Serralves não quis fechar a Bienal de São Paulo no museu
Cinco jovens ateliers de arquitectura do Porto constroem pavilhões no parque para mostrar uma bienal de arte que chegou do Brasil. (...)

Serralves não quis fechar a Bienal de São Paulo no museu
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-01 | Jornal Público
SUMÁRIO: Cinco jovens ateliers de arquitectura do Porto constroem pavilhões no parque para mostrar uma bienal de arte que chegou do Brasil.
TEXTO: As duas torres da brasileira Lais Myrrha, o trabalho mais monumental apresentado pela Bienal de São Paulo há quase um ano no pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer na cidade brasileira, parecem mais pequenas no Museu de Serralves, onde no átrio dão as boas-vindas a quem visitar Incerteza Viva: Uma Exposição a Partir da 32. ª Bienal de São Paulo, que abre ao público este sábado no Porto. Parecem mais pequenas, porque, de facto, diminuíram alguns metros ao adaptarem-se ao pé-direito mais baixo do edifício desenhado por Álvaro Siza em Serralves, mas, como explica Lais Myrrha ao PÚBLICO nas vésperas da inauguração, a sua obra já não é a mesma um ano depois, nem podia ser. Dois Pesos e Duas Medidas são duas torres exactamente iguais, mas uma ergue-se em tijolos, betão, ferro e PVC, com as matérias-primas da arquitectura moderna e contemporânea, e outra toma forma em bambu, madeira, taipa e colmo, utilizando elementos usuais das construções indígenas ou autóctones. Se as medidas destas torres gémeas são iguais, o seu peso, como indica o título, é bastante diferente devido à natureza dos materiais e o trabalho quer mostrar como a arquitectura que hoje fazemos, nomeadamente a brasileira, pouco incorpora das culturas indígenas. Se o confronto com a arquitectura de Siza, muito atento às tradições vernaculares, traz outro sabor e questões à obra desta mineira de 42 anos, Lais Myrrha destaca a dimensão narrativa que a obra ganhou nos últimos meses com a crise no Brasil. Se esse olhar estava lá latente, passou agora para primeiro plano: “Dois Pesos e Duas Medidas tem muita relação com a fase política que está a acontecer no Brasil. Vocês também têm aqui a expressão ‘dois pesos e duas medidas’?. . . É essa imprecisão, de que estas palavras falam, que permite a fraude e a corrupção. ”O problema de João Ribas, o director adjunto do Museu de Serralves e curador da exposição no Porto, foi perceber qual devia ser a “cor local” da Bienal de São Paulo agora apresentada no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, questão que dá título ao seu texto no catálogo. Sete meses depois do encerramento da grande exposição de São Paulo, que juntou cerca de 80 artistas durante três meses, como é que se reagrupam obras de arte que entretanto começaram a sua vida pós-bienal, com todas as contaminações inerentes? Juntamente com o alemão Jochen Volz, curador-geral do evento brasileiro e co-curador da apresentação em Portugal, optou por sair do “cubo branco”, escolhendo mostrar apenas 14 artistas e colectivos que se espalham, principalmente, pelo Parque de Serralves e escapam ao museu, naquela que já é a segunda apresentação da Bienal de São Paulo no Porto, que teve um primeiro momento em 2015 com a anterior edição da exposição paulista. “A nossa proposta permite aos artistas e curadores continuarem a pensar a bienal para lá de São Paulo”, diz Suzanne Cotter, directora do Museu de Serralves, acrescentando que tal como em São Paulo, onde a bienal tem uma identidade fortemente ancorada no Pavilhão Ciccillo Matarazzo situado no Parque do Ibirapuera, a imagem de Serralves, “e o seu DNA”, passa pelo edifício do Siza, igualmente implantado num parque. João Ribas entende que a 32. ª edição da bienal, dedicada à incerteza numa perspectiva também ecológica, é já “pós-Niemeyer”, uma vez que já em São Paulo se expandia para fora do edifício. fugindo de certa maneira à omnipresença do arquitecto brasileiro, e conquistando o Parque de Ibirapuera. Aqui, Ribas e Serralves quiseram também sair das salas desenhadas por Siza e encomendaram cinco pavilhões a cinco ateliers jovens do Porto para albergar parte das propostas artísticas apresentadas. Um gesto que de certa forma, reconhece o curador, quase transforma esta bienal de artes numa bienal de arquitectura, devido à sua ambição. Os cinco pavilhões temporários, que respondem também ao tema da bienal, foram desenhados pelos ateliers depA, Diogo Aguiar, OTTOTTO, Fala e Fahr 021. 3 para receber as obras de Gabriel Fernandes (Portugal), Priscila Fernandes (Portugal), Jonathas Andrade (Brasil), Cecilia Bengolea & Jeremy Deller (Argentina, Reino Unido) e Bárbara Wagner & Benjamin de Burca (Brasil, Alemanha). Fora dos pavilhões, mas ainda no parque, podem ver-se também as obras de Carla Filipe (Portugal), Alicia Barney (Colômbia) e Öyvind Fahlström (Brasil/Suécia), enquanto no museu, além de Lais Myrrha, estão os trabalhos do colectivo Vídeo nas Aldeias (Brasil), Leon Hirszman (Brasil), Lourdes Castro (Portugal) e Sónia Andrade (Brasil), onde também é apresentada a performance de Grada Kilomba (Portugal). Nesta cidade de arquitectos que é o Porto, continua Ribas, “quiseram mostrar o trabalho de uma nova geração, entre os 30 e os 40 anos, e pensar a ecologia neste contexto que junta arquitectura, paisagismo e artes visuais”, acrescentando o curador que a encomenda aos arquitectos passa também pela vontade de tornar visível o trabalho de uma geração que não tem tido muitas oportunidades de trabalho, além de obras de pequena escala. “Como museu de arte contemporânea trabalhamos com aquilo que pensamos ser o futuro e isso aplica-se também aos jovens arquitectos”, afirma Suzanne Cotter. O Museu de Serralves, segundo os seus directores, inaugura com estas encomendas uma ocupação mais intensa do parque como área de exposição, explorando a serendipidade. João Ribas deseja que as pessoas descubram os pavilhões ao acaso, chegando a áreas do parque que normalmente não visitam e criando novas relações com a obra de arte, necessariamente mais livres. De certa maneira, é curioso que esta ideia que germina como uma ambição curatorial na sua cabeça há uns tempos tenha encontrado a Bienal de São Paulo e a companhia de Jochen Volz, que reside há uma década no Brasil e é conhecido pelo seu trabalho de curadoria no Instituto Inhotim, considerado o maior museu ao ar livre da América Latina e cujo conceito gravita à volta de pavilhões dedicados a artistas. Com Volz, que dirige desde Maio a Pinacoteca de São Paulo, Serralves espera estabelecer uma relação que lhe permita aprofundar as relações luso-brasileiras, comenta João Ribas. Depois de passarmos pela peça radiofónica de Öyvind Fahlström, cujo som sai das copas das árvores próximas do museu (a obra não chegou a ser vista em São Paulo), seguimos à procura do pavilhão dos depA, um colectivo de três arquitectos que tem o seu projecto instalado no lago que se segue ao parterre central da Casa de Serralves. Depois da paisagem francesa, em pleno paisagismo de gosto inglês, encontramos um poliedro com as faces espelhadas. “É um meio octógono, cuja geometria saiu do museu de Siza, que provavelmente saiu do Parque de Serralves”, diz Carlos Azevedo, 32 anos, um dos três sócios dos depA. “O volume parece camuflado, mas mais do que esconder a peça, interessou-nos assumir a materialidade do que está à volta. Começámos com uma planta clássica, mas conseguimos distorcer a volumetria, através dos planos da cobertura, de maneira a que o pavilhão surja diferente conforme o ponto de vista. ” Lá dentro, com a água do lago aos nossos pés, podemos ver o vídeo O Peixe (2016), de Jonathas de Andrade, uma mistura entre documentário e ficção sobre o quotidiano de uma comunidade de pescadores do Nordeste brasileiro. Para evitar os espaços mais óbvios do Parque de Serralves, o pavilhão dos Fala, que exibe “o fenómeno brega” da obra em vídeo de Bárbara Wagner & Benjamin de Burca, situa-se ao lado do lameiro e do prado grande da propriedade. A dupla Filipa Almeida e Hugo Reis, de 35 e 31 anos, pegou na ideia de cone de luz da própria projecção e trabalharam-na em três dimensões, recorrendo também a uma distorção, para adaptarem a forma com 16 metros de comprimento ao terreno, pontuado pela presença de várias árvores. Inspirados nas caixas de madeira que transportam as obras de arte, marcadas por traves diagonais, surgiu um pavilhão construído como uma estrutura tubular em aço, enquanto os painéis das paredes são em aglomerado de madeira. Um cubo no meio de uma pequena elevação no terreno, feito pelo atelier Fala, exibe o trabalho de Priscila Fernandes, uma portuguesa a viver em Roterdão, que mostra Gozolândia, uma obra filmada no Parque Ibirapuera, uma interrogação sobre os usos dos espaços do lazer e da arte. “Não parece, por causa da ilusão óptica, mas é um cubo”, diz Priscila Fernandes, que por causa das condições de projecção discute com João Ribas, na ausência dos arquitectos, até onde pintar as paredes interiores de azul. “É uma situação excepcional este encontro inesperado com os trabalhos no meio do parque”, acrescentando sobre o seu trabalho que em Portugal é exibido no meio do parque, ao contrário do que aconteceu em São Paulo. Muito perto, está o pavilhão feito por Teresa Otto, 34 anos, que aproveita um pequeno tanque de água e ergue um volume aproximando dois “L” que desenham as paredes do espaço. O revestimento é de chapa ondulada reutilizada, um material que está a desaparecer. Foi preciso ir até Penafiel para encontrá-lo. “Dantes havia nas empenas do prédios. Agora é difícil de encontrar. Queria que tivesse a cor dada pelo oxidado, mas como não foi possível encontrar, utilizámos também a tinta spray usada nos graffiti”, explica a arquitecta. O pavilhão desenhado por Diogo Aguiar, que exibe a peça de Gabriel Abrantes, é o que está mais perto do museu. Dois círculos em madeira trazem neste dia em que choveu uma dimensão inesperada, a do cheiro, ao trabalho do realizador que conta a história de amor entre uma jovem indígena que quer ser comediante e um robô. Os Humores Artificiais, uma produção que contou com o apoio de Serralves, sublinha João Ribas, mistura a estética de Hollywood com a do documentário num filme que tem agora a sua estreia em Portugal e em que o realizador quis explorar as formas de comédia indígena. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Se em São Paulo a maioria dos artistas eram mulheres, o mesmo cuidado houve na apresentação em Serralves. Entre os portugueses, todos repescados para o Porto, há apenas um homem num grupo de cinco artistas. A Bienal de São, que existe desde 1951 e é uma das mais antigas do mundo, é o evento internacional onde a presença portuguesa tem sido mais constante. Os artistas portugueses vão à Bienal de São Paulo há 65 anos, sem nenhuma interrupção. É bom que através desta nova colaboração entre a bienal e Serralves se possam ver em Portugal as razões para esta participação com uma intensidade única na internacionalização das artes visuais nacionais.
REFERÊNCIAS:
Partidos LIVRE
Nos Açores, à procura de homens que são máquinas do tempo
Começou no século XIX e só terminou mais de cem anos depois. O último cachalote foi caçado nas águas dos Açores há 30 anos. Ao longo de dois anos, um realizador açoriano e um investigador lisboeta viajaram por todo o arquipélago para ouvir e gravar as histórias dos baleeiros que ainda restam. (...)

Nos Açores, à procura de homens que são máquinas do tempo
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2017-07-24 | Jornal Público
SUMÁRIO: Começou no século XIX e só terminou mais de cem anos depois. O último cachalote foi caçado nas águas dos Açores há 30 anos. Ao longo de dois anos, um realizador açoriano e um investigador lisboeta viajaram por todo o arquipélago para ouvir e gravar as histórias dos baleeiros que ainda restam.
