uma vez artista, nunca teve vontade de desistir?Não. Cantar é óptimo. Adoro cantar. Cantar e ser artista são coisas diferentes. Para mim, é a mesma coisa. Quando canto, não penso se sou artista. Estou muito agradecida ao fado, que me deu coisas que eu não poderia ter se não fosse o fado. Não poderia ter viajado. E deu-me uma sobrevivência estes anos todos. O que é o fado?O fado são emoções. É como suspirar. É um alívio quando se canta. O meu fado. Não sei se será isso o fado. Se estiver triste, canta melhor?Não. Posso estar triste e cantar mal e estar triste e cantar bem. A beleza não é triste. O fado para mim não é triste: é belo. Dá-me uma emoção enorme que gosto de sentir. Qual é o fado que mais diz quem é?Música? O Fado Menor. Entra logo dentro de nós. Que quadras melhor a dizem?[Riso e pequena pausa; o neto diz: “As que escreveste”] “Sozinha de ilusões naveguei em barco parado no rio, despida de emoções atraquei no cais do meu vazio. Foram levadas pelo vento dos sonhos que outrora tive. Por isso canto no fado aquilo que minha alma vive. Ontem fui, hoje não sou, menos serei amanhã. Sinto que a minha sombra vai fugindo apressada. Está tão cansada de mim e eu dela estou cansada. ” É assim que eu sou. São versos tristes. São, pelo menos, de uma pessoa nostálgica. Adoro o meu passado. Quando se perde família, amores, a nostalgia da pessoa está aí. Quais foram os grandes embates da sua vida? Os momentos em que a vida dá porrada. Ah, a gente aguenta. A vida não pode ser só bom. As perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade. O amor morre. Esse amor de nhanhanhã. Sofreu muito com o divórcio?Um bocado. Desilusão. Eu tinha a pessoa [faz o gesto de a pôr nas alturas]. Engraçado não dizer o nome dele. Disse “a pessoa”. Varela [Silva]. Não gostava do nome: Alberto. Eu chamava-lhe Varela, como toda a gente. Achava que o Varela não era capaz de me fazer [o que fez], visto que, quando nos casámos, lhe disse: “Se algum dia me apaixonar por alguém, digo-te. Se te apaixonares, dizes-me. ” Isso eu entendo. Se disser, sou capaz de perdoar. O engano, não gosto. É uma falta de respeito. Nunca mais teve relação com ele? Depois de anos [de afastamento], fomos amigos. Fui lá vê-lo a casa no final da vida, quando estava doente. Estive com ele uma tarde inteira a conversar. Telefonava aos amigos: “Não adivinhas quem está aqui. . . ” Quis despedir-se dele?Não era bem despedir-me. Não pensava que ia morrer tão depressa. Fui visitar uma pessoa de quem gostava. Tivemos duas filhas. Tenho netos por causa dele. Isso foi a coisa muito boa que me deu, e que tem mais valor do que o engano. Mas na altura fiquei muito magoada. Que idade tinha?Quando me casei, tinha 32. Quando me separei. . . , foi há 40 anos. Vivi 25 anos com ele. Depois do 25 de Abril, fui uma temporada para fora, seis meses. Tive um contrato para o Canadá e os Estados Unidos. Aproveitei. Não havia cá trabalho nem para mim nem para ele. Quando cheguei do Canadá, é que soube que ele andava com ela. Chega? Estou aqui a assar! Já não tenho mais nada para dizer. [Para o neto] Estás a filmar isto tudo? Gosh! Gosh? Fala inglês. . . Desde os 12 anos. Aprendi com um amigo do meu pai, que nos ensinou. De ouvido. Primeiro alemão. [Ele dizia]: “Ich habe Deutsch gelernt als kleiner Junge. Aber ich habe alles vergessen. ” [Eu aprendi alemão enquanto jovem rapaz, mas esqueci tudo. ] Das ist wahr. [Isso é verdade. ] Eu nem sei dizer que não sei falar alemão. Ich kann nicht sprechen. [Eu não sei falar. ] O seu pai devia ser um homem muito aberto. O meu pai, a minha mãe. . . Tivemos uns pais formidáveis. Veja que não temos linguagem de bairro, calão. A minha mãe não deixava. Nem aos meus irmãos. Na Beira, não se fala mal. Só há uma palavra que dizem muito: “Filho da dúvida. ” E dizem “filho da dúvida” ou dizem a palavra mesmo?A palavra mesmo. Vivi no bairro de Alcântara, de varinas e estivadores. Ouviam-se os piores palavrões que há. Uma vez mandei a minha irmã àquela parte — ainda hoje não digo a palavra!, Deus me livre. Era pequena. A minha mãe levou-me à cozinha, partiu uma malagueta e esfregou-ma na língua. Remédio santo. A minha irmã estava a chatear-me, a ganhar-me nas cinco pedrinhas. Como não tínhamos brinquedos, inventávamos jogos. Estava a ganhar-me, a malandra. Disse: “Vai à. . . Não quero jogar mais!”