Mar adentro, totalmente livre
Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade e ele queria mesmo libertar-se de tudo. (...)

Mar adentro, totalmente livre
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.4
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade e ele queria mesmo libertar-se de tudo.
TEXTO: O sol do fim do dia, vermelho escarlate, começou a descer sobre a costa, colorindo as nuvens e iluminando o mar. O sol do fim do dia desceu sobre aquela paisagem como se de um cenário de banco de imagens se tratasse, qual produto incluído no pacote adquirido por quem reservou estadia para, como se diz em linguagem moderna, viver uma experiência inesquecível. O sol descia e ele, cada vez mais meditabundo, observava: a rapariga que multiplicava poses perante o telemóvel do namorado diligente; as adolescentes que repetiam sinais de vitória para a câmara até que o “V” surgisse exactamente como imaginavam; o pai que apontava o iPhone aos dois filhos, primeiro ela, depois ele, e ele a reclamar, “oh pai, não gostei nada das fotos que me tiraste ontem”; a mãe, a filha e o namorado desta a revezarem-se no enquadramento escolhido, cara séria abrindo-se em sorriso muito aberto, tão imensamente feliz durante aqueles segundos em que a posteridade online será assegurada. Enquanto isso, o sol paciente a seguir metodicamente o caminho de sempre, a água a brilhar com os seus últimos raios, as barracas e os chapéus-de-sol firmes e hirtos na sua função de figurantes. Triste coreografia aquela, pensava ele. Uma azáfama em que todos ignoravam todos os que os rodeavam, em que pareciam ignorar até a paisagem que procuravam usar como moldura pronta a ser distribuída, com outros rostos no centro, por outros ecrãs. Mais acima, no interior do restaurante, um velho reparou também no sol do fim do dia. Levantou-se e caminhou até à ampla porta envidraçada de chão a tecto. Não saiu para o exterior. Aproximou-se do vidro e, através dele, contrariando todas as regras básicas de fotografia, registou daquela forma para a sua posteridade o vermelho agora ainda mais escarlate do sol quase a desaparecer lá longe. É provável que a fotografia do velho tenha sido a pior de todas as que se tiraram naquela tarde, ainda assim, caso soubesse do velho, é igualmente provável que ele sentisse que, entre todas, era aquela e só aquela que quereria ver. Na praia, há longos minutos a observar aquela sucessão de sessões fotográficas e auto-retratos a céu aberto, tomou uma decisão. Levantou-se e, como sempre fazia, apertou bem os cordões do fato de banho, antes de caminhar até ao mar, passo a passo, como habitualmente. Depois, aumentou o ritmo da caminhada até que a água lhe chegasse aos joelhos. Molhou então os braços e a barriga para se ambientar à temperatura, seguindo o ritual que adoptara há muito. Lançou um último olhar às pessoas na praia e às suas coreografias, observou os toldos, os chapéus, as bóias e as raquetes. Viu o restaurante onde o velho já não estava. Virou-se e mergulhou. Braço acima, braço abaixo, nadou e continuou a nadar. Não mais pararia, pensava. O mar sempre fora para ele sinónimo de liberdade — assim repetia para si mesmo — e ele queria mesmo libertar-se de tudo. Queria libertar-se de qualquer coisa vaga e indefinível, qualquer coisa que não conseguia nomear, qualquer coisa que era este tempo, o seu. Continuou mar adentro. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Acenou efusivamente aos barcos de pescadores que iniciavam a faina nocturna, com os seus mastros iluminados a criar uma linha de luz levitando sobre a água. Viu as luzes em terra tornarem-se mais difusas enquanto a distância aumentava, e sentiu-se orgulhoso da decisão que tomara e do novo ser que seria, tão totalmente livre, tão diferente dos seus semelhantes, prisioneiros deste tempo. Lá agora tão longe, acima das luzes da civilização em terra, o céu iluminou-se então com fogo-de-artifício de festas de Verão e ele comoveu-se perante a beleza simples do cenário. Tirou do bolso do fato-de-banho o telemóvel, protegido com capa impermeável, naturalmente, que ali esquecera quando decidiu caminhar convictamente praia fora. Fotografou uma e outra vez enquanto boiava na imensidão do oceano. Fotografou até que ficasse preservada em ficheiro electrónico uma imagem tão esteticamente impecável que ele não resistiu a partilhá-la com todos através das suas redes sociais. Do outro lado do mundo, um homem que ao início da noite decidira embrenhar-se na floresta para não mais voltar, saturado com o mundo que dissera a si mesmo não ser o seu, descobriu no bolso dos calções um aparelho electrónico de que se esquecera quando avançou decidido para a floresta densa. Foi nele que viu a fotografia do fogo-de-artifício sobre o mar. Comovido, totalmente livre, não resistiu a partilhá-la com todos. Depois, aparelho electrónico no bolso, continuou a caminhada floresta adentro.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Caminhantes solitários: derivas na Arcádia
Uma viagem pelos caminhos e retiros da Provença e do Ródano que atraíram artistas e filósofos em busca de independência e afirmação criativa. Gray, Beauvoir, Cézanne, Corbusier e Rousseau. Lugares que revelam a construção recorrente de simulações da Arcádia. (...)

Caminhantes solitários: derivas na Arcádia
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma viagem pelos caminhos e retiros da Provença e do Ródano que atraíram artistas e filósofos em busca de independência e afirmação criativa. Gray, Beauvoir, Cézanne, Corbusier e Rousseau. Lugares que revelam a construção recorrente de simulações da Arcádia.
TEXTO: Este é o primeiro de uma série de ensaios sobre uma viagem pelos Alpes e pela história cultural da Europa. Serão quatro capítulos que representam diferentes paisagens, marcadas por obras literárias e autores cruciais para definir a memória cultural dos últimos dois séculos. Na primeira parte da viagem partimos de Nice, no Sul de França, e seguimos o Ródano até à fronteira com a Suíça, seguindo os percursos de Simone de Beauvoir, que durante a sua juventude caminhou nas montanhas que rodeavam Marselha. Na segunda parte, partimos de Genebra e fomos até ao glaciar onde nasce o Ródano, uma paisagem que está assombrada pelas produções artísticas e científicas do século XIX. Na terceira parte, seguimos três exílios alpinos, o de Richard Wagner em Lucerna, o de Thomas Mann em Davos, e o de Friedrich Nietzsche em Sils. No quarto e último capítulo, seguimos as narrativas de Stendhal desde o lago de Como até Milão, regressando a Nice por Génova, de onde Garibaldi partiu para a Sicília, continuando a luta pela unificação de Itália. A ideia deste projecto surgiu de uma conversa com Tiago Silva Nunes — que fez os ensaios fotográficos — sobre La Force de l’Âge (1960), as memórias de jovem adulta De Beauvoir. Os seus passeios nos Alpes Marítimos e Pré-Alpes, e a sua caracterização da caminhada como um espaço solitário de afirmação pessoal, levaram-nos a esboçar um itinerário que foi crescendo ao incluir outros autores para quem o acto de caminhar é igualmente importante, em particular W. G. Sebald, que em Vertigo (1990) escreveu uma narrativa paralela entre o seu próprio ritorno in patria e elementos da biografia de Stendhal — o escritor que criou a sua própria pátria. Em meados do século XIX, as ligações ferroviárias transformam o território da Côte d’Azur numa Arcádia acessível. Passa a ser o lugar onde a classe ociosa — o economista e sociólogo Thorstein Veblen chama-lhe a leisure class — vai passar o Inverno, trocando Londres ou S. Petersburgo pela costa do Mediterrâneo. Foi neste lugar que, em 1929, Eileen Gray construiu a E1027, uma casa para o editor da revista Architecture Vivante, Jean Badovici. Gray era uma aristocrata irlandesa, designer e arquitecta, com uma fortuna pessoal que lhe permitiu perseguir os seus interesses criativos. Nessa altura, Roquebrune, Sudeste da França, tinha apenas a linha do comboio e pomares de limoeiros. Gray comprou o terreno e acompanhou detalhadamente a construção da casa, que seriam propriedade de Badovici. E1027 fora uma ideia dos dois, o nome da casa espelha essa parceria — resulta de um código criado a partir das iniciais de ambos, EG e JB: E de Eileen, J é a décima letra, B a segunda, e G a sétima. Poucos meses depois da sua construção, Gray deixou a casa onde Badovici permaneceu. A partir de 1930, Badovici acolhe muitos convidados, entre eles, Le Corbusier. Visitámos E1027 num dia quente de Agosto, quando o contraste das paredes brancas com as gelosias negras fazia sobressair o azul brilhante do mar de Roquebrune. Gray descobriu um lugar especial do Mediterrâneo, pois o mar na Plage du Buse, devido a um fenómeno geológico cárstico, está povoado de aquíferos submarinos de água doce filtrada pelos Pré-Alpes de Nice que emergem em grandes quantidades em Cabbé. Em dias de mar calmo vê-se a turbulência da água doce a emergir do fundo do mar. Nadar nesse mar cristalino em frente a E1027 é uma experiência, as águas são atravessadas por correntes frescas, o que nos transporta momentaneamente para o tempo em que os pomares de limoeiros ainda não tinham sido substituídos por edifícios, nem os barcos de pesca por iates. É no interior de E1027 que as ideias de Gray têm mais expressão. A casa foi concebida à escala do mobiliário que conforma a coreografia dos comportamentos de quem a ocupa. Gray espalhou pequenas frases impressas na parede que nos lembram de beber água — eau fraîche — quando acordamos, e não fazer barulho — défense de rire — quando entramos na sala. Para Gray, “uma casa não é uma máquina de habitar” nem a construção “de conjuntos belos de linhas, mas acima de tudo espaços para pessoas”. Em E1027, a sua intenção era a de criar espaços que permitissem aos habitantes “permanecerem livres, independentes” e que a casa, mesmo que ocupada por várias pessoas, criasse “a impressão de se estar só, e, caso se deseje, inteiramente só”. Durante algum tempo, E1027 foi uma construção solitária naquela baía, mas, em 1947, Thomas Rebutato, um antigo membro da résistance de Nice, abriu o restaurante Étoile de Mer num terreno contíguo. Em 1951, Le Corbusier, que tinha passado tantas temporadas na E1027, constrói ali uma pequena cabana de férias — Le Cabanon — convenientemente próxima do restaurante de Rebutato. É um refúgio, uma recriação no Mediterrâneo de um abrigo de montanha suíço, com as suas paredes exteriores formadas por largos troncos de madeira. O espaço interior é um exercício de composição de áreas mínimas — influenciado pelo sistema/escala de proporções Le Modulor (1948) — e de composição plástica e escultórica, coberto de murais com um pavimento amarelo. Le Corbusier dizia “tenho um palácio na Côte d’Azur, tem 3, 66 m por 3, 66m. (. . . ) É extravagante de conforto e delicadeza”. No entanto, ao contrário de E1027, o lugar mais importante — e confortável — é no exterior, sob uma alfarrobeira centenária com a paisagem ao fundo. Em Agosto de 1965, Le Corbusier morreu enquanto nadava nas águas de Roquebrune. Et in Arcadia Ego. Seguimos para oeste até Cassis, onde Virginia Woolf e outros membros do grupo de artistas e intelectuais Bloomsbury Set passaram os invernos do final da década de 1920. Esta vila é conhecida pelas calanques, formações rochosas que criam enseadas estreitas entre duas paredes quase verticais que se estendem pela costa até Marselha. Percorremos trilhos longos para as alcançar, gradualmente as escarpas brancas coroadas com pinheiros vão-se revelando, como um rolo vertical de uma pintura de Wang Meng. No ano em que Eileen Gray acabava a sua casa, 1929, Woolf publicou A Room of One’s Own, uma reflexão sobre a condição das mulheres, cuja independência estava sobretudo ligada à fortuna pessoal. Nesse ensaio, Woolf é peremptória: “Uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si, se quiser escrever. ” Gray e Woolf pertencem à mesma geração, nascidas nas décadas finais do século XIX, e à mesma posição social, para quem a independência fora herdada. No mesmo ano, 1929, a jovem Simone de Beauvoir é enviada para Marselha, onde irá dar aulas de Filosofia no Lycée Montgrand. É um palácio neoclássico construído em meados do século XVIII, com uma elegante fachada de pedra rosada, que em 1891 foi transformado em liceu de raparigas. Em La Force de l’Âge, Beauvoir descreve a sua chegada desta maneira: “Estava em Marselha, sozinha, de mãos vazias, separada do meu passado e de todas as coisas de que gostava. (. . . ) Era eu que decidia como passar o tempo. Podia cultivar os meus próprios hábitos e prazeres. ” Vivia num quarto alugado, o antigo quarto de serviço da casa de uma colega. “Era pequeno, mas ajustava-se bem ao meu ideal: tinha um divã, estantes para livros e uma mesa de trabalho. ” Beauvoir lia sobretudo livros de história da arte e obras de Stendhal, a quem mais tarde dedicou uma parte de Le Deuxième Sexe (1949). Stendhal foi para Beauvoir um autor “decididamente feminista” que — como Woolf — lamentava a perda “de todos os