TEXTO: O bananal fica à sombra de uma arriba, na fajã larga de Santa Cruz das Ribeiras, no Sul da ilha do Pico. Nas bananeiras, os novos cachos vão começando a rebentar. A esses rebentos dá-se o nome de “netos”, explica-nos Luís Bicudo. Pode parecer um preâmbulo estranho para iniciar uma história sobre uma actividade que terminou nos Açores há três décadas — a baleação — e sobre como duas pessoas quiseram resgatar do esquecimento a memória dos seus protagonistas. Mas os netos que brotam destas bananeiras têm tudo a ver com um dos fios desta meada. Quando estava no último ano do curso de Cinema, Luís realizou a curta-metragem A Banana do Pico, que o próprio resume como “uma desculpa” para falar sobre os avós. O bananal, o tal que fica à sombra da arriba, pertence-lhes e Luís vai ajudando a tomar conta do terreno. “Olho muito para os meus avós como máquinas do tempo. Quando falo com eles, ou com pessoas da idade deles, o que sinto é que estou a falar com homens de outro planeta. ” O fascínio não se explica, portanto, é de outro tempo e quase extraterrestre. Com este encantamento, enriquecido pelas recordações da baleação que ia arrancando do avô, antigo baleeiro, iniciou em 2010 um novo projecto, a longa-metragem Baleias e Baleeiros, que concluiu três anos depois. Queria registar o contraste entre passado e presente que lhe saltava à vista, quando escutava as histórias contadas pelos baleeiros ainda vivos e quando olhava para as regatas de botes baleeiros que mobilizavam uma nova geração. O processo não era apenas pessoal, era também o de um arquipélago a acordar para a baleação açoriana após alguns anos de esquecimento. Com o fim da actividade, na década de 1980, o património baleeiro correu o risco de ser tragado pelo tempo e só com o aproximar de um novo século, no final dos anos 1990, se iniciou um movimento de valorização e recuperação deste legado. A herança material, na qual cabem os botes usados na caça, mas também as fábricas onde se processavam os produtos extraídos dos cachalotes, e mais tarde a herança imaterial. Foi sobretudo esse imaginário intangível que cativou Luís. “Foi uma espécie de ciclo vicioso. ” Filmou novamente os avós. Passou para outras pessoas da mesma geração na freguesia. Mais tarde, alargou as filmagens para mais aldeias, tanto no Pico como no Faial. “Queria ouvir mais e mais. Percebi que já não estava a filmar só para fazer o filme, estava também a trabalhar numa recolha que ia muito para além dele. A certa altura tive mesmo de parar. Mas foi difícil. ” Ao mesmo tempo, mas em Lisboa, Francisco Henriques encontrava neste filme uma outra forma de olhar para a baleação. “O Luís estava a dar voz aos baleeiros”, precisa o investigador em História Contemporânea e aluno de doutoramento do Instituto de Ciências Sociais de 30 anos. Para Francisco — que tinha chegado à baleação, como muitos outros, através do livro Moby Dick de Herman Melville e que aprofundou esse caminho nos anos que passou nos Açores — o filme funcionou também como a confirmação de algo que já remoía na sua cabeça. Num seminário, em que apresentou o seu trabalho de mestrado sobre a formação da indústria baleeira, a orientadora perguntou-lhe: “E então os baleeiros?” A dúvida encontrou um eco. “Isso tinha sido uma inquietação. Os documentos com que tinha trabalhado diziam muito pouco sobre o impacto social que a baleação tinha na comunidade. ” Dois anos depois iniciava com Luís um projecto de recolha de memória oral da baleação, que os levou às nove ilhas para filmar os depoimentos de dezenas de antigos profissionais. O tempo continuava a passar, explica Francisco. “Há uma espécie de canto do cisne, estes homens estão a desaparecer”. No Pico, os dias prolongam-se na justa medida do necessário. Vinte e quatro horas servem para tudo, incluindo viajar no tempo. Na maior parte das vezes, o dia começa cedo para Luís e Francisco — com uma entrevista combinada, semicombinada ou ainda por combinar. Entram no carro, avançam uns quilómetros até à freguesia mais próxima. Perguntam por um baleeiro, recebem outras indicações e avançam numa nova direcção. Porta a porta, vão encontrando aquilo que procuram. Noutros dias os planos não correm bem: nenhum baleeiro lhes aparece no caminho, os que aparecem preferem não falar. Este dia de Setembro de 2016 está a ser um destes. No entanto, precisamente quando o sol já começa a descer e a entornar sobre a água uma luz que a torna opaca, parecem reconhecer ao longe um dos baleeiros que procuravam. Porte maciço, braços longos, mãos robustas. “Vê-se logo que é um baleeiro”, comentam. É verdade, encontraram mais um. Joaquim Quaresma acaba de sair do mar, na Ribeira do Meio, perto da vila das Lajes. Ao fundo a silhueta da chaminé da antiga fábrica da baleia. Logo ao lado a rampa pela qual os cachalotes eram erguidos para terra. As gotas de água ainda escorrem pelas costas largas deste homem de 74 anos, quando Luís e Francisco se aproximam dele, numa abordagem suave, quase tímida, mas que na verdade esconde um respeito imenso. “Falaram-nos de si. Andou à baleia, não é verdade?” A conversa prossegue como muitas outras que já foram tendo sempre que se aproximam de um baleeiro. Conseguimos adivinhar as respostas. “Agora já restam poucos. ” “Não vão encontrar muitos. ” “Esse já morreu. ” “Agora já há pouca gente. ” “É a vida. ” A conversa fica combinada para o dia seguinte, na casa da cunhada de Joaquim, a uns cinco minutos dali. Por esta altura, Francisco e Luís já têm dificuldade em enumerar rapidamente quantos baleeiros entrevistaram nos últimos dois anos. O trabalho começou em 2015, depois de receberem um apoio financeiro da Direcção Regional de Cultura do governo açoriano. Numa primeira fase percorreram em duas semanas as ilhas do Faial, Flores, Corvo, São Jorge e o Norte da ilha do Pico. No início de 2016 estiveram na Terceira, Graciosa, São Miguel e Santa Maria. No total entrevistaram cerca de 70 pessoas, sobretudo baleeiros, mas também, em alguns casos, mulheres de baleeiros e vigias da baleia. Na última fase, que decorreu em Setembro do ano passado, passaram duas semanas no Sul do Pico para finalizar esta recolha. “Quando chegámos aqui, há uma semana e meia, eu e o Francisco ainda vínhamos com a ideia de tentar repetir algumas dessas entrevistas que fiz há seis anos [para o documentário]. Repetimos algumas e foi difícil”, desabafa Luís. Em primeiro lugar, foi-lhe difícil reconhecer os efeitos que a passagem de um tempo tão breve teve nestas pessoas. À sua frente encontrou fragilidade, quando anteriormente tinha presenciado energia e longevidade. Preferiram concentrar-se em novos testemunhos. “Neste momento o projecto é a construção de um arquivo de memórias, o arquivo possível”, reconhece Luís. “Se calhar é um bocadinho perverso dizer isso, mas o tempo colocou um processo de selecção natural neste trabalho. Já só vamos encontrar e arquivar as memórias dos baleeiros que estão vivos. ”Em Julho de 1982, quando João Carlos Lopes e Miguel Vale de Almeida chegaram ao porto da Horta, na ilha do Faial, ainda encontraram baleeiros no activo. Mas poucos. Dessa ilha — a única com uma armação em funcionamento na época — João Carlos recorda cerca de 20 ou 25 baleeiros e o mais novo já teria 35 anos. Nesse ano a Comissão Baleeira Internacional anunciou a suspensão da caça de todas as espécies de baleias com início a partir de 1985 e 1986 — em dois séculos, a população de cachalotes tinha sofrido uma quebra de aproximadamente um milhão. “Era agarrar naquilo ou nunca mais ver a caça à baleia nos Açores”, explica João Carlos, actualmente técnico superior autárquico e investigador local, e que em 2009 editou em livro o resultado desta pesquisa. Os dois finalistas de Antropologia tinham a oportunidade de “assistir ao vivo ao último acto de uma epopeia”. João Carlos não é o único a usar a palavra epopeia para falar desta actividade nos Açores. Os ingredientes estão lá, elevando uma história de superação, sobrevivência e de aparente impossibilidade que se iniciou na monarquia, passou pela I República e pelo Estado Novo e apenas terminou quando a democracia portuguesa dava os primeiros passos. A história começa no século XVIII. Foi por esta altura que os míticos navios baleeiros norte-americanos começaram, ao parar nos Açores, a incorporar nas suas tripulações elementos açorianos. Começou assim também a diáspora açoriana, o primeiro de muitos episódios ao longo da História. Foram alguns destes homens que estiveram na origem das primeiras comunidades portuguesas na costa leste dos Estados Unidos. Foram alguns deles que, a partir de 1850, e após aprenderem as técnicas da actividade, regressaram às suas ilhas e formaram as primeiras armações baleeiras nos Açores. Essa herança ficou no próprio vocabulário: aparelhar o bote, “to rig” em inglês, ficou “rigar” para os baleeiros açorianos que, durante décadas, extraíram o óleo da baleia em “traiois”, outra corruptela do inglês, desta vez da palavra “try-outs”. “Era uma história grande e longínqua, que tinha mobilizado gerações de baleeiros”, explica João Carlos. “Nós iamos assistir ao último acto dessa grande história que estava prestes a fechar os panos. ” Durante quase dois meses partilharam os espaços e o tempo com os baleeiros da Horta. Dormiram numa escola primária a poucos minutos do Bairro das Angústias, onde viviam praticamente todos os baleeiros. João Carlos, em entrevista por telefone ao PÚBLICO, regressa a esses dias com uma memória vívida, fotográfica. “Estou a rever o rosto daquelas pessoas e pareciam-me já homens muito marcados pela vida difícil, mas não encaravam o trabalho como nada de transcendental, era mais um trabalho, como o dos pescadores. ”Imagine um pequeno bote, com sete homens lá dentro, um homem de pé com uma lança na mão a fazer a aproximação a um bicho do tamanho de um autocarro“Nessa altura, o heroísmo não estava em cima da mesa” — Miguel Vale de Almeida não tem dúvidas acerca disto. De facto, reteve da altura duas dimensões de percepção através das quais os baleeiros se encaravam. Com a lupa do “sacrifício e da dureza da actividade”, por um lado, e pela “ambiguidade da relação com o cachalote”, por outro. “Com reminiscências do que se pode encontrar, por exemplo, no toureio — o respeito pelo animal, a tristeza pela sua morte”, define o antropólogo e professor universitário. Em 1982 ainda conseguiram assistir às caçadas à baleia e foram precisamente esses momentos aqueles que melhor se fixaram na memória de ambos. “Imagine um pequeno bote, com sete homens lá dentro, um homem de pé com uma lança na mão a fazer a aproximação a um bicho do tamanho de um autocarro. E tudo aquilo dependente de um balançar de cauda que pode deitar tudo abaixo. ” João Carlos é o primeiro a reconhecer que aquilo que guardou na sua memória é quase irreal, próximo de um filme de acção. “O que é muito impressionante”, conclui João Carlos, “é a quantidade de mar vermelho. Parece que olhamos para o mar e só vemos vermelho. Os ecologistas não achariam muita graça a esta riqueza tradicional dos Açores mas não víamos os baleeiros como assassinos ou pessoas que faziam algo de reprovável. ” Para ele eram “seguidores, os elos de uma cadeia” de uma história maior. “Eles utilizavam muito uma palavra que nós tínhamos de desvendar. Não se podia ver na percepção mais literal”, recorda João Carlos Lopes. Essa palavra era “vício”. Aqueles homens sabiam que iriam ser os últimos. O seu arquipélago vivia um momento de mudança económica e social e os jovens procuravam olhar mais além, para outras possibilidades distantes do quotidiano duro e de sacrifício que associavam aos seus ancestrais. “O que eles chamavam de ‘vício’ era essa dificuldade de encarar o fim de uma coisa que tinha marcado gerações. Era uma prática, uma ritualização de uma actividade que fazia parte da identidade deles, dos pais, dos avós. Nós sabíamos que não era vício. Era agarrar-se simbolicamente a uma coisa que tinha sido demasiado importante para aquelas comunidades. ”“O trabalho mais perigoso que o homem tem é a baleia. Não há nenhum mais perigoso, no mar, na vida marítima — porque aquilo é um animal que tem munta força. Só o ar daquilo! E sempre aparece aqui algua que se defende. ” Manuel Silveira Carvão, baleeiro da ilha do Pico, em discurso directo. “Eu andei uns poucos anos de trancador e nunca baleia nenhua me quebrou o bote, nã senhor. Porquê? É porque eu nunca mandava o bote por cima delas. Mandava o bote sempre cma daqui bem a essa parede, ou mais longe. O mais perto era cma daqui a essa parede. Tinha lugar quanto quisesse pra trancar à vontade. Elas às vezes vêm c’o rabo mas nunca partiu. ”O testemunho não faz parte do Arquivo de Memórias da Baleação que Luís e Francisco andaram a reunir. Na verdade, são palavras com mais de 30 anos, recolhidas pelo escritor açoriano José Dias de Melo na década de 1980, quando percorreu a sua ilha, o Pico, para falar com os conterrâneos. O “Mestre Carvão”, como era conhecido, tinha 74 anos e a baleação açoriana continuava, ainda que já nos seus anos de estertor. Nessa recolha, um dos mestres baleeiros comenta mesmo que “havia mais embarcações do que pessoas para arrear nelas”. A recolha de Dias de Melo foi publicada numa série de sete volumes sob o título Na Memória das Gentes e é ainda hoje um retrato à flor da pele de uma ilha, das suas tradições e simultaneamente da sua multiplicidade — o escritor optou por passar para o papel os testemunhos de forma oralizada sem os passar por um qualquer filtro de uma ortografia mais ortodoxa. A acumulação de depoimentos e histórias acaba por adensar o retrato do tecido social da ilha. O escritor, cuja restante obra (romances, contos, recolhas etnográficas) também se deixou dominar pela ilha negra em que nasceu, é uma referência assumida para o trabalho de Francisco e Luís. Não é por acaso que o documentário de Luís tem como subtítulo Para que a Memória Permaneça na Gente. “O Dias de Melo conseguiu perceber na baleação características únicas, de comunhão entre a comunidade à volta de uma actividade, para mais sendo uma actividade que já não se realizava com estas técnicas em lugar nenhum do mundo”, explica Luís. Esta mesma singularidade foi o motivo para que muitos outros, maioritariamente estrangeiros, tivessem vindo aos Açores, sobretudo às ilhas do Faial e do Pico, testemunhar a caça à baleia — aquilo que o biólogo marinho britânico Robert Clarke chamou de “indústria-relíquia”, dado o convívio do uso de técnicas ancestrais com o aproveitamento industrial dos cachalotes capturados. Clarke foi o autor do primeiro estudo de relevo publicado sobre a baleação açoriana, em 1954. No seu Open Boat Whaling in Azores (ou Baleação em Botes de Boca Aberta nos Mares dos Açores, em português), resultado das dez semanas que passou em 1949 nas nove ilhas dos Açores, Clarke faz um relatório exaustivo sobre a baleação açoriana, enumerando o número e tipo de embarcações, passando ainda pelo número de cachalotes capturados ou mesmo pelo tipo de arpões utilizados. A baleação açoriana chegou a cativar um príncipe italiano. Em 1956 Mario Ruspoli passou dois meses na casa dos faroleiros nos Capelinhos, ilha do Faial — um ano antes da erupção do vulcão. Para isso conseguiu um empréstimo de dois milhões de francos do famoso armador Aristóteles Onassis (ele próprio envolvido na baleação, ainda que de uma forma industrial diametralmente oposta ao que se passava nos Açores). Na sua mira estavam aqueles que considerava os últimos baleeiros do tempo de Moby Dick. O Verão que Ruspoli passou no Faial ficou eternizado no documentário Les Hommes de la baleine, de 25 minutos e filmado a cores, com porções ponderadas de realismo e lirismo. Por ele passa a faina baleeira mas também a tradição musical representada pelos bailes das chamarritas e o ambiente da comunidade, conduzindo o espectador para um desfecho quase de anticlímax, rumo à “maior morte do mundo” — a expressão usada pelo narrador para descrever a morte do cachalote, mesmo no final do filme. Os exemplos sucedem-se, constantemente atraídos por essa ameaça de extinção que se abatia sobre a baleação açoriana. Seja Barbed Water, de Adrian J. Wensley-Walker, filmado em 1969, ou The Last Whalers, curta-metragem documental que William Neufeld filmou no Pico, ou ainda Os Últimos Baleeiros, documentário realizado para a RTP e estreado já no final dos anos 1980. Ou mesmo o caso da norte-americana Gemina Garland-Lewis, que passou alguns períodos de tempo entre 2008 e 2012 a recolher, para a National Geographic, os depoimentos dos baleeiros ainda vivos nas ilhas do triângulo (Faial, Pico e São Jorge). O Arquivo de Memórias da Baleação de Luís e Francisco acrescenta uma componente audiovisual sem precedentes. Cada testemunho foi captado individualmente e é apresentado sem edição - num registo que mantém as hesitações e a linguagem corporal, aquilo que fica por revelar num suporte escrito ou fotográfico - com vista à criação de um arquivo consultável num futuro próximo. Para além disso, pela primeira vez reúnem a memória oral de todas as ilhas do arquipélago. “Tem sido interessante fazer este trabalho com este distanciamento. A maior parte são pessoas idosas, com mais de 70 e 75 anos. Se as entrevistas tivessem sido nos anos 1990, o registo seria completamente diferente. Poderia ser mais azedo, de ruptura traumática. Aqui há um distanciamento que marca esse registo”, explica Francisco. Joaquim Quaresma aguarda junto à estrada, como combinado. Com um sorriso. Reage ao atraso com um “it’s okay” arrastado, de quem sabe que o tempo sobra e que em simultâneo denuncia as décadas de vivência no Canadá. Está de regresso ao Pico para as suas férias habituais, a ilha onde cresceu e viveu até conseguir sair. “Os meus filhos e os meus netos não sabem o que é uma baleia. Não sabem se é apanhada com anzol ou com arpão. . . ” É assim que retoma a conversa do dia anterior. Joaquim nasceu num tempo em que nenhum rapaz da ilha podia fugir da aspiração de ser baleeiro. “Não havia Lady Gaga ou Spice Girls, os baleeiros eram os heróis”, vai dizer-nos Luís Bicudo uns dias mais tarde. O pai de Joaquim foi baleeiro toda a vida. Andou por quase todas as ilhas dos Açores. “Só não esteve em Santa Maria e no Corvo. E não foi só o meu pai, foram muitos. . . ”, conta. A baleação foi, para além de um elo de ligação entre a ilha e o mundo, uma actividade que fez mexer o arquipélago. Enquanto fala, revelam-se dois Joaquims. Aquele que fala do presente de forma vivaz e aquele que recorda o passado com uma contenção pungente. No primeiro, o inglês atropela o discurso, como quando fala dos “buses” que a filha conduz no Canadá. No segundo, as memórias em português são muitas vezes cruzadas por uma pausa para engolir em seco. Pela comoção. “Saí da escola com 13 anos, tirei a licença aos 14. Fui para a baleia aos 15. Era uma criança ao pé deles, uns homens de 50 ou 60 anos para cima. ” O respeito imperava dentro do bote. Era “senhor acima, senhor abaixo, senta-te mais aqui, senta-te mais ali”. Joaquim fazia o que o mandavam fazer. “Até ir abrindo os olhos. ” E fica em silêncio, ensimesmado. Os meus filhos e os meus netos não sabem o que é uma baleia. Não sabem se é apanhada com anzol ou com arpão. . . ”Ainda consegue recordar o odor fétido que tomava conta do ar e os obrigava a fechar as janelas de casa durante uns dias, enquanto ao lado, na fábrica, se processavam os cachalotes. Quando as condições do tempo não permitiam, era por ali que ficava. Caso contrário, e sempre que o foguete soava, convocando os baleeiros para mais uma caçada, Joaquim “largava tudo, nem levava o caminho certo, até saltava muros”. No Verão trabalhava na pesca do atum, praticamente em simultâneo com a baleação. Quando havia saída à baleia e ele não podia, o pai, na altura já com mais de 50 anos, ia na sua vez. “Sempre recebia mais uns trocos”, resume. Mal houve uma oportunidade, saiu dos Açores. Emigrou para o Canadá em 1972, com 30 anos. “Sempre tive a ideia de tirar a carta de trancador, mas vi que não era vida para mim. A pesca da baleia é pesca de pobre”, resume Joaquim. “Graças a Deus a minha vida correu bem lá fora, no estrangeiro. A minha vida foi a fazer barcos. Não sou rico, mas tenho saúde. Criei dois filhos, tenho o meu backyard. ” O futuro não estava na baleação. Sem nos apercebermos, regressa o Joaquim recolhido nas suas próprias memórias. “É a vida que passou. A vida que passou, amigo. ”Um grupo de turistas alemães está siderado a olhar para um expositor do Museu dos Baleeiros. Em destaque, um arpão de ferro, retorcido, testemunha perene do temível poder do cachalote. Manuel da Costa Júnior cumprimenta-os com regozijo, recebe-os como hóspedes de casa. Filho de baleeiros, é o director do Museu do Pico — estrutura da qual fazem parte o Museu dos Baleeiros, nas Lajes, mas também o Museu da Indústria Baleeira, em São Roque — desde 2000. É uma figura carismática na ilha. Seguimo-lo até ao principal espaço do museu. No centro, o elegante Santa Teresinha, um dos primeiríssimos botes baleeiros dos Açores. “A baleação tem um lado romântico muito interessante, porque acabámos a caçar baleias como os bascos o faziam nos séculos VIII, IX e X. Com um bote muito semelhante, arpão e lança. ” O bote posicionado no centro da sala impressiona, mais ainda se pensarmos que os seus dez metros de comprimento empalidecem, quando comparados com a dimensão de um cachalote. Um macho pode chegar aos 18 metros de comprimentos e pesar 50 toneladas. “Isso cria um certo fascínio”, explica o director do museu. A preservação do património baleeiro tem estado em cima da mesa para o governo regional açoriano, pelo menos desde 1998. Foi por essa altura que foram introduzidas as primeiras políticas governamentais para esta área. Corria-se então o risco de perder o património baleeiro móvel — os botes e as lanchas de reboque, embarcações a motor introduzidas em algumas ilhas a partir dos anos 1930 —, explica em entrevista por email Nuno Ribeiro Lopes, director regional da Cultura dos Açores. Dois anos depois, um novo decreto fixava a regulamentação dos apoios àquele património. Manuel da Costa Júnior acompanhou de perto esse processo. Através do museu — instalado há décadas em três antigas casas dos botes — mas também à sua volta. Os botes foram recuperados, ganharam nova vida com as regatas, outras casas dos botes fugiram à decadência que lhes parecia destinada. O enquadramento legal acabou por ser central num processo de construção de uma identidade açoriana. “Não é por acaso que a região encontrou para a sua imagem identitária um cachalote a mergulhar no oceano. É a imagem dos Açores, que é colocada nos aviões, em tudo o que é revista. . . ”, refere o director do Museu do Pico. Nos anos 1980, quando esteve no Faial, João Carlos Lopes já conseguia antever essa direcção. “Em confronto com o resto da realidade açoriana, mais prosaica, a baleação é uma coisa singular, rara, marcante, com toda essa força que permite reconstituir uma identidade ou construí-la mesmo ou sonhar uma identidade que vá para além do que ela foi. Não seria criar vacas ou plantar ananases em São Miguel”, defende. O director regional da Cultura dos Açores reconhece que este “tem sido um processo complexo e intenso”. “[Esta apropriação do mar] como elemento essencial do imaginário iconográfico e mitográfico [é] a nossa razão de ser. ”Um cachalote a mergulhar no oceano é a imagem dos Açores, que é colocada nos aviões, em tudo o que é revista. . . ”Essa espécie de renascença baleeira consolidou-se também na dotação orçamental do governo regional destinada a esta área. O projecto Baleiaçor, executado entre 2008 e 2010, contou com um orçamento de 450 mil euros (dos quais 382. 