É verdade que a sua amiga Beatriz da Conceição, que é do Porto, não diz palavrões à sua frente? Não. Faz-me uma ternura enorme [que ela faça isso]. Deve ser um sacrifício. Toda a gente diz que ela diz palavrões. Não é fantástico? As pessoas do Norte falam palavrões, mas no fundo não quer dizer nada. Ela também é assim. Voltemos aos grandes embates. Soube que aos 45 anos deu um rim a uma irmã sua. Isso é amor. Lá está: gostávamos muito uns dos outros. Os outros meus irmãos também dariam [um rim, se fossem compatíveis ou pudessem]. Era a Odete. Como foi a história?Teve uma nefrite. Descobriu-se no Rio, onde estávamos as três. A Amália foi cantar e nós fomos com ela. O médico achou que era uma apendicite e queria operá-la. Ela disse: “Não. Vamos para Portugal. A mãe é que tem de dar essa ordem. ” “A mãe é que tem de dar essa ordem?”Então não era? Tinha 17 anos. Vim com ela para Portugal. A Amália tinha um contrato a cumprir no casino Copacabana. Estava cinco meses bem, três meses no hospital. Disseram que era melhor fazer uma transplantação. Procurava-se quem podia dar o rim. Todos os irmãos disseram: “Eu dou. ” Mas o meu irmão Filipe, o boxeur, era diabético. O outro tinha taquicardia. A minha mãe já tinha uma idade avançada. Fui eu. Teve medo?Tenho medo de uma injecção!, que fará. [Riso] Mas a gente nem pensa no medo. Faz-se e pronto. Deixei de fumar e tudo. Seis meses. Foi uma exigência que fizeram. Calhou que o meu rim era bom. Era aquilo a que chamam “match A”. Começou logo a funcionar assim que lho colocaram. Sabe o contentamento que uma pessoa sente por ter salvo a vida a outra? E a pessoa era minha irmã, ainda por cima. Viveu mais 44 anos, teve três filhos depois disso. Morreu no ano passado. Vive entre Lisboa e os Estados Unidos, onde vivem as suas duas filhas. A primeira foi para lá há 30 anos. Há vinte e tal anos, a outra. Nasceu a minha neta. Eu estava a cantar em Providence. Quando acabou o contrato, apanhei o comboio e fui para Washington. Fiquei três ou quatro meses. Depois fiquei seis meses. Depois fiquei nove. A miúda telefonava e dizia: “Gostas mais desse Portugal que de mim. ” Lá ia eu. Quando ia cantar, qual era o seu circuito? Estúdios de televisão? Comunidades portuguesas?Fiz um programa para o Ed Sullivan, cantei na televisão em Providence. Cantava nos liceus americanos. Fiz tournée na Califórnia, Massachusetts, Canadá. Telefonavam: “Venha”, e eu ia. Volto a pensar na casinha do Fundão. Como é que com essas tournées todas não houve guito para ela? Também vai esquecendo. Outros valores mais altos se levantaram: as filhas, os netos. Quando é que o dinheiro deixou de ser uma coisa determinante na sua vida?O dinheiro nunca foi uma coisa determinante na minha vida. Mesmo quando tinha muito pouco?Sim. Tinha a esperança de ter um contrato amanhã. Hoje quem arranja um contrato é o meu neto. Nunca tive agente. Só no começo, o Fortuna. O que me valeu quando foi o 25 de Abril, e andei a cantar em boîtes como todos os artistas, a Simone, todos. . . Agora disse o nome da mulher pela qual o seu marido a trocou. Há bocado disse “ela”. [Riso] Pois, filha. Não lhe tenho raiva nenhuma. Não tem culpa. Não tenho raiva a ninguém. Ter raiva é uma coisa muito negativa. Tenho uma amiga que não entende que eu seja assim. Diz que eu sou mole. Já chega? Ai Jesus. Está satisfeita?Ainda não. O fado tinha no pós-25 de Abril uma aura de coisa fascista. Não sei porquê. Se é uma coisa do povo, como é que pode ser fascista? Porque trabalhou durante o [antigo] regime. . . ? Então não trabalhou toda a gente? Se não trabalhou, era parasita. Sofreu muito com isso?Não. Nunca liguei nenhuma à política. [Em] coisas que não percebo, não me meto. Tenho a instrução primária, só. Tem a instrução primária, só, mas sabe muitas coisas. Tenho um vício: ler. Gosto de Steinbeck, Dostoievski, Hemingway. Os Bichos do [Miguel] Torga, acho uma beleza. Os Maias do Eça. Vai-se aprendendo qualquer coisinha. A dizer mais uma palavrinha. Sonhava chegar aos 91 anos?Não. Achei que morria aos 33. Como Cristo?Não. Não sou crente desde os nove. A minha mãe dizia: “Nosso Senhor”, e eu dizia: “Seu Senhor. Nosso, não. ” Sei lá porque é que achava que ia morrer aos 33! Também achava que ia para freira porque vi um filme com a Deborah Kerr que tinha um fato [de freira] que lhe ficava bem. Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender. Poder cantar. Isso. . . , se não puder cantar, faço lalalá. É muito bom chegar a esta idade. Sou saudável. Tenho macacoas às vezes, mas não ligo. Tenho dores e faz de conta que não as tenho. É uma mulher feliz?Acho que sim. Não há felicidade completa. Também não há infelicidade completa. Há momentos. Tudo faz parte. No documentário de Bruno de Almeida The Art of Amália, a sua irmã conta que estava doente e pensava que ia morrer. Pensou matar-se nos Estados Unidos porque não queria que a encontrassem morta aqui. Nos EUA, começou a ver filmes do Fred Astaire e isso reconciliou-a com a vida. Já via filmes do Fred Astaire antes. Ajuda a passar. A pessoa agarra-se a qualquer coisa. Na altura, ela estava distraída e não pensava na morte. Queria saber se alguma vez teve um momento assim, em que lhe apeteceu desistir de tudo. Não. Nunca. Nunca. A única coisa que me entristece é o desgosto que vou dar à minha família quando desaparecer. Nunca pensei desistir de nada. Também depende do que a pessoa pretende conseguir. Nunca fui ambiciosa. Porquê?A pessoa nasce com isso ou não. Nunca quis ter uma carreira mais. . . Nunca. Pelo contrário. Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar. Isso que sente tem uma relação com o sucesso da sua irmã?Não. Ela também não ligava muito ao sucesso. Há pessoas que com um sucessozinho já se acham o máximo. Ela não. Manteve-se humilde, a gostar de coisas simples. Do seu carapau de escabeche. Mantiveram a relação unha com carne até ao fim?Sempre. Com todos os meus irmãos. [Houve um tempo em que] íamos todos os dias ver a Amália, a São Bento [a casa dela]. Íamos tomar chá. Falavam de quê? Tanta coisa. Da nossa infância, da nossa vida, do que vinha à baila. Mas cada um tinha a sua vida, a sua família, a sua casa, os filhos. Só ela é que não tinha filhos. Sofreu muito, claro, quando ela morreu. Lembro-me de a ver na televisão e da sua cara devastada. Que é que acha? Tanto por ela como pelos outros que morreram. É uma cacetada que nos dão na cabeça. Ninguém aceita. Por isso é que ando a falar com os meus netos e as minhas filhas, a prepará-los. Não querem ouvir falar. Como é que se prepara uma pessoa para a morte de alguém tão querido e tão próximo?É aceitar. Não temos outro remédio senão aceitar. Que adianta bater o pé e dizer não? Não quero velório. Não quero dar às pessoas a tristeza de estarem ali, a velar o meu corpo. Agora está a pôr-me triste. De pensar que vão ter esta tristeza. Está a ver? Se tivesse acabado [a entrevista antes]. . . E se puserem um disco seu no velório? Se a puserem a cantar?Isso está bem. Hum. Também não. Acabou?Acabamos com música. Qual é que lhe apetece cantar? Imagine que cantava agora para a sua mãe e o seu pai. Cantava o Milho Grosso. Normalmente, a minha mãe é que cantava para nós. Pedíamos-lhe sempre. Não me apetece isso [que me pede]. Dá-me tristeza. Fujo à tristeza. Não caio nessa. E não me vai fazer cair! Tenho pára-quedas. O pára-quedas da vida. Aprendeu a defender-se. Exacto. Macaca velha. Vamos acabar. Mas nem lhe perguntei sobre as histórias do fado, das vielas, do Alfredo Marceneiro. . . Já toda a gente falou disso. É corriqueiro. [Riso] Tio Alfredo. Tive o Tio Alfredo contratado quatro anos [na casa de fados que tive]. Ficou lá por causa do Varela, adorava o Varela. “Senhor Varela, como é que hei-de tratar um rei?” Era bem apanhado, ele. (A minha avó dizia que a conversa é como as cerejas. E chamava-me “ganapa”. Eu ficava ofendida. Ganapa? Afinal, era “rapariga”. ) O Tio Alfredo era uma pessoa muito simpática que cantava muito bem o fado. E refilão. Dizia de mim: “Agora é ela que vai miar. ” [Gargalhada] Era só para me arreliar. Quem é que foi o seu maior fã?[Tom muito sério] Desculpe: muita gente. Eu era girinha, girota. Tinha muitos admiradores. As minhas filhas e os meus netos são os meus maiores admiradores. Para eles, sou o máximo. O pequenino, o Gaspar, está sempre a dizer: “És a melhor fadista do mundo. ” Do mundo! Imagine. “Não digas isso à frente das pessoas. ” “Porquê? É verdade. És a melhor fadista do mundo. ”Tinha uma filosofia muito engraçada [mãe]. Nunca se deixava abater. Quando tinha dinheiro, comprava-nos queijo. Nós gostávamos muito de queijo, queijo fresco. Dava um quarto a cada um dos filhos. A minha avó dizia: “És desgovernada. Deves dar um bocadinho hoje, um bocadinho amanhã. ” A minha mãe respondia: “Não, não. Ao menos hoje consolam-se. ”O meu pai era músico, tocava muito bem. Trompete, saxofone, clarinete. A minha mãe cantava. Como é que uma pessoa podia estar frustrada? A música enche a vida de beleza. "A minha mãe dizia que éramos o roque e a amiga. Andávamos sempre, sempre juntas. Conheci a Amália quando tinha cinco anos e ela oito. Ela estava cá em casa dos meus avós e nós no Fundão. "Nunca liguei ao casamento. Não queria ter filhos. Achava que não os saberia educar. (Depois tive a primeira e tive logo a segunda. Ahhh, coisa mais maravilhosa é ter um filho. )"Começámos a lembrar-nos do bacalhau [no Brasil], a ter saudades do bacalhau. Ela [Amália] tinha um contrato sensacional, 200 contos por mês. E eu, 30. Viemos embora. Considero-me uma pedra de Lisboa. Ela também. A vida não pode ser só bom. As perdas — única coisa [que dói]. Não as amorosas. Essas são a coisa natural da vida. Ninguém é de ninguém. Só há uma coisa que não morre: a amizade. O amor morre. Esse amor de nhanhanhã. "Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Disseram que era melhor fazer uma transplantação [irmã]. Procurava-se quem podia dar o rim. Todos os irmãos disseram: 'Eu dou. ' Mas o meu irmão Filipe, o boxeur, era diabético. O outro tinha taquicardia. A minha mãe já tinha uma idade avançada. Fui eu. Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar. "
REFERÊNCIAS:
Guia para a Lisboa “sem reservas” de Bourdain
Anthony Bourdain visitou Lisboa há pouco mais de um ano para o seu "No Reservations" (Não Aceitamos Reservas). Revisitamos as mesas que fizeram as delícias do visitante. O episódio lisboeta estreou-se na SIC Radical a 14 de Janeiro (...)