génios do mundo que nasceram mulheres”. É em Marselha que Simone de Beauvoir descobre o prazer de caminhar sozinha, subindo todos os picos da região — “o Garlaban, o Mont Aurélien, Sainte-Victoire, o Pilon du Roi” — e descendo todas as calanques. Nas suas expedições, Beauvoir “procurava uma revelação em cada colina ou vale, e sempre a beleza da paisagem ultrapassava as [suas] memórias e expectativas”. Caminhar tornou-se uma obsessão que lhe permitia criar um lugar de reflexão e independência. “Sozinha, caminhei pela névoa suspensa no topo de Sainte-Victoire (. . . ) [vivi] momentos que, com todo o seu calor, ternura e fúria, me pertencem a mim e a mais ninguém. ”A escritora tentou ignorar a ameaça da II Guerra Mundial até à invasão da Polónia. “Durante o Verão de 1939 ainda não tinha perdido a esperança. Uma voz obstinada sussurrava na minha cabeça: ‘Não me pode acontecer; não uma guerra, não a mim. ” Em parte, foram as suas caminhadas que a ajudaram a concentrar-se noutra coisa para além do conflito iminente. Nesse ano fez uma das suas caminhadas mais ambiciosas, vários dias entre o Mont Ventoux, passando pelo vale de Queyras, até aos Alpes Marítimos. Em Larche, uma vila ocupada por militares próximo da fronteira italiana, pedem-lhe para apresentar os seus documentos, no entanto, ao adormecer, Beauvoir “não tinha outro pensamento na cabeça senão flores e animais e trilhos pedregosos e horizontes vastos, a agradável sensação de ter pernas e pulmões e estômago, e a determinação de ultrapassar alguns dos [seus] próprios recordes”. O último bombardeamento que Marselha sofreu, em Maio de 1944, resultou em milhares de mortos, feridos e edifícios destruídos. É no final desse ano que Raoul Dautry, ministro da Reconstrução, convida Le Corbusier a projectar a Unidade de Habitação de Marselha. Neste edifício, o arquitecto materializou algumas das ideias sobre a cidade que desenvolvera desde o Plan Voisin (1925). É um testemunho do pós-guerra, impulsionado pela necessidade de construir habitação em massa, mas também pelo desejo de criação de um espaço protegido e ideal, uma ilha organizada na cidade caótica, com as suas próprias áreas comerciais e espaço público. Na cobertura — o toit terrasse — há um espaço comunitário que inclui uma pista de corrida, uma piscina infantil, uma escola, uma galeria, num conjunto de rara potência escultórica. Os muros do terraço enquadram as montanhas a sul e o mar a oeste, bloqueando a vista da cidade onde se multiplicam inúmeras versões deste edifício. Passámos o fim da tarde nesse terraço, onde no lado norte decorria uma aula de ioga, no lado sul moradores faziam piqueniques ao pôr do Sol, enquanto crianças tomavam banho na piscina. O terraço cria a ilusão de um espaço público onde todos os cidadãos vivem em harmonia — uma Arcádia no meio da cidade. No entanto, este espaço é privado e apenas acessível ao condomínio. Passamos por Aix-en-Provence a caminho da Route Cézanne e paramos numa praça onde muitas pessoas jogavam pétanque sob filas de plátanos. Acompanhados pelo som das cigarras, subimos o trilho próximo do Chemin de la Risante até a um miradouro à sombra dos pinheiros que enquadram a barragem Zola e o Mont Sainte-Victoire. A montanha e a barragem reflectem um debate, estabelecido desde o Discours sur les Sciences et les Arts (1750), de Rousseau, entre a natureza e o progresso, e constituem dois símbolos importantes do século XIX. Cézanne pintou esta vista com a montanha e a barragem — projectada pelo pai do seu amigo Émile, François Zola. As nuvens que passam ao longe tornam Sainte-Victoire num motivo em mudança permanente e rápida. As cores — verde, ocre, siena — são impressões momentâneas, num instante saturadas, noutro mudas. Por vezes a sombra das nuvens altera o perfil da montanha. É um motivo fascinante para quem observa com atenção, e percebemos porque Cézanne o tenha pintado continua e obsessivamente — um motivo que parece ser sempre o mesmo, mas nunca é o mesmo. Seguimos mais uns quilómetros ao longo da Route Cézanne para leste, para percorrer os trilhos que Beauvoir descreveu como “caminhos vermelhos e ocres, através da planície de Aix, onde reconhecia as telas de Cézanne”, e subir o Sentier Rouge até ao Pas du Berger, na base do cume do Mont Sainte-Victoire. Durante a subida, a metamorfose continua a ser surpreendente. À medida que nos aproximamos do topo, os trilhos passam a rodear a montanha, o perfil pintado por Cézanne altera-se, e aquilo que era imagem transforma-se em espaço e matéria, cores e reflexos em rochas e sombras. Caminhar nesta paisagem é uma experiência fenomenológica intensa e recorda-nos o texto de Maurice Merleau-Ponty Le Doute de Cézanne (1945). Merleau-Ponty — que fora colega de Beauvoir — argumenta nesse ensaio que o processo de Cézanne implica um desejo de “confronto das ciências com a natureza”, e lembra a palavras deste: “A paisagem pensa através de mim, eu sou a sua consciência. ” Também Cézanne foi um caminhante solitário dedicado ao trabalho e à interrogação da natureza e da arte. A sua vida teve um certo carácter monástico, isolado no seu atelier sumptuosamente frugal, um room of one’s own. É a pensar na reclusão monástica e na construção de conventos como recriações da Arcádia e do Éden que rumamos a norte. Seguimos o curso do Ródano desde Avignon até Lyon, na Autoroute du Soleil, sob uma tempestade com relâmpagos constantes, os sinais de caution orage avisam-nos que estamos a abandonar o Mediterrâneo. Em Éveux, na periferia rural de Lyon, visitamos o convento de La Tourette, a última obra que Le Corbusier acompanhou em vida, entre 1953 e 1961. Foi uma encomenda iniciada pelo padre Marie-Alain Couturier — conselheiro artístico e espiritual de Jean e Dominique De Menil e editor da revista Art Sacré — com quem Le Corbusier já tinha colaborado na Igreja de Notre Dame du Haut, em Ronchamp. Antes de iniciar o projecto, Le Corbusier visitou Le Thoronet — abadia cisterciense do século XII, uma das trois soeurs provençales, com Silvacane e Sénanque — por recomendação de Couturier, para quem aquele edifício “é a essência do que deve ser um mosteiro, seja qual for a época da sua construção”. No interior da igreja de Le Thoronet, as paredes de pedra sem adornos, iluminadas por aberturas estreitas, criam uma atmosfera suave. A certa altura, um homem aproximou-se da abside, a sua voz preencheu gradualmente a igreja com uma cor palpável, que nos fez lembrar um cântico de Hildegarde von Bingen. No século XII, estes espaços conformavam dualidades — o silêncio e a música, a clausura e a peregrinação. Lembro-me ainda de Paulo Varela Gomes (1952-2016) ter escrito neste jornal que Le Thoronet é um artefacto da Occitânia — a civilização refinada de onde provêm o “amor cortês e a poesia trovadoresca” — num texto a propósito da intolerância religiosa e da emancipação feminina. Segundo Varela Gomes, essa civilização desapareceu por via de uma “interpretação intolerante do cristianismo”, quando o “horror da repressão marcou o fim da doçura de viver da civilização do Sul” — outra Arcádia perdida. Comparando o convento moderno de La Tourette e a abadia medieval de Le Thoronet, observamos vários paralelos: o modo como os edifícios acompanham o declive do terreno, a topografia complexa do claustro, as composições invulgares de volumes, a luz como elemento arquitectónico, mas, sobretudo, a criação de um terraço ligado às celas dedicado à reflexão solitária. Le Thoronet parece demonstrar a definição de Le Corbusier que a “arquitectura é o jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz”. Também a cripta de La Tourette é um lugar onde os efeitos luminosos são dramáticos, onde a evocação do transcendente no espaço é intensa, com uma parede ondulante de betão, planos coloridos amarelos, azuis e púrpura, iluminados por três óculos elípticos — que lembram as obras que James Turrell viria a desenvolver décadas mais tarde. Le Corbusier: “Nunca experimentei o milagre da fé, mas muitas vezes conheci o milagre do espaço inexprimível, a apoteose da emoção plástica. ”La Tourette partilha também semelhanças com a Unidade de Habitação de Marselha, a intensidade escultural, as texturas de betão, as celas dos frades baseadas na célula singular dos quartos, mas sobretudo o toit terrasse. Este espaço reservado para a reflexão dos monges recria igualmente uma Arcádia protegida e apresenta uma perspectiva sobre a paisagem — o antigo Domaine de La Tourette. Esta propriedade pertenceu à família de Marc-Antoine de La Tourette, botânico do século XVIII, com quem Jean-Jacques Rousseau se correspondia a propósito do seu interesse sobre plantas. Ao final da tarde, caminhámos entre as árvores que rodeiam o convento descobrindo lugares fascinantes, povoados por caracóis gigantes, lesmas cor de laranja e plátanos que largavam a sua casca em pedaços com a forma de mapas imaginários. Continuamos a nossa viagem ao longo do Ródano, passando por Genebra, seguimos o exílio de Rousseau até Môtiers, uma pequena vila no cantão de Neuchâtel. Depois de ter publicado Du Contrat Social (1762) e Émile, ou de L’Éducation (1762) — livros que foram banidos em Genebra e em França e colocados no Índice dos Livros Proibidos da Igreja católica —, Rousseau exilou-se aqui, com a protecção de Frederico II da Prússia. Este pensava que Rousseau tinha “nascido para se tornar um famoso anacoreta, um padre do deserto, celebrado pela sua austeridade” e que se tivesse mais recursos, que escasseavam depois da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), “construir-lhe-ia um eremitério com jardim”. Foi em Môtiers que Rousseau, com a ajuda do Docteur d’Ivernois, começou a interessar-se por botânica e a coleccionar exemplares de plantas. Três anos depois, em Setembro de 1765, Rousseau foi novamente perseguido e apedrejado pela comunidade encorajada pelo padre local. Depois deste ataque, refugiou-se num mosteiro cluníaco na Île St. -Pierre, no meio do lago Biel, no cantão de Berna. No edifício onde Rousseau viveu, hoje um hotel, encontramos o seu quarto, ainda preservado como artefacto histórico. Da sua janela podemos ver a margem sul do lago com os Alpes ao fundo. Rousseau descreveu a sua estada em Les Rêveries du Promeneur Solitaire (1782). Na quinta promenade escreve: “De todos os lugares onde vivi nenhum me fez tão feliz. ” E caracteriza a paisagem como mais “selvagem e romântica” do que a do lago em Genebra, relatando ainda como passa o tempo a “compor a Flora Petrinsularis e a descrever todas as plantas da ilha com tal detalhe que isso [poderia] ocupá-lo até ao fim dos seus dias”. No entanto, sempre que podia “remava até ao meio do lago, quando as águas estavam calmas, e aí deitava[-se] ao comprido no barco dirigindo o olhar para o céu” e deixava-se andar à deriva durante horas, “sem necessidade de se lembrar do passado ou imaginar o futuro em que o tempo se dissolvia e o presente se estendia sem limite, mas sem duração, sem nenhum outro sentimento que o da existência”. A epifania de Rousseau — a sua descrição de comunhão com a natureza — influenciou crucialmente a produção literária e artística dos séculos XIX e XX, de Stendhal a Shelley, de Beauvoir a Sebald. Este episódio da deriva na natureza é reencenado por Stendhal em De l’Amour (1822) quando recorda as tardes flutuando num barco em que “nunca sentiu tão intensamente a beleza comovente e solitária das margens do lago di Garda”. E por Sebald em Vertigo, ao confessar: “Deitei-me no barco e olhei para a cúpula celeste, as estrelas apareciam por detrás das escarpas ameaçadoras em tal número que pareciam tocar-se. Remar fez-me tomar consciência do sangue que corria nas minhas mãos. O barco flutuava passando pelos terraços íngremes dos pomares abandonados onde outrora cresciam limões. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Rumamos para sul de regresso ao lago Léman. Próximo de Vevey, em Corseaux, na Suíça, visitamos a primeira casa modernista de Le Corbusier, a Villa Le Lac (1919), onde a sua mãe e irmão viveram. Se no final da vida Le Corbusier construiu uma pequena cabana Suíça no Mediterrâneo, no início projectou uma casa do Mediterrâneo na Suíça. No jardim, onde antes havia uma enorme árvore — paulownia —, existe uma janela num muro que enquadra o vale do Ródano e os cumes dos Dents du Midi, apontando o caminho para as visões do sublime Alpino, que exploraremos no próximo capítulo da nossa viagem. Como Rousseau escreve em Émile, “ao longe, a imensa cadeia dos Alpes coroava a paisagem; os raios do Sol nascente rasavam as planícies projectando nos campos as longas sombras das árvores, dos outeiros, das casas (. . . ) dir-se-ia que a natureza nos exibia toda a sua magnificência oferecendo um motivo para a nossa conversa”. Eliana Sousa Santos é investigadora do CES, Universidade de CoimbraNo próximo domingo: Arte e Ciência
REFERÊNCIAS:
Religiões Cristianismo
Adeus, Bolhão
Sete retratos e sete depoimentos de vendedores do Mercado do Bolhão, Porto, que vão abandonar este espaço, que este sábado fechou para obras. (...)