925 euros provenientes do Fundo Comunitário EEA Grants (Noruega, Islândia e Liechtenstein). Visou a recuperação de dez botes baleeiros e de uma lancha de reboque, o apoio à realização de regatas de botes baleeiros (já consideradas património baleeiro regional) e o levantamento de documentação. Segundo o director regional da Cultura, o projecto permitiu uma reformulação e reinvenção do património baleeiro, “colocando-se ao serviço das populações e do fortalecimento da sua identidade cultural”. Em 2014, por exemplo, o apoio regional anual para esta área ultrapassou os 100 mil euros. Nos últimos anos, e de acordo com dados fornecidos pela Direcção Regional de Cultura, o montante total de apoio fixou-se acima dos 150 mil euros anuais. Só este ano foram financiados 23 projectos, num total de 166. 405, 23 euros. Francisco Henriques compreende que “num contexto democrático e de autonomia, para compensar as diferenças locais entre ilhas, se tente valorizar um denominador comum que seja apelativo e que seja símbolo de transição da tradição para a modernidade”. A transição entre a baleação e as várias empresas turísticas de observação de cetáceos que existem pelo arquipélago é um testemunho claro desse processo. “Mas, quando ouvimos os baleeiros, percebemos que a narrativa é mais complexa”, defende Francisco. “Parece-me que os baleeiros terão sido o parente pobre nesse processo, que a experiência individual poderá ter sido considerada algo irrelevante na construção desses discursos que pretendiam criar uma narrativa que una as pessoas à volta da identidade regional da baleação. ”“A memória não é uma realidade, é uma construção”, argumenta o director do Museu do Pico. “Passados estes anos, quando falamos de uma actividade, falamos da sua memória e nessa perspectiva há ilhas que não se apropriaram dessa memória como outras. Há ilhas que corporizam e centralizam essa identidade ou identidades da cultura baleeira insular. ”É aqui que entra o projecto de recolha da memória oral feito por Francisco e Luís. Francisco adverte: “Não estamos a fazer isso para descobrir novos enigmas. Este projecto é feito clara e confessadamente com uma intenção de influenciar as políticas de património baleeiro. ” É o próprio Francisco a assumir que gostava que esta perspectiva tivesse uma expressão no museu, indo ao encontro daquilo que o director regional da Cultura sugere, quando nos fala da “actualização da museografia dos museus dos baleeiros e da indústria baleeira, em curso neste momento, que dotará estas unidades da visão regional, que agora lhes falta”. A investigação sobre a baleação açoriana não é recente nem escassa. Sabe-se que existiram armações, que havia turnos longos nas fábricas. Os rostos dos baleeiros estão presentes em alguns espaços museológicos. No Museu dos Baleeiros há até uma parede repleta de retratos destes homens. Francisco e Luís querem dar a oportunidade de eles se explicarem, de descreverem a sua vida. “Os baleeiros não reclamaram para si esta construção da memória; agora nós achamos que isso é relevante, até porque a comunicação que pode ser feita dessa experiência dando-lhes a voz, mesmo a um nível quase cénico e de descrição pormenorizada das técnicas, os baleeiros fazem-no na perfeição. São os melhores artistas, nesse sentido. ” Por agora, o olhar dos baleeiros continua a seguir-nos pelo museu a partir das molduras, em surdina. Luís Bicudo tinha-nos avisado. Quando era mais novo, tinha de ser ele a puxar pelo avô quando queria ouvi-lo falar sobre a baleação. Francisco da Silva parece agastado por ter de contar estas histórias mais uma vez, mas acede, e com um fôlego intemporal muito particular. Ouvimo-lo dizer “naquele tempo não havia outra coisa. Era o mar, era a terra e era a baleia” e quase que conseguimos imaginar um livro a iniciar-se à nossa frente. Podia ser “Chamem-me Ismael”, o arranque de Moby Dick. Encontramo-lo no final de Setembro do ano passado em Santa Cruz das Ribeiras, no Sul do Pico. Tanto o avô como a avó de Luís estão de passagem pela aldeia. Mudaram-se para o Faial nos anos 1970 e hoje em dia, ultrapassados os 90 anos, passam a maior parte do tempo junto dos filhos do outro lado do canal. Na casa pequena e pontuada por fotografias de família, Luís trata os avós com um cuidado ostensivamente carinhoso, o de quem sabe estar a lidar com relíquias. Ao avô parece que já fez todas as perguntas e que sabe todas aquelas histórias de cor, mas continua a segui-lo atentamente com o olhar. Pede-lhe para contar uma história em particular. Aquela em que o avô, Francisco da Silva, falhou a saída ao mar por estar “pregado no sono”. Para sua sorte, o vigia perdeu a baleia depois de esta mergulhar e só à tarde, quando já estava bem acordado e conseguiu ir no bote, é que a apanharam. “A baleia estava à espera do avô”, sussurra-lhe Luís. No pátio da casa, o antigo baleeiro vai sacudindo memórias. Começou aos 15 ou 16 anos. Não consegue dizer exactamente. O seu pai também era baleeiro, um trancador, o homem responsável por arpoar o cachalote. Um dia, o pai lançou o arpão, mas a baleia atirou-o pelo ar e teve de ser levado para o Hospital no Faial. Depois disso, pediu ao mestre do bote para procurar um substituto. O próprio Francisco também foi apanhado de surpresa algumas vezes durante a caça à baleia. Lembra-se de uma em particular. A baleia estava praticamente moribunda, mas uma distracção pôs em perigo os baleeiros. “Ela veio do fundo para cima, deu uma marrada no fundo do bote e meteu uma tábua para dentro. ” Valeram-lhes as grossas camisolas de lã de ovelha que levavam na altura. Taparam o buraco com as camisas e a lancha arrastou-os juntamente com o bote para terra. “Hoje em dia os novos não acreditam”, garante Francisco. Não será o único antigo baleeiro a largar um desabafo semelhante. Praticamente durante todo o seu período activo, a baleação foi uma actividade subsidiária. A vida nas comunidades desenrolava-se de forma orgânica, muitas vezes num formato de auto-sustentabilidade. A baleação representava portanto um suplemento orçamental para as famílias. No final de uma temporada, quando os produtos extraídos dos cachalotes eram vendidos no mercado internacional, os baleeiros recebiam a sua parte, a soldada. “Havia aqui três ou quatro lojas, eu tinha uma caderneta e o dono tinha outra. A gente comprava fiado e, quando a gente recebia o dinheiro, ia pagar. ” Comprava-se farinha, açúcar, café, um pequeno electrodoméstico, tudo aquilo que a terra e o mar não podiam providenciar. No caso da baleação açoriana não faria sentido recorrer aos grandes navios-fábrica com que os norte-americanos, entre outros, baleavam. As próprias ilhas, suspensas no meio do Atlântico Norte e em pleno habitat e rotas migratórias dos cetáceos, faziam as vezes dessas embarcações. Este facto não é um pormenor. Esta baleação costeira implicava, desde logo, um envolvimento maior da comunidade. Luís toma a palavra. “Toda a gente era baleeiro. Quando o foguete rebentava na vigia, a vida em terra parava e as pessoas — que estavam na construção, a lavrar a terra, na pesca artesanal — paravam para ir apanhar baleias. Se os homens paravam o que estavam a fazer, alguém tinha de ficar atrás a tomar conta do que eles estavam a fazer. A avó costuma contar-lhe que os homens corriam em direcção ao porto e que as mulheres corriam também, seguindo-os. Elas sabiam que eles não estavam preparados, faltava-lhes roupa e comida para ter no mar. Francisco da Silva resume: “Quando a gente saía de casa para a baleia, a gente era como ir para a guerra. Não sabia se iam voltar para trás, porque naquela altura morria muita gente. ”Ela veio do fundo para cima, deu uma marrada no fundo do bote e meteu uma tábua para dentro"Lembra-se desses dias de alvoroço, sobretudo do ambiente de uma época em que em Santa Cruz das Ribeiras havia três companhias, em que a aldeia vibrava, quando em cada casa viviam quatro ou cinco pessoas. “E todos viviam, trabalhavam as suas terras, iam ao mar. Faziam-se festas bonitas aqui nas Ribeiras”, assegura. “Era uma actividade que criava realmente um imaginário em toda a comunidade”, acrescenta Luís. Os nomes dos antigos baleeiros escorrem pelas bocas de ambos com facilidade. Os apelidos, as alcunhas. Há algum peso romanesco por estes lados. Encontramo-lo gravado na pedra. Não directamente no basalto que domina a ilha, essa rocha impermeável e sombria, rija, mas que se quebra em biscoitos, que arquiva a história milenar dos que a pisaram. Na marina da vila das Lajes do Pico, uma estrutura em forma de pórtico em mármore branco contrasta visualmente com o cenário da terra e do mar. É o monumento ao baleeiro, assinado por Pedro Cabrita Reis. Nele se inscreveram os nomes de baleeiros, de vigias, de construtores de botes, de quem fez da actividade a sua vida durante décadas. “Está ali o nome do meu bisavô, o pai da minha avó. ” Luís aponta para o nome Artur Silveira, mais conhecido por “Artur Faidoca”. A origem da alcunha perde-se no tempo. Imediatamente acima há mais um Faidoca e um pouco por todo o monumento vão-se formando pequeno núcleos. É a conceito de linhagem a fazer-se notar, os nomes a ecoar com um significado maior do que à primeira vista lhe daríamos, como se pertencessem a uma mitologia perdida. “O que eu sinto é que as pessoas não dependiam da baleação, mas era uma actividade que só era possível com estas pessoas. Era dura e as pessoas estavam habituadas a uma vida dura”, explica Luís. A actividade contava com o conhecimento empírico destes homens, que à sua maneira tinham de perceber de mares, de meteorologia, quase até de biologia. “Quando ando hoje nos botes, percebo que as gentes de hoje não podiam andar à baleia, levam montes de tempo a fazer uma coisa. [Na altura] a vela e o mastro tinham de vir para baixo imediatamente, era preciso pôr o remo de esparrela e era preciso ter atenção à linha que estava a correr, enquanto tudo isto acontecia. Até era preciso molhá-la, porque era tal a velocidade que ela passava aqui a fumegar [depois de o cachalote ser arpoado]. ”Quase que ouvimos a voz do avô de Luís, a dizer-nos sem qualquer vestígio de azedume: “Hoje em dia os novos não acreditam. São criados de outra maneira. Era uma vida triste, mas não havia outra vida. ”A alguns quilómetros dali, na freguesia de São Mateus, uma casa parece ter sido rebocada há pouco tempo. Algumas marcas de cimento destoam da brancura das outras paredes exteriores. As janelas estão fechadas, tal como a porta. A rede que se agita à entrada é o único sinal de vida. É a casa de José Silvino, o homem que ficou na boca do cachalote e sobreviveu. A história corre. Há quem a conte de forma mais detalhada, há quem a recorde com uma névoa de onde apenas se distinguem os principais momentos. O próprio já não pode esclarecer os contornos reais do acidente. Está debilitado e mudou-se para a casa de uma sobrinha. Um sobrinho resume o episódio de forma directa. “Levou 55 pontos. Mas, pronto, salvou-se. ” Manuel Bettencourt, um outro sobrinho que baleou apenas durante dois breves períodos nos anos 1979 e 80, recorda a história com os pormenores aventurosos de uma lenda. “É um caso inédito”, inaugura o relato. “Na altura ele era o arpoador do cunhado, que já era oficial. Trancou a baleia e não houve problema nenhum”, continua em suspenso, antes de desembrulhar de uma vez só os pormenores do acidente. O cachalote irrompeu debaixo do bote, de boca ainda aberta e pegou em José Silvino, que ficou preso nos dentes enquanto a baleia submergia ligeiramente à tona da água. Só quando o animal mergulhou um pouco mais e abriu a boca é que o baleeiro se soltou. “Teve uma sorte impecável”, conclui Manuel, enquanto aponta para a sua barriga a explicar a dimensão das costuras com que José Silvino ficou, como marcas de um episódio inacreditável. “Há a construção individual e também há a construção social”, diz Francisco Henriques. “Não temos uma postura demasiado rígida quanto à fiabilidade. Às vezes ouvimos histórias que poderão não parecer inteiramente reais — até podem sê-lo, mas não as conseguimos imaginar precisamente por ser uma actividade que já não existe. Mas há sempre algum tipo de informação factual que podemos cruzar com outras informações. ” “Mesmo dentro dessas narrativas criadas estão vários detalhes da vida social que vamos apreendendo e que consideramos muito importantes”, conclui. Atrás da casa de Luís Bicudo impõe-se uma encosta que ocupa o horizonte. Uma escarpa verde que perdemos de vista, cortada por uma neblina familiar na ilha. “O mundo está diferente, as pessoas têm mil interesses à sua disposição”, desabafa. “Há 50 anos uma pessoa estava aqui. . . ” e dirige o seu olhar para a tal encosta. “Ainda há bocado o meu padrinho falou de ter nascido aqui e pensar que atrás daquela colina era a América. Nunca tinha saído daqui, e agora vive na América. Se calhar o mundo era mais pequeno. ”Luís procurava uma explicação para aquilo que define como um desinteresse pela história desta actividade que terminou há exactamente três décadas no arquipélago. Há investigação sobre o tema, há investimento regional, as regatas mobilizam anualmente a comunidade, incluindo os jovens. Mas Luís sente que esse interesse não se traduz para outros domínios — como os baleeiros. É também por isso que nestas dezenas e dezenas de entrevistas Francisco e Luís optaram por uma abordagem simples. A câmara de vídeo acaba por ser o único intruso entre eles e os baleeiros. “Deixamo-los falar muito”, conta Francisco. As conversas tomam o rumo que as memórias dos baleeiros sugerirem, ainda que haja alguns pilares essenciais, como o conhecimento empírico, a economia familiar e da comunidade, a religião. “Embora o nosso objectivo seja constituir um arquivo que possa ser trabalhado por outras pessoas, claro que temos uma empatia enorme, um fascínio. E muitas vezes também nos comovemos com os registos que ouvimos”, revela Francisco. “A verdade é que há registos múltiplos e é difícil ter só uma linha de interpretação sobre isso. O importante não é tanto a síntese, mas a recolha. ” Francisco confessa mesmo que é (ainda) difícil fazer uma síntese. “Cada baleeiro tem uma história para contar e tem uma história própria. E é essa diversidade que é rica e que deve estar disponível. ”Este projecto é uma luta contra a perda de memória?, perguntamos a Luís Bicudo. “Sim, contra a perda de memórias, contra a perda da identidade. ” Depois de uma longa--metragem e deste arquivo de memórias da baleação, Luís já aprendeu a refrear a sua emoção sobre o assunto. A passagem do tempo trouxe-lhe uma serenidade que lhe permite dizer coisas como: “O rumo natural das coisas é que as pessoas morram, não é?” Ou: “Vai chegar o dia, e eu provavelmente vou assistir, em que já não resta nenhuma pessoa viva que tenha estado ligada à baleação nos Açores. ”O bananal da família de Luís Bicudo é também um dos sinais do tempo que passa. No tempo dos bisavós não se plantavam bananas naquele terreno, nem nos circundantes. O solo servia para plantar e colher aquilo que as necessidades diárias impunham. Milho, batatas, batatas-doces. As bananeiras apareceram quando as pessoas passaram a estar menos dependentes das suas culturas. Em redor, muros de pedra basáltica delimitam pequenas vinhas, mas também outros bananais, aparentemente mais organizados do que aquele que o avô de Luís plantou há já alguns anos. As bananeiras desenham os seus próprios carreiros, desordenados, desarrumados, estimulantes. Como os filamentos ardilosos da memória. Luís Bicudo deixa o bananal para trás, encaminhando-se para casa, escolhendo um caminho diferente daquele que nos levou até lá. Um percurso que o faz percorrer grande parte da aldeia de Santa Cruz das Ribeiras, e ao longo do qual vai apontando aquilo que mudou desde que a conheceu pela primeira vez. Estanca numa rua longa, no caminho para casa. “Isto também é arquitectura baleeira. A rua vai dar directamente à rampa onde estavam os botes. A rua acaba e começa ao mar. ” Tudo isto é dito com um sorriso intrigante. “Foi um período da história que passou”, diz Luís, rejeitando à partida qualquer rasgo nostálgico. Aquilo de que sente falta não é da actividade, mas do pulsar quotidiano que ela de alguma forma trazia àquela aldeia. “Esta freguesia chegou a arrear à baleia nove botes. Sete homens em cada bote, as famílias deles, o pessoal das lanchas. Era uma freguesia cheia de vida, com muitas crianças. Chegou a ter três padarias. Hoje não tem nem uma. Tenho medo de que isto caminhe para o fim, que daqui a 50 anos não haja ninguém daqui. É disso que sinto saudade. De pessoas que mantenham as tradições. E manter as tradições não quer dizer fazer como os avós faziam, mas que se parta daí. As pessoas não estão atentas às histórias orais e portanto vai-se perdendo. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Foi isso que fez — que tem feito, aliás. Ouvir, fazer perguntas. Ouvir de novo. Com isso aprendeu que não há narrativas simples para explicar a baleação. Aprendeu que a baleação foi também um importante factor de comunicação entre ilhas, e bastava olhar para o avô, um “filho da baleação”, que nasceu porque o pai dele foi balear para a Terceira e lá conheceu a mulher. Aprendeu que, apesar de estes homens não serem biólogos marinhos, conheciam bastante bem o cachalote. Se não o conhecessem, não o poderiam caçar. “Aprendi muito. Nunca cacei uma baleia mas. . . mas quase sei como se faz. Apesar de, se calhar, se o fizesse, ia correr muito mal”, reconhece. “O meu consolo é daqui a uns 50 anos ser um especialista. Quando já não houver ninguém. ”A viagem do jornalista teve o apoio da Direcção Regional de Cultura - Governo dos Açores
REFERÊNCIAS:
Eleições antecipadas na Áustria após escândalo envolvendo a extrema-direita
O chanceler Sebastian Kurz diz que não pode continuar a governar com o partido de extrema direita FPÖ cujo líder, Heinz-Christian Strache, foi filmado a discutir troca de favores políticos por financiamento ilegal. (...)