Guia para a Lisboa “sem reservas” de Bourdain
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-12 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181212205537/https://www.publico.pt/n1816281
SUMÁRIO: Anthony Bourdain visitou Lisboa há pouco mais de um ano para o seu "No Reservations" (Não Aceitamos Reservas). Revisitamos as mesas que fizeram as delícias do visitante. O episódio lisboeta estreou-se na SIC Radical a 14 de Janeiro
TEXTO: Cervejaria Ramiro, rei do marisco e do pregoHá mais de meio século a manter a tradição da arte da cervejaria portuguesa, a antiga "casa de pasto" Ramiro é um reino do marisco e dos petiscos, incluindo os afamados "pregos". A ementa da cervejaria prossegue com a garantia da frescura e de encantar muitos fiéis, entre ostras, amêijoas, percebes, navalheiras, lavagantes, lagostas, lagostins. . . Aqui, Bourdain deliciou-se entre imperiais, elogiados camarões e lagostins ou pregos (a que chamam "a sobremesa"). Sol e Pesca, o bar das conservasSol e PescaRua Rua Nova do Carvalho 44+ na FugasCervejaria RamiroAvenida Almirante Reis, n. º 1H T:21 8851024. Fecha à 2. ª+ na FugasA Tasca do ChicoRua do Diário de Noticias, n. º 39+ na FugasA GinjinhaLargo de São Domingos, 8O Cantinho de AvillezRua dos Duques de Bragança, n. º 7. T: 211992369. Almoços 12h30 - 15h (sábados 15h30), jantares 19h30 - 00h, fecha ao domingo. + na FugasAlma de Sá PessoaCalçada Marquês de Abrantes, n. º 92. T: 213963527. De Terça a sábado, das 19h30 à 1h. + na Fugas100 ManeirasRua do Teixeira, n. º 35. T: 910307575. De segunda a sábado das 19h30 às 02h (cozinha encerra às 00h30)+ na FugasO TrevoPraça Luís de Camões, n. º 48. T: 213468092. De uma velha casa de artigos para a pesca, nasceu um bar, já de culto, que tem a sua força nos petiscos baseados nas conservas portuguesas (e também na decoração piscatória vintage). É no Sol e Pesca, em cenário Cais do Sodré, que Bourdain faz amizade com os Dead Combo. A Tasca do ChicoA casa que fez o fado vadio voltar em grande ao Bairro Alto - e que se tornou de visita obrigatória para muitos turistas -, mereceu a visita de Bourdain em muito interessantes companhias, António Lobo Antunes e Carminho. Na Tasca do Chico, pode ouvir-se fado vadio em noites especiais e não faltam o caldo verde e o chouriço assado. A GinjinhaPara a ginjinha da praxe, segue-se para um dos balcões clássicos da cidade, A Ginjinha do Largo de S. Domingos, dita Espinheira, já que nasceu propriedade de um galego com este apelido - foi mesmo o primeiro estabelecimento de Lisboa a comercializar a bebida. Isto em 1840. Largo de São Domingos, 8O Cantinho de AvillezÀ altura da visita do apresentador de "No Reservations", José Avillez tinha restaurante recente para mostrar, o Cantinho do Avillez. Avillez apresenta uma sala sóbria com apontamentos vintage que oferece uma cozinha "simples, mas sofisticada", "maioritariamente de inspiração portuguesa" mas com "influências de algumas viagens". Na carta, também petiscos ou pregos. Bourdain rendeu-se aos pezinhos de porco e peixinhos da horta. Alma de Sá PessoaHenrique Sá Pessoa continua, desde 2009, a dar Alma ao seu restaurante, uma cozinha contemporânea, alicerçada em produtos de mercado. O chefe de "Ingrediente Secreto", programa de sucesso da RTP, propõe uma ementa que passa por reinventar a gastronomia portuguesa. Na ementa de Bourdain, a cavala, o bacalhau e o leitão. 100 ManeirasSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Ljubomir Stanisic, chefe de origem jugoslava com anos de experiência em Portugal, reinventou o seu 100 Maneiras com uma cozinha do mundo, repleta de inspirações "portuguesas, francesas, jugoslavas e do resto do mundo". Em espaço art déco, a carta, além do resto, guarda lugar "para corajosos" onde constam "molejas, caviar, maranhos e demais entranhas e extremidades". Bourdain deliciou-se com o cabrito com arroz de miúdos e no programa surgem também o guisado de coração de cavalo, fígado de touro ou a mioleira de porco. O TrevoUm tradicional café da praça Luís de Camões foi o local escolhido por Bourdain para provar outra incontornável delícia gastronómica lusa: a rainha bifana. Regada a mostarda e acompanhada por uma imperial gelada. «Awesome», declarou o senhor No Reservations. Mas isso foi antes de dar uma trincadela na bifana e elevar o elogio ("that's fucking good!").
REFERÊNCIAS:
Aprender a nadar com um falso disco de Verão
Depois de The Divine Femine, apaixonante e apaixonado disco de 2016, Mac Miller está a nadar com os tubarões. E se isso pode soar perigoso, o certo é que daí resultou um fabuloso, comovente e elegantíssimo disco de um miúdo que largou as bóias e compreendeu que a vida é mais ou menos como a água, ora cristalina, ora turva. Nade-se, que a maré se vai levantar. (...)

Aprender a nadar com um falso disco de Verão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.5
DATA: 2018-09-08 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois de The Divine Femine, apaixonante e apaixonado disco de 2016, Mac Miller está a nadar com os tubarões. E se isso pode soar perigoso, o certo é que daí resultou um fabuloso, comovente e elegantíssimo disco de um miúdo que largou as bóias e compreendeu que a vida é mais ou menos como a água, ora cristalina, ora turva. Nade-se, que a maré se vai levantar.