Adeus, Bolhão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-05-28 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sete retratos e sete depoimentos de vendedores do Mercado do Bolhão, Porto, que vão abandonar este espaço, que este sábado fechou para obras.
TEXTO: O Mercado do Bolhão, no Porto, fechou ontem as portas, para que o edifício seja restaurado. Quando reabrir (espera-se que dentro de dois anos), com o terrado como mercado de frescos, e o piso superior com restauração e outras lojas, já não será certamente o mesmo. O espaço físico vai mudar e alguns vendedores também serão diferentes. Dos cem comerciantes do interior, 28 já decidiram não regressar. Dos 40 inquilinos do exterior, 14 também optaram por ir embora. Os que ficam estarão, quase todos, no novo mercado temporário, no Centro Comercial La Vie, que abre portas no dia 2 de Maio. Deverão ficar por ali até que as obras do Bolhão terminem e possam voltar, com novas regras, para uma velha casa transformada em nova. Já não será esse o futuro de Júlia, Maria, Alcino, Marília, Conceição ou Graça. A saúde, a descrença no projecto futuro ou o desalento fizeram-nos desistir do Bolhão, depois de uma vida inteira ali passada. Nestes retratos e nas suas histórias, contadas na primeira pessoa, fica o adeus de quem já não quer voltar. Maria Sousa, 77 anosEstou cá há 69 anos. Com oito aninhos vinha a pé e ia a pé, para Vila Nova de Gaia. Saíamos de casa às 5h, 5h30. O nosso negócio foi sempre o de hortaliças, e aos 16 anos tomei conta desta banca. Ui, antigamente… O povo andava aos empurrões. A gente vendia tanto, tanto, tanto. Vendia às 40 dúzias de agriões, agora não se vende um molho. Agora, olhe, em dois dias ainda não vendi para ir ao café. E os turistas adoram isto, o mercado chama a atenção, mas compram muito pouco. Um tomate, uma cenoura, “carróte”, pois. Isto não precisava de ter chegado ao que chegou. Foi o Rui Rio, com os andaimes, que piorou tudo. Ele matou-nos, foi um grande maroto para nós. Eu vou-me embora por já não poder. Já há oito anos que ando de canadianas, por causa das artroses. Já caí por duas vezes. Tem sido muito duro para mim. Agora venho de comboio, mas ainda tenho que andar uns 20 minutos, porque, apesar de a minha casa ficar à face da estação, em Francelos, tenho que dar a volta ao quarteirão. E à noite, a mesma coisa, mais 20 minutos a andar no sentido contrário. Do que vou ter mais saudades é dos meus fregueses. Dou-me bem com os meus vizinhos daqui, mas os fregueses estão-me cá dentro, são meus amigos. Eles dizem que também vão ter pena, muita pena e que não vêm para aqui depois. Eu não sei como vai ser depois. Se for para ser como o Bom Sucesso, é uma porcaria. Eles na câmara dizem que não. Vamos ver. Mas não sei se quero vir ver. Não me posso meter em casa, mas tenho tantos problemas para caminhar…Marília Brandão, 75 anosEstou aqui há 64 anos, a gente fazia o exame da 4. ª classe e vinha trabalhar. Saíamos às 5h30 e vínhamos a pé, de Gondomar. Era trabalhar no duro. A minha mãe vendia hortaliças lá em cima e, a ver se eu enjoava disto, arranjou uma colega para onde eu ir. Mas eu gostei e fui vender hortaliças também. Vim ganhar cinco escudos por dia, mas depois outra vendedora, uma das fortes, a quem chamávamos fornecedoras, ofereceu-me 20 escudos por dia e nem falei com a minha mãe. Aceitei. Mais tarde, uma amiga que tinha uma barraca de frangos queria que eu fosse para lá, mas um compadre da minha mãe, que era médico, não queria ver-me no Bolhão e meteu-me na Bial. Estive lá quase cinco anos, na preparação e embalagem. Adaptei-me bem, mas as saudades e a facilidade, aqui, em estar com os filhos… Oh, eu gosto tanto disto!. . . Voltei. O meu estabelecimento agora é de aves. Tenho pato, peru, frango e também coelho. Chamamo-nos galinheiras. Dantes comprávamos os animais vivos, matávamo-los aqui e mandávamos para os talhos e mercearias. Durante anos não podia haver talhos e supermercados neste quarteirão. A câmara não autorizava porque isto é o mercado municipal. Nós é que abastecíamos as mercearias, os cafés. Depois, isso acabou. Para o meu negócio, isto está arrumado. E que vou eu fazer, recomeçar uma actividade aos 80 anos? Se fosse pouco tempo, se eu acreditasse que eram só dois anos, se calhar ainda voltava. Mas não acredito. E também acho que o mercado temporário não vai funcionar. Mas aqui também não funciona, não é?. . . Tudo tem o seu limite. E depois, quando reabrir, estou convencida que vai correr bem. Não vai ser fácil, mas o local não podia ser melhor. A minha neta ainda diz: “Ó avó, voltavas com gourmet, gourmet, umas natinhas e um café ou um vinho. . . ” Mas eu digo-lhe: “Ó filha, eu sou portuguesa, não quero essas coisas de gourmet. Vou arrumar as botas. Tenho muito com que me entreter em casa. . . ”Alcino Sousa, 62 anosEstou cá desde 1979, mas cansei-me de tanto lutar e não ter resultados. Fui presidente da Associação de Comerciantes do Mercado do Bolhão e quem conhece o meu passado sabe o que fiz. O trabalho feito ninguém mo tira e há várias coisas que me deixam orgulhoso: ter-se conseguido que a Metro do Porto pagasse aos comerciantes, por causa das obras, o abaixamento das rendas nos últimos anos, até a instalação do Multibanco. Eu nunca quis que o Bolhão fosse para privados, mas acreditei na TramCrone, claro que acreditei. Tínhamos garantias, ficávamos durante 25 anos e a renda para os comerciantes do interior era a mesma, estava escrito. E só quando está tudo encaminhado é que aparecem uns senhores a desestabilizar, a criar guerras uns com os outros, difamações contra mim, ninguém podia falar no nome do Alcino, Jesus! Meti-me no meu cantinho, mas ainda fui trabalhando, fui dando a assistência que conseguia. Agora, custa-me muito deixar como deixo. As condições que me apresentaram… Primeiro, disseram que eu não iria ter carne de porco nem charcutaria, só carnes vermelhas. Eu disse que isso não era possível, eu tenho alvará de talho e dá para vender isso tudo. Pensaram e já me davam essas coisas, mas tiravam-me as aves. Depois, ainda propus mudar de ramo, para restauração, e ficar com este espaço, porque fiz aqui grandes investimentos. Não consentiram. Se não consentem, o que vou fazer? Não acredito na justiça. Fiz uma exposição à câmara, na qual digo que decidi receber a indemnização que me foi proposta, mas que, mesmo assim, me sinto lesado por não poder continuar a usufruir das minhas duas lojas, a 2 e a 3, devido a decisões impostas pelos serviços da câmara. Não posso dizer que fui maltratado, não senhor. Foi tudo com respeito, mas tudo tem uma ética e, aqui, a ética é esta. Eu ficava aqui, mudava de ramo. Os meus filhos foram criados aqui. Saio muito triste. Graça Santos, 55 anosEu estava a sair da barriga da minha mãe, tinha três dias quando vim para o Bolhão. O meu berço eram as gamelas. A minha avó vendia batatas lá em cima, e a minha mãe estava cá em baixo. Ainda fiz o 1. º e o 2. º ano, mas a minha mãe queria-me aqui, como via que eu tinha talento. Comecei a vender logo aos oito anos. Ela ficou viúva muito cedo, mas era uma mulher de luta. Saía de casa às 3h para ir para Matosinhos e eu vinha com os meus irmãos, sozinhos, no autocarro. Toda a gente dizia: “Olha os filhos da Chiquinha, tadinhos, tão cedinho, às 6h da manhã a vir para aqui. . . ” Éramos criados aqui descalços, roubávamos estilhas de bacalhau, ao Borges merceeiro, que era o nosso comer logo pela manhã. Foi uma vida muito massacrada, com pau de um lado e pão no outro. Graças a Deus nunca nos faltou nada, mas também nunca nos faltou porradinha. Vendemos sempre peixe, mas não era como agora. Vinha congelado e era partido à faca, com martelo e cinzel. Ganhava-se dinheiro nessa altura. Eu era a rainha da beleza aqui no Bolhão, sabe? Tinha clientes, ó filha, que me compravam peixe só porque queriam casar comigo. A quantidade de rosas vermelhas que me vinham aqui trazer, Deus me livre. Os meus pais não têm olhos azuis e foram fazer seis filhos de olhos azuis, saímos a uma tia. Sabe que até havia doutores que diziam à minha mãe para ela dar alguns filhos às pessoas que não conseguiam ter? E a minha mãe dizia sempre: “Não, minha querida, eu não sou gata para dar filhos. ” Melhor fosse. Assim não estava nesta porcaria e não me ia agora embora com tuta-e-meia. Eu nunca quis sair daqui e agora decidi sair porque isto não vai para melhor. Vão-me tirar a vida do meu Bolhão. Só queria que me pagassem o que é justo e não estão a pagar. É que a mim ainda faltam dez anos para a reforma, e eles não pensam nisso. Deviam dar-me o fundo de desemprego, além da indemnização. Era o mínimo. Nem quero olhar para o Bolhão do futuro. “Está lindo”, pois!. . . A gente não vive de belezas nem de fachadas, vivemos de realidade. No futuro, as despesas vão ser tantas que elas vão todas embora, vai ser como no Bom Sucesso. Saio com uma amargura muito grande. Não perdoo o que me fizeram. Júlia Gaspar, 83 anos“Não fico até ao fim. Ainda há pouco estive um mês fora por doença. Já há mais de uma semana que não compro nada para reabastecer a minha banca de hortaliças. Foram mais de 50 anos aqui, mas agora, o coração… De noite, não consigo dormir, falta-me o ar. Fico tão cansada, tão cansada. Passo a vida no hospital, não venho um dia ou dois, deixo tudo aqui, mas depois há coisas que tenho de deitar fora. E não ganho nada, nada, nada. Só perco dinheiro com as coisas que deito fora. Dantes é que era. Eu nunca fui de abastecer os restaurantes, mas tinha muitas senhoras que eram minhas clientes. Mas, depois, deixaram de vir as senhoras e as criadas das senhoras. Às vezes ainda me aparecem aí algumas pessoas. . . Olhe, ainda há uns tempos parou aí uma moça. Olhava, olhava, e eu: “Quer alguma coisa, menina?” E ela diz-me: “Estava a olhar para a D. Júlia, que me dava saquinhos”. Eu dava saquinhos de compras às meninas, aos rapazes, não. Mas também parou aí um rapaz, com latas presas aos pés, naquelas coisas dos estudantes. Ele parou, os outros já iam longe e eu, claro: “Quer alguma coisa, menino?. . . ” “Quero é dar um abraço à D. ª Júlia”. Era o filho da dr. ª Teresa, uma antiga cliente. Agora, vou-me embora. A minha colega vai ficar com as gilas. Estas bancas vou dá-las a uns mocinhos que mas vieram pedir, para fazer um teatro, a fingir que é o Bolhão. O resto vou desmanchar para lenha, para a lareira. Tenho que limpar tudo, querem que eu entregue a chave e dizem que só querem ver o chão neste sítio. Conceição Sousa, 69 anosEstou quase há 50 anos no mercado, esta banca era da minha mãe. Já estou saturada. Ir para o outro lado, não vale a pena, querem muitas exigências e eu estou velha para isso. Agora, computadores… Querem que vá tirar um curso para ajeitar hortaliças. Então, 50 anos nisto e vão agora ensinar-me a ajeitar hortaliças? E balança electrónica. . . Vou ter saudades, mas o sítio para onde vão as colegas não convém a ninguém. Eu gosto de estar livre, fui sempre habituada assim. Com o sol e a chuva, a gente sente o dia que é. Somos como os passarinhos, gostamos de estar livres. Disseram logo que ia ser muito rigoroso. Que já não ia poder vender alhos e limões ou feijões, só hortaliça. É para a gente se ir chateando e ir embora. Vai ser como o Mercado do Bom Sucesso. Fica um ou dois e depois desistem e vão embora. Se a minha reforma não fosse tão pequenina, já tinha ido. Agora, quando as portas se fecharem, fecho também. Como está agora, não dá gosto. A gente está aqui horas e horas e horas à espera de um cliente. Toda a manhã não vendi um molho de grelos. Antigamente a gente não dava vazão ao povo que aqui vinha. Aquela alegria que a gente tinha, de arranjar isto e aquilo. Tinha dias que nem comer podia, tantas eram as pessoas. Era mais bonito, mais alegre. Dava gosto. Agora não. Agora não dá. Não se ganha dinheiro. Bota-se metade do artigo fora. Onde é que a gente ganha dinheiro para pagar o que eles querem? Dizem que vamos pagar o mesmo e passados dois anos começa a subir. Vindo para aqui de novo, ainda sobe mais. Não, não. Estar a trabalhar para os outros, não. Vou com pena, que eu gosto disto, mas a gente, não podendo, não fica. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Amélia Malheiro, 85 anosEstou aqui sentada, junto às flores secas, que era o que eu vendia. A minha nora Mónica tomou conta do meu lugar e vende umas coisas para os turistas, o que é que ia fazer? Isto já não se vendia. Vim de Ponte de Lima para servir em casa de uns patrões e ainda não tinha dez anos quando vim para aqui vender flores, a pé, de Serzedo, em Gaia. Nem podia com o carreto. O que a vida era… Louvado seja Deus, o povo nem se acredita! Naquela altura era só carros de bois e cavalos e eu sempre a pé. Não sabia ler, mas ninguém me enganava nas contas. Pousava as flores onde houvesse um espaço vazio (não se podia vender junto às hortaliças) e depois levava o dinheiro aos patrões. Com 16, 17 anos, saí de casa deles e vim para aqui por minha conta. Fiquei sempre aqui. Tanto vendia hortaliça como flores como qualquer coisa. Fui-me criando sempre aqui. E estava cá todo o dia. Tive seis filhos, um morreu, e todos foram criados aqui. Um deles foi criado ali com uma caixa. Eram umas caixas de madeira compridas, onde o deitava, e metia um pau por baixo, para ela não fechar. Outra foi criada acolá debaixo, na barraca do pão. Estava por baixo, numa alcofa e outro dormia na parte de cima. Eram todos muito amigos dos meus filhos, sabiam de quem eram, vinham fazer festinhas. Isto era muito rigoroso, com uma disciplina muito grande, e não se podia cozinhar, mas eu cozinhava para os meus filhinhos e para dar de comer ao menino de uma carrejona que estava numa giguinha. Ainda me veio visitar, com 50 e tal anos. Todos os dias venho e fico aqui sentada porque tenho saudades disto. Eu tenho saudades disto. E toda a gente me vê aqui. E falam comigo. Até o mercado fechar, venho com a minha nora. Eu queria é que eles dessem o meu lugar ao meu filho, que está a trabalhar fora, e arranjassem outro para a minha nora. Mas não deixam. Eu não acho bem, mas quem manda é a câmara. Quem me dera vê-lo arranjadinho, ainda.