Eleições antecipadas na Áustria após escândalo envolvendo a extrema-direita
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.1
DATA: 2019-05-23 | Jornal Público
SUMÁRIO: O chanceler Sebastian Kurz diz que não pode continuar a governar com o partido de extrema direita FPÖ cujo líder, Heinz-Christian Strache, foi filmado a discutir troca de favores políticos por financiamento ilegal.
TEXTO: O chanceler austríaco Sebastian Kurz, cujo partido conservador ÖVP (Partido Popular da Áustria) governa em coligação com o partido de extrema-direita FPÖ (Partido da Liberdade da Áustria), anunciou este sábado que não continuará esta coligação depois de o vice-chanceler e líder do partido, Heinz-Christian Strache, ter sido gravado em video a discutir várias acções ilegais para beneficiar o seu partido. O vídeo foi divulgado na sexta-feira à noite, Strache demitiu-se este sábado. “Chega”, disse o chanceler, depois de enumerar outros problemas na coligação, que defendeu dizendo que nenhum outro partido do país quis governar com o seu partido. Kurz acrescentou que propôs ao Presidente, Alexander Van der Bellen, marcar eleições “o mais rapidamente possível”. Strache foi apanhado em vídeo a discutir negócios duvidosos e ilegais com uma suposta sobrinha de um oligarca russo em Ibiza. Os videos, editados de um total de sete horas de filmagens, foram divulgados pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e pela revista Der Spiegel. Em declarações aos jornalistas em que anunciou a sua demissão, Strache pediu desculpa pelo erro, mas manteve que não fez nada ilegal. Apresentou a armadilha em que caiu como uma tentativa de acabar com a coligação e disse que se sacrificaria pelo bem do partido. Em 2017, ou seja, antes da chegada do FPÖ ao Governo, Strache reuniu-se com a alegada sobrinha de um oligarca russo discutindo, em linguagem colorida, modos de ganhar influência nos media, falando de pessoas “com muita massa” e referindo-se a jornalistas como “prostitutas” (ainda recentemente o FPÖ tentou afastar um jornalista da televisão pública ORF por uma pergunta incómoda a um candidato). Estavam presentes ainda um intérprete e dois políticos do FPÖ, incluindo Strache. O chanceler tem-se distanciado da extrema-direita para evitar sair prejudicado com as suas acções, em casos como a suspeita de troca de informações com a Rússia, por exemplo. Ainda este sábado um jornal alemão, o Welt am Sonntag, dizia que a agência para a protecção da Constituição da Alemanha (BfV), responsável pelos serviços de informação interna, Thomas Haldenwang, disse a semana passada numa comissão parlamentar que havia um “risco aumentado” de partilhar informação com a Áustria por causa das ligações do FPÖ à Rússia. Num comentário jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (conservador), a jornalista Meret Baumann escreve que com este caso não pôs fim apenas à carreira política de Strache, mas também “à experiência de Kurz governar com os extremistas e de os tentar domar”. No video, a suposta sobrinha do oligarca, Alyona Makarova, afirma querer investir dinheiro “não completamente legal na Áustria”, e o grupo discute que um bom investimento poderia ser o jornal Kronen Zeitung. “Se nos ajudarem”, comentou Strache, “conseguiremos não 27%, mas 34%” nas eleições, quer se realizariam dali a três meses, disse o líder do FPÖ. E Strache evocou mesmo a possibilidade de “ter uma paisagem mediática como a de Orbán” (na Hungria, o primeiro-ministro conseguiu gradualmente dificultar a vida aos meios que não são pró-Fidesz; entre os grandes meios, não restam jornais ou televisões críticas). Em troca, o líder do FPÖ prometeu adjudicar contratos públicos — com valores inflacionados — a empresas que a investidora russa viesse a criar. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Também foram mencionados esquemas ilegais para financiamento do partido através de associações ou clubes. A bomba estourou mesmo uma semana antes das eleições europeias, levando alguns apoiantes do FPÖ a questionar o interesse de quem organizou o encontro, filmou e divulgou as imagens. A Spiegel diz que a fonte do vídeo é conhecida dos editores de ambos os jornais mas deseja permanecer anónima. Não é claro o interesse de quem organizou a reunião e a filmou, mas ambos os meios de comunicação social justificaram a divulgação, após verificação de peritos independentes, pelo interesse público. Enquanto isso, em Viena uma manifestação espontânea juntou centenas de pessoas em frente à sede do Governo, com slogans como “Abaixo Strache”, “Eleições já” ou “Que vergonha”.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave social vergonha ilegal
"Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar"
O apelo é da ministra da Presidência e diz respeito ao Orçamento Participativo Portugal, que já tem mil propostas em carteira. (...)

"Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar"
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2017-07-11 | Jornal Público
SUMÁRIO: O apelo é da ministra da Presidência e diz respeito ao Orçamento Participativo Portugal, que já tem mil propostas em carteira.
TEXTO: O Orçamento Participativo Portugal (OPP) tem actualmente cerca de mil propostas em carteira, revelou a ministra da Presidência, que aconselhou nesta quarta-feira, no Porto, potenciais participantes num projecto que tem alocados três milhões de euros. "Façam títulos atraentes porque no fim vamos todos votar. Portanto temos de perceber as propostas que nos são apresentadas (. . . ). E que ganhem as melhores. O Governo compromete-se, goste ou não goste, a executar as propostas vencedoras", apontou à agência Lusa, Maria Manuel Leitão Marques, quando convidada a explicar como estava a correr a interação entre membros do executivo e os potenciais proponentes do OPP. Nesta quarta-feira à tarde decorreu na Fundação de Serralves, no Porto, também com a participação do primeiro-ministro António Costa, o último Encontro Participativo que assinala da fase de apresentação de propostas para o Orçamento Participativo Portugal, uma iniciativa da qual sairão vencedoras oito propostas - uma por cada região continental, uma por cada região autónoma e uma de âmbito nacional - estando alocado um total de três milhões de euros (375 mil euros para cada projecto). Na sessão participaram vários membros do Governo, que conversaram com os participantes, receberam as suas propostas e retribuíram com conselhos. A ministra da Presidência e da Modernização Administrativa pediu, por exemplo, para que as propostas não fossem vagas e relatou ter ouvido "ideias muito interessantes". "Podemos falar em inclusão digital para adultos, mas podemos dizer 'vamos pôr as pessoas com mais de 80 anos a falar pelo skype' - e há tantas pessoas que têm os filhos fora e não sabem que de forma gratuita podem falar com a família e estar a vê-los. É algo que se pode fazer com pouco dinheiro", exemplificou Maria Manuel Leitão Marques. Também o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, contou à Lusa ter conhecido "projectos muito valiosos, muitos deles interdisciplinares e interministeriais" sobre, nomeadamente, educação para a cidadania e educação para a saúde e educação, destacando as "propostas muito interessantes na área da formação de adultos". "É uma experiência fantástica poder ouvir as propostas dos cidadãos e que estes possam ter um contributo dos governantes", disse o ministro da Educação, indo ao encontro da convicção da ministra da Presidência, que lembrou "as vezes em que se ouve dizer 'se eu fosse ministro da faria isto ou aquilo'". "Agora têm oportunidade de fazer uma proposta e fazê-la directamente ao ministro. É muito importante ver quais são as ideias que as pessoas têm nas diferentes áreas", disse a governante. Por sua vez, o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, revelou-se "satisfeito" por ter constatado que "cerca de um terço [das propostas até aqui comunicadas] dizem respeito à agricultura, ou seja, uma em cada três. "[Isso] quer dizer que mesmo as populações urbanas tem propostas nestas áreas, não são apenas as populações rurais, quer dizer que a agricultura está muito enraizada nas pessoas", comentou Capoulas Santos que elogiou, entre outros, um projecto para identificar castas de vinha desconhecidas ou um relacionado com o desperdício alimentar nas cantinas escolares. Ao lado, Anabela Braz Pires preenchia a proposta de candidatura. A sua ideia é implementar grupos de canto para seniores. A cantora pensou neste projecto por considerar que "os grupos de canto estão associados a benefícios físicos, sociais, culturais e ao bem-estar. É preciso galvanizar a área da cultura porque o país precisa de cultura", referiu. Já Hugo Faria, engenheiro mecânico e docente na Universidade de Aveiro, quer criar bons hábitos no dia-a-dia, na rua, nas pessoas. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. "Coisas caricatas, como cuspir para o chão ou deixar o cocó dos cães para trás, podem e devem mudar", descreveu, ainda sem ter decidido se irá levar adiante a proposta, mas descrevendo a iniciativa como "importante" pela "oportunidade dada às pessoas". Durante o mês de Maio, as propostas vão dar entrada nos diferentes ministérios e a tutela verá se são viáveis e se cumprem os requisitos deste OPP. Aquelas que preencherem as condições seguem para votação por mensagem gratuita ou online durante os meses Junho, Julho, Agosto e Setembro.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave cultura educação cães cantora
Carminho quis ser apenas Maria numa viagem a depurar o fado
Depois do disco onde deu voz própria a canções de Tom Jobim, Carminho voltou ao fado, num disco íntimo e produzido por ela, onde a maioria dos temas levam a sua assinatura. A partir de sexta-feira nas lojas, Maria, título que é também o seu primeiro nome, simboliza a máxima depuração que conseguiu, num exercício arriscado de onde saiu a ganhar. Ela e todos nós. (...)

Carminho quis ser apenas Maria numa viagem a depurar o fado
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Depois do disco onde deu voz própria a canções de Tom Jobim, Carminho voltou ao fado, num disco íntimo e produzido por ela, onde a maioria dos temas levam a sua assinatura. A partir de sexta-feira nas lojas, Maria, título que é também o seu primeiro nome, simboliza a máxima depuração que conseguiu, num exercício arriscado de onde saiu a ganhar. Ela e todos nós.