TEXTO: No videoclip de Stay – decepcionante e nada imaginativo, assente que está numa montagem feita a partir de rígidas planos captados através de um drone –, uma das mais belas canções de um dos mais belos discos de 2016, The Divine Femine, o americano Mac Miller surgia, de pé, rodeado de água por todo o lado, em modo enérgico, vivaço, sorridente. Enfim, feliz. A água não incomodava, dava-lhe pelos pés. Autoria: Mac Miller Warner Bros. RecordsEram tempos cor-de-rosa, esses em que namorava a cantora Ariana Grande (pop star que, dona de um vozeirão clássico, não sabe, infelizmente, o que fazer com ele, perdendo-se em baladas chiclete) e lhe dedicava o disco, o tal em que a “divinizava” (ou em que divinizava, talvez, a ideia de amor em si). Nada ridícula carta de amor em que a própria Ariana ajudava à missa (“matrimonial”, então), ora integrando os coros, ora cantando mesmo em nome próprio em My Favourite Part, de uma cumplicidade irresistível: “You just don’t know how beautiful you are / And baby that’s my favourite part”, verso perfeitamente idealista, próprio de quem observa a(o) amada(o) de longe e só lhe conta as coisas pela metade, guardando o resto para si (amar alguém pode também significar amar as ideias e as imagens que se constroem sobre ela). Mas havia também o vídeo de uma actuação ao vivo, os dois perfeitamente enfeitiçados olhando-se em palco, a certa altura desfazendo-se mesmo numa gargalhada, o profissionalismo traído pelo coração. Entretanto, Miller viu o nível das águas subir rapidamente, já não lhe dão pelos pés, e Ariana já não lhe dá a mão – não obstante ter afirmado que continua a gostar e a admirar Miller do fundo do coração, reconheceu publicamente que a relação era “tóxica”: “Não sou babysitter nem mãe, e nenhuma mulher tem de sentir que o deve ser. Tratei dele e tentei que se mantivesse sóbrio e equilibrado durante estes anos” (coisa que Miller desprendidamente confirmou em entrevista recente à Rolling Stone quando questionado se se encontrava numa nova relação: “Nem pensar! Estou a descansar. Eu mal consigo tomar conta do meu cão”). Ou, então, numa versão mais ancestral, Ariana como a Ariadne que, salvando Teseu do minotauro, é depois por ele decepcionada… Como se vê, a água agora é muita, Miller perdeu o pé, a certa altura viu-se mesmo submerso, teve de espernear, sobreviver, nadar. Swimming. A água, aqui, já se intuiu, é metáfora infinita, banha todo o disco: ela é, desde logo, elemento fundamental sem o qual (nós, Miller) não sobrevivemos; há-a doce e salgada; no cinema americano, e para nos cingirmos àquele que é mais contemporâneo de Miller (ele que tem um álbum intitulado Watching Movies With The Sound Off), a água é tão lúdica como dada à solidão (a de pai e filha no Somewhere - Algures de Sofia Coppola) e à introspecção (o mergulho de Shailene Woodley n'Os Descendentes de Alexander Payne); o “amor líquido” de Bauman, conceito que assenta que nem uma luva à geração de Miller e Ariana. . . SWIMMING demonstra, por outro lado, como o amor pode funcionar em sentidos muito diversos no que à famigerada “inspiração” diz respeito: tanto para a criação de odes apaixonadas, encantatórias, como para sofridas elegias, sim. Mas ainda, como neste caso, para meditações que, se iniciadas sob o signo da ferida, a ultrapassam largamente, permitindo ao seu autor olhar para dentro, respirar, fazer uma avaliação que, antes de tudo, é sobre si e independente, por exemplo, de uma relação amorosa. Come back to earth: assim se inicia um dos mais esplendorosos discos da música norte-americana dos últimos anos, com lata, inclusivamente, para superar o quão refinado The Divine Feminine já era, trabalho que selou o definitivo descolar de Miller em relação ao hip-hop adolescente, convencional e sample-based dos seus trabalhos anteriores. “Há pessoas que acham que a minha música antiga era melhor, pessoas que acham que eu só devia rappar e não cantar e outras que acham que eu devia apenas cantar. É confuso”, confessou ele na mesma entrevista à Rolling Stone. Talqualmente Congratulations, que iniciava o disco anterior, Come back to earth dispensa percussões e vai-se propagando graciosamente com a voz cantada de Miller em primeiro plano, aqui numa orquestração ainda mais complexa (ao wurlitzer e ao violino, juntam-se o baixo e os sintetizadores). Do divino, Miller volta, então, ao terreno, do céu para a terra. É preciso cravar os dois pés, é nela – terra, realidade, o que lhe quisermos chamar – que se encontra a saída (“I just need a way out of my head / I'll do anything for a way out”) para um tipo que, nascido em berço criativo (pai arquitecto e mãe fotógrafa) em Pittsburgh, Pensilvânia, passou por uma juventude problemática cujas “distracções” (drogas, problemas mentais, enfim, uma certa vida de low-life) nunca foram suficientes, felizmente, para abafar o seu virtuosismo. Essa primeiríssima canção, de inaudita fineza, dá, outrossim, o mote para o restante disco, iluminando-lhe o título: “In my own way, this feel like living / Some alternate reality / And I was drowning, but now I'm swimming / Through stressful waters to relief”. É só a primeira das muitas referências à água, a qual, juntamente com outros elementos (vento, calor, frio, chuvas, sol), se não faz certamente do disco um objecto místico, confere-lhe, porém, uma inegável dimensão sensorial, com a luz, a cor e a temperatura a variarem ao longo das 13 canções. Objecto chiaroscuro, então, ou, se quisermos, um falso disco de Verão, tão