REFERÊNCIAS:
Guimarães abre caminho para um horizonte (mais) verde
O ambiente assumiu um papel central na política vimaranense desde 2013. A redução das emissões de CO2 e do consumo de energia na última década são indicadores positivos,mas o município quer melhorar os rios e o uso dos solos, e valorizar a mobilidade a pé e de bicicleta num território onde o automóvel ainda manda. (...)

Guimarães abre caminho para um horizonte (mais) verde
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.15
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O ambiente assumiu um papel central na política vimaranense desde 2013. A redução das emissões de CO2 e do consumo de energia na última década são indicadores positivos,mas o município quer melhorar os rios e o uso dos solos, e valorizar a mobilidade a pé e de bicicleta num território onde o automóvel ainda manda.
TEXTO: O verde é uma das cores que define Guimarães. A cidade e os restantes núcleos populacionais dispersos pelo concelho erguem-se sobre uma paisagem verde, inconfundivelmente minhota. A cor figura também na bandeira do município, a par do branco e da imagem da Senhora da Oliveira. Nos últimos cinco anos, porém, o verde tornou-se protagonista na política municipal. A obtenção do título de Capital Verde Europeia, em 2020, foi um dos nortes da acção de Domingos Bragança desde 2013, ano em que se tornou presidente da Câmara, após 24 anos com o também socialista António Magalhães no poder. Não o conseguiu. Esse título, atribuído pela Comissão Europeia (CE) desde 2010 - Estocolmo foi a primeira capital verde -, acabou por ser entregue a outra cidade portuguesa: Lisboa. Mas Guimarães obteve a quinta melhor avaliação entre as 12 cidades finalistas. O relatório de análise à candidatura, publicado pela CE em Abril último, enalteceu a redução de duas toneladas por habitante nas emissões de dióxido de carbono (CO2), entre 2008 e 2017, e a redução de 36% no consumo de energia, durante o mesmo período. Com o objectivo de se tornar uma cidade sem emissões de CO2 em 2050, Guimarães obteve a segunda melhor classificação no consumo de energia, mas também no envolvimento dos cidadãos, na adaptação às alterações climáticas e na biodiversidade. Para Domingos Bragança, o desempenho nestes indicadores demonstra, mais do que a aplicação de “políticas públicas de desenvolvimento sustentável”, a “interiorização pela maioria dos cidadãos da importância do ambiente e de um entendimento do território como espaço urbano de qualidade, em harmonia com a natureza”. O autarca vimaranense realçou ainda que Estocolmo foi a única cidade a ser eleita CVE à primeira tentativa, pelo que Guimarães vai aparecer novamente na corrida. Esta postura antecipa mais uma década com o ambiente no topo da política vimaranense, como o demonstra a apresentação nova estrutura de missão para o desenvolvimento sustentável - Guimarães 2030 -, decorrida no dia 18 de Dezembro. O uso dos solos e a gestão das águas foram os parâmetros onde o município obteve pior classificação (11. º em ambos). Para Domingos Bragança, a melhoria das linhas de água do concelho - o rio Ave, os afluentes Agrela, Selho e Vizela e as ribeiras, como a de Couros - requer um esforço conjunto do município, das Águas do Norte e da Resinorte, empresa que gere os resíduos de 35 municípios do Norte, entre os quais Guimarães. A água é um dos objectos da investigação do Laboratório da Paisagem, instituição criada em 2015, que tem como sócios a Câmara de Guimarães, a Universidade do Minho e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. As águas dos rios serviram, até à década de 90, de depósitos para as indústrias que polvilham o território e estão hoje “muito melhores do que há 30 ou há 40 anos”, apesar de ainda longe da qualidade de há 80 anos, admitiu ao PÚBLICO o presidente da entidade, Jorge Cristino. Um dos indicadores que, por exemplo, demonstra a melhoria das águas fluviais é o reaparecimento junto aos rios de aves como o guarda-rios, que se alimenta de “seres vivos aquáticos pouco resistentes à poluição”, e de alguns peixes que tinham desaparecido. “Um inquérito paroquial do concelho, em 1842, afirma que o Rio Ave tinha então nove espécies de peixes. Hoje, não tem a lampreia nem a enguia, mas as trutas, as bogas e os barbos voltaram”, acrescentou. Além de analisar a composição química das águas para encontrar focos de poluição, o Laboratório da Paisagem também procura zonas de obstrução nos leitos e estuda formas de evitar inundações a partir das linhas de água, referiu ainda Jorge Cristino. Entre as medidas para melhorar o uso dos solos, contam-se as hortas pedagógicas, junto ao pavilhão multiusos da cidade, e a denominada Incubadora de Base Rural, onde a Câmara cede alguns dos seus terrenos para produção biológica a agricultores sem propriedades. “A iniciativa está a começar e só dois ou três agricultores estão já no terreno, mas vamos ter mais”, realçou Domingos Bragança. O incentivo à produção de alimentos para consumo próprio, salientou ainda o presidente da Câmara, é também uma estratégia para reduzir a pegada ecológica do concelho. Um estudo da Universidade de Aveiro, da associação ambientalista Zero e da Global Footprint Network, apresentado em Outubro, mostrou que, em média, cada cidadão vimaranense criou uma pegada de 3, 66 hectares globais, em 2016. Este Foi o segundo valor mais baixo entre os seis concelhos nacionais presentes no estudo, mas ainda assim 2, 2 vezes superior à biocapacidade da terra disponível. Isso quer dizer que Guimarães esgotou os recursos terrestres para 2016 no dia 13 de Junho. A alimentação, em virtude dos consumos de carne e de peixe, foi o factor com mais influência na pegada - 29% do total. O segundo factor que mais contribuiu para a pegada do concelho, em 2016, foi o dos transportes (21%). E a mudança do paradigma de mobilidade em Guimarães é um dos objectivos apregoados pelo actual executivo vimaranense. Em Setembro, a Câmara inaugurou a primeira fase da ciclovia, um investimento de 2, 4 milhões de euros que une as zonas ocidental e oriental da cidade, mas Domingos Bragança já revelou a intenção de abrir rotas para as bicicletas em direcção às ruas mais centrais da cidade, a algumas das vilas do concelho e aos concelhos vizinhos, através dos fundos já anunciados pelo Governo. Esta ideia figura num dos poucos Planos de Mobilidade Urbana Sustentável (PMUS) até agora elaborados no país - também há, pelo menos, em Braga, Leiria, Nazaré, Caldas da Rainha e Faro. Elaborado pela empresa Mpt, o documento está aberto à discussão pública até amanhã e favorece um paradigma que dá prioridade a quem anda a pé, e, depois, à bicicleta, aos transportes públicos, ao uso eficiente do carro e ao carro, em último lugar. A percentagem de uso do automóvel nas deslocações em Guimarães cresceu de 41%, em 2001, para 62%, em 2011, algo que a coordenadora do plano, Paula Teles, quer ver invertido, ainda por cima num concelho onde 65% das deslocações demora menos de 15 minutos. “Uma das ideias é tentar diminuir a velocidade dos carros sem cortar estradas. As ruas vão ficar mais apertadas, para haver mais passeios e pessoas. As pessoas vão perceber que, em alguns pontos, demoram mais a andar de carro”, explicou ao PÚBLICO. A engenheira civil mostrou-se, porém, ciente que a adopção de um paradigma amigável dos peões e dos ciclistas exige uma “mudança cultural” que pode demorar uma década. “Nas escolas, será preciso fazer os meninos aprenderem a andar de bicicleta. Também é necessária a aprendizagem cultural, para as pessoas perceberem que não é desprestigiante andar de bicicleta”, disse. Uma das pessoas que assistiu às duas sessões de apresentação do PMUS foi Jónatas Couto, presidente da Associação Vimaranense para a Ecologia (AVE). Fundada em 2001, a instituição tem hoje mais de 200 sócios e já organizou acções de levantamento do património natural do concelho, passeios pedestres, iniciativas de educação ambiental nas escolas, conferências. Promove ainda, todos os anos, a Ecorâmicas, uma mostra de cinema documental sobre um tema associado à ecologia. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Para o responsável, a mobilidade é um dos principais problemas da cidade e o PMUS apresenta um “conjunto de boas práticas”, apesar de ser um “catálogo” que tanto pode funcionar, como não. A Câmara tem revelado alguma inconsistência na promoção da mobilidade suave, frisou ainda Jónatas Couto, discordando da construção do parque de estacionamento para 400 viaturas no quarteirão da Caldeiroa, em pleno centro da cidade. A obra, de 5, 8 milhões de euros, está em curso. Outro dos problemas ambientais mais notórios na cidade, disse o presidente da AVE, é o estado das linhas de água, nomeadamente da ribeira de Couros. “Depois de tanto investimento da Águas do Norte e da Vimágua, não se compreende que haja um cheiro nauseabundo na zona do mercado municipal e, depois, do hospital”, disse. No coração de Guimarães, os moradores e os proprietários de estabelecimentos comerciais já só pagam a quantidade de lixo indiferenciado que produzem e não um valor indexado à tarifa da água. O sistema “Pay-as-you-throw” (PAYT), ou pague consoante o que deita fora, vigora no centro histórico de Guimarães desde 2016, fornecendo aos utilizadores contentores gratuitos para reciclagem, entre 25 a 45 litros, e vendendo sacos para lixo orgânico – um saco de 15 litros custa 18 cêntimos para comerciantes. “O sistema incentiva quer a separação do lixo reciclável, quer a redução da produção de lixo orgânico. Guimarães foi o primeiro município em Portugal a aplicar a tarifa PAYT”, afirmou ao PÚBLICO Daniel Pinto, administrador executivo da Vitrus, empresa municipal a cargo da recolha de lixo no centro histórico. Entre 2015 e 2018, a produção de lixo indiferenciado caiu de 821 toneladas por ano para 628, enquanto a quantidade de lixo reciclável subiu de 122 para 314 toneladas. A Câmara vai alargar o sistema vai chegar às ruas contíguas ao centro histórico, em 2019, e quer estendê-lo a toda a cidade em 2021. O sistema, contudo, não é ainda utilizado por todos no centro histórico – em dois mil habitantes, tem 810 utilizadores. Até agora, a Vitrus não penalizou ninguém. A estratégia, realçou Daniel Pinto, é “vencer as pessoas pela sensibilização e não pela penalização”. Um dos cidadãos agradados com o sistema é Augusto Gonçalves, gerente de um restaurante na Praça de Santiago. O lixo, disse ao PÚBLICO, costumava ficar amontoado nas esquinas, situação que já não se verifica com a recolha porta a porta, sempre nos mesmos horários. Luís Macedo, proprietário de um bar no Largo da Oliveira, considera os preços para os sacos do lixo indiferenciado são muito elevados. “O sistema funciona bem, mas 1, 17 euros por um saco de 50 litros é muito”, disse.