TEXTO: O exercício era arriscado, mas foi ganho. Depois da aventura que foi dar voz própria a temas de Tom Jobim, Carminho quis voltar ao fado mas depurando-o, para ver até onde conseguiria ir sem se afastar da matriz. “Foi uma coisa muito íntima, muito pessoal”, diz Carminho ao Ípsilon. Por isso deu-lhe nome de Maria, mas não simplesmente, porque essa busca obrigou a uma reflexão mais profunda sobre o que o fado representava para Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, nascida em Lisboa em 20 de Agosto de 1984, filha da fadista Teresa Siqueira e conhecida nos meios fadistas por Carminho. O resultado, em cuja capa ela surge como que a levantar um véu, chega hoje às lojas. Tem três guitarristas diferentes, consoante os temas (Bernardo Couto, José Manuel Neto e Luís Guerreiro), viola de fado (Flávio César Cardoso), baixo acústico (José Marino de Freitas), piano (apenas na faixa final, João Paulo Esteves da Silva), pedal steel guitar (Filipe Cunha Monteiro) e guitarra eléctrica (Filipe Cunha Monteiro e a própria Carminho). “Eu queria fazer um disco de fado. E comecei a pensar, num sentido mais filosófico, para onde é que o fado tem ido, de onde veio, para onde tem caminhado, o que tem feito. Porque eu, desde pequenina, ao mesmo tempo que comecei a falar comecei a cantar fado. Agora quis fazer o exercício de perceber o que era o fado para mim, o que é que me tinha ensinado, o que é que me tinha dado. E quais eram os valores primordiais, para mim, no fado. Para construir um disco de fado, mas contemporâneo, um disco meu. ” Concluiu que o fado é cada vez mais uma soma de elementos, equiparado às camadas de uma pintura, e decidiu experimentar o inverso: “Uma subtracção de elementos, para saber até onde eu subtrairia de modo a que continuasse a ser fado. Se eu continuar a subtrair, onde é que o fado mora? De alguma maneira, mora numa voz; que seja fadista, e dessa linguagem. ”Autoria: Carminho Warner MusicPor isso o disco começa inteiramente a capella, com um fado que ela escreveu, letra e música, A tecedeira, mas onde se consegue quase adivinhar o som dos instrumentos que lá não estão. “Porque o fado mora numa energia, tem de respeitar algumas regras mas as da emoção, não necessariamente a das experiências, que tanta gente faz e muito bem. ” A essa introspecção seguiu-se, ao planear o disco, o exercício de juntar o indispensável para procurar a cor própria para o que delineara. “Agora que tenho uma voz, que elementos vou somar para compor as matrizes que constituem este disco, a voz, o ambiente? A casa de fados também tem um som, um ambiente, que se perde ao vir para estúdio. Qualquer coisa que não é música mas que é musical. ” Daí que neste disco, gravado “ao vivo” em estúdio, com todos a tocar ao mesmo tempo, haja um sopro, um ruído, que nalguns casos abre uma faixa. Ao ponto de um dos temas, Sete saias, soar a uma daquelas alternate takes que surgem em discos acrescidos de preciosidades dos arquivos: ela diz no início “Vai, Luís” (incentivando o guitarrista Luís Guerreiro) e no final suspira: “Uff”. Resumindo: ela quis juntar a voz, o ambiente e o contar das histórias. “Senti que podia trazer qualquer coisa de novo desde que respeitasse a emoção que eu vi nascer, quando estava nessas noites de fado com os meus pais. ” E essa coisa de novo passa pelo recurso a uma guitarra eléctrica (que ela toca em Estrela, outra das suas composições) e pelo uso de uma pedal steel guitar, utilizada na música country. “Como é muito manipulada, com pedais e com arco, cria um ambiente e uma atmosfera que em nada desfaz, para mim, a atenção da guitarra portuguesa, da voz e do contar da história inerentes ao fado. ”Os temas escritos por ela não surgiram só para o disco, já vinham de trás. “Os meus discos são sempre processos contínuos, de busca de repertório, de conhecimento de poesia (portuguesa, brasileira), de vários caminhos que me foram levando aos rumos que segui. Mas gosto muito da fatalidade do acaso. Quando se está a trabalhar de dentro para fora, ou seja, daquilo em que se acredita para uma música que se faz ou um poema que se escolhe, há uma união de tudo isso. Acredito que a consistência mora aí. ” Dois anos de estudo deram, assim, lugar a dois meses de estúdio. O arranque a capella não surgiu logo, mas na sequência do pensamento que deu forma ao disco. E à exposição nua da voz, onde se sentem as respirações com uma proximidade impressionante, segue-se, já com guitarra e viola, a sua extensão até ao grito, a partir das palavras de Pedro Homem de Mello, em Começo (no Fado Bizarro): “Principio a cantar para quem tenha/ fome de ouvir a música do vento. ” A estridência da voz, única faixa do disco onde se tem essa sensação, é, diz Carminho, propositada. “Foi um suspiro de começar. Como se a tecedeira [e a sugestão de tecer, entrelaçar, é já significativa no gerar do tecido musical aqui proposto] estivesse num vácuo, num espaço zero, e esse Começo fosse um grito de esperança. Como diz a frase final: ‘Nascemos porque a dor é sempre nova/ E não há sofrimentos repetidos. ’”Além de A tecedeira, há mais três temas no disco integralmente escritos por Carminho, letra e música: Estrela, A mulher vento e Poeta. Além deles há dois com letra dela e música já existente, Desengano, de Jaime Santos (Fado Latino), e Se vieres, com música de Armando Machado (Fado de Santa Luzia); e ainda outro que ela musicou a partir de um poema de Reinaldo Ferreira, Quero um cavalo de várias cores, poema que já foi musicado e gravado por AP Braga, João Maria Tudella ou Frei Hermano da Câmara. Comecemos por Estrela: “Foi uma música que compus nos Estados Unidos, numa tournée, e nem ia inclui-la no disco porque não tinha a certeza de conseguir entendê-la no conjunto deste pensamento. Só que um dia estava em estúdio, comecei a dedilhar uma guitarra eléctrica e a cantar, estávamos numa pausa para café. De repente, o Artur [David] pôs a gravar e quando a ouvi percebi nela uma depuração e uma simplicidade que me fizeram hesitar. Era uma música minha, eu a cantar e a tocar ao mesmo tempo. Claro que há ali uma insegurança, mas ao mesmo tempo uma grande alegria. ” Então voltou para dentro da cabina e tocou a canção do início. Gravou quatro takes, ficou o primeiro. Há ainda, no disco, duas versões: Sete saias, de Artur Ribeiro, um malhão que ela trata a seu modo, mantendo-lhe apenas o essencial da estrutura reconhecível. E Pop fado, escrito por César de Oliveira com música de Fernando de Carvalho e gravado em disco por António Calvário, em 1966. “Liguei-lhe, ele ficou um bocadinho surpreso. Mas depois encontrámo-nos, ele é muito divertido, muito simpático. E o tema surge com uma espécie de jocosidade, brincar comigo mesma e com aquilo de que gosto. É uma discussão eterna e muito antiga, como se vê, ser pop ou ser fado, se andam ao estalo ou se andam a par. ”Desengano, que é a bonança depois da tempestade de O começo, surgiu na estrada. “Por intuição, tudo o que escrevi para fados tradicionais já o escrevi com a música na cabeça. Eu escrevo a cantar, por causa da métrica das palavras. Um dia estávamos na estrada, e o Flávio [viola] estava a fazer um exercício com um tema de Baden Powell. Ouvi e pedi-lhe: ‘Pára! Toca o Fado Latino a fazer isso. ’ Ele tocou e eu comecei a cantar por cima. ”Ser o terceiro tema no alinhamento foi uma opção consciente, diz Carminho: “Eu fiz o alinhamento com um sentido de álbum, de viagem. E porque é um disco de fado com uma viagem diferente, este Desengano vem ‘desenganar’ o continuar do disco. ” Seguindo a sequência do disco, a próxima estação da viagem é O menino e a cidade, um dos dois temas que Joana Espadinha assina, letra e música (o outro é As rosas, a fechar o disco). “Quando eu estava a fazer o meu disco Carminho Canta Tom Jobim, há dois anos e meio, recebi uma mensagem de um amigo dos fados a dizer que uma amiga, do jazz, cantora e compositora, tinha feito um tema a pensar em mim. ” Como estava muito embrenhada no disco, era muito complicado parar para ouvir. Mas, como tinha de dar uma resposta, lá arranjou um tempo. “Parei um bocadinho, fui ouvir e fiquei deslumbrada. Era ela a cantar, numa demo, com uma viola, e escrevi-lhe logo a agradecer. ” Mas pediu-lhe se podia esperar dois anos, se podia guardar a canção. E ela deu-lha e esperou. “Agora, quando comecei a trabalhar neste disco, tirei-a da gaveta. Convidei a Joana para ir a minha casa, porque não a conhecia, e ela já trazia na pasta mais três ou quatro temas que tinha feito para mim. Aí vêm As rosas e mais outros temas que por acaso não entraram. E começou um processo muito feliz do encontro entre uma compositora e uma intérprete que se conseguem complementar e entender. Acho que esta relação vai continuar. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. A segunda canção de Joana, que fecha o disco, As rosas, foi pensada para voz e piano. “Ainda houve a ideia de ser só piano, mas eu quis introduzir o Filipe com a pedal steel guitar, tocada com o arco. Não é muito perceptível, mas traz energia à canção. ” Como um coro, ou um sopro de vento. E o piano de João Paulo Esteves da Silva dá-lhe uma envolvência magnífica, com a voz de Carminho a abraçar com amor as palavras: “Se as rosas são feitas para morrer, / Quando se espalham no chão, onde vão? Quem serão?/ Algum dia minto pr’a te perdoar. / Ai meu amor, quem sabe o que eu chorei por ti. ”Mas é A mulher vento que melhor a retrata. Foi composta em Serralves, quando lá cantou com Marisa Monte. Carminho estava no camarim, Marisa a aquecer a voz e, como era dia ventoso, os vocalizos dela misturavam-se ao vento que fazia bater as portas. “A ideia, que começou a crescer dentro de mim, é a de uma mulher que está destinada a ser a voz do vento. E o mundo não vive sem o vento, porque o vento é essencial para acender as fogueiras, para levar os recados das que esperam do outro lado do mar, para levar as velas dos barcos, para trazer as notícias. E aquela mulher está confinada à missão de cantar o vento. E eu, no fim, talvez escolhesse ser essa mulher. Porque é o retrato de uma cantora que acaba por entregar a sua vida a algo que eventualmente possa ser maior do que ela. ”
REFERÊNCIAS:
Um homem na cidade
Sergei Dovlatov é o centro de um retrato de uma geração de artistas à deriva no regime soviético, e de um filme imperdível sobre o custo da resistência. (...)

Um homem na cidade
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Sergei Dovlatov é o centro de um retrato de uma geração de artistas à deriva no regime soviético, e de um filme imperdível sobre o custo da resistência.
TEXTO: Em 1971, Sergei Dovlatov (1941-1990) não tinha onde cair morto. Escrevia para a revista dos operários navais, mas queriam que ele fizesse uma peça ardente e construtivamente revolucionária sobre o lançamento de um barco a quem foi dado o nome de um poeta que ninguém tinha lido. Enviava contos para a revista literária da sua Leninegrado natal, mas ninguém os publicava, e enquanto ninguém publicasse uma autoria sua, ele não podia ser reconhecido pela União dos Escritores Russos. Dovlatov estava separado da mulher e tinha uma filha menina, e embatia de cabeça com a rigidez burocrática de um regime anquilosado que insistia em instrumentalizar a arte para cantar as loas da grande revolução socialista que, no entanto, parecia só chegar a alguns. Realização: Aleksey German Actor(es): Milan Maric, Danila Kozlovsky, Helena SujeckaDovlatov, o filme, são seis dias na vida de Dovlatov, então apenas mais um escritor a procurar sobreviver pelo meio do labirinto soviético, hoje uma das mais aclamadas e importantes figuras da literatura soviética do século XX. (Como o cartão final desvenda, essa popularidade foi post-mortem; Dovlatov seguiu as pisadas do amigo Josef Brodsky e exilou-se nos Estados Unidos, onde morreu à beira de fazer 50 anos de um ataque de coração. ) E é a homenagem por interposta pessoa de Alexei German Jr. ao seu pai, Alexei German (1938-2013), cineasta que, como o escritor, passou a carreira às turras com o regime e em vida apenas rodou seis filmes. Mas acima de tudo Dovlatov é um retrato de geração e de ambiente corporizado numa figura que serve de ponto de referência para o espectador. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. O filme mergulha-nos desde o início num enorme e fluido rio de episódios e situações que vamos percorrendo ao sabor dos encontros do escritor, com a câmara do polaco Lukasz Zal (Ida e Guerra Fria) a envolver-nos numa dança permanente por entre apartamentos, cafés, estaleiros de obras, escritórios. É um percurso em câmara lenta onde a saída apenas nos devolve à porta de entrada, uma pescadinha de rabo na boca que garante que os escritores, poetas, pintores, escultores que se cruzam com Dovlatov nunca serão reconhecidos a não ser que verguem a cabeça aos desejos dos caciques. Num momento em que as conversas sobre o valor e a importância da arte e da cultura voltam a tornar-se imprescindíveis, Dovlatov e o seu onirismo desencantado e acinzentado, a sua ironia selvagem e realista, o seu desespero subterrâneo em busca da energia necessária para insistir em resistir, é fita de visão obrigatória. Enquadra-se nas grandes tradições do cinema russo, do humanismo ao virtuosismo formal, ora recordando a precisão alegórica de Tarkovski, ora o desejo de liberdade do I Am Twenty de Khutsiev. E fá-lo através de um homem na cidade, à procura de um futuro que não parece brilhante — mas que, como todos os futuros, não está escrito à partida.
REFERÊNCIAS:
Palavras-chave guerra filha cultura ataque mulher homem morto
Lobo Antunes, o maestro galanteador — ou a importância das pernas num mundo de intelectuais muy aburridos
O autor português está divertido na Feira do Livro de Guadalajara, onde há dez anos lhe deram o Prémio Juan Rulfo e continuam a tratá-lo por mestre. Ali deixou um recado para Donald Trump ("Ele que vá à merda") e elogios rasgados à "nobre" cultura mexicana. (...)

Lobo Antunes, o maestro galanteador — ou a importância das pernas num mundo de intelectuais muy aburridos
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento -0.65
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: O autor português está divertido na Feira do Livro de Guadalajara, onde há dez anos lhe deram o Prémio Juan Rulfo e continuam a tratá-lo por mestre. Ali deixou um recado para Donald Trump ("Ele que vá à merda") e elogios rasgados à "nobre" cultura mexicana.
TEXTO: António Lobo Antunes está de regresso à Feira Internacional do Livro (FIL) de Guadalajara, onde recebeu em 2008 o Prémio Juan Rulfo. Há dez anos, recebeu uma chamada e do outro lado alguém lhe disse que tinha recebido um prémio no México. “Era uma voz de mulher e eu perguntei-lhe: ‘Quanto?’ Do outro lado da linha ouvi que se riam, e a senhora disse-me que se tratava de uma conferência de imprensa. Eu não sabia que estava a falar para muitas pessoas”, contou na manhã de segunda-feira em Guadalajara (final da tarde em Portugal), num encontro com jornalistas, o escritor português que está na FIL a convite da própria feira mas também integrado na comitiva de Portugal, o país convidado, em cujo pavilhão será esta terça-feira entrevistado pelo académico colombiano (e pessoano) Jerónimo Pizarro. Horas depois, num apinhado auditório Juan Rulfo — onde foi necessário entrar meia hora antes de a sessão começar para garantir lugar, e que acabou por ter um letreiro a dizer “lotado” —, sentado ao lado da escritora e jornalista colombiana Laura Restrepo, que lhe ia tentando fazer perguntas mas não o interrompia, Lobo Antunes contou a mesma história, mas arranjou um final diferente. "Acho que só me pagaram agora, quando puseram a Laura [Restrepo] aqui comigo. ” Palmas e gargalhadas na sala. “Pagaram-me com muito atraso. Mas perdoo. É para mim um grande prazer estar com uma mulher que admiro muito e é uma das grandes figuras da literatura em qualquer que seja a língua”, respondeu à autora de Demasiados Heróis, que o tinha apresentado como um grande escritor da "literatura lusa”. Mas toda a conversa entre os dois foi assim, com Lobo Antunes a galanteá-la. Ela a dizer que ele assim a “deixava tímida”, ele a responder “que bom”. A sala a rir-se às gargalhadas com as histórias que Lobo Antunes já contou variadíssimas vezes, como a do seu avô que achava que a literatura era para mulheres e maricas e que um dia lhe perguntou se o era, quando ele não sabia ainda o significado da palavra. Mas também com o diálogo entre os dois: “E tu Laura, como o fazes?”, perguntou a determinada altura o português. “Não vou cair na tua armadilha", respondeu-lhe a colombiana. Ele: “Assim é muito fácil, fazes-me perguntas mas não contas como o fazes. " Ela: "Não me perdoariam que me pusesse a falar de mim tendo-te à minha frente. "Numa plateia com muitos homens, mas maioritariamente feminina, o autor que está a lançar no México Não é Meia-Noite Quem Quer desenvolveu uma teoria não sobre a inveja do pénis, mas sobre a inveja dos homens, por não serem gestantes, e sobre como gerar um livro é a maneira que têm de o substituir. Referiu a “invisível alegria de criar” de John Steinbeck, e argumentou que os escritores que não dão à luz, como ele, têm os seus fantasmas. “A luta com as palavras, a luta para fabricar um universo vivo, um livro, é a única chance que temos de ficarmos grávidos. E depois queremos todos ter filhos perfeitos e lindos que nos prolonguem a vida. ”Até ao fim, a conversa rendeu tiradas estupendas como “Se Deus existir, espero que tenha barbas” ou “A nossa vida de adulto não é mais do que a infância fermentada”. Houve quem ficasse desgostado com o machismo e a misoginia mostrados por Lobo Antunes, na sua versão de escritor galanteador. No livro que Laura Restrepo está a lançar na feira, Los Divinos, há uma epígrafe de Michel Tournier que vem a propósito: “Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto pavorosa: monstro vem de mostrar. ”Talvez por isso, uma leitora mexicana, professora de espanhol, que não o conhecia muito bem, e a quem o monstro se mostrou, ficou a achar que o Lobo era “ameno e