faux como o famoso “quadro de Verão” de David Hockney, A Bigger Splash, tão pop quanto perturbador. Harmonicamente colorido, luminoso, inclusivamente com referências a mares e piscinas supostamente distractivos, mas de letras e inflexões invernosas, que cantam a dor de um amor rompido, de corpos que não mais se tocam, olhares e sorrisos – como os da tal actuação ao vivo – que se deixam de cruzar (“Turn the ignition, I'm driven and sittin' pretty / Listenin' to Whitney and whippin' it through the city”, referência, em Hurt Feelings, a uma sempre-dilacerada Whitney Houston que não se podia ajustar melhor ao estado de espírito de Miller). Mas não apenas isso: numa outra generosa dose, também a aprendizagem de como lidar com a depressão e a ansiedade (“I'm just tryna start believin' in God / Now when it gets hard I don't panic, I don't sound the alarm / Because I don't need to lie no more / Nowadays all I do is shine, take a breath and ease my mind”, em 2009), a solidão (“My regrets look just like texts I shouldn't send / And I got neighbors, they're more like strangers / We could be friends, voltando a Come back to earth), as dependências e o ruído mediático à sua volta (que o levou, aquando do rompimento com Grande, a eclipsar-se das plataformas online). “Se um monte de gente acha que sou um junkie, que posso eu fazer? Ir falar com todas essas pessoas e dizer-lhes ‘Não, pá, as coisas não são assim tão simples’? Se consumi drogas? Sim. Se sou um junkie? Não”, afirmou à Rolling Stone. Embora Miller saiba sempre manter o humor, a coolness, enfim, um gracioso desprendimento nas letras das canções, como quando trauteia, em Perfecto, “I swear that if I drown I don't care / They callin' for me from the shore, I need more” (ou, numa negra linha de Small Worlds, “Don't wanna grow old / So I smoke just in case”). “Eu posso encontrar qualquer teoria que quiser sobre mim na net. Antes, costumava olhar para o Twitter e para o Instagram e ficar com o meu ego destruído em 5 minutos todas as manhãs. Era demais. Se eu já tenho os meus próprios pensamentos e emoções sobre o que passei, por que raio haveria de guardar espaço para os dos outros?!”, disse, recentemente, a Zane Lowe no programa de rádio Beats 1. SWIMMING significa isso mesmo: nadar, ou melhor, “nadando”, forma gerundial que expressa a perseverança implícita nessa ideia de uma forçosa perpetuidade. O quinto LP do americano não é, por isso, como tantas vezes acontece, o típico disco de “superação”, de bonança depois da tempestade. Wings, com um lindíssimo refrão, é o que mais próximo disso estaremos: “I'd put some money on forever, but I / Don't like to gamble on the weather, so I just watch / Well, the sun is shinin', I can look at the horizon / The walls keep gettin' wider, I just hope I never find 'em”. Por outro lado, não corresponde também ao não menos clássico disco de “dor de corno”, de quem está em pleno processo de dor e (eventual) cura. É, antes, e maduramente, uma reflexão descomprometida com metas, e, mais importante, a aceitação de que o corpo não está – nunca estará – completamente à tona (nadar é, por definição, ter a cabeça dentro e fora de água). Eppur si muove. Ainda assim, vamos nadando (temos que), acelerando quando é o caso, afundando-nos umas vezes, boiando relaxadamente noutras, esbracejando frequentemente. “Putting way too much on my shoulders, please hold me down / I keep my head above the water”, afirma em Hurt Feelings, por contraposição ao que lhe ouvimos, em modo cowboy triste, em Jet Fuel, “Now my head underwater / but I ain’t in the shower and I ain’t getting baptised". Nadar, em qualquer caso, não contra a corrente, mas com a corrente, eventualmente encontrando outras pelo caminho, até porque a maré, por um conjunto de insondáveis factores que não dominamos, não vai estar sempre cheia. Sintomaticamente, no videoclip de Self Care (que explicitamente cita a famosíssima cena de Uma Thurman no Kill Bill de Tarantino), um dos singles pré-anunciados, Miller, conseguindo finalmente sair de um caixão sob sete palmos de terra (“I should've died already”, dizia ele, já em 2014, em Inside Outside, primeira faixa da mixtape Faces), não fica, enfim, “em paz”. Pelo contrário. Quando ainda se está a sacudir da terra, momento em que se dá uma mudança de direcção na canção, uma violenta explosão (terá Christian Weber visto a última sequência de Antonioni em Zabriskie Point?), depois de o atirar em queda livre, mal o deixa em pé, rodeado de chamas. Isso: fogo e água, caminhar e nadar, continuar, pois que o tempo não estica. É para isso que aponta o memento mori (expressão latina para a consciência da morte, da nossa finitude) que Miller inscreve com a navalha na zona do caixão que, uma vez quebrada, lhe permitirá regressar ao mundo dos vivos (a solenidade da cena que a descrição pode insinuar é atenuada pela ironia suicida de, enfiado num caixão onde o oxigénio rareia, Miller ainda se dar ao luxo de acender um cigarro). Esse mundo a que pertencem os seus ouvintes, com quem, afirmou no Beats 1, mantém uma relação genuinamente bonita. “São pessoas que estão comigo desde que eu era apenas um miúdo ingénuo de 19 anos e passei a ser um junkie deprimido e auto-destrutivo, até chegar aqui, em que estou a fazer a música que estou a fazer”. Se juntarmos The Divine Femine a SWIMMING teremos talvez dois dos mais “negros” discos dos últimos anos concebidos por um miúdo de 26 anos, branco, que nem nascido era quando George Clinton e Bootsy Collins partilhavam