REFERÊNCIAS:
László Krasznahorkai: “As pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas”
Hipnótico, tragicamente cómico, grotesco, O Tango de Satanás é um romance sobre um mundo em decadência e traz à edição portuguesa um dos mais inovadores e brilhantes autores contemporâneos: László Krasznahorkai. Lê-lo é uma tarefa de resistência com recompensa assegurada. (...)

László Krasznahorkai: “As pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.40
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Hipnótico, tragicamente cómico, grotesco, O Tango de Satanás é um romance sobre um mundo em decadência e traz à edição portuguesa um dos mais inovadores e brilhantes autores contemporâneos: László Krasznahorkai. Lê-lo é uma tarefa de resistência com recompensa assegurada.
TEXTO: A figura de László Krasznahorkai desafia o tempo. O rosto podia ser tanto o de um profeta do Antigo Testamento como o de um protagonista de uma distopia. Ele prefere dizer que é um homem sem lugar ou um homem de todos os lugares. Dito isto, László Krasznahorkai desafia tempo e lugar. Não cabe também em designações formais com fronteiras mais ou menos definidas como, por exemplo, a de escritor. Afirmar que é um escritor húngaro é provocar nele uma reacção imediata. “Aos meus olhos, escritores são Kafka ou Homero. Eles são os génios para mim. A minha produção não é mais do que um número de tentativas atrás de tentativas de escrever um pouco melhor do que antes. Além disso, sou um tipo independente, não posso ser identificado com o papel do escritor; não tenho uma casa algures no mundo, não tenho um país realmente; posso estar em qualquer lado em casa e mudar de casa muitas vezes. Sou do tipo que vagueia. Vivi em muitos lugares desde o Leste da Ásia aos Estados Unidos, e volto e saio outra vez. Estou sempre a mudar. Não por achar que vou encontrar o lugar ideal na próxima paragem, ou que o próximo sítio será melhor do que o anterior, mas porque tenho sempre de ir embora do lugar onde estou. E nunca quis ser escritor, não tinha qualquer desejo de ser um escritor no sentido social da palavra. ”Autoria: Lászlo Krasznahorkai (Trad. Ernesto Rodrigues) Antígona Ler excertoNascido em 1954 em Gyula, cidade no Leste da Hungria junto à fronteira com a Roménia, é um dos nomes mais originais da actual literatura europeia. Estava até agora por editar em Portugal. Susan Sontag chamou-lhe mestre contemporâneo do apocalipse. Visionário, inovador, tem sido comparado no estilo a Franz Kafka, Gogol, James Joyce, Samuel Beckett ou Thomas Pynchon, e o seu nome apontado como um dos candidatos ao Nobel. Ele diz que nunca teria escrito se não tivesse lido Kafka. “Kafka tem um papel muito importante nesta história toda. Li-o pela primeira vez quando era muito novo. Tinha um irmão seis anos mais velho que estava a ler O Castelo e percebi que ele estava deleitado. Eu quis ler e sentir o orgulho de dizer que também entendera o livro e também já tinha lido Kafka. Li, claro que era incompreensível para mim. Mas mesmo não entendendo conseguia de alguma maneira sentir a palavra de Kafka; era como um texto secreto e podia imaginar o quão maravilhoso esse texto poderia ser. Não entendia, mas era tão bonito! Via aquelas palavras magníficas e punha-me a imaginar o que poderia estar por trás. Quando o li mais tarde esse sentimento surgiu outra vez, como um império sem comparação”, refere sobre o maravilhamento permanente que Kafka lhe suscita. Desde Sátántángo, o seu romance de estreia em 1985, criou um universo muito pessoal, um mundo em desestruturação, marcado pelo grotesco, uma tragicomédia atravessada pelo absurdo, brutal. Em 2015, ganhou o Man Booker International Prize que distingue um autor pelo conjunto do seu trabalho e o mundo anglossaxónico despertou para uma obra com mais de vinte títulos, até aí conhecida sobretudo nos países germânicos. É este homem que agora chega a Portugal justamente com Sátántángo, romance de 270 páginas que o cineasta húngaro Béla Tarr transformou em 1994 num filme de sete horas e meia. Certamente mais do que o tempo que demora a sua leitura, nota Rogério Casanova no prefácio da edição portuguesa que acaba de chegar às livrarias. Com o título O Tango de Satanás, o romance passa-se no lugar onde em tempos funcionou uma cooperativa. É um mundo em decomposição, com casas a cair, povoado por figuras meio loucas num desespero onde prolifera a vigarice e a trapaça, uma sensação de conspiração permanente. Bêbados, prostitutas, um taberneiro, coscuvilheiros, vagabundos, intriguistas e um intelectual — em estado de clausura e inacção que não a do pensamento — vivem uma decadência moral e física. Eles são o que resta de uma espécie de falha colectiva. A figura do intelectual dá-nos ao mesmo tempo a leitura e também a narrativa desse mundo na qual entramos com acesso privilegiado ao círculo da sua consciência. Como diz o autor, com ele “assistimos a um processo que é o da direcção ao apocalipse”. Esta é a toada do seu monólogo interior: “. . . experimentou friamente a realidade da existência: viu-se, vítima impotente e sem defesa dessa crosta terrestre movente, viu a curva frágil do seu nascimento e da morte diluir-se no combate silencioso dos mares que recuavam, das montanhas em ascensão, e, no corpo obeso, bem colado ao sofá, quase podia sentir essa ligeira vibração, presságio de nova intrusão do mar, sinal de fuga impossível, esse mar incapaz de resistir à sua própria força e que, transbordante, arrastava no seu leito hordas de animais aterrados, em pânico, ursos, coelhos, veados, ratos, insectos e lagartos, cães e homens — enquanto, por cima das suas cabeças, o voo rasante das aves esgotadas sinalizava uma derradeira esperança. ” Podia ser um tempo bíblico. “É um romance de um tempo que já não existe. Pertence a um mundo que desapareceu completamente”, diz László Krasznahorkai ao Ípsilon a partir de Berlim. “Era, em absoluto, outro mundo, e não por ser a Hungria comunista, mas desapareceu em todo o mundo ocidental. Quase tudo mudou, excepto o comportamento humano. ”Começa assim: “Uma manhã de finais de Outubro, pouco antes de as primeiras bátegas das intermináveis e impied. osas chuvas de Outono começarem cair no solo gretado e salino, a oeste da exploração (procedendo o mar de lama pútrida que tornaria intransitáveis os caminhos vicinais e deixaria inacessível também a cidade até às primeiras geadas), Futaki acordou ao toque dos sinos. ” Futaki estava na cama da senhora Schmidt, quando o marido dela, Schmidt, regressou a casa. Tem então início um diálogo demonstrativo do grau de vigarice, de desconfiança e de traição entre vizinhos, um ambiente sustentado pelo mais absoluto desespero. Tudo muda quando se sabe da chegada de um ex-elemento daquela comunidade, Irimias, homem a quem todos atribuem poderes especiais e que todos julgavam morto. Ele é visto como um profeta. Ele virá certamente salvá-los daquela existência condenada. “Esta é uma história sobre como as pessoas não precisam de profetas. As pessoas precisam de falsos profetas. É essa a principal mensagem deste romance”, diz Krasznahorkai sobre um romance que expõe e ridiculariza as bases de uma sociedade totalitária. “As ditaduras foram sempre bastante populares na história humana e, de tempos a tempos, o poder político recua a esta velha forma, ao outro polo da democracia”, continua, clara alusão ao tempo presente. “Agora, em especial na Europa de Leste, a nova situação é bastante assustadora. O que existe não é uma ditadura, mas o sentido em que vai é propício a que ela surja. Ou seja, os novos regimes políticos na Polónia, na Hungria e por aí fora não são ditaduras. Estão no poder graças a eleições democráticas. E veja, não é só a Leste, acontece também em Itália, o que é muito mais perigoso, penso. ”O Tango de Satanás é mais um daqueles romances que ganham nova dimensão no tempo actual. Há um estado de angústia crónica que perpassa e ecoa. No livro ele é dado não apenas pela decadência das casas, pelo burlesco da relação entre as personagens, por uma atmosfera diluviana em que a chuva e a lama ameaçam levar tudo, e por um tempo que parece ter pouco de objetivo, marcado pela espera, pelo desencontro de ponteiros, por uma circularidade — que é também a da estrutura do romance — vertiginosa, obsessiva, a de uma dança — um tango — a remeter para o abismo e para a ideia de perdição. As frases longas, os capítulos de um só parágrafo, acentuam essa percepção de delírio coletivo. Quando o livro foi publicado, muitos viram-no como uma crítica desapiedada ao regime comunista, outros que o conheceram depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, como o retrato de um mundo tão desconhecido quando sedutor pela sua carga secreta. Lászlo Krasznahorkai abria as portas ao interdito soviético. “As críticas foram muito diferentes em meados dos anos 80 daquelas que surgem agora. Na Alemanha, por exemplo, os críticos estavam muito interessados no que acontecia na parte Leste do mundo e o romance lidava com essa realidade. Na Hungria foi lido como como um ataque político contra o regime. A minha proposta era, no entanto, muito diferente. Eu queria escrever um livro sobre o mundo e não contra um regime. ” E aquele era o único mundo que conhecia. “Até 1987 não pude sair da Hungria, não conseguia um passaporte para o mundo livre. Conversava com os húngaros, intelectuais, lia-os e o mundo era igual para mim e para eles. A Hungria era o mundo para nós. Por isso, o mundo deste romance era, para mim, similar ao mundo. E não quis escrever um livro sobre o regime político porque esse regime era muito ridículo para mim. Vivi numa época em que as pessoas como eu, da minha idade, já não acreditavam nesse regime. Em meados de 80 já não metia medo. Apesar disso não podíamos adivinhar que o império soviético iria cair em poucos anos. Aquela era a nossa realidade diária e os comunistas eram o povo mais ridículo mais cínico. ”É o mesmo cinismo de muitas das personagens, levado, por Krasznahorkai, a um extremo que tanto causa gargalhada como mal-estar. É sobre gente que acumula erros. “Venho de uma família burguesa e quando tinha uns 18, 19 anos fui para longe da minha família e do mundo dela. Era um leitor fanático de Kafka e de Dostoiévski e achei que a vida real se passava a um nível mais profundo. Decidi então ir às profundezas da sociedade húngara e vivi durante anos em pequenos lugares onde tive trabalhos muitos simples e muito físicos; vivi entre gente em grande estado de pobreza. E vivi entre bares e estações de comboio, bebia muito, toda a gente bebia naquele tempo na Hungria. Era muito comum, tão comum como os cigarros. Vivia entre essas pessoas e senti-me muito bem. Aquela vida era também a minha vida. E queria escrever um livro sobre essa vida que descobri numa subcamada da sociedade. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Lászlo fala com o mesmo sentido de circularidade com que escreve, uma cadência musical, como se as palavras encontrassem lugar numa pauta musical. Há uma razão. “A música é a minha linguagem natural, a música e as palavras. São uma matéria essencial. Sem música, sem palavras não poderia viver. Sabe, também faço musica. Toco alguns instrumentos desde criança, mas nunca em público. ” Tem colaborado com a música e com outras artes, como o cinema ou a fotografia. “O meu interesse por outras artes deve-se ao facto de achar que a verdadeira arte está em viver numa comunidade secreta e vivo nessa comunidade. Não sou um escritor, mas sou um artista, acho. E gosto muito de estar com artistas. ”Na década de 90 viveu uma situação privilegiada. Instalou-se no apartamento de Allen Ginsberg, o poeta da Beat. “Lá, no apartamento de Allen, conheci tantos artistas fantásticos! Estava extasiado. Eu era o mesmo tipo do Leste da Hungria e até hoje sou o mesmo, e ali estava eu entre eles. A partir de então o meu modo de pensar a literatura passou a ser deferente. Por exemplo, quando estava no apartamento de Allen ele ajudou-me a resolver problemas literários, técnicos, que para mim eram insolúveis; estar próximo dele era estar numa atmosfera fantástica. Nos seus últimos anos, era um homem muito, muito sábio e era muito generoso com os jovens artistas. Posso dizer que a razão pela qual estou familiarizado com outras formas de arte é por ser curioso acerca do que um artista pode fazer. Adoro-os, admiro-os e essa é a minha verdadeira casa. ”Este é Lászlo Krasznahorkai que no fim da conversa deixa uma confissão: “Até hoje me envergonho sempre que tenho de dizer que sou um escritor. ”
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Há música de Pierre Aderne para ouvir e comprar nas garrafeiras
Wine Album é uma colecção de canções de amor e vinho. Há quatro vinhos criados por Dirk Niepoort que acompanham o disco. (...)