inspirador”. Já de manhã, Lobo Antunes tinha dito que se estava a divertir em Guadalajara e contara que há dez anos, ao chegar, se enamorou dos mexicanos: da delicadeza, da ternura, do castelhano que falam, da maneira como o trataram. “Foi muito bom para mim e ao mesmo tempo muito difícil. Ao terceiro ou quarto dia de um programa com muitas coisas comecei a ter uns sintomas raros. A esvair-me em sangue. O meu editor disse-me: ‘É a vingança de Moctezuma, não há problema, vai passar. ' Não era, era um cancro [do cólon] que se manifestou de maneira exuberante aqui. Regressei a Portugal, passei por uma operação, o medo das metástases. Foi muito difícil. Estive internado muito tempo, mas estar aqui foi muito bom para mim, os leitores, a gente que me leu, o carinho que me deram. Emocionou-me muito, por isso sempre quis voltar. ”Embora esteja a lançar um livro no México, escapa a falar sobre as suas obras porque um livro terminado para ele é como um matrimónio que terminou com um divórcio. “Tens de o esquecer, porque se não esqueces não consegues começar outro”, disse o autor, que acedeu ainda assim a partilhar o seu regime intensivo de escrita: das 6h às 13h; das 14h às 20h e mais duas horas depois das 21h30. Todos os dias incluindo sábados e domingos. Contou que chegou a conhecer o escritor mexicano Juan Rulfo, autor de Pedro Páramo. “Estive com ele duas vezes. Era o homem mais humilde que conheci. Quando se fala com estas pessoas e elas se esquecem que podes ser um jornalista e não tentam posar de perfil para a eternidade, começam a falar de si mesmas com muita humildade. Escrever é muito difícil, é uma coisa impossível, nunca vais conseguir escrever o que queres. De derrota em derrota, mas podem ser gloriosas derrotas. Não há nenhum segredo, só trabalho. ”A uma pergunta sobre em que situações, além da guerra, se sentiu em mundos irreais, respondeu: “O que é a realidade? Quantas realidades há? Ninguém sabe responder a essa questão. Vives ou sonhas, por exemplo, como Caldéron [de la Barca], que sustentava que a vida não é nada mais do que um sonho. Essas são questões muito difíceis porque não tenho resposta. Só tenho perguntas. Não tenho nenhuma solução para nada. ” Mas Lobo Antunes tenta compreender o incompreensível mundo ou a morte. “Estava a recordar-me de Walt Whitman. Havia um velório, havia um morto, pessoas que choravam e uma menina pequena. Ele pegou na criança, levantou-a diante do morto, e mostrou-lhe o rosto do defunto: ‘Compreendes? Eu também não. ’”Da guerra, claro, também falou: “Trabalhei como psiquiatra quando cheguei da guerra. Não vou falar da guerra, foi muito tempo e de uma violência inimaginável. Os hospitais psiquiátricos para onde fui trabalhar eram para mim também incompreensíveis, tão estranhos, tão raros, como a guerra num país como Angola, em África, com um clima que eu não conhecia, gente que eu não conhecia, ruídos que eu não conhecia, cheiros maravilhosos que eu não conhecia, uma beleza incrível que eu não conhecia. No meio disto, a morte, a morte, a morte… a morte. Tinhas sempre a morte diante de ti. ”Na Angola que conheceu enquanto alferes na Guerra Colonial, contou, os militares viviam numa casa onde estavam guardados os caixões, e divertiam-se a dizer: este é para ti, aquele é para ti, apontando uns para os outros. Mas não é só a morte que é um mistério incompreensível para o escritor de 76 anos. É também a vida, trágica e tão variável, com tanto material, tanta coisa… “Escrever é escutar com mais força. As vozes começam a falar e só tens de traduzir. A escrita, se olhares bem para ela, é um delírio organizado. ”“É muito curioso como em todas as coisas há vida. Esta oferece, constantemente, materiais maravilhosos que a maior parte das vezes um escritor não utiliza. Isso acontece porque todos nos esquecemos de olhar. Como quando um homem dizia a um amigo: ‘Descobri que a minha mulher me está a enganar porque quando eu descia as escadas para ir trabalhar ela dizia-me adeus da janela’. O amigo respondeu-lhe: ‘Ou foste tu que quando partias te esqueceste de olhar para trás?’ A maior parte das vezes somos nós que nos esquecemos de olhar. E escrever é não se esquecer de olhar. ”"Quando somos jovens achamos que podemos ganhar ao andar do relógio", diz-lhe uma jornalista mexicana, querendo saber se o “mestre”, como todos por aqui o tratam, tem alguma coisa pendente no tinteiro, se quer escrever algo antes que o relógio pare. “Mas você acha que as pessoas só são jovens até uma certa idade? Para mim é curioso que diga 'quando somos jovens', porque olho para uma mulher que foi jovem e já não o é e tenho medo que se trate de um zombie. Quando voltar a ser uma pessoa de novo, falo consigo. ”A jornalista insistiu para que comentasse os problemas com movimentos migratórios “que países como o México e Portugal enfrentam”. Lobo Antunes respondeu-lhe que em geral não comenta nada. “A vida aqui, agora, para os mexicanos, é muito difícil. Fico furioso que o senhor Trump ponha uma pressão como esta sobre um povo que ele não conhece porque é um ignorante. Um povo com uma cultura como a mexicana, que tem séculos de cultura. . . aborrece-me que a olhem de cima para baixo. Uma gente que é muito mais nobre e mais importante do que ele, com um passado muito maior do que o seu. Ele que vá à merda. E não comento mais. Se eu fosse mexicano, e creio que somos todos mexicanos, como somos todos franceses ou italianos, mas de uma maneira diferente, a minha atitude seria de desprezo. E se pudesse fazer alguma coisa, claro que faria. Compreendo perfeitamente o que a gente daqui está a fazer. Não compreendo que se trate um povo assim. Enfurece-me. ”Recordou que os mesmos turistas que iam a Portugal pelo sol tratavam os portugueses como se fossem cães. "Eram morenos, não tinham os olhos azuis. A mim tratavam-me bem porque tinha olhos azuis e cabelo claro. Na classe social onde nasci, uma pele muito morena não era tão bem recebida. Ter um rapaz loiro era o mais importante para uma mãe em Portugal, porque tinha uma conotação social. O mundo era dos loiros porque os gringos eram loiros. ” Não surpreendentemente, na sessão do final da tarde, ao lado de Restrepo, a versão foi um pouco diferente. Quando era jovem, ser loiro era um impedimento, diziam-lhe “és loiro, não podes dar prazer a uma mulher". "Porque ser loiro significava que não se era latino. "Uma menina interrompeu então a sessão para colocar na mesa um papelito que dizia que o tempo da conversa estava a terminar. Lobo Antunes aproveitou para dizer que pensou que o papel dizia que o marido de Laura Restrepo o queria matar. “Estou a divertir-me e é isso que importa”, tinha já admitido de manhã. “Em geral não vou a feiras do livro. Fui uma vez, quando comecei, a Frankfurt. Depois fui a uma feira de Jerusalém porque me deram um prémio. E outra vez a uma feira na Suécia porque me deram um prémio. ”Agora está numa feira onde Portugal é o país-tema. “Isto de um país convidado é sempre discutível. Porquê este país? Porquê estes convidados? Poucos escritores são indiscutíveis. Esses acredito que os convidem. Os outros… há muitas variáveis que entram aqui e que não têm nada que ver com a organização. Se eu organizasse uma feira, quantos Stendhal haveria? Não há nenhum em Portugal. Por isso temos de trabalhar com quem temos. Os génios não nascem assim. ”Há sempre uma parte afectiva nestas escolhas, defendeu. “Para mim, Faulkner é o melhor. Porquê? Porque gosto dele. Podemos encontrar mil explicações racionais, pelo seu trabalho com o tempo, pelo seu trabalho com a memória, mas não é por nada disso. ” Da mesma maneira que quando nos apaixonamos dizemos que se trata de uma pessoa muito inteligente. Não é verdade, apaixonamo-nos e não sabemos porquê. “Apaixonas-te porque vais para o outro corpo como uma bola na praia. Os mecanismos mentais são tão inconscientes que nos movimentamos e vivemos por pulsões. Todas as coisas são arbitrárias. ”Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. António Lobo Antunes, o mestre, não sabe quem são "os outros escritores portugueses" em Guadalajara. "Não os conheço fisicamente. Não penso nada [acerca deles] porque não os li ou li-os muito pouco. Para mim seria muito difícil escolher gente. Provavelmente escolheria porque gosto do sorriso daquele ou das pernas daquela… são muito importantes as pernas. É que los intelectuales son muy aburridos. Esquecem-se demasiado as pernas, é essa a verdade, porque esse é também um julgamento literário. ”O PÚBLICO viajou a convite do comissariado para a participação portuguesa na FIL Guadalajara 2018
REFERÊNCIAS:
Chá, história e um castelo de algodão
Uma paragem num café que se transforma num jogo a várias mãos. Um passeio pela antiguidade que termina num castelo de algodão de outro mundo. Uma viagem pela hospitalidade turca. (...)

Chá, história e um castelo de algodão
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Uma paragem num café que se transforma num jogo a várias mãos. Um passeio pela antiguidade que termina num castelo de algodão de outro mundo. Uma viagem pela hospitalidade turca.
TEXTO: Entre cigarros e um confortável türk çayi, o famoso chá turco, Cengiz e Ali trocam piadas perante a assistência. No meio da mesa, um tabuleiro, algo solene. Tavla, dizem-nos, um gamão com regras um pouco diferentes. É dia de jogo, como são todos, no pequeno café Maykil Çay Ocagi, em Kemer, centro turístico à beira-mar, a 40 quilómetros de Antália, o epicentro por excelência da Riviera Turca. A esplanada está composta, mas aqui, em vez dos típicos torneios de sueca lusos, os homens concentram-se nos tabuleiros de madeira. “Ali kaput. Me good”, graceja Cengiz, bigode aprumado e sorriso maroto, apropriando-se de vocábulos quase universais para vencer as barreiras linguísticas com a audiência estrangeira que por ali (en)calhou. Está 3 a 1, Ali encolhe os ombros e gargalha, enquanto vê o adversário lançar os dados. Entretanto, já somos nós que temos chá nas mãos, de maçã, verde eléctrico. Entretanto, já estamos à mesa e fazemos parte do jogo, que Cengiz vai explicando, como pode. Tentamos aprender. E, em troca, lá vamos tendo respostas. Nasceu em Ancara, vive por aqui há 30 anos. Tem uma loja ali perto, está a fazer uma pausa no trabalho. Se já fomos ao mercado? Sim, fomos, dar o gosto ao regateio (recomenda-se paciência). À segunda há o dos frescos, às terças o que tem tudo, uma grande feira a piscar o olho ao turista, com roupas e malas com grandes marcas à vista. E muitos turkish delights, frutos secos, 1001 chás (há sempre que provar antes da compra), café turco (com borras, claro), especiarias, tapetes, artesanato — foi lá que Gül, olhos azuis cristalinos e mãos de ónix, parou de trabalhar a pedra para distribuir pela assistência pequenos nazar boncugu, os amuletos dos olhos azuis, que agora trazemos no bolso for good luck. Perdemos o jogo de vista e Cengiz fecha, de repente, o tabuleiro. Acabou, 4 a 1, amanhã há mais. Ali puxa de um cigarro, levanta-se e regressa pouco depois, com saquinhos de papel que agora vão de mão em mão. Lá dentro, simit, as deliciosas argolas de pão com sementes de sésamo, que, entre risos, distribui pelos recém-chegados. Termina-se o chá, Maykil, o dono do café, não diz o preço, e Cengiz convida-nos a visitar a sua loja. Como recusar? Pelo meio, paragem no sapateiro, Amed, que nos apresenta a sua arte. Faz sentido, percebemos depois. Chegados ao destino, encontramos uma sapataria, onde a esposa de Cengiz tem, por acaso, carnudas uvas de Antália. “Very good”, oferece o marido, e salta para trás do balcão para atender clientela que chegou. Lá nos despedimos do anfitrião um pouco a medo, de mãos vazias e o cliché do coração cheio. Deixou-nos mais um abraço e uma mensagem: good luck. Vinte e quatro horas antes, Huzur Yirmibesoglu, arqueólogo feito guia turístico, já nos preparava para o que viríamos a sentir na pele. “A Turquia é muito diversa e tem muitas pessoas diferentes de imensos grupos étnicos”, descreve, “mas o ponto em comum é sempre a hospitalidade”. Quando tal não acontece, é uma “degeneração”, não é a “representação” real “da cultura, do país, das pessoas”. “Because you don’t do it for today, you do it for tomorrow. ” Ou, em português corrente, cada um colhe o que semeia. Estamos num território que, diz o turco, nascido em Istambul há 56 anos, a viver em Antália há 30, é a “base da civilização de hoje”: a península da Anatólia. E, como se já não desconfiássemos, desfia provas. Porque por aqui é possível visitar o que muitos dizem ser a cidade mais antiga do mundo: Çatalhöyük, com origens que remontam a 7500 anos a. C. — tem, portanto, quase dez mil anos de história, coroados Património Mundial pela UNESCO em 2012 (há 18 locais para ver só na Turquia). Porque por aqui está a verdadeira Filadélfia, hoje Alasehir, estabelecida em 189 a. C pelo rei Eumenes II de Pérgamo, que a baptizou Philadelphos em honra do seu irmão — significa “aquele que ama o seu irmão” — e que é referida na Bíblia. Porque por aqui nasceram e morreram imensas civilizações — e deixaram vestígios. E eis que chegámos a Denizli, mais precisamente a Hierápolis, e a história deste mundo entra-nos pelos olhos adentro; e, descalços, aterrámos em Pamukkale e julgámo-nos noutro mundo. De um lado, ruínas de uma cidade que aqui foi fundada em 190 a. C pelo mesmo rei, Eumenes II. Do outro, uma curiosa formação rochosa com socalcos com piscinas termais que mais parece neve, gelo, um glaciar inteiro. Ambas património da UNESCO, acessíveis num só bilhete a 50 liras (cerca de oito euros). Sigamos Huzur, que já serpenteia pelo passado helénico, romano e bizantino. Homem esguio, de rabo-de-cavalo, coração do rock (Pink Floyd, AC/DC, Led Zeppelin) e um farto bigode por baixo do longo e característico nariz. São, percebemos depois, orgulhosos símbolos da sua etnia — a esse propósito, conta uma piada: “Todos os laz têm um bigode. Porque temos sempre de sublinhar as coisas importantes. ”Em Hierápolis, onde se pisam pedras com 1400 anos que denunciam as marcas da passagem das carruagens, jaz um dos maiores e mais bem preservados cemitérios da Europa. Até agora, foram descobertos 1300 túmulos, mas as escavações continuam — em 2011, os arqueólogos anunciaram ter encontrado o de São Filipe, apóstolo de Jesus (não foi o único a andar pela área) a poucos metros das ruínas da igreja dedicada ao seu martírio. Estamos numa “cidade sagrada”, como dizem que o nome indica, outrora conhecida como “cidade dos templos”. Se começou por ser um centro balnear e terapêutico, aproveitando a riqueza das águas termais que por ali passam, depressa se tornou também num lugar espiritual e religioso que, considera Huzur, terá desempenhado um papel de destaque na antiguidade. Prova disso foi a rapidez com que, a mando do imperador Nero, a cidade foi reconstruída em 60 d. C. , depois de um violento terramoto. Aliás, por se situar na linha de uma falha tectónica, Hierápolis foi, ao longo de toda a sua história, vítima de sismos, entre os quais um no século XIV, que a votou ao abandono. Por aqui, há ainda para ver, entre outras relíquias, um teatro tipicamente romano, com 50 fileiras de degraus e capacidade para entre 12 a 15 mil pessoas, as monumentais fontes Nymphaeum, o complexo de banhos, a latrina, a Ágora, uma das mais largas alguma vez descobertas, com pórticos em mármore e a basílica ao fundo, e o Ploutonion, templo construído em honra de Plutão, por cima de uma gruta de onde saía dióxido de carbono, devido à actividade geológica subterrânea, que os locais consideravam ser um sinal divino do submundo. Claro que, tratando-se de uma cidade que brotou das águas termais, também é possível nadar por cima de ruínas, entre estradas, colunas e capitéis que pertenciam ao Templo de Apolo ali ao lado. E a 36 ºC. Por mais 50 liras, pode-se experimentar a pitoresca e cristalina Antique Pool, também conhecida como a piscina de Cleópatra, pois, diz o mito romântico, chegou acolher a famosa rainha. As águas quentes, ricas em cálcio, magnésio e bicarbonato, são uma das atracções da zona, por onde pululam hotéis com spa e banhos termais — atenção que em época alta chega a haver lotação esgotada. E são elas as grandes responsáveis por esculpirem aquilo que é Pamukkale, local que à chegada nos faz esfregar os olhos para nos sabermos neste mundo. Há milhares de anos que a água quente que corre por entre estas rochas deixa sedimentos de carbonato de cálcio, que, com o tempo, cristaliza e se transforma em travertino. Existem outras paisagens naturais semelhantes no mundo, mas nenhuma inspirou a criação de uma cidade como Hierápolis, com ruínas prontas a ser tacteadas nos dias de hoje. Chamam-lhe castelo de algodão, epíteto que lhe assenta, achámos nós, ainda antes de ouvirmos a explicação pela voz do guia. Pamuk significa algodão, o típico cultivo da zona, a alvura da paisagem; kale é castelo, são as ruínas que nos observam, aquelas de onde viemos. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Este longo manto alvo estende-se hoje por centenas de metros de comprimento e, diz quem sabe — Huzur, mais uma vez —, cresce em média três milímetros por ano. A água azul leitosa corre de terraço em terraço e pode ser um exercício divertido descobrir quais são as piscinas quentes e as frias. Sempre descalços e com cuidado para não se escorregar. Recomenda-se também atenção para não participar, inadvertidamente, nalguma sessão de fotos mais atrevida ou numa selfie mais influente — é um local popular, que atrai mais de dois milhões de visitantes por ano, por isso os madrugadores são recompensados. Nalguns locais, o branco é tão branco que quase dá frio. . . mas estão quase 30 graus. É neve? É o espaço? É um sonho? Ou é magia? É tudo. É a Turquia a dar-nos as boas-vindas. A Fugas viajou a convite do Club Med e da Turkish Airlines
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Benfica visita Montalegre nos "oitavos" da Taça
"Águias" defrontam única equipa do Campeonato de Portugal nos oitavos-de-final da Taça de Portugal. FC Porto recebe Moreirense e o Sporting defronta Rio Ave em Alvalade. (...)