o mesmo palco, Prince editava Sign O' The Times (1987) ou Michael Jackson apontava ao trono com os seus três discos-charneira (Off The Wall, Thriller, Bad). Pressentimos o génio de Minneapolis e o menino-prodígio da Motown – assim como o património que os antecede (Kool & The Gang, Earth Wind & Fire) – em What’s the Use (que faz as vezes de irresistível malha disco-funk que Dang! já representava em The Divine Femine) ou Ladders (aquele riff de guitarra, muito Isley Brothers, que antecede o hook, ao que se segue a desbragada felicidade personalizada na tríade “soprante” composta por sax, trompete e trombone). Gente contemporânea como os Gorillaz ou os Daft Punk, Toro y Moi e Ariel Pink ecoam igualmente em SWIMMING, sofisticadíssima peça tão melancólica quanto dançante de soul, funk, R&B, pop ou hip-hop – mas, note-se, também de algum indie rock e psicadelismo (Mac DeMarco ou até Beck vêm à memória), como as cordas e as baterias de Wings ou So It Goes o sugerem. Tudo isso vai ressoando por aqui e acolá, mas Miller bem pode puxar à vontade dos seus próprios galões: multi-instrumentista (baterias, teclas, guitarra), rapper, cantor, compositor e produtor, é ele o cérebro, o maestro de um álbum de minuciosos, sublimes, arranjos (para o que muito contribui, claro, Jon Brion, colaborador habitual de Fiona Apple ou Rufus Wainwright, mas também, no cinema, de Paul Thomas Anderson), e de uma não menos majestosa orquestração. Repare-se no modo como Small Worlds termina apenas ao piano, da mesma forma que o violino fecha, sozinho, Dunno (instrumental onde, por mais estranho que isto soe, conseguimos imaginar a voz de B Fachada com à-vontade); em 2009, atente-se na melodia primordial do vibrafone entrecruzada, de fininho, pelo fogacho de órgão e o hi-hat, em cima dos quais Miller parece, sem nunca soar piegas, estar prestes a soçobrar. Ou, enfim, deixemo-nos estarrecer com os sintetizadores que acompanham os versos muito sonhadores, favorecidos pelo uso do vocoder, no final de Jet Fluel (“Fate in your hands / While you're waitin' for me / I'm already there / Already, dear / Now is only now / Head back to the ground, dear”). Como já se percebeu, trata-se de um álbum para cuja escuta umas colunas de som dignas e o ouvido atento são condição absoluta, e onde à ausência de convidados se contrapõe uma riquíssima equipa de colaboradores nos bastidores: Dâm-Funk, Syd e Steve Lacy (ambos dos The Internet), Thundercat (“Sinto que ele tem sempre uma visão própria, é um monstro na sua arte”, disse o baixista sobre Miller, com quem vai entrar em digressão em Outubro, à Rolling Stone), Snoop Dogg, Flying Lotus, J. Cole, Pharrell Williams. A nata da música negra americana actual. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Quem ouvir o trecho introdutório de 2009 poderá até questionar-se se se trata de música clássica. Obviamente que não é música clássica, mas a alusão deixa transparecer a delicadeza, a filigrana da composição, assim como as emoções que o disco produz no ouvinte do primeiro ao último minuto. O último minuto, portanto, de So It Goes, na qual, após a voz de Miller se arrastar meigamente pela atmosfera lo-fi, caseira, da canção (“Everybody gather round / I'm still standing, sit down”, convida-nos ele, já depois de termos ouvido os latidos do fiel companheiro lá de casa), fechamos os olhos para aquele maravilhoso final de sintetizadores oníricos a ecoarem no êxtase total. Sonicamente coerentíssimo, coesíssimo, SWIMMING revela-se no momento em que encontramos a caneta de Miller no seu pico de inspiração, sem que a melancolia e a poesia despretensiosa de grande parte do texto obliterem por completo as tiradas mais corriqueiras que lhe são características, próprias da idade, e que tão bem lhe ficam pelo que de honesto respiram. Uma equação que joga com a própria indumentária que Miller apresenta na capa do disco: de gravata e fato rosa de excelente corte, mas sentado no chão, cabisbaixo, de pés descalços, wasted (mas, lá está, sentado, já não deitado, derrotado). Atrás de si, uma porta. Será a porta a que se refere em 2009 (“It ain't 2009 no more / Yeah, I know what's behind that door”)? E, se for, o azul que entrevemos na minúscula janela será água ou céu?Há essa tendência (já quase uma convenção), quando se escreve sobre música, para sublinhar a excelência dos discos “imperfeitos”, como se os seus cantos menos polidos, as suas fragilidades, sublinhassem uma superlativa beleza (o "erro” como característica artística superior), por contraposição à ideia de perfeição como algo "excessivo" (excessivamente certo, arrumado, calculado). Pois bem, SWIMMING não é arrumado e de calculado nada tem, mas é perfeito. Não sabemos se é “o melhor disco do ano” (é o que menos importa, na verdade), mas apenas que, enquanto falso disco de Verão para ouvir em qualquer estação do ano, ele é isso mesmo: um disco perfeito.
REFERÊNCIAS:
Criado um atlas da ligação entre a placenta e o útero no início da gravidez
Ângela Gonçalves faz parte de uma equipa de cientistas que fez um novo atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta no primeiro trimestre de gravidez. (...)

Criado um atlas da ligação entre a placenta e o útero no início da gravidez
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2018-12-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Ângela Gonçalves faz parte de uma equipa de cientistas que fez um novo atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta no primeiro trimestre de gravidez.
TEXTO: Durante os primeiros três meses de gravidez, ocorre uma invasão fundamental: as células fetais da placenta invadem o tecido materno e entram em contacto com as células do útero. Caso esta acção não seja bem-sucedida, pode haver problemas de pré-eclampsia ou até a morte do feto. Apesar de ser crucial, ainda se sabe pouco sobre esta “ofensiva” tão complexa. Como tal, uma equipa de cientistas da Europa – incluindo a portuguesa Ângela Gonçalves – entrou no “palco da batalha” e estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células do primeiro trimestre da gravidez. Resultado: criou-se um atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta nos primeiros três meses de gravidez. Ângela Gonçalves começou este trabalho ainda quando estava no Instituto Wellcome Sanger (Reino Unido), onde hoje continua como cientista convidada. Depois, a bioinformática foi para um grupo de investigação no Centro Nacional Alemão de Investigação para o Cancro e levou este trabalho com ela. Agora, conta-nos como é uma investigação importante. “Os primeiros três meses são os mais críticos da gravidez”, aponta a cientista. Porquê? “É nesta altura que a placenta – órgão que permite a troca de oxigénio e nutrientes entre a mãe e o feto – se começa a desenvolver” e se implanta no revestimento interno do útero, que é composto por uma camada de células chamada “decídua”, para criar um bom fornecimento de sangue no feto. E salienta: “Problemas com o desenvolvimento da placenta podem ter consequências graves. ” Entre esses problemas, está a formação anormal dos vasos sanguíneos na placenta, o que pode levar ao desenvolvimento de pré-eclampsia – distúrbio da gravidez que se caracteriza pela pressão arterial alta da mãe, pode levar a convulsões e ser mesmo fatal tanto para o feto como para a própria mãe. Para se perceber o que está em causa na formação na placenta teremos de olhar ao pormenor para a tal invasão das células fetais no tecido materno e para a remodelação dos vasos sanguíneos maternos. “Ao entrarem em contacto directo com as células maternas torna-se necessário que o sistema imunitário materno não rejeite as células do feto”, explica Ângela Gonçalves sobre uma das frentes da invasão. “Por outro lado, as células maternas precisam de evitar que as células do feto invadam o tecido materno de forma excessiva, o que também pode provocar problemas. ” Portanto, convém que se encontre um compromisso na definição da fronteira entre o tecido materno e o tecido do feto. Através da nova tecnologia de sequenciação de ARN de uma única célula, a equipa estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células da placenta e da decídua do primeiro trimestre de gravidez. “Este estudo olha em detalhe para os genes que estão activos nas células maternas e células da placenta para criar um mapa extremamente detalhado da identidade [das células] e da comunicação celular nesta fase crítica da gravidez”, assinala Ângela Gonçalves. Além disso, a investigadora refere que também usaram métodos experimentais que localizam as células em diferentes áreas dos tecidos e criaram uma base de dados das moléculas através das quais as células comunicam. Desta forma, foi possível identificar que tipos de células interagem umas com as outras e de que forma. O que se descobriu? “Descobriu-se que as células fetais e maternas estão a usar sinais para falarem umas com as outras e que esta conversa permite ao sistema imunitário materno suportar o crescimento do feto”, lê-se no comunicado do Instituto Wellcome Sanger. “Pela primeira vez, fomos capazes de ver quais os genes que estão activos em cada célula na decídua e na placenta e descobrir quais deles poderão modificar o sistema imunitário materno”, refere no comunicado Roser Vento-Tormo, do Instituto Wellcome Sanger e primeira autora do artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Nature. “As células fetais da placenta comunicam com as células do sistema imunitário da mãe para assegurar que a placenta se implanta correctamente. Isto permite que o feto cresça e se desenvolva correctamente. ”Ângela Gonçalves acrescenta: “Este estudo revela a existência de vários novos tipos de células e identifica a sua localização no tecido materno. ” A cientista exemplifica que se identificou a presença de três tipos distintos de células maternas NK (do inglês natural killer, ou células exterminadoras naturais), uma população de células do sistema imunitário comum no útero nesta fase da gravidez. Assim, através do estudo das interacções destes três tipos de células e das restantes, concluiu-se que as funções mais prováveis das células NK são o controlo da invasão do tecido materno pelas células da placenta, assim como a coordenação de outras células imunitárias como as linfócitos T. “Em geral, o estudo revela ao nível molecular e celular os mecanismos pelos quais é criado um ambiente pacífico e apropriado para o desenvolvimento do feto”, resume a cientista. “O atlas celular gerado por este estudo serve como referência única para a compreensão da gravidez normal e a investigação dos distúrbios que ocorrem em situações de doença”, diz Ângela Gonçalves sobre a importância e aplicação deste trabalho. É um dos primeiros atlas que estão a ser agora gerados para vários órgãos do corpo humano na iniciativa internacional Atlas das Células Humanas (Human Cell Atlas), que tem a missão de mapear a actividade genética de todas as células do nosso corpo. Num comentário ao trabalho, também na Nature, Sumati Rajagopalan e Eric Long (do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos) sublinham como a grande limitação para se compreender o desenvolvimento humano tem sido a falta de modelos animais representativos. Para estes cientistas, a equipa de Roser Vento-Tormo “fornece uma referência molecular humana”. A partir de agora, poderá comparar-se a gravidez em modelos animais com essa referência molecular, para encontrar características partilhadas com os humanos. “Além disso, dados obtidos em mulheres com complicações na gravidez podem ser avaliados usando este recurso. Isto poderá levar à identificação de biomarcadores em complicações comuns na gravidez. ”E não só. “Ao mapear o território celular e molecular do primeiro trimestre da gravidez, este estudo esclarece-nos como a interface materno-fetal tem um ambiente pacífico e tolerante em que a reacção imunitária é atenuada”, escrevem. Mesmo assim, os cientistas avisam que esta tolerância imunitária pode ter um custo. E dão o exemplo da vulnerabilidade a certas infecções como o vírus Zika e a malária. Os dados da equipa de Roser Vento-Tormo “dão-nos um poderoso enquadramento para avaliar a paisagem do início da gravidez durante estas infecções devastadoras”, comentam ainda Sumati Rajagopalan e Eric Long. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. E qual o contributo da cientista portuguesa neste trabalho? Desenvolveu um método computacional e estatístico que permitiu quantificar um conjunto de genes que controla a activação e inibição das células NK do sistema imunitário materno. Essa quantificação permitiu o desenvolvimento de novos modelos de interacção entre as células imunitárias NK e as células da placenta. Actualmente, Ângela Gonçalves está agora a usar métodos de sequenciação genómica e análise computacional para estudar os primeiros passos do desenvolvimento do cancro e, através desse conhecimento, ajudar a desenvolver métodos para uma detecção precoce. “Para detectar o cancro de forma antecipada é necessário identificar alterações celulares muito subtis nos tecidos”, explica a bioinformática. “Para tal, é necessário ter um bom conhecimento do estado saudável dos órgãos. Este projecto foi uma oportunidade única de obter uma referência – ou mapa – do estado de expressão genética em células saudáveis do útero durante a gravidez. ” Ângela Gonçalves explica que o seu laboratório está interessado sobretudo em tumores do sistema reprodutivo feminino, do endométrio e do ovário. E a sua equipa irá usar este mapa (e outros do sistema reprodutivo feminino fora da gravidez) como referência para desenvolver novos métodos de detecção do cancro.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave morte humanos doença estudo mulheres corpo