Há música de Pierre Aderne para ouvir e comprar nas garrafeiras
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Wine Album é uma colecção de canções de amor e vinho. Há quatro vinhos criados por Dirk Niepoort que acompanham o disco.
TEXTO: O desafio é entrar num palacete em pleno Príncipe Real, em Lisboa, receber um copo, conhecer pessoas novas e ouvir música ao vivo. O franco-brasileiro Pierre Aderne é o anfitrião, mas com ele podem estar músicos de qualquer canto do mundo ou da cidade. As tertúlias musicais da Rua das Pretas, é assim que se chama este projecto, saíram de casa do artista e abriram-se ao público. Esta quarta-feira é lançado o disco Wine Album que tem a particularidade de cantar o amor e o vinho e de ser vendido em garrafeiras pois vem acompanhado de uma garrafa criada por Dirk Niepoort. Foi há uns dez ou 12 anos que o cantor começou a fazer saraus em casa, então no Rio de Janeiro. “Recebi alguns portugueses e quando vim para Portugal em 2011, para filmar um documentário, aluguei uma casa no Poço dos Negros e era aí que aconteciam os saraus. Depois mudei-me para a Rua das Pretas e o [fotógrafo] Alfredo Matos fazia as fotos e usava a hashtag #RuadasPretas, as pessoas seguiam e começaram a ficar interessadas. Um dia decidimos abrir a casa ao público e apareceram umas 30 pessoas. Um dos meus amigos tinha este espaço [no Príncipe Real] e há um ano que começamos a fazer aqui”, conta o cantor, sentado num cadeirão branco de verga, confortavelmente decorado com almofadas e panos coloridos. É ali que recebe os seus convidados a quem, mal entram e sobem os degraus que os leva à sala com lareira, recebem um copo de pé. “O vinho ajuda a contar a história”, explica. E assim, além dos músicos, dos artistas e dos escritores “também os produtores de vinho começaram a frequentar” a Rua das Pretas, continua. “Estes encontros nunca são estáticos”, sublinha Aderne. O projecto Rua das Pretas percorre o mundo. Embora tenha começado em Lisboa, Pierre Aderne anda em digressão com a sua trupe, como se de um circo se tratasse. Assim, por estes dias está em Lisboa, segue para Berlim (16 e 17), Paris (20 e 21), regressa a Lisboa a 24 e a 31. A 7 de Dezembro segue para o Porto e regressa a Lisboa a 8 e a 16. A 12 estará em Paris e a 17 em Londres. Além de não serem estáticos, também não são fixos. Aderne divide-se entre Lisboa e o Porto, mas também viaja até Paris e Nova Iorque. Agora, Londres e Madrid vão fazer parte do seu percurso. “Viajo com quatro músicos, uma fadista e uma cantora brasileira. Chegando lá, convido as pessoas. ” É assim o projecto, que é uma “festa de música e de vinho”. “É muito interessante porque todas as noites o concerto é diferente. O vinho é o quinto elemento da banda. ”Ao palacete chegam cerca de oito dezenas de pessoas que se sentam em caixas de vinho, com as almofadinhas coloridas. “Não é um show, mas uma festa que se faz em casa. É um formato [que promove] a intimidade”, explica. Há entradas para petiscar assim que se entra e no final da primeira parte é servida uma refeição quente. É uma experiência Airbnb Music e custa 50 euros. A maior parte dos que passam pela Rua das Pretas são turistas. Depois de tantas tertúlias – por ali já passaram 140 artistas portugueses e estrangeiros, 4000 já fizeram a experiência e foram abertas mais de 1700 garrafas de vinho –, há um ano, Aderne estava com Niepoort no Douro e pensou: “Está na hora de fazer um álbum temático e fazer do vinho o mote principal do disco – canções acerca do amor e do vinho. ”O autor convidou alguns músicos, foi para Nova Iorque, alugou uma casa. “O Dirk [Niepoort] veio com a gente. ” Durante duas semanas o que fizeram foi: “Compor, cozinhar, cantar, abrir garrafas e gravar”, descreve. A produção ficou a cabo de Hector Castillo, vencedor de oito Grammys, e dos compositores e músicos Brian Cullman e Tanner Walle. O disco foi terminado em Lisboa. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Depois disso, Aderne pensou na distribuição. “Eu sinto a música mais próxima de uma garrafeira do que de uma loja onde se vendem electrodomésticos”, diz, lamentando a diversidade de produtos que lojas como a Fnac ou a Worten oferecem. Um CD e uma garrafa de vinho é a proposta de Aderne e de Niepoort – que criou dois tintos, um do Douro e outro da Bairrada, dois brancos, um do Douro e outro da região do Alto Minho. Os rótulos foram criados pelos artistas plásticos brasileiros Gonçalo Ivo e Rubem Grilo. São oito mil discos e oito mil garrafas (20 euros), mas é possível comprar três também com o CD (60 euros). De futuro haverá um código de download impresso nas rolhas que poderá ser descarregado para ouvir o álbum, informa o autor. Aderne está curioso para saber “se esta loucura resulta”, a da venda em garrafeiras, wine bars e restaurantes. Por agora, já há pedidos para fazer chegar o kit a Nova Iorque e a Paris. Portanto, esta ideia pode ajudar à “inclusão do vinho português em lugares em que não estaria se não tivesse a música [associada] e vice-versa”, defende.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave ajuda circo cantora
Teresa Paixão: “Na RTP2 mostramos aquilo que só a TV pode mostrar”
Entrevista com Teresa Paixão, directora de programas da RTP2, canal que cumpre 50 anos no dia de Natal – uma programadora que veio dos programas infantis para dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”. (...)

Teresa Paixão: “Na RTP2 mostramos aquilo que só a TV pode mostrar”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Entrevista com Teresa Paixão, directora de programas da RTP2, canal que cumpre 50 anos no dia de Natal – uma programadora que veio dos programas infantis para dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”.
TEXTO: Está há 25 anos na RTP2, canal que na terça-feira cumpre 50 anos. Teresa Paixão dirigiu o departamento de programas infantis da RTP 2 entre 1989 e 2015, onde geriu espaços como o Zig Zag, e agora faz uma televisão que se descreve como “adulta”. Foi em 2015 que o então administrador Nuno Artur Silva a convidou, depois de década e meia em que o futuro do canal foi duas vezes posto em causa. A RTP2 iludiu a privatização, mas a directora de programas sabe que nunca se está a salvo. “Sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi. ”Diz ter aprendido muito no canal e vir de dentro e aprender com os erros e críticas é uma vantagem. “A má-língua é um património extraordinário”, ri-se. Começou nos Jogos sem Fronteiras e na Rua Sésamo e hoje dirige o canal que começou como um espaço de repetições do que tinha sido emitido pela RTP1 até, em 1970, ter começado a ter programação própria. Nestes 50 anos, a RTP2 foi o canal de Agora Escolha, do Domingo Desportivo, de Quem Sai aos Seus ou Sete Palmos de Terra. Agora é o canal de Sara, das séries europeias como O Príncipe ou Borgen, da Britcom, dos documentários e da ópera. A RTP2 teve como rostos o cineasta Fernando Lopes, José Júdice, António Mega Ferreira ou Margarida Marante – agora tem a única directora de programas dos generalistas, que diz a cada passo que também é espectadora “do canal 2”. Recentemente tentou comprar a série da RAI/HBO sobre a amizade feminina baseada nos romances de Elena Ferrante, A Amiga Genial, mas foi um exemplo de como o orçamento não se compadece com grandes produções acabadas de estrear. Teresa Paixão mantém o compromisso de encomendar mais documentários sobre mulheres e tem já na calha programas sobre a médica Cesina Bermudes, Natália Correia, a psiquiatra brasileira Nise da Silveira, Teresa Barros Caetano ou um novo olhar sobre Sophia de Mello Breyner Andresen. Está na direcção de programas depois de dirigir os programas infantis da RTP 2 – o que aprendeu com isso para agora dirigir uma televisão que se apresenta como “culta e adulta”?Confirmei a convicção de que uma televisão – e uma televisão pública tem essa encomenda do Estado – serve para não infantilizar as pessoas e para as tornar mais cultas, para que elas possam escolher e sentir-se melhor. Que papel desempenha a RTP2 na televisão em Portugal?É um canal que tem coisas diferentes. Não estou a dizer que são melhores, são diferentes. Todos os canais generalistas durante o dia têm um género de programa – um talk show com pessoas, com música. Nós não temos isso. Temos um documentário sobre o fundo do mar, sobre a selva, desenhos animados, que são coisas que as pessoas só podem ver na televisão. Mostramos aquilo que só a TV pode mostrar, enquanto os outros canais mostram na televisão aquilo que as pessoas podem ver noutros sítios. Está na RTP desde 1986. Em 32 anos de televisão pública, como viu a RTP2 mudar?A RTP2 não mudou muito, foi sempre um canal diferente, com mais documentários ou programação estrangeira do que o canal 1. Só muda com o tempo, com a moda. Quando ele muda verdadeiramente, os momentos em que se fragilizou, são os momentos em que o quiseram vender. Aí desgastaram o canal, transformou-se numa espécie de canal Memória 2 porque tinha de viver de repetições. Só nesses momentos não teve essa pujança, mas mesmo assim nunca foi igual aos outros. Desde o início deste século, o futuro da RTP2 esteve sempre em aberto – planeou-se que fosse um canal de informação e educação, por exemplo, ou mais recentemente o governo de Passos Coelho tornou a possibilidade da sua privatização num debate nacional. Que impacto teve isso internamente?Como espectadora e como trabalhadora sempre vivi isso com um grande espanto – como é que as pessoas acham que vale a pena diminuir? Acrescentar é o que vale a pena. Por isso quando alguém acha que diminuir a informação, o tipo de programas, o pensamento, a diversidade, a inovação é uma coisa boa, é um grande espanto. E sobretudo acho que vivo [isso] com uma grande desconfiança do país. Foi sempre muito estranho que o Estado achasse que não vale a pena ser mais diversificado, inovador, diferenciado. É com espanto e uma certa tristeza que se vive com sentimento da perda. Teme que esses temas voltem a estar em cima da mesa?Acho que estão sempre. Há sempre uma possibilidade, mas espero que essas pessoas à hora da morte tenham um arrependimento daqueles de matar [risos]. O primeiro canal 2 público que existiu foi na televisão austríaca, em 1963, depois foi a TVE em 1966, a BBC, nós em 1968. Os canais 2 nasceram nos anos 1960 porque provavelmente se tinha saído de uma guerra há pouco tempo e as pessoas sabiam que valia a pena ter gente mais culta, mais adulta, não infantilizar as pessoas – porque são pessoas que escolhem melhor, que percebem melhor a diferença. No século XXI vivemos um processo em que afinal o que é diferente, como tem pouca gente, porque há menos gente diferente, não vale a pena. É um pensamento muito redutor. Sendo um canal cultural, que pode ter um público mais especializado, a RTP2 sente particularmente o impacto da pulverização das audiências, dos canais temáticos e da programação digital para nichos?Claro que sim, mas isso não é uma coisa má. Eu faço isso quando não vejo o canal 2 e é a natureza do que acontece agora. O Fausto, do Goethe, começa assim, a dizer que já ninguém vai aos saraus culturais. Estamos atentos, a nossa função é também seduzir as pessoas para o nosso canal. Mas é o mundo a evoluir. Este trabalho é muito duro, em televisão há ciclos, mas a natureza deste negócio é sempre procurar diferentes pessoas. Claro que faz com que nos sintamos muito frustrados, claro que às vezes traz muitas dúvidas porque não sabemos o que fazer – temos esta coisa maravilhosa no ar e pouca gente quer ver…A RTP tem esse dilema, não ter as audiências como objectivo, mas também lhes presta atenção. Disse numa entrevista que comete o pecado da ira quando vê as audiências do canal. Porquê?Gostava muito que o canal tivesse imensa audiência. Se as massas agora abraçassem os programas da RTP2 ficava contentíssima. A ira é porque às vezes temos a sensação de que toda a gente vê o canal. Mas o “toda a gente” no canal 2 são 50 mil pessoas e noutros canais é um milhão. Nesses momentos duvidamos, se calhar são 100 mil – é a tentação de achar que aquela amostra não é adequada para o canal. E se calhar não é, porque a amostra das audiências não é uma ciência exacta. Pode até ser uma ciência oculta [risos], mas não é uma ciência exacta. Os canais culturais do resto dos países da Europa têm uma média de 100 mil pessoas a ver, o que quer dizer que têm picos de 200 mil. Nós temos uma média de 35 mil. Temos picos de 100 mil, mas nunca de 200 mil. Sente essa pressão?Não, não há nenhuma pressão. Nem auto-imposta, do mercado, da administração?Da administração, então, nem pensar. Nunca ninguém me disse ‘olha que a audiência está muito baixa’. Eu é que sei o risco que é ter um canal destes com uma audiência muito baixa. Porque já o vivi. O risco de suscitar ideias quanto ao futuro do canal. Exactamente. E até parece que é um bom argumento. É um péssimo argumento, mas podem transformá-lo em bom. Nestes 50 anos, em que momentos acha que a RTP2 foi particularmente marcante para o país?O Acontece teve um grande impacto. Foi um projecto de muitos anos e deu a conhecer muita gente das artes. O Joaquim Letria teve imenso impacto [apresentou o Informação 2, o Directíssimo e o Tal & Qual, entre outros]. O 1000 imagens do José Nuno Martins – foi a primeira vez que na TV houve um programa de crítica à publicidade. O Jardim da Celeste, que não teve o impacto da Rua Sésamo, foi a prova de que era possível fazer um programa educativo do pré-escolar, nosso. Mais recentemente, o Visita Guiada marca o canal. E a descoberta das séries europeias. [O drama político dinamarquês] Borgen não teve muita audiência, nunca passou dos 60 mil espectadores, mas teve imenso impacto. A série Sara, série do ano do Ípsilon, teve bons resultados?Sim. Esteve dentro dos nossos números, entre 35 e 40 mil pessoas, estava muito bem-feita. Porque é que foi para a RTP2 quando estava prevista para a RTP1?Porque o meu colega da RTP1 [o então director de programas Daniel Deusdado] me pediu para eu a pôr. Tive muito gosto em fazer isso. Mas não fui eu que escolhi a Sara. Confesso que fiquei um bocadinho surpreendida com a reacção dos autores, de uma grande desvalorização do canal 2, e fiquei muito chocada com isso. Eles têm esse direito…O presidente da RTP disse ao PÚBLICO este Verão que a RTP2 “é um grande luxo de um canal”. Sente-se ao comando de um veículo de luxo?O canal 2 tem esse luxo que achamos que o ser humano merece, do conforto. Não achamos que seja um canal luxuoso no sentido supérfluo do termo. Para mim é um grande privilégio estar ao comando e espero estar à altura. Portugal merece um canal de luxo no sentido do conforto, de algo de novo e diferente. Mas luxo não quer sempre dizer uma coisa muito cara. Qual é o seu orçamento? Um melhor orçamento dar-lhe-ia possibilidade de fazer o quê?Nunca chega. Temos cerca de 8 milhões de euros para fazer o canal, o orçamento tem vindo a aumentar, e se tivesse mais dinheiro investia em ficção nacional – não só séries, cinema, no desenho animado que é uma das coisas que temos mais possibilidade de vender. Um cão, um bule, fala qualquer língua. É onde acho que Portugal precisa de mais investimento. Espanha já está num patamar acima do nosso desde que Pedro Almodóvar ganhou o Óscar. O que é necessário é fazer em Portugal, e fazer evoluir. Enquanto não houver mais investimento o grau de exigência não pode ser muito elevado. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público.
REFERÊNCIAS:
Quantas vezes já vimos Música no Coração e Sozinho em Casa no Natal? Este ano, eles estão de volta
O PÚBLICO fez as contas a décadas de filmes de Natal nos canais generalistas e à programação festiva de 2018. Música no Coração e Sozinho em Casa regressam para continuar a somar exibições. E.T., Frozen ou os super-heróis também. (...)

Quantas vezes já vimos Música no Coração e Sozinho em Casa no Natal? Este ano, eles estão de volta
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.25
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: O PÚBLICO fez as contas a décadas de filmes de Natal nos canais generalistas e à programação festiva de 2018. Música no Coração e Sozinho em Casa regressam para continuar a somar exibições. E.T., Frozen ou os super-heróis também.
TEXTO: O prato principal do Natal televisivo tende a ser feito de filmes — e de clássicos. O Natal é ritual, um ritual é repetição e se há filme que nas últimas quatro décadas se repete na televisão portuguesa é esse pano de fundo com ambiente de reunião familiar que é Música no Coração. Este ano, o filme de Robert Wise regressa para ultrapassar a dezena de vezes que já passou na RTP. Num ano em que também haverá Sozinho em Casa, que já fez companhia aos portugueses em pelo menos 11 natais nos canais generalistas, há outros filmes do tipo obrigatório na TV portuguesa, da animação ao bíblico, do mundo Harry Potter aos super-heróis. Todos os anos há o Natal dos Hospitais, as missas, o circo de Natal e as edições especiais de programas do momento que se vestem de azevinho e sinos dourados. Este ano não será excepção, com emissões de Natal de Masterchef, Querido Mudei a Casa (dia 22) ou Apanha se Puderes na TVI (a 22, 24 e 25), Casados à Primeira Vista na SIC (dia 23), o Circo de Monte Carlo e o Circo de Natal SIC Esperança com um toque da novela Alma e Coração no canal de Carnaxide. A RTP1 enceta a noite de consoada com o Circo de Natal (dia 24 às 21h15) depois de um dia em Braga com a Festa de Natal de Sónia Araújo e Jorge Gabriel, e oferece um The Voice Portugal Especial de Natal no dia 25 às 21h15. O PÚBLICO pediu aos canais generalistas, os maiores e mais antigos agregadores de públicos, os dados para fazer as contas aos seus filmes de Natal mais populares e se a RTP passou, por exemplo, E. T. – O Extraterrestre nos Natais de 1993, 1994 e 1997, e se a memória já acrescenta os filmes de Harry Potter ou Frozen à lista, há dois títulos que se destacam. Música no Coração (1965) e Sozinho em Casa (1990) levam a taça do Natal português (e não só) e este ano lá estarão para reconfortar o espectador: o primeiro chega dia 24 à RTP, sua casa ao longo das décadas, ao fim da noite e pela 11. ª vez na história da televisão pública; o segundo devolve Kevin McCallister aos ecrãs durante o dia 25 na SIC. Esta é a quarta vez consecutiva que o filme em que Julie Andrews é uma freira que se torna perceptora de sete musicais crianças no átrio da II Guerra Mundial está em pleno Natal português. O título de 1965, que não tem uma única cena de Natal, tornou-se desde o final dos anos 1970 um clássico de Natal televisivo das emissões britânicas ou norte-americanas e é um dos mais evocados “filmes de Natal” quando se fala da tradição audiovisual portuguesa. No Natal de 2015 lá estava Música no Coração às 23h15 de dia 24. No Natal de 2016, Música no Coração às 23h46 de dia 24. No Natal passado, o filme passou para a tarde do próprio dia de Natal, às 15h30. E este ano estará novamente na Consoada como filme definitivo de Natal e numa espécie de oficialização dos últimos anos das memórias e hábitos, às vezes inflacionados pela nostalgia das gerações que foram crianças e jovens nas décadas de 1980 e 1990, numa repetição sucessiva em pleno século XXI. Segundo contas da RTP, entre 1988 e 2018 o filme passou 11 vezes, a 11. ª das quais se cumprirá este ano, na véspera de Natal. Uma curiosidade: a primeira exibição de que há registo foi precisamente a 25 de Dezembro de 1988, mas na RTP2. Sozinho no NatalMúsica no Coração é um título tão marcante que até a conhecida promotora de concertos portuguesa gerida por Luís Montez o tomou como nome de baptismo, um cenário que seria bem diferente com o título do filme no português do Brasil – A Noviça Rebelde – e menos duradouro, se a televisão pública não o tivesse colocado na mente de tantas gerações. Mas se a SIC ou a TVI nunca passaram Música no Coração, são os canais em sinal aberto responsáveis por outro filme tão natalício quanto o bacalhau: Sozinho em Casa, ou de como a negligência parental e um rapazinho loiro deixado para trás durante as férias de Natal se tornou um ícone. A RTP também não encontra registos de ter exibido Sozinho em Casa, mas este ano ele aparece nas grelhas da SIC no dia 22 e em pleno dia de Natal – sábado trata-se de Sozinho em Casa 4 e o filme inicial, de 1990, é exibido em pleno dia de Natal no canal de Carnaxide. Só na SIC, o primeiro e mais clássico filme do franchise já passou 11 vezes, a última das quais a 25 de Dezembro de 2016 e a primeira a 21 de Dezembro dos idos de 1997. Porém, só nessas duas datas o filme foi mesmo “de Natal” – este ano, foi exibido a 1 de Janeiro, ainda em época de festas, mas já depois de entregues as prendas. A TVI já o exibiu nove vezes entre 1994 e 2014, sempre nos dias de Natal. E, como os McAllister não são pais exemplares, Kevin voltou a estar sozinho anos depois, em Nova Iorque e cruzando-se até com Donald Trump, sequela essa que o canal de Carnaxide passou 13 vezes, quatro das quais (1999, 2014, 2015 e 2017) nos dias de Natal. Este ano, a TVI programa sim o filme O Filho de Deus, com Diogo Morgado, para a tarde da véspera de Natal e Jacinta, de Jorge Paixão da Costa, para a noite. A SIC, o generalista que faz da programação das festas um pacote de cinema, vai ter, entre outros e ainda sem horários divulgados, novamente E. T. e The Revenant: O Renascido (dia 23), Vaiana, Monstros Fantásticos e onde Encontrá-los ou A Idade do Gelo: Um Natal de Mamute (todos dia 24), e Ben-Hur (2016) ou A Bela e o Monstro (dia 25). Já no cabo podem encontrar-se Os Caça-Fantasmas (I e II) originais no AXN White na noite de Natal e os ingredientes tão habituais quanto as filhoses que são os muitos filmes de animação (Frozen no dia 24 no canal Hollywood), de super-heróis (o dia 25 no TVCine 1 é feito de Mulher-Maravilha, Black Panther ou da estreia televisiva, às 21h30, de Vingadores: Guerra do Infinito) e a fantasia de J. R. R. Tolkien (a trilogia O Hobbit passa de 23 a 25 na Fox e O Senhor dos Anéis – A Irmandade do Anel passa dia 25 no TVCine 4). Na nova televisão, o Netflix já criou o pacote It’s beginning to look a lot like Netflix onde junta o clássico natalício recente que é O Amor Acontece, a cantora oficial de certos natais que é Mariah Carey e o seu Merriest Christmas e o original A Very Murray Christmas, com Bill Murray – e até o programa que não é mais do que uma lareira realista a crepitar no ecrã. Entretanto estrearam-se o anime de Aggretsuko: We Wish You a metal Christmas ou prendas especiais como Roma, o favorito para os Óscares de Alfonso Cuarón, e, na sexta-feira, chega outro filme original, o pós-apocalíptico Bird Box, de Susanne Bier, com Sandra Bullock e Sarah Paulson. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O canal Cinemundo, que está nos operadores Meo, Nowo e Vodafone, tanto passa Heidi ou A Bússola Dourada na véspera de Natal, quanto também um ou dois filmes que bem podem resumir os excessos da época – Oh não! É Natal Outra Vez ou as adoráveis crianças de A Cidade dos Malditos (dia 24). Este é um de três filmes de John Carpenter que abrilhantam as festas: o AXN Black promove um duelo David Fincher versus John Carpenter com Sala de Pânico e Clube de Combate e Memórias de Um Homem Invisível e As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim em pleno dia 24. E recorde-se que a 25 de Dezembro nasceu um canal português, o segundo mais antigo do país – a RTP2 faz 50 anos no dia de Natal e programa para os próximos dias o Concerto da Árvore de Natal dirigido por Daniel Baremboim e Martha Argerich em Berlim (dia 23 às 24h), o Concerto de Natal no Scala de Milão com obras de Vivaldi e Mozart a 24 às 22h35, o especial Gisela João – uma noite de Natal em pleno no dia 25 às 23h15 e oferece cinema com uma consoada que tem O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, e uma tarde de Natal com A Minha Vida de Courgette.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra filho mulher homem espécie circo cantora pânico
O rapaz na zona fria
Uma boa história, bem contada, com bons actores, sobre uma família que procura refundar-se a partir do regresso do filho pródigo — não é preciso mais. (...)

O rapaz na zona fria
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.6
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma boa história, bem contada, com bons actores, sobre uma família que procura refundar-se a partir do regresso do filho pródigo — não é preciso mais.
TEXTO: Num filme que em Portugal se chamou A Rapariga na Zona Quente, Paul Schrader punha George C. Scott, empresário conservador, à procura da filha no submundo do cinema pornográfico da Califórnia. Não sabemos se Peter Hedges se lembrou desse filme ao escrever O Ben Está de Volta, mas nós lembrámo-nos porque, na segunda hora, põe Julia Roberts, mãe dilacerada, à procura do filho na “zona quente” da cidadezinha onde vivem (que, por ser Natal e estar a nevar, está mesmo muito fria). O filho, o Ben do título, é um drogado em reabilitação que veio passar a noite de Natal a casa, decisão bem-intencionada mas que vai ter maus resultados. Realização: Peter Hedges Actor(es): Julia Roberts, Lucas Hedges, Courtney B. Vance, Kathryn NewtonA viagem de mãe e filho em busca do cão da família (cujo desaparecimento não é inocente) abre uma espécie de “porta do inferno” para o reverso da imagem de cartão postal natalício da pequena comunidade americana. E é por aí que O Ben Está de Volta começa a afastar as aparências de pequeno drama familiar/caso da vida que a sua primeira metade dava a entender (na onda de um outro título recente sobre famílias afectadas pela droga, Beautiful Boy). Sobretudo, é um filme que procura não julgar nem condenar, que se recusa a embarcar no lugar-comum, e que sabe valorizar os pequenos pormenores que às vezes dizem mais do que toda uma longa série de diálogos. Tudo se joga numa questão de confiança erodida de parte a parte que tem de se reconquistar: O Ben Está de Volta é a tentativa de uma família se refundar a partir do regresso do filho pródigo, interpretado com intensidade por Lucas Hedges (o sobrinho de Casey Affleck em Manchester by the Sea e filho de Frances McDormand em Três Cartazes à Beira da Estrada), à sombra de uma tragédia para a qual se procura sistematicamente um culpado que talvez não exista. O Ben Está de Volta é um “pequeno” filme na recente tradição indie americana de filmes-que-há-uns-anos-teriam-sido-feitos-por-um-estúdio, ou de filmes-de-que-os-estúdios-só-se-lembram-quando-os-Óscares-se-aproximam. Por aqui não se descobrem coisas novas, mas quando há uma boa história bem contada por bons actores — e se Julia Roberts está a ganhar com a idade! — isso também não importa.
REFERÊNCIAS:
Como resgatar uma aldeia do interior de Loulé?
Universidade do Algarve lançou Projecto Querença há cinco anos, mas nenhum jovem se mudou para o barrocal nem para a serra algarvia. Último de seis trabalhos sobre desenvolvimento do interior. (...)

Como resgatar uma aldeia do interior de Loulé?
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-12-31 | Jornal Público
URL: https://arquivo.pt/wayback/20181231204658/https://www.publico.pt/n1756649
SUMÁRIO: Universidade do Algarve lançou Projecto Querença há cinco anos, mas nenhum jovem se mudou para o barrocal nem para a serra algarvia. Último de seis trabalhos sobre desenvolvimento do interior.
TEXTO: A notícia propagou-se como uma esperança para as aldeias da beira-serra e da serra: a Universidade do Algarve (UAlg) ia sair do campus e envolver-se, de forma directa, numa missão de resgate territorial. Volvidos cinco anos, o Projecto Querença mostra alguma dinâmica económica, mas nem um novo morador. O que aconteceu?Pode não se avistar vivalma ao subir o monte de Querença, a 10 quilómetros da cidade de Loulé. Casas caiadas de branco cobrem a encosta até à Igreja de Nossa Senhora da Assunção. De repente, um palco nu, um museu com a porta aberta, restaurantes prontos para servir galo de cabidela ou galinha cerejada. Em Setembro de 2011, nove jovens, de diferentes áreas do saber, instalaram-se numa destas casas térreas para identificar recursos locais, estudá-los, trabalhá-los. E ter ideias que pudessem agitar a economia, gerar emprego. Esse seria o primeiro passo para recuperar um território que ameaça desaparecer. A palavra “interior” pode causar estranheza tão perto da costa. Mais consensual será a expressão “baixa densidade”. Até pelo peso do sector do turismo, os moradores preferem a proximidade da praia. Nas freguesias a Norte (Alte, Querença, Ameixial), quase só restam idosos. Em 2011, moravam 759 pessoas em Querença. Meio século antes, 2641. O despovoamento não levara a extensão de saúde, a escola de primeiro ciclo, o polidesportivo, o salão de festas. Anos antes, um programa de revitalização até trouxera novos equipamentos. E isso foi determinante na escolha. “Não queríamos ir para um terreno inóspito”, esclarece João Ministro, coordenador técnico do projecto promovido pela UAlg, em colaboração com a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, com apoio da junta e da câmara. O declínio, ali, seria reversível. Sara Fernandes sobressaía naquele primeiro grupo. Terminara o mestrado em marketing e não queria tornar à origem, a Lisboa. Foi investida da missão de desenvolver iniciativas de promoção e comercialização dos produtos locais. “Assim, a curto prazo, podíamos criar um evento no qual as pessoas pudessem vender o seu excedente”, lembra. Tantos mercados há por esses cabeços fora. Naquela altura, não havia. E os moradores entusiasmaram-se com a possibilidade de fazer um mercado mensal. “Começaram a fazer doçaria tradicional, pão em forno de lenha e outras coisas”, prossegue. E a assumir um papel activo no programa paralelo, que tanto podia ser um passeio interpretativo como uma oficina de artesanato ou gastronomia. O mercado resiste, mas, para se distanciar da concorrência, passou a acontecer quatro vezes por ano, uma em cada estação, com programa reforçado. Os idosos acolheram bem os jovens. Cederam-lhes mais terreno do que eles eram capazes de usar. Envolveram-se nas suas actividades. E isso, para João Ministro, mostra que parte do caminho foi percorrido. O resultado, porém, ficou aquém. Os jovens foram desafiados a desenvolver ideias de negócio, a criar o próprio emprego”. “Ainda que muitos tivessem a ideia e a vontade, não assumiram o risco”, lamenta. “Havia alguma imaturidade. ”Visto de fora, não foi só a juventude. O contexto era de estágio financiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. “Eles até podiam ter muitas ideias, mas à partida não teriam capital para investir”, concede Nelson Dias, presidente da In Loco – associação de desenvolvimento e cidadania. Houve nova experiência em 2014. Dessa vez, seleccionaram “jovens um pouco mais velhos e com uma ideia do que gostariam de fazer”. “Não ficaram cá a residir, mas trabalharam cá e aproveitaram recursos da primeira fase. Das quatro pessoas saíram quatro iniciativas empresariais”, assegura João Ministro. O arquitecto paisagista João Marum, natural da freguesia, participou nas duas fases. “Não podia deixar passar a oportunidade”, diz ele. “Sempre gostei do meio rural. ” Na primeira fase, acatou a missão de criar um viveiro de plantas autóctones e de delinear projectos de jardinagem sustentável. Finda a aventura, dedicou-se aos projectos, mas não esqueceu o resto e decorrido um ano estava a fazer jardins. “A relva consome muita água, leva produtos químicos, o que é mau. Há um tipo de cliente, com uma consciência mais ecológica, que prefere plantas autóctones, telas e inertes, que mantêm a humidade do solo. Também há o que está farto de pagar água”, explica. Aproveitou a segunda fase para desenvolver a empresa: faz projectos, constrói jardins, tem um viveiro. Susana Martins, uma rapariga da cidade de Loulé, foi desafiada a participar. Terminara o mestrado em História. Defendera uma tese sobre produção de cal. “Nunca tinha pensado em transformá-la num produto turístico”, conta. Criou uma rota da cal e do barro que começa aqui, em Querença, e que se estenderá a outras aldeias do barrocal, a faixa entre a serra e o litoral. Propõe-se “mostrar o território através da história, seguindo os vestígios dessa actividade, que terminou por volta dos anos 60/70”. E já preparou outras rotas para desviar turistas da costa. Bruno Rodrigues fez mais do que estava à espera. Entrou decidido a dar corpo à Algarve Trail Running, uma associação desportiva destinada a dinamizar a corrida em trilhos. Já outros tinham ido à gaveta da UAlg buscar uma barra energética desenvolvida no laboratório de engenharia alimentar. Havia que aperfeiçoá-la. “Como atleta, fui a cobaia. Levava-a para as provas. Passava horas à chuva, no bolso, ou ao calor, no carro”, revela. Agora, comercializa-a. A barra sai dos fornos da Fábrica da Amêndoa, no centro de Loulé, em pequenas tiras e é embalada em Querença, de onde provêm a matéria-prima. “No início do ano, falamos com produtores de figo, amêndoa, alfarroba e mel para comprar o que vamos precisar”, diz Bruno. “Isto também é uma forma de incentivar a ligação à terra, a produção agrícola. Vejo que as pessoas já se preocupam mais. Limpam as alfarrobeiras, as amendoeiras. . . ”Como é que nem um jovem se mudou para o interior? “Alguns quiseram, mas há um problema de habitação”, esclarece João Ministro. A legislação condiciona a construção em 90% do concelho e a especulação imobiliária faz o resto (ver texto). “Mesmo para arrendar, os preços não são convidativos. É mais barato o centro de Loulé do que Querença. ”Mau sinal? “O facto de este projecto vir da universidade é interessante, mas tem de se transformar numa parceria real e duradoura com parceiros locais”, avisa o geógrafo João Ferrão, da Universidade de Lisboa. “Se assim não for, a universidade tem a sua dinâmica própria e acaba por não resolver problemas como este da habitação. ”João Ministro reconhece que falta trabalhar essa vertente. “É uma ideia que temos em carteira e que temos de discutir com as entidades locais: nestas aldeias do interior, tem de se criar bolsas de alojamento a custo controlado. ” Questionado pelo PÚBLICO, o presidente da câmara, Vítor Aleixo, admite que essa é uma hipótese a considerar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O autarca faz “um balanço positivo” do Projecto Querença. Importa-lhe diversificar a economia do município, muito assente no turismo de sol e praia marcado por uma forte sazonalidade, para já quase só atenuada pelo golfe. “São empresas que estão a nascer. Se não houver micro economia, pequenas empresas, as pessoas não se fixam”. Só João Marum vive na freguesia – em casa dos pais. “Os outros não ficaram em Querença, mas não foram para longe, ficaram em Loulé ou em Faro”, sublinha Filipe Cunha Lima, que se debruçou sobre o projecto ao fazer doutoramento em turismo. “Há organizações que estão se formando, se fortalecendo, e isso também ajuda a fortalecer o todo. Há uma dinamização que pode não ser vista quando a gente anda na rua mas que é significativa”, prossegue. “O sucesso destes projectos de dinamização dos territórios despovoados não pode ser medido a curto prazo. ”O processo está em curso. Acaba de nascer a QRER - Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios de Baixa Densidade, que reúne gente que passou pelo projecto e não só. “Para o ano, vamos lançar uma nova fase do projecto”, anuncia João Ministro. “Acho que nos vamos inspirar no segundo modelo, ou seja, vamos à procura de pessoas que tenham já uma ideia daquilo que acham que tem viabilidade neste território e vamos criar um sistema de apoio. ”
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave escola ajuda corpo rapariga