Benfica visita Montalegre nos "oitavos" da Taça
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.0
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: "Águias" defrontam única equipa do Campeonato de Portugal nos oitavos-de-final da Taça de Portugal. FC Porto recebe Moreirense e o Sporting defronta Rio Ave em Alvalade.
TEXTO: Já se conhece o quadro de jogos dos oitavos-de-final da Taça de Portugal. O Sporting terá, em teoria, a partida mais complicada. Os "leões" recebem o Rio Ave, quinto classificado da Liga NOS. O FC Porto também receberá uma equipa da Primeira Liga. O Moreirense será o adversário dos "dragões" na quinta eliminatória da prova rainha do futebol nacional. O Benfica visitará o Montalegre, único clube do Campeonato de Portugal presente nesta fase da prova. FC Porto – MoreirenseBoavista – Vitória de GuimarãesLeixões – TondelaMontalegre – BenficaVitória de Setúbal – SC BragaSubscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Aves – ChavesFeirense – Paços de FerreiraSporting – Rio Ave
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Palavras-chave rainha aves
“Nós, os portugueses, somos óptimos”
Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente fez-lhe um telefonema "sentimental e delicodoce": disse ao homem que na sua opinião foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas que gostava muito dele. O historiador prevê que Bolsonaro possa acabar com o Estado federal brasileiro, diz que as ciências sociais são “uma fraude” e que hoje “não há direita em Portugal”. (...)

“Nós, os portugueses, somos óptimos”
MINORIA(S): Animais Pontuação: 2 Mulheres Pontuação: 2 | Sentimento 0.8
DATA: 2018-11-30 | Jornal Público
SUMÁRIO: Um mês antes de Mário Soares morrer, Vasco Pulido Valente fez-lhe um telefonema "sentimental e delicodoce": disse ao homem que na sua opinião foi a grande figura da história portuguesa desde as Invasões Francesas que gostava muito dele. O historiador prevê que Bolsonaro possa acabar com o Estado federal brasileiro, diz que as ciências sociais são “uma fraude” e que hoje “não há direita em Portugal”.
TEXTO: Vasco Pulido Valente anda a reler A Educação Sentimental, de Flaubert. Interessa-lhe agora perceber o que é que Eça de Queiroz foi ali beber para escrever Os Maias. Na sua casa perto da Praça de Londres, em Lisboa, continua um observador implacável e surpreendente do mundo em que vive. Vasco Pulido Valente não acredita no mito da falta de auto-estima nacional: os mil anos de história deram-nos uma segurança imbatível. E também os Descobrimentos. Por ele, o famoso museu até se podia chamar "museu do mundo português", a fazer lembrar a exposição do Estado Novo, de que António Ferro foi secretário-geral. Encontrou no fundo da gaveta dois ensaios de história de Portugal. Há no fundo dessa gaveta algum texto jornalístico perdido?Não, não há. Tudo que escreveu para jornais acabou por ser publicado em livro?Eu sempre trabalhei muito bem por encomenda. Escrever bem é fundamental para o jornalismo e para a história?Com certeza, a história é um género literário, não é uma ciência. O resto que a academia acha que são ciências — a sociologia, as ciências políticas e sobretudo as relações internacionais —são fraudes, pura e simplesmente. Essa opinião a academia não gosta de ouvir. Acha que não há uma objectividade na história, pelo menos uma procura da objectividade?Há história bem fundamentada em documentos de vária ordem. Até há ficção romanesca. Estávamos há bocado a falar de A Educação Sentimental [de Gustave Flaubert] — é um documento histórico, tanto sobre a época em que se passa, como sobre a época em que foi escrito. Mais sobre a época em que foi escrito, claro. Depois há a história fantasiosa, inventada e isso não é história. E depois há a história que finge que é científica e não é. E que produziu uma data de história que não serve de nada a ninguém. Dê-nos exemplos dessa história que não serve de nada a ninguém?O [Fernand] Braudel, quase todo. A Gramática das Civilizações não é um livro interessante, o Mediterrâneo [O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II] não é interessante?O Mediterrâneo é vagamente interessante, mas muito pouco esclarecedor. Quer dizer, é uma curiosidade. Foi um mal-entendido que produziu uma história inútil. Quem é que na historiografia portuguesa escreve bem?O Rui Ramos não escreve mal. Escreve bem. Não se lembra de mais nenhum?Não me lembro de mais nenhum. Não li nenhum livro interessante [de historiadores portugueses] e tenho lido livros que são como o Marcelo — implausíveis. Lê-se e não se acredita. Com o Marcelo vê-se e não se acredita. Que livros implausíveis são esses?Há uma História da Europa, soi disant, sob o ponto de vista da classe operária escrita pela Raquel Varela. Nunca vi tanta ignorância junta. É um abismo de ignorância, não só sobre a história da Europa entre 1914 e 1945, como sobre a história da classe operária que ela não conhece. Isto mostra como está a sociedade portuguesa. Está pior que em 1950, 1960?Não. A universidade do salazarismo era um pesadelo. Esta não é um pesadelo, é só inacreditável. A outra pesava e era moralmente desprezível. Só os filhos dos privilegiados podiam lá chegar, ninguém mais lá entrava. Quando eu entrei para a universidade, em todas as universidades portuguesas havia 6000 alunos. Estamos a falar de. . . 1958. Calcule, seis mil alunos! Há escolas secundárias que têm 3 mil e universidades do interior que têm 6 mil. Era moralmente vergonhoso, académica e absolutamente nulo, embora aquela gente se desse ares de grande importância. Não houve uma pessoa que tivesse deixado obra. Não houve um professor que lhe tenha deixado saudades, ou o tenha inspirado?O padre Manuel Antunes deixou-me algumas saudades, mais pela pessoa que era do que pelo que me ensinou. O meu grande professor foi o Osvald Market, em filosofia, que era espanhol. Era um professor da Universidade Complutense [de Madrid] que tinha lá alguns conflitos com as autoridades franquistas e veio para Portugal e obrigou-nos a saber algumas coisas de filosofia. Quando foi para Inglaterra em 1968 notou uma grande diferença, uma mudança total?Fiquei absolutamente estupefacto. O primeiro ano que passei em Inglaterra passei-o a estudar 14 horas por dia. Fui conversar com o meu supervisor e dizia “eu não sei isto". E com toda a calma o meu supervisor dizia "não sabe, mas tem que saber". E depois eram os colegas. Conversavam uns com os outros e eu às vezes não percebia do que eles estavam a falar. Por isso tinha que estudar mais que eles para os acompanhar?Ficava envergonhado de não saber. Uma vez estavam a falar todos entusiasmados que tinham saído as memórias do Alexandre Herzen. . . Quem?Era um emigrado russo que era casado com uma senhora chamada Natalie Herzen. Foi um dos primeiros grandes escândalos públicos porque se separaram, ela arranjou um amante e ele continuou amigo dela, etc. Era um grande homem do romantismo, pelo seu comportamento. Era filho bastardo de um grande potentado russo, muito rico, tinha uma grande casa em Londres e recebia toda a gente que fugia da Rússia, vinha o Bakunine, vinha o [Georg] Herwegh que foi quem fugiu com a Natalie. Ele fez um jornal que imprimia em Londres e que depois entrava na Rússia clandestinamente. Era um jornal de oposição ao czarismo, chamava-se Kolokol — o sino. E o Lenine copiou o jornal dele. Isto no final do século XIX. . . Eles fugiram da Rússia em 1848. E as memórias que tinham sido publicadas — e foram agora republicadas — eram extraordinárias. É um grande livro, uma das grandes memórias que se escreveram no mundo. E então ouvia os seus colegas a falar das memórias. . . Sim, ouvíamos a falar das memórias do Herzen e eu não sabia quem era. Já tinha 30 anos na altura?Tinha 27 e alguns deles eram mais novos do que eu. E não percebia metade da conversa, eles explicavam-me, eu ia para casa, ia comprar os livros, ia ler. Fiz isso durante os cinco anos em Oxford. Lia, lia, lia. Como foi crescer em ditadura?O pior foi a universidade. Durante o liceu, sabe como é. . . Naquele período da adolescência difícil as pessoas estavam completamente absorvidas por si. Eu era um privilegiado, cá em casa comiam-se bifes com batatas fritas. Eu vivia nesta casa onde vivo hoje [perto da Praça de Londres, em Lisboa]. Eu não tinha frio, comprava os jornais, o Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras. Não senti muito a ditadura. Sabia que havia uma ditadura, pelos meus pais, pela minha família, pelos amigos dos meus pais que eram contra a ditadura. O escritor Manuel Mendes, que toda a gente já esqueceu. Era amigo dos seus amigos, o Manuel Mendes?Sim, era um grande homem da oposição. Tinha feito contrabando de armas para Espanha durante a Guerra Civil, com muita coragem. E depois, quando aconteceu a derrota, fez uma operação clandestina em que salvou muitas pessoas. O Fernando Lopes-Graça era outro amigo da casa. O Graça é padrinho da minha irmã. Vinha também o Mário Dionísio e a Maria Letícia, de quem eu gostava muito. Naturalmente, eu fui absorvendo, mas, como calcula, aos 13 anos eu estava muito mais preocupado comigo do que com o mundo. Teve uma adolescência difícil? São todas. . . As adolescências são todas difíceis. Eu tive uma adolescência particularmente difícil porque tinha muitos conflitos com a minha mãe. E acabei por ir para colégios internos, um que era quase um presídio, que era o Colégio Nuno Álvares, em Tomar. Mas era muito rebelde?Tinha conflitos com a minha mãe, não quero entrar em pormenores. Era incompatível com a minha mãe. Fui para o Nuno Álvares e fiz lá o exame do 5. º ano e depois fui interno para o Colégio Moderno, ali para o Campo Grande, até acabar o 7. º ano. Que era muito melhor que o de Tomar?Ah, era muito melhor e muito mais indisciplinado. Basta dizer que era dirigido pelo dr. Mário Soares. Foi aí que conheceu Mário Soares?Não, eu conheci o dr. Mário Soares quando tinha quatro anos. Na prisão, claro. Pois. Uma das memórias mais antigas que eu tenho, é da cara dele a rir-se e a cara do meu tio [Fernando Pulido Valente] ao lado dele tétrica. E eu gostava do dr. Soares e não gostava do meu tio, claro [risos]. O dr. Mário Soares era amigo dos meus pais. O meu pai trabalhava no Norte e tinha uma casa por onde passavam os oposicionistas. Era uma casa grande, com vários quartos. Depois a empresa mudou-se cá para baixo. E eu lembro-me perfeitamente do dr. Mário Soares a almoçar lá em casa. A casa tinha aquela vinha. . . De ramada. . . Lembro-me dele com a sombra das folhas na cara. Devo ter achado aquilo bonito. . . E como era a juventude em Lisboa nos anos 70? Era divertida ou o ambiente era bafiento como o regime?Era bafientíssimo. Quando me casei, os meus poderes sobre a minha mulher eram extraordinários. A gente ria-se disso, claro. Não levávamos isso a sério. Ela não podia viajar sem a minha assinatura e se ela fugisse de casa eu podia dizer à polícia para a prenderem e ma entregarem. Era uma figura jurídica chamada "devolução do corpo". Era uma coisa horrível. Quando eu cheguei à juventude já havia pouca gente que fosse fervorosamente salazarista, aquilo já durava há muito tempo, já tinha havido a II Guerra Mundial, o grande desenvolvimento económico dos anos 50 que foi uma coisa extraordinária, mas não mudou o regime e depois foi canalizado para o esforço de guerra. Sabíamos o que se passava em Paris, muito vagamente. Mas sabíamos que existia a Brigitte Bardot e havia filmes do [Roger] Vadim. Passavam aqui alguns. Por que é que escolheu o século XIX como historiador? Embora O Poder e o Povo seja sobre a República. Os livros de história não são sobre a República, nem sobre isto nem sobre aquilo. São sobre o problema. O problema ali era compreender por que processo tinha havido durante pelo menos oito anos de República um terrorismo de massa. Como é que havia um regime que podia ser sustentado por um terrorismo de massa. Esse é que é o problema. E aquele era um bom período para eu poder examinar aquele problema. Os velhos republicanos e quem lhes sucedeu continuam a não aceitar que a Carbonária era uma organização terrorista. A Carbonária teve muitos nomes. Houve muitas carbonárias. A Carbonária pós-revolucionária não é igual à Carbonária revolucionária do Machado Santos. A Carbonária que fez a República esteve sempre contra aquela República. E depois houve outras organizações, algumas fluidas, outras mais rígidas, com comando, que dominaram o país durante muito tempo e foram exportadas de Lisboa para Trás-os-Montes, para Chaves, para o Minho. . . O dr. Mário Soares ficou muito ofendido quando leu a história da República Velha. Ele leu antes da publicação, eu andava com aquilo na mão e ele estava com curiosidade e emprestei-lhe. Ele leu aquilo e ficou furioso. Mas muito tempo depois, em casa dele, disse-me: "Talvez tenhas razão. Eu não sou o Afonso Costa da República, sou o António José de Almeida". E subscreve essa leitura?Não, ele foi muito melhor que o António José de Almeida, que era um pobre pateta. O Mário Soares era um grande homem. Houve alguém na Revolução de Abril que quis ser o Afonso Costa da República?O Cunhal foi o Afonso Costa. Não chegou a ser porque não chegou ao poder. . . Se não tivesse perdido o 25 de Novembro tinha havido terrorismo em Portugal. Acha mesmo que Mário Soares é a grande figura nacional?É a grande figura da História Portuguesa Moderna. Parágrafo. Está a falar do século XX. . . Não, da História desde as invasões francesas, do século XIX e século XX. Porque diz isso?Porque foi ele que fez a democracia portuguesa. E não fez só, como as pessoas normalmente acham, no PREC [Processo Revolucionário em Curso, anos 1974-75] contra os pseudo-revolucionários. Fez também depois contra o [Ramalho] Eanes e o partido populista e militarista que se chamava PRD [Partido Renovador Democrático]. Ele nunca perdeu isso de vista, teve sempre a noção do que era necessário à democracia portuguesa. Mesmo ao Sá Carneiro fez uma oposição com meio-coração. Ele percebia que aquilo era necessário. Não gostava, mas percebia que aquela coisa precisava de ser feita. A direita precisava de ir legalmente para o poder. Era a maneira do regime se nacionalizar. Toda a gente podia governar a partir dali. Não haveria razão para fazer golpes de espécie nenhuma, de usar meios de violência ou extra-constitucionais contra o regime. Ele próprio não usou. Dali em diante fez tudo constitucionalmente. Foram muito amigos, mas tiveram grandes zangas. . . Fomos amigos?O dr. Mário Soares gostava de si. . . Eu não era amigo do dr. Soares. O dr. Soares fazia o favor de gostar de mim. . . às vezes. Às vezes gostava de mim. Ele confiava em si. Confiava. E quando ele morreu estávamos em muito bons termos. Um mês antes dele morrer fiz-lhe um telefonema sentimental e delicodoce em que lhe disse que gostava muito dele. Mas dizer ‘amigos’ é excessivo. Amigos implica uma relação de igualdade que eu nunca tive com o dr. Soares. O dr. Soares não me ligava muito. Não lhe ligava muito?Não, não ligava muito. Eu não era importante na vida do dr. Soares, nem na vida política, nem na vida pessoal. Quando eu aparecia por qualquer razão, ou quando ele queria falar comigo por qualquer razão, encontrávamo-nos em casa de amigos comuns. Nós gostávamos de falar, ele era muito simpático comigo. Quando trabalhei com ele, tratava-me como se eu fosse sobrinho dele, ou seja, mal. Muito mal. E era assim. Eu não era amigo do dr. Soares, quanto muito o dr. Soares fazia o favor de ser meu amigo. Tem que se resistir a esta tendência que as pessoas velhas têm de ampliar o seu papel no mundo. Então o problema de O Poder e o Povo não está presente na sociedade portuguesa contemporânea. E o poder de Os Devoristas continua?O problema de Os Devoristas também não e nunca foi. O dr. Álvaro Cunhal e a gente que nacionalizou a economia portuguesa depois do 11 de Março não estavam à espera de viver daquelas empresas. O dr. Cunhal não queria ser dono da Siderurgia [Nacional]. Mas nas privatizações não houve um pouco a repetição desse problema [do ‘devorismo’ da classe política liberal que em 1834-36 se apossou dos bens desamortizados da Igreja]?Eu tinha amigos comunistas naquela altura e sempre lhes disse que eles estavam equivocados. As pessoas que administravam aquelas empresas que eles andavam a nacionalizar — e que eles tinham que deixar no lugar porque não tinham outras — não eram comunistas nem nunca seriam. Sempre lhes disse que se pensassem em quem viria a gerir o país se houvesse comunismo olhassem para aquela gente, que viraria a casaca como viraram muitíssimos. Viravam a casaca com a mesma tranquilidade quer fosse o Partido Comunista ou o Champalimaud ou o Mello a mandar naquilo. Eram administradores. Eram oportunistas?Eram uma classe social necessária. Nos anos 50 e nos anos 60 a nossa economia já se tinha desenvolvido o suficiente para ter uma Siderurgia. Nós não éramos Cuba, aquele deserto com dois casebres e umas fábricas de tabaco, de charutos. Tínhamos que exportar para a Europa, importar. Eles tinham que deixar aquela gente onde estava. Aliás, muita dela ficou contente porque não gostava dos patrões. Houve sujeitos desses, administradores de bancos, da CUF que em conversas, em jantares, em reuniões, começaram a expelir a gramática elementar do Partido Comunista Português. Acha que em Portugal aconteceu em grande escala?Perto de mim aconteceu em grande escala. Nos meus amigos, na minha geração aconteceu em grande escala. Houve uma submissão intelectual à cartilha do PCP. Mas foi em 74-75, também acabou rapidamente…74, 75, 76, 77. Quando fui para o Governo de Sá Carneiro, amigos meus encontravam-me na rua e chamavam-me fascista. E também me chamavam fascista nos jornais. Foram anos e anos. Quando eu fui secretário de Estado da Cultura, fui informado pelos serviços que havia muitos roubos. Era um prédio na Avenida da República, que tinha garagem no subterrâneo. Havia pessoas que saiam mais tarde, esperavam que não estivesse ninguém no prédio e levavam tudo o que lhes apetecia, candeeiros, móveis, máquinas de filmar, tudo. Depois metiam nas bagageiras dos automóveis e levavam para casa. E eu contratei uma dessas empresas de segurança, que puseram à porta dois guardas para revistar os automóveis. Eles tiraram fotografias aos guardas com o seguinte título: "As SS na Cultura". Este ambiente durou até muito tarde. Até aos anos 80?Até aos anos 90. Sobretudo na Universidade, o Partido Comunista era uma boa máquina de promoção de pessoas. Tratava bem os seus, passou a tratar bem a extrema-esquerda e, como eles diziam, definir quem era o inimigo, as pessoas que não deviam ser promovidas. Quando o Instituto começou [ICS, Instituto de Ciências Sociais] eu era a pessoa mais graduada. Havia só dois doutorados, eu e a Maria Filomena Mónica. Eu era o mais antigo. O ICS começa em que ano?Durante o Governo Balsemão. E passaram-me à frente não sei quantos. . . Mas não havia maneira de contestar isso?Essas coisas não se contestam. São impalpáveis. E depois era o Instituto de Ciências Sociais, quando as Ciências Sociais são uma entidade que não existe. As Ciências Sociais têm o mesmo estatuto ontológico de Deus: não existem. É um negacionista das Ciências Sociais?Aquilo é uma aldrabice, uma pura aldrabice. Dá os resultados que as pessoas querem que dê. Ou dá resultados absolutamente insignificantes. Está a falar da Sociologia?Da Sociologia, da Ciência Política, das Relações Internacionais. Sabe o que é que aconteceu nas Relações Internacionais? Foi uma disciplina que se introduziu nos currículos das universidades americanas porque o Estado americano precisava de pessoas que conhecessem o mundo, que conhecessem a geografia do mundo, a diversidade das populações, das culturas, etc. O americano médio não sabe onde é que é a China e os Estados Unidos que são uma potência mundial precisavam de recrutar pessoas para o Exército, em primeiro lugar, e depois para a CIA, e para todos os serviços que tinham contactos directos com o estrangeiro. As Relações Internacionais serviam aos Estados Unidos para isso. Aquilo era um curso de preparação de funcionários de que o Estado precisava. Em Portugal não serve para nada. O nosso Exército, a nossa diplomacia, precisam de três ou quatro cursos de Relações Internacionais? Precisam de preparar funcionários?Então acha que os cursos de Relações Internacionais são uma importação americana inútil?É uma inutilidade americana que tem estatuto universitário. E a Ciência Política é a mesma coisa. O que é que se aprende nas Ciências Políticas?Os diferentes sistemas políticos e constitucionais do mundo. . . Isso faz parte da cultura geral. Os livros do [José] Sócrates são um bom exemplo de ciência política. Leu?Li, claro. Não estou a dizer que ele copiou, o que ali está foi escrito por ele. Ele leu 20 livros, com sorte. E depois espalhou umas citações e umas conversas por ali fora durante 150 páginas. E deve achar aquilo um extraordinário trabalho, o que é que se há-de fazer. Não recomendaria, portanto? É tempo perdido lê-lo?As Ciências Políticas são tempo perdido, não particularmente o livro do Sócrates. Eu só li o primeiro que se chamava A Confiança no Mundo. E vai ler o segundo livro de memórias de Cavaco Silva que é lançado para a semana?Não li o primeiro e não vou ler o segundo. Porque é que sempre desprezou tanto Cavaco Silva?Eu nunca desprezei Cavaco Silva. Notava-se nas suas crónicas. Acho que o professor Cavaco Silva, quando foi primeiro-ministro, fez muito mal a este país. Teve muito dinheiro para modernizar este país. . . E modernizou… As estradas eram precisas. Fez más escolhas. O dr. Cavaco não percebeu que o que era preciso era fazer a reforma de Portugal, explicar o que está mal politicamente e aplicar o dinheiro a fazer melhor. E não foi isso que ele fez. Fez umas estradas, deu uns subsídios para a agricultura e para acabar com a agricultura de subsistência e claro que não acabou. Deu dinheiro a pessoas que tinham duas vacas para deixarem de ter duas vacas. Receberam o dinheiro, compraram uma mota e abriram um café. De repente havia cafés por todo o país e a agricultura de subsistência continuou. Não explicou o que estava mal, não explicou a situação que tínhamos que era patética — ainda hoje é. Se ele queria a participação dos portugueses na modernização de Portugal, e eu acho que devia ter querido, tinha de explicar em que país vivíamos e o que ia fazer para o mudar. E não fez nem uma coisa nem outra?Fez umas mudanças sem explicar. Algumas delas foram feitas por pessoas que as explicaram mal. Dê um exemplo. Houve uma ideia que era boa — e que eu critiquei na altura, mas critiquei mal — de meter toda a gente no sistema de ensino. Foi uma trapalhada. Não havia professores, não havia disciplina nas escolas. Mas aquilo era absolutamente necessário. Na altura não se podia escolher. Eu estava enganado, eles estavam certos. Mas em vez de dizerem porque não se podia estar a escolher, tomaram uma posição que era dizer "nós não podemos ver um aluno fora do sistema". . . Foi uma coisa mal feita. Cavaco é muito inculto e começa por ser muito inculto politicamente. Uma pessoa que fosse culta politicamente e tivesse as boas intenções que ele tinha teria tido a preocupação de explicar aos portugueses o que estava mal e o que é que ele ia fazer. Eu uma vez ofereci-lhe uma viagem a Itália publicamente, disse que lhe pagava tudo se ele fosse passar um mês a Itália. . . Ele dizia que Portugal estava na moda, mas nem percebia o que era Portugal e o que estava a dizer aos portugueses era precisamente a coisa errada. Os portugueses já têm um altíssimo sentimento de superioridade. . . Acha que os portugueses têm sentimento de superioridade?Têm! Com certeza que sim!Acha mesmo? Por que é que diz isso?Está a dizer isso porque os portugueses dizem mal dos outros portugueses e de Portugal. Mas isso significa que têm a segurança necessária e suficiente para dizerem mal de Portugal e dos portugueses. Vá arranjar um húngaro que diga mal da Hungria e dos húngaros! Não arranja um! Pronto, deve haver um. Isto é um exagero retórico. Encontre um polaco que diga mal da Polónia como nós dizemos de Portugal. . . Deve haver poucos. Nós somos seguríssimos. A coisa mais importante que é preciso ter na Europa nós temos, que é a nacionalidade. Temos mil anos. Leia o ensaio da Hannah Arendt sobre a nacionalidade. Se você não tiver nacionalidade não existe. Portanto, ter um estado-nação com estas características é uma vantagem nesta altura. . . Com certeza. Os portugueses têm uma segurança que ninguém tem. Inabalável. O que custou a alguns portugueses foi deixar de ser portugueses porque a nacionalidade os perseguia mesmo quando eram exilados. Anos e anos depois continuavam a ser portugueses. Uns continuam a ser portugueses porque ensinam português em universidades estrangeiras ou escrevem para jornais portugueses, outros porque são do Benfica ou do Sporting. Mas continuam todos a ser portugueses. Temos uma nacionalidade inabalável e não é só por termos fronteiras. É porque em Angola se fala português quase sem acento, porque no Brasil se fala português, porque demos a volta ao mundo — bem sei que foi no século XV e XVI. Mas isso é um pilar, nós não precisamos de provar nada ao mundo. Um país tão pequenino que fala português como o Brasil, como Angola, deu a volta ao mundo e foi à Índia. . . Isso deve-nos orgulhar?Não é orgulhar. É o não termos que provar nada a ninguém. Nós somos óptimos!Se se chamasse museu dos Descobrimentos para si não era problema nenhum?Não era problema nenhum. Essa coisa do esclavagismo é muito simples. Nós não tínhamos dinheiro, quando se começou a fazer o comércio de escravos intensamente, não tínhamos dinheiro para ter uma Armada que vigiasse a costa de Angola e de Cabo Verde. Era uma fronteira livre, pilhava-se tudo, homens, mulheres, crianças, ouro, pedras. Ninguém em Portugal era oficialmente pela escravatura, que não existia legalmente desde 1876. É verdade que houve escravos até muito tarde em Portugal, que acabaram por se fundir na população. No século XVII o padre António Vieira começou a pregar contra a escravatura e contra os abusos dos brancos. Mas Portugal não tinha meios para patrulhar as costas para impedir o comércio de escravos. Acha que esta discussão toda é um sintoma do politicamente correcto?É para estes senhores e estas senhoras justificarem a sua existência. Os propagandistas do politicamente correcto são muitas vezes ignorantes e o que eles dizem é muitas vezes grotesco. Mas, se repararem bem, o politicamente correcto é o individualismo, são tudo causas individualistas, são causas para libertar o indivíduo e lhe devolver o livre arbítrio, até ao ponto de eu escolher se quero morrer. Ao Estado português não interessa se um indivíduo quer morrer, há muita gente que quer morrer. O problema é saber quem o mata. O médico assistente? Haverá médicos no hospital especialistas em matar pessoas? Uma espécie de carrascos com o curso de Medicina?Mas o museu dos Descobrimentos é uma proposta do PS, de Fernando Medina, que só recuou por causa de protestos de alguns académicos. Eu tenho um nome que até foi usado por Salazar que é o "Museu do Mundo Português"A exposição de 1940 era a Exposição do Mundo Português. Se o museu dos Descobrimentos já causa polémica, imagine-se esse. . . Esse é mesmo neocolonialista. Não é. É contar o mundo que, no passado, foi dos portugueses. É passado. O que foi efectivamente, bom, mau ou assim-assim, Como é que vê a direita portuguesa hoje?A direita portuguesa hoje não existe. Existem pessoas de direita, não existe direita. O Rui Rio é uma desgraça?De Rui Rio não vale a pena falar, já toda a gente percebeu quem é. O Rui Rio é uma desgraça, mas não é por estar mais à esquerda. É por ser ele. É um homem de ideias fixas, ultra-autoritário e convencido da sua superioridade como ninguém no mundo político. O único critério, para o Rui Rio, é saber se alguém está de acordo com ele. De resto, vê-se pelas intervenções que faz. Ele acha que é superior a tudo e que toda a gente tarde ou cedo há-de reconhecer isso porque ele é um homem honesto e genial. E o país não pode ser governado por ninguém tão bom como ele. Ele fala como se estivesse a oferecer a verdade única aos portugueses. Ele está mesmo convencido que é uma pessoa superior e que percebe perfeitamente o que é Portugal. Ele apela ao voto dos abstencionistas porque acredita mesmo que com o seu exemplo de virtude acabarão a votar nele. O Rui Rio é uma anomalia no sistema político. Não há ali também um toque de populismo?Não. . . Há só aquele desvario. É uma pessoa alucinada. E Assunção Cristas?A Assunção Cristas, coitada, o que é que ela há-de fazer? Está à espera que Rui Rio lhe dê os votos para aumentar o CDS. Eu já disse que isso não é uma política, é um desejo. Não acha que o CDS pode crescer?Acho que a direita perdeu definitivamente os votos que perdeu em 2015. Não voltam. Com esta direita não voltam. Então António Costa terá maioria absoluta?Costa não precisa da maioria absoluta para nada. Só precisa de ter mais votos do que o PSD e o CDS e mais votos do que o Bloco e o PCP. E assim não pode ser removido. Para que fosse removido era preciso uma aliança entre a direita e a esquerda. Essa aliança é impossível e ele pode governar o país muito tranquilamente fazendo exactamente o que está a fazer. O único perigo que ele tem é que o PS e o Bloco possam fazer maioria. Isso é um perigo?É um perigo, porque nessa situação a esquerda do PS vai pressionar Costa a fazer as grandes reformas de que fala o Pedro Nuno Santos, como a nacionalização completa do sistema de saúde, acabar com as parcerias público-privadas, a dedicação exclusiva dos médicos. . . E criar um Estado muito maior e muito mais rígido. Isso é muito apelativo na franja esquerda do PS e no Bloco inteiro. António Costa vai ter grandes pressões para fazer essa aliança e uma parte do partido pode fazer uma cisão. Acha que é mesmo possível uma cisão?Então não é! Quantas já não houve!Pedro Passos Coelho vai voltar à vida política?Não sei. Gosta dele?Gosto muito dele, mas ele é uma pessoa muito distante. É difícil percebê-lo. Tem um extraordinário autodomínio. O que ele deixa sair sobre o que se passa na cabeça dele é muito pouco. Para mim é um mistério, não sei o que está a pensar sobre o que pode ser o futuro dele. Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos do Público. Vamos então acabar a entrevista. . . Vocês não me perguntaram nada sobre política internacional, mas eu queria dizer duas coisas. Primeiro, sobre Espanha. Espanta-me muito que a esquerda europeia, que fala muito do populismo húngaro e do populismo polaco, ainda não tenha percebido que o populismo mais grave e evidente que há na Europa é o populismo catalão. Na linguagem da esquerda portuguesa, o populismo catalão é a democracia catalã. Estamos conversados. Depois espanta-me imenso que, nos jornais e nas televisões, as pessoas falem da "geringonça espanhola". Tenho muita pena, mas o Governo de Espanha é a aliança da Guerra Civil. É por isso que no dia da Hispanidade, [o presidente do Governo Pedro] Sánchez é insultado, porque ninguém lhe reconhece o direito de falar da Hispanidade. Ele está a pôr em perigo a hispanidade com aquela aliança. Nós não percebemos a história espanhola, mas os espanhóis estão relativamente informados. E quanto ao [Jair] Bolsonaro, digo só isto: os anos 20, no mundo de hoje, vão ser como os anos 30 do século passado. Vai haver uma vontade de afirmação do nacionalismo por todo o mundo ou mesmo, em casos como o do Estado brasileiro, a pura e simples ruína. Os Estados da América Latina são muito frágeis. Fala-se hoje muito no Brasil do separatismo. Não acho que Bolsonaro vá implantar o fascismo no Brasil, o que ele pode é acabar com o Estado federal brasileiro. Está a dizer que a situação lembra os anos 30 do século XX. Receia um epílogo como aconteceu nos anos 30?Não faço essas comparações. O que estou a dizer é que há nacionalismos demais a quererem-se afirmar, alguns com toda a razão como o da Polónia e o da Hungria. Só existem como estados autónomos há 30 anos. Como é que esses estados hão-de ser liberais e democráticos? É evidente que são nacionalistas e populistas. Antes de mais nada, têm que afirmar a sua nacionalidade. Não são como os portugueses, que são portugueses há mil anos. São húngaros e polacos há 30 anos, com as fronteiras e composição populacional que têm agora que já de si é complicada, mais complicada na Hungria e na Polónia. E há a Itália que não é um Estado, nunca foi. Eles têm arranjado maneira de se equilibrar na corda bamba, mas nenhum deles leva a nacionalidade a sério. Basta ler a Elena Ferrante, tem uma tetralogia que eu li toda, extraordinária. Gostou da tetralogia de Elena Ferrante?Claro que gostei! Devia ser uma leitura obrigatória para todos os europeístas. A União Europeia hoje é um veneno e vai acabar.
REFERÊNCIAS: